Rei Rodrigo
p. 122-176
Texte intégral
Capitulo CLXXXVIII. Como morreo el rey Costa e das cousas que se seguiron despois da sua morte
1Conta a estoria que aquelle boo rey Bamba reynou doze annos. Ε, despois delle, reynou Hervigio dous annos. Despois da morte de Hervigio, reynou Egica, seu filho, dez annos. E, despois da morte del rey Egica, reynou Vetiza oyto annos. Despois de Vetiza, alçaron os Godos por rey em Espanha hũu que avya nome Costa; este reynou cinquo annos e sete meses. Ε, aa sua morte, ficaronlhe dous filhos de pequena ydade.
2Mas, tanto que aquelle rey Costa foy morto, o alvoroço foy muy grande ẽ na corte e tam grande volta per toda Espanha que era maravilha, ca muytos grandes fidalgos e ricos hornees que se aconteceron de seerem hy quando elle morreu nõ se queryam ben hũus aos outros. E, por esta razon, partironsse em duas partes e fezeron de sy dous bandos. Ε ho hũu dos bandos tomou hũu dos filhos del rey Costa e o outro bando tomou ho outro. O bando que tiinha o mayor filho dei rey Costa queria que fosse rey e o outro bando esso meesmo queriam que fos-se rey ho outro filho mais pequeno. Ε sobre esto era grande contenda, que cada hũu dos bandos queria fazer rey o filho del rey Costa que tiinha, dizendo que doutra guisa nom podya seer.
3Mas algũus ricos homeens honrrados, que nõ eram metidos ẽ estas partes, veendo tal devison, entenderon o mal que se dello podya seguyr; e por esta razon reprenderõnos muito, dizendolhes que faziam o que nõ devyam, querendosse levantar contra o senhorio d’Espanha. E elles responderon que se nom levantavã con os filhos del rey Costa por seerem contra o senhorio d’Espanha, ca esto era cousa que nom cóviinha aa nobre gente dos Godos, mas por que ainda nẽ hũu defies nõ era tamanho que reyno soubesse teer; e que, por os moços seerem guardados e criados, que por tanto faziã aquello, ca, se todos fossem acordados que fezessem reynar aaquella sazom algũuu defies, aquelles en cujo poder elle fica-se fariam tanto de mal aos outros seus inmiigos que seeriam destroidos. E, por estas razôoes que ditas avernos, aadur ouve villa em Espanha que se nom alçasse; e tam mal se tragiam hũus os outros como se fossem ëmiigos mortaaes.
4E, veendo os grandes fidalgos que nom eram desses bandos e outrossi os poboos o grande mal e destruiçon que por esto viinha aa terra, veeronsse a acordar de fazerem cortes e fazerem ẽ ellas tal regimento per que se a terra nõ perdesse. Ε foy assi que foron feitas. Ε acordaron em ellas que era bẽ de tomarẽ hũu homen que fosse tal que soubesse reger o reyno, ataa que os filhos dei rey Costa fossem tamanhos que o mayor delles podesse reynar; e que este homẽ nõ fosse de nem hũu dos bandos; e que fosse de boa fama e tal que regesse Espanha em todos seus boos custumes. Ε acharan que avya hi homẽ, boo cavalleiro em armas e muy esforçado, e que este era tal como elles demandavam e que daria a cada hũu o seu dereyto, que por nem hũa cousa o nõ leixaria de fazer; e demais que era primo coyrmão del rei Costa e que por esta razon averya mayor cuydado da criaçom e guarda dos seus filhos. E este cavalleiro avya nome dom Rodrigo.
Capitulo CLXXXIX. Como os Godos, em as cortes que fezeron, mandarom por dom Rodrigo pera o fazerem regedor em Spanha
5Tanto que aquello ouveró acordado, mandaron por dó Rodrigo. E, quando elle chegou ally onde estavã todos ajuntados em suas cortes, assy os grandes fidalgos come os procuradores de todollos poboos d’Espanha, disserólhe assy:
6“Dom Rodrigo, a vos fez Deus a mayor mercee que nüca fez a homen que nos possamos saber. Ε vedes o que vos fez: deuvos que ouvessedes de seer regedor d’Espanha e que vos façades como se fossedes rey. Ε esto nõ foy por vos seerdes herdeiro do reyno, mas foy por outra cousa por que vos devedes de teer por muy mais ben anjante, ca foi per outorgamẽto e grado de quantos nobres homẽes vos aqui veedes, assi clerigos como leigos. Ε praza a Deus que esto que vos assi fazem, que seja por seu serviço e prol da terra e honrra de todos aquelles que vos emlegeron.”
7E elle respondeu que faria quanto elles mandassem; e que Deus o quisesse ajudar que regesse ben e dereitamente. Enton se levantou ẽ meo de todos hũu nobre baron que avia nome Serat, que era homẽ muyto sisudo, e fez viĩrr o livro dos Santos Evangelhos em presença de quantos era presentes e disse:
8“Dom Rodrigo, vos poede as mãaos sobre este livro!” Ε elle pos as mãaos ẽ cima. Ε enton lhe disse aquelle Serat:
9“Dom Rodrigo, vos jurades a Deus e sobre estes Sanctos Evangelhos que bem e dereitamente guardedes e façades guardar os dereitos d’Espanha e que vos façades dereito em todo, assy aos pobres como aos ricos e aos grandes como aos pequenos? E, tanto que os filhos del rey Costa forem em tal tempo que possam e saybham mãteer o reyno, que vos per nosso outorgamẽto ho entreguedes aaquelle que nos tevermos por ben e que vos lhe façades menagen e façades a todollos outros que lha façam?”
10E dom Rodrigo jurou assy como lhe foy devisado. E, logo que elle ouve feito o dito juramento, todos aquelles que eram em essas cortes, que algo valliam, lhe fezeron menagen, como a senhor natural, que o servissem e fezessem por elle como por seu dereito senhor. Despois que elle ouve o senhorio e lhe todos fezeron menagen, como ia dissemos, tomou grande poder e foy sobre aquelles que tiinham os filhos del rei Costa e matouhos. Ε tomou os meninos e adusseos consigo e fezeos criar assy viçosos e tan honrradamente como cõviinha a filhos de rey. Ε tanto lhes fazia de boa criança e lhes mostrava d’amor que seu padre nom lhes poderia mais fazer. E, despois que foron crecendo, fazialhes tanto ben que esto era hũa grande maravilha. Ε assessegou toda Espanha e desfez todollos bandos.
11Que vos diremos de dom Rodrigo, se nõ que tanto disse e tanto fez aos hûus e aos outros e tanto bẽ soube reger sua fazenda e sofrer sua boa andãça que, pero que os meninos despois veerõ a tal estado que bem podera cada hũu defies aver siso de manteer e reger a terra, nõ ouve tarn ousado em toda Spanha que lhe ousasse dizer; que lhes entregasse o senhorio do reyno, nem elle nõ lho quis entregar? Ca todos os demais daquelles per que elle fora enlegido eram mortos e saidos d’Espanha, ca hũus matara elle e outros morreron de sua morte e outros, temor das cousas que lhes aveeron, sayronse fora d’Espanha. Ε por esta razon nõ ouve hi nẽ hũu que lhe contradissesse. Ε desta guisa se parou em Spanha e em tal maneira que poucos hy avia que nom fossem feitos da sua mâao.
12Ε, per tal maneira como avedes ouvido, fez fazer aos d’Espanha que o tomassen por rey. Ε elle foy feito rey. E, antre o tempo que foi regedor e que reynou, foron quinze annos.
Capitulo CXC. Como veeron a el rei dom Rodrigo os que guardavã a casa que Hercolles fezera em Tolledo, que deitasse em ella seu cadeado, segũdodo o que fezeram os outros reis que ãt’elle forom
13Despois que todas estas cousas assi aveeron como avedes ouvido, os que guardavam a casa de Tolledo veeron a el rei dom Rodrigo e diseronlhe assi:
14“Senhor, nos viimos a ti a te requerer que tu faças o que fezerõ todollos reis que ante ti reynaron ẽ Espanha, ca a ti cõvem de deitares teu cadeado em aquella casa que Hercolles fez en Tolledo, de que nos avernos a guarda.”
