Los derechos del otro. El paradigma inmunitario y los derechos humanos
The rights of others. The immune paradigm and human rights
p. 13-43
Résumés
This article aims to draw a critical research on the genealogy of individualism that crosses the liberal conception of law and as a result of human rights. Concomitantly, the thesis of this essay is that alterity of the other is the objective criterion for the right, which is a right of the other. In this perspective, I have, in the first instance, the responsibility to respect and enforce the rights of others, as originally interpellation all right.
Este artículo tiene por objetivo trazar una investigación crítica sobre la genealogía del individualismo que atraviesa la concepción liberal del derecho y como consecuencia de los derechos humanos. Concomitantemente, se defiende la tesis de que la alteridad humana del otro es el criterio objetivo para el derecho, que es un derecho del otro. En esta perspectiva, el yo tiene, en primera instancia, la responsabilidad de respetar y hacer valer los derechos del otro, como interpelación originaria de todo derecho.
Entrées d’index
Keywords : rights of other, human alterity, other immunization
Palabras claves : derechos del otro, alteridad humana, inmunización del otro
Texte intégral
a era dos direitos do eu, alguns paradoxos
‘Para um homem, não fazer uso do seu direito a algo, é privar-se da liberdade de impedir que outro se beneficie do mesmo a que ele tem direito próprio” (Hobbes, 1997, p. 111.)
1Os direitos humanos entram em cena com a modernidade como direitos do sujeito, os quais são identificados como os direitos do eu. A relação entre os direitos e o sujeito é tão estreita que no horizonte conceitual da modernidade chegam a se confundir como similares. A filosofia teve a responsabilidade desta conjunção, ao ponto de concluir que a modernidade é a era do sujeito e dos direitos.
2A assimilação dos direitos às teorias modernas do sujeito significou, em seu momento, um ponto de ruptura epistemológico e histórico de grande relevância. Epistemologicamente o sujeito se tornou o critério da verdade. O conhecimento da verdade, tanto para racionalistas quanto para empiristas, passava inexoravelmente pelo sujeito. A verdade deveria ser aferida através do filtro do sujeito, seja pelos princípios inatos (racionalismo) ou pela comprovação dos sentidos (empirismo), em qualquer hipótese o sujeito se tornou o centro da verdade moderna.
3Uma segunda ruptura teve um calado social mais agudo e diz respeito ao modelo antropológico colado no sujeito moderno. Os regimes sociais pré-modernos caracterizaram-se pelo dualismo soberania–servidão, domínio-obediência. Neles a relação social estava mediada pela servidão. O comportamento dos indivíduos era pautado desde o seu nascimento pela obrigação derivada do estamento a que pertenciam. Não se reconhecia uma obrigação isonômica para todos os indivíduos. A obrigação era desigual segundo a natureza de cada estamento social. A desigualdade estamental gerava uma relação desigual de direitos e deveres entre pessoas e grupos sociais. A marca do sujeito pré-moderno era a submissão às obrigações de seu estado social. Seus direitos eram sufocados pelas obrigações sociais impostas pela condição natural de seu estado social. Ninguém escapava ao destino social do seu nascimento: o berço gerava direitos e deveres sociais derivados da classe social onde se nasceu. A desigualdade social dos estamentos se justificava como uma forma natural de existência. A legitimação deste estado servil mantinha as pessoas no que Kant denominou de “estado de menoridade” (KANT, 1974, p 100-107). Nele sua consciência era dirigida por outro e, por conta de sua menoridade social, aceitava com naturalidade sua condição de obediência servil e entendia como naturais os privilégios da nobreza. A saída da menoridade talvez tenha sido, em palavras de Kant, a marca que identifica esta (nossa) nova época, a nova era da razão.