15Ε el rey lhes preguntou que casa era aquella de que lhe assi diziam ou por que razom avia elle de deitar em ella o seu cadeado. Ε elles lhe diseron:
16“Senhor, esto te diremos nos muy de grado, ca bẽ sabemos dello a verdade. Sabe que, quando o grande Hercolles passou ẽ Espanha e fez em ella aquellas cousas que todo o mũdodo sabe, fez em Tolledo hua casa tã sotil e per tam grande meestria que te nõ saberemos dizer como he feita nem per cujo siso. Ε esta casa he toda redonda que, se a vires, senhor, nõ te semelhara se nõ hũa cuba que esta alevantada sobre o tampon. Ε ben te podemos dizer em verdade que muytos homẽeses provaron se poderiam deitar per cima desta casa hua pedra pequena; e nũcaca vimos homen que da outra parte podesse passar. E bem te fazemos certo que em todo o mundo nõ possas achar homen que per seu siso te podesse dizer em que modo esta casa he lavrada de dentro. Mas, o que nos veemos das partes de fora, esso te podemos ben dizer.
17“Sabe por certo que em toda a casa nom ha pedra que mayor seja per semelhar que a mãao de hũuu homen; e ben entendemos que todallas de mais son marmores; e son tam claras que esto he grande maravilha e de tantas e taaes collores que aadur poderedes pẽsar que hi estam duas nem tres pedras de hũa collor. E som assy sotilmente ajutadas que ben semelharia aos que a vissem, se as collores nõ fossem, que toda a casa era de hũa pedra. Mas as estorias que em ella parecen, esto vos pareceria grave cousa de creer, a menos que o vissedes. E nõ creades que son pintadas con tinta, mas as pedras son assy metidas e postas de tal fegura que vos semelhara que nũca no mundo ouve boa cavallaria de que alli nõ aja a estoria. E esta casa sta assentada sobre quatro leões de metal tan grandes que esto he grande maravilha, entender como foron feitos. Que vos diremos, senhor, outra cousa desta casa, se nom que entendemos que nom ha no mundo homen que sollamente vos podesse contar certamente as maravilhas que son vistas de fora?
18“Despois que Hercolles fez esta casa e em ella hũa porta nõ muy grande, entrou dentro e meteu em ella nõ sabemos que, nem entendemos que oje aja no mundo homen que o saybha, nem que o nũca soubesse, se nom elle. E, despois que esto ouve feito e se sayu fora, fez deitar enna porta hũu cadeado d’ouro tan sotil como vos podedes veer e escreveu enna porta leteras muy ben entalhadas d’ouro e d’azul que dizem: ‘Eu defendo que nem hũu nõ seja tam ousado, per força nem per siso que aja, que esta porta abra.’ E estas leteras stavam ẽ cima do cadeado. E, ẽ fundo delle, avya outras que deziam assi: ‘Non seja nem hũu tam ousado, dos que ora som nem dos que despois veerem, que abra esta porta por veer esta casa. E mâdo e rogo a todollos reis, que depos my veeren, que deitem ẽ esta porta senhos cadeados e que a façam guardar, assi como a eu faria.’
19“Despois que esto ouve feito, deu a chave daquelle cadeado a hũu seu sobrinho que avya nome Espon, que foi rey d’Espanha despois elle. E este Espom, de depois que reynou, fez muy ben guardar a casa e deitou em ella seu cadeado. E, despois que foy morto Espon, reynou Pirus que era seu genrro. E este veo em Tolledo e deytou seu cadeado ẽ na porta. E, desque esto ouve feito, tomou doze homẽes dos melhores que a essa sazon hi avya e deulhes as chaves da casa e fezelhes jurar sobre a fe que guardassem sempre bem aquella casa e que, en todo tempo que elles podessem, que nüca aquella porta fosse aberta. E fez fazer juramento ao concelho de Tolledo que, logo que algũus daquelles doze homeens que avyam a guarda da casa morresse, que logo outro posessem e seu logar segundo mandara Hercolles, per tal guisa que a casa fosse sempre muy ben guardada.
20“E, por que Hercolles foi muy sisudo e ben aventurado e muito entendido das cousas que avyã de viîr e nüca em Spanha ouve rey que seu mandado quisesse passar, mas fezeron todos assi como elle mandou, porem nos, que avernos aguarda daquella casa, viimos a ti, que deites ẽ ella teu cadeado, segundo fezeron os reis que ante ti veeron.”
21Quando el rei dom Rodrigo ouvyo dizer tatas maravilhosas cousas daquella casa, pesou em seu coraçon que stava em ella escõdido alguũ grande tesouro ou outras algũas cousas de forte segredo, pois que Hercolles a mandara guardar con tanta femẽça. Ε, como era homẽ de grande coraçõ, disse que o nõ faria, mas que queria saber em toda guisa o que jazia dentro em ella. Ε elles lhe diseron que se guardasse muito de o fazer, mas que fezesse o que fezeron os outros reis. Ε el rei dom Rodrigo lhes disse:
22“Leixadevos ora desto, ca eu farei, o mais cedo que eu poder, como a veja. Ε enton farei o que me semelhar.”
23Ε nom lhe quis dar outra resposta; e elles foronsse sem outro recado.
24Este rei dom Rodrigo foi home que fez muitas e boas cousas em Spanha: ca elle avya por custume de trager muy grande casa e em ella muytas molheres filhas dalgo, ca, como elle sabya em algũu logar homen boo que filho ou filha tevesse, logo lha mandava pedir e tam bem os criava e tanta honrra lhes fazia que era grande maravilha. E, por esta razon, tragia sempre muy grade casa e muy honrrada de muytos fidalgos e outrossi sua molher acompanhada de muitas ricas donas e donzelas de grande guisa.
25Em esta sazon avia em Cepta hũu conde, grande fidalgo, que era senhor dos portos do Estreito, assi d’aallem como d’aaquem. E este conde avya nome dom Ilham. E avia hũa filha muy fremosa e muy ben acustumada donzela e que avia aspeito e sembrante de seer boa molher. E, tanto que esto soube el rei dom Rodrigo, mandou dizer ao conde dom Ilham que lhe mandasse logo sua filha a Tolledo, ca a elle nõ prazia que donzela de tam boas manhas e de que se tanto bem dizia vivesse se nom con sua molher, por que elle lhe daria melhor casamento que outro homen que ẽno mundo ouvesse.
26Quãdo o conde ouve este recado del rei dom Rodrigo, foi mui ledo e mandoulhe sua filha muy homradamente; e èvioulhe dizer que Deus lhe desse boo gallardom por quanto ben e mercee prometia de fazer a sua filha.
Capitulo CXCI. Como Allataba, filha do conde dom llham, chegou a Tolledo
27Os que tragiã a filha do conde, despois que partiron de Cepta, andaron per suas jomadas ataa que chegaron a Tolledo, onde era el rey dom Rodrigo. Ε elle, quando a vyu, prouguelhe della muyto; e aa raynha outrossi. E, despois que ella foy con as outras donzelas, filhas de todollos melhores d’Espanha, começou ella de fazer tarn ben sua fazenda e seer tarn boa e tanto avisada em seus feitos que todos deziam della ben. E a raynha se pagava della tanto que muytas vezes dezia que, se aquella donzella longamẽte vivesse, que nom podia estar que della nõ ouvesse de viĩrr húa muy avantejada molher. E tanto vos digo que dizem os que fallam da sua bondade e fremosura que ella era, aaquella sazon, a mais fremosa donzella que avia em toda Espanha.
28E hũu dia aconteceu assi que, andando ella em hũa orta con outras muytas donzellas, sem nem hũa ẽtoucadura, e estando el rey dom Rodrigo em tal logar que viia muy ben como ellas andavâ trebelhando, violhe o travadoiro da perna. Ε era tarn branco e assi ben feito que nõ podya melhor seer. E, logo que a assi vio, começoulhe de querer muy grande bẽ, em tanto que se moveo a a demandar. E, quãdo ella vyo que a el rey assy demandava, pesoulhe muyto e defendeuselhe per boas pallavras o melhor que pode. Ε elle aficouha tanto que sua defesa nõ lhe prestou e ôuvesse de vencer, por que era molher, e fazer o mandado del rei dõ Rodrigo, que a fortemëte aficava e lhe tanto prometia.
29Mas esto foi grande maravilha que, des o primeiro dia que a el rei começou de demandar, sempre lhe ella quis cada dia peor, ca ella era de boo siso e bem viia chaamente que lhe nõ podia el rei fazer cousa que sua deshonrra nõ fosse. Pero, sem grado, per parecer, fez quanto elle quis. Ε desto lhe creceu tam grande pesar em seu coraçon que começou de perder sua fremosura muy desmesuradamẽte.
30Ε ella avya por amiga hũa muy fremosa donzella que avia nome Alquifa. E, quando aquella sua amiga a vyo assi demudada de que tal ella soya de seer, pesoulhe muyto e disselhe assi:
31“Amiga, rogote que aquello que nüca antre my e ti passou, que nom passe agora, ca bem sabes que, despois que ambas amor ouvemos, que nüca hy ouve desamor. E por esto te rogo que me nõ queiras negar tua fazenda. Ca tu sabes ben que, desque eu naci, nüca fiz cousa de que me possa acordar que tu nom saibhas; e esto meesmo pensava eu de ti, ca eu cuidava que sem todo engano sabya tua fazenda. Ε ora conheço ben em certo que no he assi, ca quem bem em ti quiser conhocer bem veera que tu as muy grande pesar; e a my pesa muyto por que o nõ sey e queria muy de grado que mho dissesses. Ε, se he cousa em que te eu possa poer conselho, eu te prometo, como leal amiga, que o faça muy de boamẽte.”
32E Allataba avya muy grande vergonça do feito, por que era maao e feo e outrossy por que se tanto encobrira dela, seendo assy sua amiga. Enton lhe cõtou con muy grande pesar todo o feito como passara con el rei dom Rodrigo, que nem hũa cousa lhe nõ emcobrio. E, despois que lhe todo ouve dito, rogoulhe que aconselhasse como fezesse em tal coyta como esta.
33“Ca certamente, amiga disse Allataba, tal pesar ende hei que de my son maravilhada como ia tempo ha que non som morta.”
34E, quando Alquifa ouvyo todo aquello que lhe Allataba contou de sua pressa e de seu pesar, ouve tan grande coita em seu coraçon que parecia que se lhe queria partir. E disselhe enton:
35“Certamente, amiga, eu te digo que, se tal cousa a my aveesse, por todo ho ouro do mũdo eu nõ o leixaria de dizer a hũu homẽ de que eu muyto fiasse e que entendesse que se de my doeria.”
36Ε Allataba respõdeu a estas pallavras e disse:
37“Se aquelles que este feito soubessem ho julgassem assi como elle passou, eu non averia que temer de o mandar dizer a meu padre. Mas eu sei ben que meu padre he homẽ de boo siso; e eu vejo ben que todollos sisudos julgam as mais das molheres por maas. Ε por esta razon o nõ ouso mandar dizer a meu padre, ca ei medo de mho nõ creer e que tenha que eu per meu grado ofize que me desempare.”
38Ε Alquifa lhe disse:
39“Amiga, nõ val nem hũa cousa esso que dizes. Ε direite por que. Sabe por certo que, se tu negares e per esta guisa quiseres hyr, nõ pode estar que nõ emprenhes; e, depois que fores prenhe, nõ pode seer que nom seja sabudo. Desi her ben sabes que a raynha te fez tata honrra como se tu fosses sua filha; e, tanto que o soubesse, sabe por certo que te apregoaria por maa; e, se esto assi aveesse, melhor te seeria mil vezes a morte que hũa a vida. Mas tanto quero que saibhas de my, segundo o que eu entendo, que, se te callares, nõ pode seer que nõ seja sabudo, e esto com teu grande dampno e vergonça. Ε, se o diseres com siso e a quem deves, nüca ende despois podes seer culpada. Onde eu, em este feito, nõ vejo tarn boo siso nem outro melhor conselho como que o mandes dizer a teu padre, ante que o outra nẽ hũa pessoa possa saber.”
40E, quando Allataba vio como era ben conselhada de Alquifa, prouguelhe muito e disse que tal maneira lhe parecia muy ben e que assi o queria fazer. Ε ella que ben sabia leer e escrever assentaronsse ambas e fezeron logo hũa carta em esta forma:
Capitulo CXCII. Como Allataba mandou a carta a seu padre
41“Oo muy honrrado e discreto, sisudo, prezado e temudo senhor de Cepta, conde dom Ilham, padre senhor, eu, Lataba, vossa deshonrrada filha, me mãdo ẽcomendar en quern e par que e a que he verdadeiro encomendamento de todallas causas. A deshonrrada filha doesto he do boo padre. Evyo beyjar vossas mãaos e quero que saibhades, padre senhor, que, vos cuydando fazer muyta vossa hõrra e mynha muy grande prol de me mandardes pera casa del rei dom Rodrigo, seguiosse o contraire, ca fezestes grande vossa deshonrra e muyta mynha perda, ca el rei dom Rodrigo muy sen meu grado e contra mynha voontade jouve cõmigo. E porẽ vos rogo, senhor, por Deus e por piedade, que mandedes por my; se nom, ben creede que eu me matarei con mynha mãao, ca ante eu queria cem vezes morrer ca viver mais em casa del rei dom Rodrigo. E poren, padre senhor, eu desto nõ vos mandarei mais recado. Mas, se vos queredes minha vida, ẽviade por my; ca, se eu mynha madre visse, nõ queria mais viver.”
42Depois que esta carta foi feita, chamou ella hũu seu escudeiro de que ella muyto flava e deulhe a carta. E disselhe assi:
43“Amigo, que Deus vos de boa andança e ajades boa ventuira e que eu seja theuda de vos poer em boa estado por quanto serviço me fezestes! Trabalhade em tal guysa que antre dia e noite sejades honde he meu padre e dadelhe esta carta!”
44Ε o escudeiro, que ben sabia o caminho, nõ quedou d adar noites e dias ataa que chegou a Cepta, honde era seu padre. Ε deulhe a carta. Mas Allataba, despois que ouve ẽvyado o escudeiro a seu padre, tornousse pera as outras donzellas. Ε de tal guisa se trabalhava que nem hũuũûu nõ lhe entendesse de seu feito nada. Mas todos quantos eram na corte del rei se faziam maravilhados de como a viiam peiorar en cada hûu dya e como ẽ tam pequeno tempo era decida de toda sua fremosura. Mas leixaremos agora de fallar de Lataba e do seu scudeiro que avia mandado a seu padre e tomaremos a el rei dom Rodrigo, em como abrio a casa que Hercolles fez em Tolledo.
Capitulo CXCIII. Como el rei dom Rodrigo foy a Tolledo por veer a casa que lhe disseram os guardadores
45Ja avedes ouvydo de suso em esta estoria como os que guardavã a casa de Tolledo veeron a el rei dom Rodrigo, que deitasse em ella o seu cadeado, e da resposta que delle ouveron.
46Mas elle, nõ lhe escaecendo o feito da dicta casa e das grandes cousas que lhe della diseron, foisse allo polla veer. E, quãdo a vyo, foi maravilhosamente spantado das cousas que em ella pareciam, ca muytas e mais estranhas cousas eram em ella vistas que aquello que lhe os guardadores avyam dito.
47E, despois que a ben esguardou, mandou por todollos do seu conselho e disselhes como entendia que em aquella casa estava algũuu grande thesouro que Hercolles ẽ ella metera e que sua voontade era de a abrir por veer o que dentro estava. E elles todos comunalmente lhe diseron que o nõ fezesse, ca nõ avya por que o fazer, o que os outros reis nüca tentaron de fazer. Ε el rei dõ Rodrigo disse:
48“Em esta casa nõ Jaz outra cousa se nom aver ou ëcantamëtos. E, se he aver, filhalo ey; e, se son encantamentos, eu seguro son que me nõ podẽ empeecer, pois nõ hei que temer.”
49E, quando elles viron que tanto ẽ coraçô o avya, disseronlhe:
50“Senhor, vos podedes fazer o que quiserdes. Mas esto nom seera per nosso consselho nem per nosso recado.”
51E el rei mandou que trouxessem as chaves dos cadeados. E, como veeron, sem në hũa a deteença, foi a as portas da casa e fezeas britar. Pero esto foi con grande afam; ca tãtas eram as chaves dos cadeados que era maravilha. E, depois que a porta foy aberta, entrou elle dentro e peça de seus privados. E a casa, que de fora parecia redonda, acharon hũuu paaço em quadra, tanto de hũa parte como da outra, tam maravilhoso que nom he homen que o podesse dizer. Ca hũa das quadras do paaço era assy branca que a neve o nom podya mais seer; e a outra quadra do paaço, que era en dereito daquella, era tam negra como hũa cousa muy negra que mais nõ podesse seer; e a outra parte era tam verde como hũa muy verde esmeralda ou outra cousa que de verdura nom podesse seer vencida; e a outra parte do paaço, que era em contra desta, era tanto clara como se fosse hũu tino cristal que mais nõ podesse seer. Ε semelhava que, em cada hũa das partes do paaço, nõ avya mais de senhas pedras; e de quantos eram dentro enno paaço, nõ foi nem hũu que soubesse dizer que pedra hi ouvesse có pedra ajuntada, nẽ que o podesse departir. Ε todos teverom que aquelle paaço era a mais maravilhosa cousa. Que nüca viron, ca era em elle tantas e taaes maravilhas quaaes nüca foron vistas em outro paaço. Ca em todo elle nõ avya sollamente hũu madeiro. E, assi como da parte de fundo era muy ben chaâo, assi viron que era da parte de cima muy plano e chãao, ergo que avya hi freestas per que entrava tãto lume per que bem podyam veer quanto hi avya.