4Contrariando o otimismo de Kant, está em questão se o Estado de direito anulou, de fato e de direito, a presença do soberano da sociedade e se a vontade absoluta que impõe a exceção como norma foi abolida da realidade do poder. Giorgio Agambem reacendeu o debate, iniciado por Carl Schmitt, ao manter a tese de que no Estado moderno as formas de exceção constituem o limiar que fundamenta o próprio poder do Estado e o direito em que se legitima. A vontade soberana vem a tona cada vez que a exceção é invocada pelo Estado de direito para defender a ordem. A exceção é uma técnica jurídico-política criada pelo Estado moderno para defender a ordem. Nela a vontade soberana se torna o último recurso do Estado para defender o direito da ordem estabelecida. Um grave paradoxo habita o Estado moderno pois para defender os direitos tem que suspendê-los, negá-los; para proteger a vida humana necessita do poder absoluto (soberano) de ameaçá-la quando necessário. (Agambem, 2002; 2003). Contudo, há de se conceder que as novas concepções de sujeito moderno vieram a romper as amarras “naturais” da sociedade estamental desconstruindo a legitimidade da desigualdade natural das pessoas e o modelo servil da vontade soberana. A modernidade se inaugura sob a bandeira do sujeito. Mas que sujeito? Qual é o sujeito que a modernidade idealizou como sujeito natural de direitos? O que há de natural nele e até onde ele não é também um produto dos interesses sociais da época? Estas são as questões que nortearão a pesquisa deste texto.
I
5Partiremos do principio de que a noção de sujeito não é um conceito transparente ou uma evidência cartesiana, como pensou a modernidade. Enunciar o sujeito implica, imediatamente, construir sentidos para o sujeito. Ao desenhar a saída de sua menoridade para uma nova era dos direitos, a modernidade não se limitou simplesmente a iluminar a natureza do sujeito, senão que se dedicou a produzir várias interpretações sobre ele até concluir uma teoria densa sobre o estado de natureza. Na encruzilhada dos novos sentidos produzidos pela modernidade o sujeito, que queria sair da menoridade para deixar de ser conduzido por outros, ficou engessado numa visão naturalista do indivíduo: foi encurralado no eu. Antes, nas sociedades pré-modernas, o sujeito estava dominado pela ideologia servil da soberania; agora, nas sociedades modernas, o sujeito ficou preso nas malhas do individualismo. Saiu de uma suposta menoridade para cair num isolamento endêmico.
6Na visão moderna, o eu tem a primazia da vontade nas suas relações para com a alteridade. Esta é reconhecida como uma dimensão secundária do eu que surge como uma conseqüência da vontade soberana do indivíduo. A vontade é concebida como algo natural e espontâneo e a sociabilidade como uma opção voluntária do eu, que considera que existe plenamente como sujeito antes de qualquer relação social e também poderia continuar a existir sem ela. A figura de Robinson Crusoé é a metáfora do ideal individualista e auto-suficiente do individuo moderno. Para este a relação com o outro é um aspecto secundário da sua natureza, entendida aquela como uma decisão arbitrária de sua liberdade. Na melhor das hipóteses o outro é percebido como um complemento útil para o desenvolvimento da natureza individual. Sua existência é considerada necessária enquanto complementa as necessidades biológicas do indivíduo, mas prescindível enquanto este pode subsistir livremente sem a presença do outro. Não é casual que o utilitarismo seja a ética que acompanha o individualismo e que ambos sejam as ideologias dominantes de nosso momento histórico. A conseqüência desta relação é que o individualismo e o utilitarismo contaminaram a visão dos direitos humanos a partir do conceito de natureza humana. Ainda na figura de Robinson Crusoé, este reflete paradigmaticamente a visão utilitarista do outro quando, depois de um longo tempo de solidão, aparece um outro na ilha. Esse outro é visto como um selvagem, inferior em cultura, técnica e moral. Crusoe se torna seu salvador. A presença desse outro selvagem lhe serve como companhia mínima, ajudando-lhe nos afazes diários. É sintomático que o outro de Crusoé não tem nome. O nome (im) posto por Crusoé é o do dia da semana em que se encontraram, sexta-feira. O outro é inferior, útil e sem nome, perfilando a figura paradigmática da relação do eu moderno com o outro.
7A principal característica do sujeito moderno está em seu caráter individual, o que significa que o sujeito está centralizado no eu. A individualidade do eu, a modo de sua existência monâdica e auto-suficiente, é constituída como a essência natural do sujeito. Ela é prévia à sociedade e anterior a qualquer relacionamento. A vontade do eu parece surgir de forma espontânea, com uma liberdade instintiva que pertence a sua essência natural. Este se considera prévio a qualquer relação social e origem de toda sociedade. Para o sujeito, nada existe antes do eu e nada pode existir, para ele, sem a sua vontade soberana. O individuo moderno é pensado como uma natureza isolada que, em estado puro, existe por si e em si e como tal portadora de todos os direitos naturais. Esta concepção moderna de indivíduo ficou filosoficamente recolhida no conceito de “estado de natureza”
“Àqueles que afirmam que nunca houve homens em estado de natureza... afirmarei que todos os homens encontram-se naturalmente neste estado e nele permanecem até que, por próprio consentimento, se tornam membros de alguma sociedade política”. (Locke, 2001, p. 384).
8Foi Hobbes quem de forma mais aguda formulou filosoficamente, ainda no século XVII, a tese do “estado de natureza do homem” como uma essência individual do sujeito (Hobbes, 2008). Tal tese vingou e se tornou a marca registrada da cultura moderna. A sombra conceitual do estado de natureza nos acompanha, com todos os desdobramentos possíveis, desde faz cinco séculos. As teorias autoritárias de Hobbes foram o canto da coruja de uma época em que vingaram as teses parlamentaristas de Locke (Locke, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 381-394) e dos iluministas do século XVIII, notadamente Rousseau e Kant. Contudo, e embora tenham prevalecido as teses políticas destes, e delas se originaram os direitos humanos modernos, o arcabouço filosófico do individuo no estado de natureza continuou sendo o de Hobbes.
9O estado de natureza foi concebido como prévio à sociedade, e os direitos dele decorrentes se sobrepõem aos direitos positivos. Embora Hobbes defendia a possibilidade de alienar voluntariamente direitos naturais menores (a liberdade) para defender o direito maior (a vida), foram a teses parlamentaristas de Locke e dos iluministas que prevaleceram ao defender que os direitos naturais são, por essência, inalienáveis e que a sociedade deve sempre respeitá-los e protegê-los.
10Nessa equação moderna, a antropologia filosófica ajudou a construir a idéia de um fundamento natural da sociedade. Perseguia-se a visão racional, ou seja, natural da sociedade a qual foi localizada na visão naturalista do indivíduo; este portador, por essência, de direitos naturais inalienáveis. Nessa fórmula, o direito é correlativo ao conceito de natureza do indivíduo. Os direitos são da natureza individual, ou seja, a forma dos direitos deriva do modo como se pensa a natureza humana. Este axioma vinculou de modo inextricável os direitos humanos com a natureza do indivíduo. Estabelecido este princípio filosófico, e dentro da lógica moderna de que aquilo que é natural se impõe como racional e obvio, chegou-se à conclusão de que a idéia moderna de individuo é uma evidência natural. Conseqüentemente o sujeito natural moderno passou a existir como uma verdade científica clara e distinta. Por isso cada vez que a modernidade se propõe a repensar o sentido dos direitos do sujeito deve retornar, numa espécie de fatalidade prometeica, ao modelo individualista da essência natural do eu.
11Temos de constatar que no momento histórico inicial dos séculos XVII-XVIII, o artifício filosófico do estado de natureza contribuiu com eficiência para desconstruir a legitimidade da sociedade estamental que acorrentava a subjetividade à uma heteronomia servil. A emergência do eu individual como portador de direitos naturais foi decisiva para a derrubada das sociedades aristocráticas e o estabelecimento de uma isonomia formal, base da cidadania moderna.
12Com o passar dos tempos, os modos de dominação mudaram, mas a dominação persistiu. A desigualdade social não é mais estamental, porém ela permanece como algo (natural?) socialmente assumido. As técnicas de exploração se modificaram, porém novas formas de injustiça e desigualdade se fizeram inerentes à ordem moderna. O paradoxo desta situação é que esta nova ordem fez dos direitos naturais do individuo o escopo de sua legitimação, ao ponto de fazer coexistir dentro da mesma ordem a defesa dos direitos naturais e a permanência da desigualdade, a proclamação formal dos direitos humanos fundamentais com a negação real das necessidades fundamentais da vida digna. Novas formas de injustiça estrutural se tornaram tão constitutivas da nova ordem quanto a proclamação formal do Estado de direito. Nestes novos tempos, para pensarmos a efetivação dos direitos humanos de forma histórica e global, teremos de questionar alguns dos pressupostos filosóficos do individualismo liberal que os engendrou e que servem como discurso ideológico para legitimar a naturalidade da desigualdade social e suas formas de injustiça estrutural.