52Depois que muy ben esguardaró como o paaço era feito, teveron metes e nõ viron nem hũa cousa, se nõ que em meo delle viron estar hũu esteo nom muy grosso; e era todo redondo e era tã alto como hũu homen; e avia en elle hũa porta muy sotilmente feita e assaz pequena e, ẽ cima della, leteras gregas que deziam: “Quando Hercolles fez esta casa, andava a era em quatro mil e seis annos.” E, despois que a porta abrirom, acharon dentro leteras abertas que deziâ: “Esta casa he hũa das maravilhas de Hercolles.” Depois que estas leteras leerõ, viron no esteo hũa casa feita, em que siia hũa arca de prata. Ε esta era muy ben feita a ouro e a prata e a pedras preciosas e tiinha hũu cadeado d’aljoufar tam nobre que era maravilha; e avya: em elle leteras gregas que deziam: “O rei é cujo tempo esta arca for aberta nom pode estar que nõ veja maravilhas ante que moira, se Hercolles, o senhor de Grecia, soube algũaa cousa do que avya de viîr.” Ε el rei dom Rodrigo disse enton:
53“Em esta arca jaz o que nos demandamos e o que tanto defendeu Hercolles.”
54E entõ britou o cadeado com sua maão, ca nõ ouve hy nem hũu outro que o ousasse britar. Depois que a arca foi aberta, nõ siia em ella se nom hũa tea branca pregada antre duas tavoas de laton. Ε, despois que as tavoas foron despregadas, abriron a tea e acharom em ella Allarves fegurados, có toucas ẽ suas cabeças e em suas mãaos lanças có pendões e suas espadas a seus collos e suas beestas tras si ennos arçôes das sellas. E, em cima das feguras, avia leteras que deziam: “Quando este pano for estendudo e parecerem estas feguras, homeens que andam assy armados filharam Espanha e seeram della senhores.”
55Quando esto vio el rei dom Rodrigo, pesoulhe muyto. Ε todos seus consselheiros lhe diserom entom:
56“Senhor, ora veede o que vos aveo por nos nõ quererdes creer. Ε que pouco prezastes os que foron ante vos!”
57E elle disse cõ muy grande pesar:
58“Nom queira Deus que todo seja verdade quanto os velhos diseron! Ε como cuidades vos que esto nõ era julgado per my? E, des oje mais, nõ avernos por que nos queixar, pois ja he feito, ca non pode seer que ja nõ seja esto que he. Mas, do que falla que ha de viĩr, esto me pesa mui pouco per o coraçon, ca nõ he cousa de que se homen aja de catar.”
59Despois que el rey dom Rodrigo disse estas pallavras, o paaço foi aquelle dia visto de muytos hornees bôos e todos diseron que tam sotil lavor como aquelle que nüca delle ouvyron fallar. Ε el rei dom Rodrigo deffendeu que nem hũu non dissesse nem hũa cousa do que alli acharon. E, despois que todo ouverõ visto, mandou muy ben çarrar a porta do paaço; e desi foisse pera sua pousada que elle avya muy rica em Tolledo. Mas agora leixaremos desto fallar e tornaremos a cótar do conde dom Ilham.
Capitulo CXCIV. Como o escudeiro de Allataba chegou a Cepta ao conde e lhe deu a carta.
60Conta a estoria que, depois que se o escudeiro de Lataba partio della, que lhe nõ escaeceu d’andar noytes e dyas por aver de recadar o que sua senhora lhe avya ẽcomendado. Ε tanto andou que chegou a Cepta, onde o conde estava, e deulhe a carta e disselhe assy:
61“Senhor, vossa filha se vos envia muyto ẽcomẽdar e mandavos dizer que sem nẽ hũa deteença façades o que por bẽ teverdes, despois que a carta leerdes.”
62O conde britou o seelo da carta e leeoa. E, depois que a leeu e vio o que lhe mandava dizer, nũca ouve pesar que se lhe con aquelle parelhasse. E logo, sem dizello a në hũu, fez guisar hua galee e passou o mar. Ε andou tanto per suas muy grandes jomadas ataa que chegou a Tolledo, onde era el rei dó Rodrigo, que o preçava muito de sisso e de cavallaria. E, tanto que soube como viinha, fezelhe fazer muyta honrra.
63E tevesse por mui culpado do que fezera a sua filha. Ε sayuho a receber con grande cavallaria. E, quãdo o vyo, salvouho muy graciosamente e disselhe:
64“Pois, dom Jullyam, que vos fez viĩr aco per tan forte tempo como este? – ca era no coraçon do inverno – Perventura vos aconteceu algua cousa?”
65E o conde lhe disse:
66“Senhor, nõ queira Deus que a my acõtecesse nem veesse se nom ben, mentre que vos fordes vivo, ca a vossa boa ventura da a my tan grande esforço que nüca se homẽ cõmigo tomou que o eu nõ vencesse. Mas, da desaveença que ouve antre mĩ e Moluca, o senhor de Calçom, como pasou vos direi.”
67E el rei dom Rodrigo lhe disse que lhe prazia muyto de o ouvyr. Ε o conde começou sua razom em esta guisa:
68“Senhor, vos ben sabedes que Moluca era homẽ de boo coraçon e de muy grande força e avya o mayor poder que homẽ avia que rey nõ fosse. Ε, sem razon nẽ hũa ergo per soberva, tomou cõmigo guerra e começou de me fazer tanto mal que eu foi em tempo que lhe dera o meo de quanta avya, e que me nõ fezesse mais mal. Ε, por aquello que eu hei em Espanha, vos mandei dizer todo meu feito; e vos me mãdastes dizer que me defendesse e que vos prazia ende. Ε meus parentes e meus amigos muitos que eu ei em Spanha, delles pollo meu amor e delles pollo de mynha molher, que outrossi he sua parenta, e delles que se dohyam de my, tanto que esto souberon, forõme ajudar, cada hũu o melhor que pode. E enton, cõ a ajuda destes, foisse sofrëdo Moluca, ẽ guisa que ouve con elle muitas lides ẽ campo, dellas ẽ que fomos ambos presentes e dellas em que nõ; e muytas vezes me venceo e muytas vezes o vençi em campo. Mas Deus e a vossa boa ventuira quis assy que, a acima, foy elle vençudo; ca entramos ambos em batalha hũa sesta feira pella manhãa e, ante que fosse meo dia, começaron todollos seus de fogir, ca, per força nem per siso que ouvessem, nõ poderó sofrer os boos cavalleiros d’Espanha que eu cômigo avya, pero que elles eram muy mayor jente que a nossa. E, tanto que eu vi que Deus nõ queria que elles lograssem a sua soberva, nõ os quige leixar assy hyr, mas, tanto que eu vy que Moluca leixava o campo, fuy empos elle e mateilhe muyta gente. Ε elle nõ podera scapar que nõ fora preso, se see nõ acolhera a Sacut, aquelle seu castalio. E, depois que eu soube que ally se acolhera, entẽdy que o nõ poderia aver tam toste e mandei a toda mynha gente que nõ ouvesse hi tal que mais seguisse ho encalço. E, despois que toda mynha gente ouve recolhida e elles vencidos, deiteyme sobre o castello e jouve sobre elle, pero que era muy grande peça per sua terra. E desi elle me mandou dizer que se queria veer cõmigo. E a my prougue. Ε posemos nossas tregoas e firmamos juizes que cada hũu de nos fezesse o que elles mandassem. E elles viron por ben que me desse peça de sua terra e que me rogasse que lhe perdoasse o mal que me fezera, sen cousa que lhe fezesse, e que o amasse e ajudasse e elle a my. E, pois que estas cousas e outras que vos nõ conto passaron, tive por bem de me tomar a Cepta, onde leixara mynha molher. E, quando hi cheguei, achey minha molher tam mal doente que maravilha. E disseme e rogoume que lhe veesse por sua filha, ca lhe era em seu coraçon que, logo que a visse, seeria sãa. E, quando eu esto vy, pesoume muyto, ca son assaz temudo e honrrado per ella; e nõ soube rem que lhe dizer. Mas, quando me era mester de folgar por o grande trabalho que avia passado, ouveme de meter enno mar e viĩr aco.”