a crítica aos direitos do eu como direitos do liberalismo
“Este tipo de propriedade (liberal-capitalista) pode chamar-se de privada (do latim ´privare´, destituir de), porque a pessoa o pessoas que a possuem são seus donos absolutos, e têm o poder pleno de privar os demais do (direito) a seu uso e desfrute” (Fromm, 2004, p. 81)
13O fosso que separa a proclamação formal e a negação real dos direitos humanos em muitas de nossas sociedades, leva-nos a analisar criticamente quais são os dispositivos pelos quais os direitos humanos conseguem coexistir a até legitimar a desigualdade social, a injustiça estrutural e inclusive atos de violência e guerra1. Se o esvaziamento político dos direitos humanos se opera através do formalismo filosófico-jurídico que vincula os direitos ao eu, sua implementação efetiva dependerá da desconstrução da lógica desse formalismo, tal finalidade exige repensar os direitos a partir da alteridade como direitos do outro.
14Num primeiro momento, passaremos a avaliar algumas das conseqüências político-jurídicas da metáfora filosófica do “estado de natureza”. No estado de natureza todos os homens são iguais, são naturalmente livres, todos têm direito a todo porque por natureza nada é de ninguém. O elemento regulador do estado de natureza é o interesse próprio de cada indivíduo. As relações sociais se estabelecem no choque de interesses individuais em que a norma é levar a máxima vantagem em tudo tentando fazer que meu interesse prevaleça sobre o dos outros. Este seria um estado natural em que os indivíduos se encontram confrontados uns com os outros pelo impulso inevitável do interesse próprio (o egoísmo natural). Para Hobbes e seus seguidores, entre os que cabe destacar a Adam Smith2, Davi Ricardo, Jeremy Bentham3, entre outros, o eu age impelido pelo impulso natural do interesse próprio. Nele encontra a essência do seu ser e o objeto de seu agir. Esta condição humana origina o estado de guerra natural, mais ou menos agudo, de todos contra todos.
15Na seqüência do pensamento de Hobbes, Locke tenta reformular parcialmente a tese do egoísmo natural transformando-a no que poderia se denominar de “egoísmo racional”. O individuo, embora tenha por natureza o impulso do interesse próprio, também tem a razão para controlá-lo fazendo desta o instrumento pelo qual torna aquele um meio racional de socialização (Locke, 2001, p. 384 ss).
16As teorias modernas do estado de natureza pensam a igualdade como parte da natureza: todos somos iguais por natureza. Este princípio de antropologia filosófica muito contribuiu para deslegitimar a naturalização da desigualdade social das castas, das classes, dos estamentos, etc. A igualdade natural tornouse também um axioma central do direito moderno e dos direitos humanos. Contudo, o sentido dessa igualdade também está contaminado pela concepção individualista que o forjou, como veremos a continuação.
17Ainda a liberdade foi pensada como a nota identitária por excelência do estado de natureza. Uma vez mais os conceitos (símbolos) revestidos de naturalismo parecem se impor como verdades evidentes, quando elas sempre são forjadas como sentidos históricos. A liberdade moderna é valiosa em muitos aspectos, porém o sentido a ela atribuído deriva da natureza individual(ista) do sujeito, o que a confina num reducionismo questionável. A liberdade natural é pensada como a liberdade da vontade e esta por sua vez é concebida como vontade do desejo. A liberdade da natureza é entendida como um impulso natural. A liberdade se identifica com o querer individual e este sempre é motivado pelo interesse próprio. O pressuposto filosófico desta liberdade é que a vontade e o desejo traduzem de forma natural a natureza do eu. Ser livre, neste modelo, equivale a fazer aquilo que se quer ou ainda fazer o que se deseja. As teorias modernas sobre a liberdade têm muitos matizes e variações, mas em seu conjunto coincidem em pensá-la como o ato soberano do eu em que o desejo ocupa o lugar do impulso natural. Nesta visão, a liberdade é primeira e a relação com o outro uma resultante. Como conseqüência a liberdade funda a alteridade, e a responsabilidade para com o outro só existe como medida da liberdade. Este princípio, tão essencial às visões modernas do direito e da ética, será profundamente questionado (embora não totalmente invalidado) quando pensamos a liberdade a partir da alteridade o que tornará a responsabilidade a medida de verdadeira liberdade.