69E aquelles que com elle andavam e que toda a guerra cõ elle passaron e sabiam que era verdade quanto della disera, quando lhe virom mover aquella outra razon, que nõ era verdadeira, foron maravilhados e diseron que o conde nõ passara o mar se nom por levar sua filha.
70Ε el rei dom Rodrigo lhe disse:
71“Per boa fe, dom Ilham, muito me praz de como avedes postada vossa fazenda aa vossa prol. E, pois que vos Moluca tã mal trouvestes, nõ ha mouro aalen, de que os d’Espanha ajam medo. E, des oge mais, podemos fazer a alem mar o que quisermos. Mas, do que me dizedes de vossa molher me pesa muito, por que ella he hũa muy boa dona e Deus sabe que nõ queria que ouvesse mal nem door. Ε desi pesame muito por vossa filha, por a aver menos de mynha casa, ca muyto val per ella.”
72Ε o conde lhe gradeceu muy homildosamente o ben que dezia de sua filha. Ε assi forõ fallando el rey e o conde de muytas cousas, ataa que chegaron a Tolledo. E, quando os de Tolledo viron o conde antre si, trabalharonsse todos de lhe fazer muyta honrra, ca ben lhes cõviinha de o fazer, ca este era o homen do mundo de mayor estado que rey nõ fosse. Ε el rei lhe mandou fazer muyta honrra e mandoulhe dar boas pousadas. Mas o conde, em quanto esteve ẽ Tolledo, nunca foy ao paaço; e muyto lhe pesava por que o el rei hi tanto fazia estar. Ε, tanto que elle teve guisado, foisse espedyr del rei. Ε elle lhe mandou dar sua filha e disselhe:
73“Ouvide, dom Ilham. Nom creades que vos dou vossa filha por que sempre more cóvosco. Mas douvolla que, tanto que sua madre for guarida, que logo mha mandedes aguardada como foi. Ε, como filha de tal padre, deve de viîr a tal casa como a minha.”
74Ε o conde lhe disse:
75“Senhor, quando Deus quiser que ella venha, eu voila farei viĩr con tal companha e tam ben aguardada como núca foi donzela entrada em Espanha.”
76E, despois que esto ouve dicto, acolheusse a seu camynho e sua filha: lhe foy contando toda sua fazenda. Ε tanto andaron que passarom o mar.
Capitulo CXCV. Como o conde dom Ilham ouve conselho cô seus amigos sobre o feito da desonrra de sua filha
77Despois que o conde com sua filha foi em Cepta, chamou todollos que eram de seu conselho e todos aquelles seus amigos que ainda alio eram e se nõ veeram pera suas terras e disselhes:
78“Amigos, eu nõ ey que vos negue. Ante vos quero descubertamente dizer mynha desonrra. Ca, desque Deus formou Adam, nũca homen tam deslealmente foi traudo como eu son daquelle de que eu fiava sobre todollos homeens do mundo.”
79E entom lhes contou como el rei dom Rodrigo jouvera con sua filha e quanto con elle passara e o pesar que dello ouvera sua filha, que rem nõ lhes negou. E a molher do conde, que ia avia sabido de sua filha toda sua fazenda, quando soube como o conde estava em aquellas falias, nõ se pode teer que se nom fosse alio. Ε, quando a o conde vyu, disselhe, chorando cõ muy grande pesar:
80“E pois, boa dona, que quisestes aco?”
81Ε ella disselhe:
82“Eu venho come a mais desaventurada molher que nunca naceu, quando é mynha velhice son desonrrada per o moor treedor homen do mũdo! E, amigos, por Deus e por mesura, rogovos que me ouçades hũu pouco!”
83E elles disserom que dissesse o que lhe aprouguesse. E ella disse:
84“Amigos, se a my fosse feyta desonrra que podesse seer cobrada, menor pesar ende averia. Ε poren digo ao cõde dom Ilham que, en toda guisa, trabalhe de vingar sua desonrra. E, se elle for homẽ de tal natura que em tam pouco tenha este feito, eu digo chaamente que lhe verra ende mal, ca logo me lhe espeço e digo que nõ son sua molher; e hirme hei pera Cospi, que he mynha herdade, e pera outros castellos que tenho, que foron de meu padre, e daqui lhe farei fazer tanto mal que, ante de hũu anno, vos terredes por ben andantes se ẽ Cepta poderdes guarecer. Pois rogovos que nõ ponhades este feito em escamho. E parade mentes, conde, quanto ben Deus fezera a vossa filha! Ε todo o a perdido per aquelle treedor! Ca ella era molher de melhores manhas que homen sabia. Ε desi era de melhor pallavra e mais filha dalgo que ha de Cepta ataa Marrocos, que filha de rei nõ fosse. Ε, que todas estas bondades nõ ouvesse e fosse a pior do müdo, seendo vossa filha, devedesvos a doer do seu mal, pois lhe tanto pesasse como todo o mundo vee que lhe pesa. E, amigos, eu nõ sei al que vos diga se nõ que o pesar que hei desta filha, que assy vejo destroida, me fara morrer ante de meus dias.”
85E, en dizendo a condessa todas estas razões, nom quedava de chorar. E, despois que o conde ouvyo o que sua molher disera, ouve tã grade pesar que maravilha; e disselhe:
86“Ouvyde, boa dona! Nõ vos queixedes ora tanto, ca certas, quando con estes senhores e amigos me aqui assentei, nõ foi por al se nõ por lhes dizer o que lhes vos dissestes. Mas, pois ja assi he que elles saben per vos o que lhe eu queria dizer, podẽme dizer o que eu devo fazer, ca eu som en tal pesar que de grado queria que veesse a morte e que me matasse.”
Capitulo CXCVI. Do consselho que ouve o conde con seus parentes e vassallos
87Depois que o conde aquello disse a seus parentes e amigos e vassallos e lhes demandou consselho, elles todos se cataron hũus os outros e nom ouve hi tal que rem dissesse, ca lhes semelhou o feito duvydoso.
88E em este conselho estava hũu filho de hũu rey de Brapaquedo, que ouvera de guãaça, e avya tan grande pesar desto que se queria matar. E este avia nome Ricaldo. E tanto ben ouvira dizer de Lataba que a veeo veer a Cepta, ante que a levassen a casa del rei dom Rodrigo. E, tanto que a vyo, quiselhe tal ben que morria por ella. Ε, quando soube como o conde ouvera a guerra con Moluca, tomou cen cavalleiros bem armados e veeo servir cõ elles, con esperança que o conde lhe daria sua filha por molher, veendo o serviço que lhe faria. Ε tarn bem o servio e tanta ajuda lhe fez que o conde lhe dava muy grande prez em siso e cavallaria.
89Este Ricaldo se levantou ẽ meo de todos e disse ẽ sanhudo sembrante:
90“Pois vos todos calades, eu quero fallar, pero que mho tenhades a mal. Aquy juro eu a Deus e sobre mynha lei que, se eu fosse senhor de todo o mundo e todo o cuydasse perder e ẽ cima morrer morte desonrrada e eu ouvesse tal filha e mha desonrasse homẽ a que eu tanto serviço fezesse como vos avedes feito a el rei dom Rodrigo, por todo esto eu nõ leixaria d’aver delle tal dereito que sempre ende fallassen. E, se con elle quiserdes aver guerra, eu vos prometo que vos serva ben e lealmente con duzentos cavalleiros filhos d’algo.”
91E, depois que Ricaldo esto ouve dito, callousse. Ε hü homen boo muy sisudo e muy bõo cavalleiro em armas, que avya nome dõ Simõ, disse assy:
92“Senhor, Deus, que sabe todalas cousas, que se rem nõ esconde, sabe bem que, desque eu fuy teu vassallo, senpre te dei aquelle melhor consselho que eu entendi. E ben te digo que nunca te vy em tempo que te mais mester fezesse bôo consselho que ora. E poren te digo que eu seeria alleivoso, se te nõ dissesse o que soubesse e me semelhasse. E por esto te digo, senhor, que me nõ semelha ben que vaas contra el rei dom Rodrigo nem te trabalhes de lhe fazeres guerra. E direite por que, ca en te dizer ‘nõ faças esta’ e nõ te mostrar razon dereita nõ seeria nëmigalha. Mas, senhor, nõ te digo nem te conselho, se nõ por que el rei dom Rodrigo he teu senhor e as lhe feita menagen, como quer que delle nõ tenhas terra; e desi er sabes ben como lhe Deus leva adyante todo o que faz; e desi sabes ben que tamanho he o seu poder. E nos sabemos ben que, desque tu naciste ataa o dia d’oje, nûca fezeste cousa em que con dereito te podessem travar. Ε sabe, senhor, que, se tu con el rei dom Rodrigo entras e campo e o venceres, todollos que o souberen te prezaran menos porẽ. E, se fores vençudo, nõ avera homẽ no mundo a que dello pese; ante diram que foi justiça de Deus, por que fazias contra dereito. E, senhor, todo meu consselho he que nõ faças hi nada e que leixes esto em Deus, que te clara ende melhor dereito ca tu saberas filhar. E, senhor, quando ho homen alguã cousa faz en que lhe com dereito possam travar, de todollos do müdo deve d’aver medo e receança. Nõ cuydes, senhor, que te esto digo por o meu, ca tu ben sabes quanto eu farei, mentres me o folego no corpo durar!”
Capitulo CXCVII. Das pallavras que a condessa disse a dom Symon e do consselho que deu ao conde
93Quando a condessa vyo o consselho de dom Symon dava, tã desviado do que ella queria, tornousse a dom Symon e disselhe:
94“Ouvyde, dom Symõ. Nũca Deus mande que vos sejades desonrrado, ca, se o fossedes, muito dariades o consselho doutra guisa. Mas nõ queira Deus que ende sejades creudo. Oo homen bóo! Ε nõ avedes vergonça do que dissestes, que guardasse lealdade contra el rei dom Rodrigo, que tanta deslealdade lhe fez, seendolhe elle sempre tam leal e tanto seu amigo? Oo varon! E nom sabedes vos quanto affã e trabalho avedes tomado e quantas espadadas e seetadas avedes levadas por nüca el rei Rodrigo aver dampno per esta parte? Ε desto vos direi mais: que ante eu queria seer tam pobre de quão no mundo ouvesse e nõ me ficasse solamente em que me mantevesse e ante queria andar pello mundo pedindo ca nõ fazer todo meu poder por me vingar. Senhor dom Ilham, por Deus e por mercee, leixade este feito a my, ca tam grande feuza hei eu em aquella beenta Maria, por que eu cobrei mynha fe e leixei meu padre e mynha madre e meus bóos irmâaos e meu grande aver e todallas outras cousas que eu avia ẽ minha terra, que ella nõ querra que eu moira, que primeiro nõ veja prazer daquelle que tam vilmente escarneceu aquella boa mynha filha que era spelho de bondade e aquella que avia melhoria en bondade sobre todallas molheres daalem mar e daaquem mar.”
Capitulo CXCVIII. Do consselho que o cavalleiro que avia nome Anrrique deu ao conde dom Ilham
95Depois que a condessa fallou esto que avedes ouvido, tam grande foy o pesar que ouve que se lhe çarrou o coraçon, de tal guisa que nõ pode fallar. Ε estava hi hũu homen bõo, que era seu primo, que avia nome Anrrique. E, quando esto vio, ouve tam grande pesar que maravilha; e disselhe enton:
96“Boa dona, nõ vos dedes a atam grade coita, ca ben sabe Deus que nõ esta aqui tal a que muyto nõ pese de vosso mal.”
97Enton se tomou ao conde e disselhe:
98“Amigo, parade mẽtes ẽ vossa deshonrra e em o que diz vossa molher!”
99Ε dom Ilham, que tam cuytado stava que no sabia que fazer, disse: “Amigo, que em concelho fere nõ ha que negue em puridade. Esto vos digo eu por my e por mynha fazenda, que vos ia sabedes. Ε poren vos rogo que me digades como faça e aderence minha fazenda, ca eu nõ farei se nõ como vos mandardes. Ε logo me hora dizede o que vos semelhar, ante todos estes. Ε sabedes por que vos carrego tanto deste feito? Por que sei que vos devedes de aver tam grade pesar como eu.”
100Ε o homen boo era sisudo e de boo recado; disselhe que lhe nõ tomaria resposta se nõ em outro dia, ca lhe nõ parecia ben de dizer tal cousa tam toste e ante tantos homeens bõos. Ε enton ficou a falla pera em outro dia. Tanto que foi manhãa, veeron todos, assi como avyam posto. E, despois que foron ajuntados, o conde, a que nõ esqueecera, disse aaquelle Anrrique que o consselhasse como faria. E elle disse:
101“Nõ he amigo aquelle que em todallas cousas nõ ama prol do seu amigo. Ε nõ te digo esto se nom por que hei penssado todo teu feito e del rei dom Rodrigo e vejo que tu nõ podes fazer cousa que te mal estẽ a Deus nem ao mundo, ca elle nõ he teu senhor nem tẽes delle terra. Ε ponhamos que o fosses: dereito avyas de lhe fazer mal se podesses, ca tregoa e firmidom avya antre vos ambos e, pois te elle esta deshonrra fez, assi te britou a tregoa. Ε ponhamos que a acima nõ podesses durar contra elle nem ho vencer: desque fores em Cepta, pouco daras por elle. E, sen todo esto, tẽes tu aqui arredor de ti taaes dous mil cavalleiros que a todo o mundo fariam lide. E, demais, elle non se cata de ti; e tu tëes os mais dos portos daalen e todollos daaquem; e teens postada tua fazenda em tal guisa que podes meter em Spanha peça de jente tã emcubertamẽte que o nan sabera nem hũu. Pois guisate o mais toste que poderes como comeces a guerra.”
102Ε o conde lhe disse que, pois o elle por bem avia que todo era prestes entõ fez muy ben bastecer seus castellos e catar seus thesouros que elle avya muy grandes. E escreveo suas cartas e mandouhas a Muça, filho de Nocayde, e ëvioulhe dizer em ellas toda sua desaveença e del rei dom Rodrigo e mandoulhe dizer que lhe daria passagen e que o ajudaria a todo seu poder e que desto lhe daria qual preito elle quisesse. E Muça era vassallo de Miraamolim e nõ quis fazer rem seem seu mâdado. Ε mandoulhe dizer en grande puridade todo aquello que lhe mandara dizer o senhor de Cepta. Ε Miraamolim lhe mandou dizer que lhe prazia de todo, mas que se guardasse de treiçon e que nõ metesse os mouros ẽ maao mar nem forte. E Muça lhe mandou dizer que nõ era mar mas braço delle. Ε Miraamolim lhe mâdou dizer que, pois assi era, que lhe mandasse Tarife con cem cavalleiros e cõ quatrocentos hornees de pee. E Muça se guisou logo toste e tarn ben que lhe non fallecia rem de quanto avya mester pera a guerra.
103Ε, depois que todos foram muy bem guisados e toda sua fazenda bem postada, meteronsse ẽ nas gales muy encubertamẽte e portaron ẽ Aljazira Talladara, que era do conde; e des alli ouve nome Tarique. Ε Tarique esteve em Aljazira ataa que ouve ajuntada toda sua companha. E, despois que toda sua companha ouve cancertada, ẽ hũa quinta feira pella manhaã, entrou em Aliazira tam emcubertamente que nuca o souberon os da villa se nõ quando os viron consigo. E, tanto que entraron enna villa, mandou Tarife cavalleiros que estevessem a as portas e que, todollos que quisessem sayr, que todollos matassem. Ε os da villa, que de tal cousa nõ eram percebidos como começaron de sayr, os de Tariffe começaron em elles de matar. E esto podiam elles muy ligeiramente fazer, ca nõ era homen ẽ na villa que armas podesse tomar, tanto eram despercebidos e os ẽmiigos aguçosos de os matar. Ε todos fogiam a as casas fortes, mas esto nom lhes prestava nada, ca, assi como elles entravam, asi entravam os outros empos elles, que os matavâ sem nem hũa piedade. Ε tanto fez Tariffe e os seus que, ante de meo dia, foy toda a villa livrada dos cristãaos.
104E Tarife, veendo que nõ avia ia em toda a villa homen que fosse pera feito, fez deitar fora todollos mortos e feridos e fez viĩr perãte sy todallas molheres e meninos. Ε mandou aos seus, so pena dos corpos, que nem hũu non filhasse quanto fosse vallia de hũu dinheiro, mas que entrassem a as casas e que as catassem todas e, o que achassem, que o adussessem todo ante elle e que nem hũu non fosse ousado de esconder nẽ hũa cousa. E elles fezerõno assy. E, pois que todo o esbulho foy ante Tarife, partio elle assi como lhe semelhou. E, despois que esto ouve feito, meteu nas torres e fortellezas peça de sua jente, que as guardassen, e tomousse cõ todo: o esbulho pera seu senhor a terra d’Africa.
105E, quando isto foi, andava a era dos mouros ẽ noveenta e hũu ãnos e era quareesma delles meesmos.