18Por último, ainda poderíamos destacar a importância que, desde os primórdios da modernidade, a propriedade é tida como um direito natural ou dimensão constitutiva da natureza humana. Locke foi o filósofo que, já no século XVII, de forma mais contundente vinculou a natureza humana à propriedade (Locke, 2001, p. 405-429).
I
19A genealogia dos direitos humanos remete filosoficamente à idéia de direitos naturais. O seu conceito de natureza humana entrou em crise na nossa contemporaneidade. Sem pretender ser exaustivos neste debate, temos de apontar alguns dos paradoxos dos direitos naturais modernos decorrentes do seu modelo antropológico.
20Karl Marx. As críticas ao modelo individualista que serve de fundamento para a teoria moderna dos direitos humanos surgiram desde várias perspectivas filosóficas. Já Karl Marx, na obra, A questão judaica, critica o que ele denomina de “caráter burguês” dos direitos humanos. O ponto inicial de sua crítica é a visão individualista em que o ser humano ficou encerrado pelas filosofias modernas do sujeito. Tomando como base a diferenciação que a declaração francesa de 1791 faz entre “direitos do homem e direitos do cidadão, Marx se pergunta: Qual é o homem que aqui se distingue do cidadão? Responde de forma enfática: “o membro da sociedade burguesa” (Marx, 2003, p. 34). Afirmando mais adiante que o individuo burguês se caracteriza por ser: “um homem egoísta, um homem separado do homem e da comunidade” (Marx, 2003, p. 34).
21A legitimação dos direitos humanos da burguesia se fez em nome e liberdade. Então Marx questiona: qual o sentido dessa liberdade? A liberdade liberal se limita ao direito de fazer o que não prejudique os outros, a tal ponto que a liberdade é delimitada por aquilo que a lei determina que se pode fazer ou que está proibido. Nesta visão a relação com o outro está demarcada pela lei: “assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre as terras” (Marx, 2003, p. 35). Continua Marx criticando que, neste modelo, o direito do homem à liberdade não se baseia na união com o outro, mas justamente na separação do semelhante. A liberdade burguesa concebe o homem como uma mônada isolada que se dobra sobre si mesma fazendo do distanciamento do outro uma desconfiança natural, transformando os direitos em meios para a defesa contra o outro.
22Para Marx, tanto o modelo individualista dos direitos humanos como sua teoria da liberdade têm uma finalidade política muito bem definida: a defesa da propriedade privada: “A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito humano da propriedade” (Marx, 2003, p. 35). No fundo, o individualismo burguês seria a ideologia que legitima como um direito humano natural o direito da propriedade privada. A propriedade privada (especialmente a dos meios de produção) é, para Marx, a base do modelo capitalista. Por isso a ideologia individualista dos direitos humanos é tão enfaticamente defendida pela burguesia como uma visão natural do ser humano e da sociedade. A naturalização do individualismo burguês se tornou a base do conjunto dos direitos naturais porque dela decorre a defesa da propriedade como um direito essencial ao indivíduo.
23A estreita vinculação entre o individualismo burguês, sua versão da liberdade e a defesa da propriedade constituem o tripé de direitos que, para Marx, longe de serem naturais, são meras construções ideológicas a serviço dos interesses da classe burguesa. O individualismo promovido por este modelo social: “faz que todo homem encontre nos outros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta” (Marx, 2003, p. 36). A crítica de Marx aos direitos humanos se centra no individualismo, denunciado como principio antropológico falacioso cujo objetivo é legitimar, como direito natural, a acumulação ilimitada da propriedade nas mãos de uns poucos, enquanto a desigualdade em que outros se encontram, despossuídos do mínimo necessário para viver, é tematizada como conseqüência natural das diferenças individuais.
24Para Marx, o vínculo entre o individualismo egoísta e os outros direitos é tão estreito que direitos como a igualdade e a segurança estão contaminados pelo mesmo vírus. A igualdade interpretada em referência à liberdade liberal anteriormente descrita, é uma igualdade formal, entendida como igualdade perante a lei e não como direito a um acesso igualitário aos bens sociais. A segurança, segundo Marx, se tornou o direito supremo da sociedade burguesa que defende o direito de cada um à conservação de sua pessoa e de seus bens. Este direito legitima as formas de polícia para defesa do próprio, em especial da propriedade. Conclui Marx afirmando que nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa o egoísmo do homem (Marx, 2003, p. 37).