Capitulo CXCIX. Como Miraamolĩ ẽvyou muy grande poder de jentes d’armas ao conde dom Ilham
106Conta a estoria que, despois que se Tariffe passou em Affrica e o conde ficou em Cepta, pesoulhe muito por que se fora. E mandou por sua carta dizer a Miraamolim que era em tempo que poderia cobrar toda Espanha e que elle o ajudaria con grade poder de aver e d’amigos. E conta em este logar Braffome, filho de Mudir, que andou sempre em esta guerra e nõ fazia se nõ poer em scripto todallas cousas que vya e outrossy as que lhe eram ditas com verdade, que, quando Miraamolim e Alvelide, filho de Aldelmolo, ouvio este recado, prouguelhe muyto. E mandoulhe dizer que, todallas cousas que avia e poderia aver, que todallas em ello aventuraria.
107Mas dizem que, quando os mouros viron o esbulho que Tariffe adusse, forom muy ledos e pediron a Miraamolim por mercee que os guisasse como veessem em Spanha. E elle guisou enton Tariffe e ëvyouho ao conde dom llham con cento e oyteenta e cinquo mil cavalleiros barboros, afora os vassallos de Tarife e os Allarves, que eram muy grande jente sem conta. E, quando os o conde vyo, prouguelhe muito com elles e mandou por todos aqueles que entendeu que o ajudariam; e estes foron muytos e de muytos logares. E desy postou sua fazenda de tal guisa que os passou todos ẽ naves e’m são de mercadores aaquë mar, poucos e poucos, e nüca nem hũu homen pode cuidar se nom que eram mercadores.
108E, depois que todos furon passados ẽ Spanha, o conde, por tal que nõ dovydassen, passou com toda sua companha em Aljazira Talladara. Ε Tarique com toda sua companha pousarõ em hũu monte que, des aquelle tempo foi chamado Jebella Tarique. Ε esto foi em hũa sesta feira, seis dias andados de Março, quando andava a era dos mouros en saseenta e hũu annos. E, tanto que os mouros foron ajuntados ẽ aquelle mõte, mandaron por o conde dom Ilham. Ε elle, logo que ouve seu recado, deu aos seus muytas e boas doas e fezeos todos sayr da villa e deulhes tendas e logares sabudos em que pousassem, por que nom pellejassë cõ os da villa; e mandoulhes que o esperase ẽ esse logar. Ε mandou aos da villa que estevessen guisados de guerra, ẽ tal guisa que movessen com elle, quando elle mandasse.
109E, despois que toda sua fazenda ouve concertada o melhor que entendeu, foisse pera os mouros o mais soo que elle pode. E, depois que foi con elles, disserôlhe:
110“Dom Ilham, ẽ vaâo somos nos viindos em esta terra, se de vos nõ avernos algũu consselho, ca aquy nõ he algũu homen que nunca ẽ esta terra fosse nem per ella nunca andasse; e poren vos rogamos que nos consselhedes o melhor que poderdes, ca nos non faremos se nõ o que vos mandardes; pois que nõ sumos viindos de nossas terras, onde leixamos nossas mulheres e nossos filhos con quanto avernos, pur sempre morarmos en este monte e nõ fazermos per nossas mãaos per que valhamos mais e os que de nos veeren.”
111E o conde lhe disse:
112“Certo, eu vos direi verdade, sobre mynha fe. Eu queria seer desherdado e que nõ ouvesse sollámente hũu palmo de terra, per tal condiçon que el rei dom Rodrigo fusse desterrado ou que eu cô mynha mãao lhe cortasse a cabeça e que vos fossedes senhores de toda Espanha. E desto nõ duvydedes.”
113E elles diseron que lho criam e que nõ ficaria per elles del rei dom Rodrigo perder a terra e quanto avya, ou elles prenderiam morte. E o conde lhes disse:
114“Amigos, nõ ha homen, que algũa cousa grande queira fazer, que mester nõ aja siso pera lhe dar boa fim aa sua võotade. E porë compre que vos tragades vossa fazenda como sisudos. Ε querovos dizer o que me parece deste feito, ca esto tanto faz a my como a vos. Quero que saibhades que eu hei mãdado hũu home escondidamente a casa del rei dom Rodrigo, que aja de saber toda sua fazenda. Ε bem vos digo que eu som maravilhado se elle ja de vos nõ ha novas. E, se has ha, sabede de certo que, por lhe darem todo ho ouro do mundo, nõ leixaria de nos cometer. E, se o fezer, tarde nos podera daqui poer fora. E, que vos homen dissesse que tomedes destas villas que aquy estam d’arredor, esto podees ben fazer, se quiserdes, ca elles non saben de nos parte e por esso o podees fazer. Mas outro conselho terria eu por melhor, se o vos por ben teverdes. Vos jazedes em bõo monte e avedes todo o que vos he mester pera vos e pera os cavallos, que vos non myngua algũa cousa. Ε eu sei mui bem que, quando el rey dom Rodrigo souber que vos aqui jazedes e nõ hides mais adyâte, que cuydarã que vos achastes mal do que começastes e por esto vos terra em pouco. E, se vos con os d’Espanha ou verdes hũa lide em campo e os vencerdes, nûca despois vos levantaram cabeça. E, por esto, meu consselho he que vos nõ movades deste logar ataa que nõ ajades novas do que el rei dom Rodrigo quer fazer. E porẽ vos digo que nõ podees jazer e melhor logar que este em que estaaes, ca, se vos lidardes con a gente del rei dom Rodrigo e Deus quiser que os vos vençades, daquy adiante iredes quanto por ben teverdes. E, se er fordes vençudos, melhor consselho poderedes daquy aver que entrar mais ẽ Espanha.”
115E os mouros disseron que dezia muy ben e que assy o queriam fazer. Elles todos avendo esto por bôo acordo, chegoulhes recado que el rey dom Rodrigo sabia ja delles novas e de quantos eram e o logar em que jaziã e como andavam guarnidos e quaaes hornees bõos hi eram. E disse Afia, filho de Joseffe, que andava ẽ casa del rei dô Rodrigo em talho de cristâao que, quando elle soube certas novas dos mouros, que ëvyou por os melhores do seu consselho; e elles conselharõno que mandasse logo por sua cavallaria, a melhor que podesse aver. E elle assi o fez. E, despois que foron ajuntados, mandoulhes dar todo o que lhes era mester e deu grandes averes a todos e muytas doas aos capitaâes, por que fossem allo. E mandou a todos que fezessë menagen a hũu seu sobrinho que avya nome Sancho. E este era muy grande cavalleiro e muy ben feito e muy esforçado ẽ armas. E mandou que todos fezessë por elle como por o seu corpo.
116E, quando dom Sancho foi partido del rei, veerõ a elle homeẽs que lhe diseron novas certas dos mouros quantos erã. E elle fez enton contar toda sua jente e achou que eram tres tantos que os mouros; e ouve dello grande prazer e teve que se lhe nõ defenderiam. Ε por esto foy contra os mouros o mais toste que pode.
117Ε, quando os mouros souberon como o poder del rei dom Rodrigo viinha sobre elles, moveronsse do monte e poseronsse ẽ hũu chaão prestes pera batalha. Ε dõ Sancho, despois que os ouve vistos, mãdoulhes dizer que se rendessen ante que os matassen todos. E elles ouveron este recado por muy sandeu e mandaronlhe dizer que nõ eram saidos de sua terra por esso. Ε enton emprazaron a batalha pera ẽ outro dia. E desi pousaron e folgaron aquelle dia.
Capitulo CC. Como lidaron os cristaãos e os mouros eforon os cristaàos vencidos
118Conta a estoria que, logo que o dia foy viindo, armaronsse todos, assy de hũa parte corne da outra, e foronsse ao campo e poseron suas aazes e postaronsse o melhor que poderõ. E os mouros teveron por ben destaren quedos e que os cristaàos os fossem cometer. Ε a dom Sancho, que era o mais esforçado cavalleiro que avya em Spanha, prougue muyto desto. Mas, ante que hi ouvesse golpe ferido, cercouhos em redor, dizendolhes que todos em aquele dya seeryam mortos. E, logo que esto ouve dito, pos sua lança su o braço e o escudo ante o peito e foyos feryr de tan grande força e fazer tantos e taaes golpes que esto era hũa grande maravilha.
119E, tanto que dom Sancho começou, logo seas aazes moveron os hũus contra os outros e foronsse ferir ho mais esforçadamente que poderon, como aquelles que eram inmiigos mortaaes. Os cristãaos começaron de ferir nos mouros per todallas partes aa redonda. E davansse tam grandes golpes que maravilha, que cada hũu fazia o melhor que podia. Mas quem poderia contar as grandes maravilhas d’armas que dõ Sancho fazia per suas mãaos? Mas Deus, que avia partida a sua graça dos cristàaos, quis que os mouros quebrantassem todallas aazes dos cristàaos. E foi morto don Sancho e tantos dos outros que maravilha. E venceron a lide e correron cõ os que ficaron, matando ẽ elles. E, despois que o encalço mais nõ quiseron seguyr, tornaronsse ao logar onde fora a lide e apartaron todollos seus que acharon mortos e soterrarõnos. E desi fezerõ suas orações e deron graças a Deus e a Mafomede da mercee que lhes fezera.
120E desi mandou Tarife ficar suas tendas hũu pouco acerca honde fora a lide. E esto era ia o sol posto. E, despois que as tendas foron postas cearon e folgaron toda essa noite, ca eram assaz canssados do trabalho das armas. E, quando foi ẽ outro dia, fez Tarife viĩr ante si todo o esbulho; e nõ acharon que rem vallesse se nõ cavallos e armas. E entõ fez viĩr ante si todollos peões e deulhes aquelles cavallos e as armas e fezeos todos cavalleiros. E, depois que esto ouve feito, fez viĩr ante si todollos do seu conselho e disselhes:
121“Amigos, nos ben devemos de saber que Deus ouve de nos mercee, quando quis que vencessemos tanta jẽte. E, pois que nos Deus ajudou, nos nom avernos que temer. Pero cõvem que tragamos nossa fazenda con siso, ca em outra maneira muy toste poderiamos prender muy maao cajon. Ε por esto vos rogo que nos trabalhemos aver boo conselho; e poren vos mando que acordedes o que façamos.”
122Ε elles diseron de muytas guisas. Pero, a acima, acordaronsse de hyr por dyante e ëtrar por Espanha; e que tomassen quanto podessë.
123Mas leixaremos fallar dos mouros e tornaremos a el rei dom Rodrigo.
Capitulo CCI. Como el rei dom Rodrigo ouve as novas da batalha
124Conta Alle, filho de Bellaazim, que a essa sazom stava em a corte del rei dom Rodrigo, quando lhe chegaron as novas de como fora vençuda a batalha e da boa andança que os mouros ouveron que, quando as elle ouvyu e soube como era morto seu sobrinho e todollos que con elle forõ mortos e desbaratados, nüca no mundo ouve pesar que se lhe a este acostasse. E, onde estava, ante todos, disse:
125“Oo Jhesu Cristo, filho de Sancta Maria! Eu bẽ vejo conhecidamente que a tua sanha veeo sobre my, quando tu sofriste que eu visse a morte do spelho da cavallaria d’Espanha. Di ora, rey cativo e mal aventurado, que faras, pois nõ vires ante ty ena batalha aquella bandeira que te dava esforço e que era teu forte escudo de aço? Ja, en quanto eu viver ẽ Espanha, nunca de vos, meu sobrinho, perderei soidade. Vos erades valiente, esforçado, piadoso e graado. Ε erades mortal ẽmiigo aos que vos desamavâ e muy leal amigo aos que vos ben queriam. E que direy de vos, se nom que erades meu forte braço e a vossa espada era temida sobre todallas do mundo?”
126Estas pallavras e outras muytas de grande doo dizia el rei dom Rodrigo e, en todo esto, chorava assi doorosamente que quë ho visse averia delle piedade. Pero, con todo esto, nõ era nem hũu que lhe ousasse dizer que se callasse, ca este era o homen do mundo de que mayor medo avyam. E, en fim de seu planto, disse:
127“Senhor Deus, se a ti prouguera, melhor fora que eu, velho mizquinho, morrera e ficara aquelle que tanto vallia. Mas esto fezeste tu, Senhor, por me dar a entender que a mynha morte se achega.”
128E, quando aquelles que hi estavam lhe ouviron fazer tam doorido planto, veeronsse pera el e confortarõno o mais que poderon e fezeronlhe entendente que fazer doo nõ lhe avya prol; mas que se trabalhasse d’aver outro consselho, ca chorar e carpyr nõ era pera rey.
Capitulo CCII. Como el rei dom Rodrigo foy pellejar con os mouros efoy vençudo enna batalha
129Despois que el rei dom Rodrigo leixou de fazer seu planto, mandou ajuntar as mais gentes que pode aver e guisousse muy toste e foisse onde soube que era Tarife. E, que vos eu quisesse contar como el rei dom Rodrigo era vestido e da sua nobreza, certo eu nõ saberia dizer có verdade. Ca elle era vestido de hũa alfalla que os reis enton tragiâ por costume; mas as pedras e os outros guarnimentos que eram em aquella vestidura bem valliam mil marcos d’ouro. Ε elle hya em hũa carreta que tiravam duas muias muy nobres; e a carreta era tarn nobremente feita que era muito de maravilhar, ca em ella nom avya fuste nẽ ferro e a mais refece cousa que em ella era assy eram ossos de marffym, e todo o al era ouro e prata e pedras preciosas; e tã sotilmente feita e lavrada que era maravilha. E, en cima da carreta, hũa tenda de pano de ouro que nõ avya par. E, dentro ẽna tenda, hya hũa cadeira tam rica e assi boa que nüca homen vyo melhor. E, em aquella cadeira, estava el rei dom Rodrigo; e era tã alta que o mais pequeno homen que hiia em sua hoste o podya ben veer. Que vos posso mais dizer deste rei dom Rodrigo se nõ esto: que, des aquelle Espam, sobrinho de Hercolles, que foi o primeiro rey ẽ Espanha, ataa o tempo que foy esta batalha, nüca achamos de rey nem doutro homen que tam ben guisado saisse d’Espanha nem con tanta gente como elle?
130Ε andou tato per suas jomadas que chegou onde era Tariffe con sua companha. Ε esto foy hũu sabado per noyte. E, logo domyngo pella manhãa, começaron a lide e lidaron tanto que lhes escureceu. Ε desta guisa fezeron cada dia ataa o outro domyngo seguynte.
131Mas dizem algũus em este logar que el rey dom Rodrigo avya dadas as duas costaneiras da batalha aaquelles dous filhos del rei Costa que elle criara, segundo o que ia ouvistes, e que, sabendo ho conde Ilham e Tariffe como elles avyam a capitanya daquellas duas costaneiras, que ouveron acordo de os mandar cometer de falia e que os avisaryam de muyto seu proveito. E a elles prougue do que lhes foy dicto. E, logo essa noyte seguynte, foron fallar todos desüu em a tenda do conde. E que elle lhes disse por que eram assy sinprezes e de pouco saber, espoendosse a morte por quë os avya desherdados e lhes tiinha seu reyno per força; mas que, pera o poderen cobrar, tevessen tal maneira que, em outro dia, avyam de viĩr aa batalha e que, desque fosse começada, que se dessem a fogyr; e que, veendo el rei dom Rodrigo e os seus como elles fogiam, que lhes quebrariam os corações e que seeriam desbaratados; e que, se esto fezessem, que cobrariam o reyno que fora de seu padre, prometendolhes de lho fazer cobrar per muito juramentos. E que elles se acordaron em esto. E que, logo esse domyngo, como entraron na batalha e compeçaron pellejar que se deron a fugir con todollos outros que eram da sua falla. E que enton os mouros se esforçaron en tal guisa que fezerom leixar o campo aos cristâaos e correron empos elles pello encalço, matando quantos podiam. E desta guisa venceron os mouros aquella batalha, per consselho e ajuda destes tres treedores.
132Depois que a lide foy vencida desaventuradamente, como avedes ouvydo, os mouros buscaron os mortos e tomaron todallas armas que lhes acharon e todo o outro esbulho. E buscaron per todo o campo el rei dom Rodrigo e nüca o poderon achar. Mas conta Homar, filho de Jufez, que, quando hia no ẽcalço empos os cristâaos, que, en se tomado, que vira jazer hûa calçadura que ben esmava que era sua, polla nobreza que ẽ ella vyo; ca, por o que elle ouve daquella calçadura, foy rico e avondado em toda sua vyda e foy senhor de villas e castellos. E outros diseron que morrera ẽ no mar. E outros que fogira aas montanhas e que o comeron as bestas feras. E desto nõ soubemos mais se nõ que, despois per tempo, foy achado hũu sepulcro ẽ Viseu, ẽ que eram leteras scriptas que deziam assi: “Aqui jaz el rei dom Rodrigo, o postumeiro rei dos Godos, que foy perdudo na batalha da Sagoneira.” E reynou quatro annos.
133Crónica geral de Espanha de 1344, Lisboa, Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1984, p. 299-332 (facsimilada da édição por Luis Filipe Lindley Cintra de 1954).
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