25Marx não colocou em questão os ideais almejados pelos direitos humanos (que seriam intrínsecos aos objetivos do projeto socialista de sociedade), mas o artifício antropológico que fez do sujeito um individuo naturalmente a/social propondo o individualismo burguês como uma verdade natural. Após Marx, foram muitas as tentativas filosóficas de pensar os direitos humanos para além do modelo individualista com que tão fortemente foram impregnados, como veremos a seguir.
breve genealogia dos direitos do outro
“Não há direito de propriedade que não seja uma apropriação grotesca de um bem ou do trabalho do outro” (Mounier, 1984, p. 92)
26A crítica filosófica ao modelo individualista dos direitos humanos pode ser melhor compreendida se analisarmos o sentido dos direitos a partir da justiça e não a justiça como uma aplicação do direito. Ou seja, propomos mudar a perspectiva epistemológica na compreensão dos direitos humanos adotando a justiça como perspectiva hermenêutica do seu sentido e não vice-versa, como a tradição liberal faz.
27A submissão da justiça às formas do direito constitui um dos artifícios pelo qual os direitos humanos podem enunciar-se fora do sentido da justiça. Por meio dele se consegue que os direitos sejam interpretados como meros princípios formais de enunciação universal deixando em segundo plano sua aplicação histórica, ou seja, a realidade da injustiça das vítimas que sofrem a negação dos direitos. O dispositivo filosófico mais ardiloso da filosofia liberal foi identificar a justiça com o procedimento e o justo com a aplicação correta dos procedimentos legais, fazendo crer que não é possível pensar a justiça fora dos procedimentos e dos seus princípios universais. Quando vinculada ao procedimento, a justiça se reduz ao modo correto de entender e aplicar a lei dentro da ordem. A lei se identifica com o justo e o direito torna-se a forma de justificar a ordem vigente. Nesta lógica binária os direitos humanos são trazidos com facilidade para uma função legitimadora do status quo.
28Os direitos humanos adquirem outra luz quando em vez de ser pensados a partir dos princípios formais do direito, se interpretam a partir do outro injustiçado, ou seja, da alteridade da vítima. Partimos do principio de que os direitos humanos existem em relação à condição histórica das vítimas, e que a formalização dos mesmos deve servir à reparação da injustiça cometida ou devida. O que identifica a violação dos direitos humanos não é a transgressão de uma norma senão a negação da alteridade humana. A validade ou não dos princípios formais do direito em geral e dos direitos humanos em particular terá que se confrontar com a alteridade das vítimas. A condição da vítima vive de forma dramática a violação do direito como injustiça. Para interpretar os direitos haveremos de nos debruçar sobre a condição histórica da injustiça da vítima, só assim poderemos entender seu caráter histórico e afastá-los das contínuas tentativas de utilizá-los como ideologia da ordem.
29Para pensarmos uma teoria dos direitos humanos a partir do outro (vitimado) deveremos considerar o sentido da justiça como demarcador do direito, uma justiça das vítimas que reposicione o valor histórico dos direitos humanos. Com este objetivo, um primeiro ponto que nos cabe sublinhar é que, a diferença do que preconizam a maioria das teorias liberais, a perspectiva de uma justiça a partir do outro (das vítimas) está marcada pela objetividade material do sofrimento da vítima, no sentido ontológico do termo, e não pela formalidade da interpretação legal. A (in)justiça atinge objetivamente, antes que a lei e a ordem, a alteridade humana. Num primeiro momento, a justiça não existe em relação à observação ou transgressão das normas estabelecidas, ela está diretamente relacionada à condição da vítima. O sentido, grau ou impacto de uma (in)justiça se mede pela repercussão que teve sobre o outro vitimado e não pela importância do preceito legal observado ou transgredido, como tende a fazer a justiça procedimental.
30A justiça procedimental tem um marcado matiz subjetivo na origem dos seus princípios (identificados com o eu moderno e os consensos), na organização dos procedimentos (associada à opinião do magistrado) e na consecução dos fins (principalmente em preservar a ordem). Em contraposição, a justiça do outro não se define pela subjetividade, em nenhum dos aspectos anteriormente citados, mas pela materialidade da alteridade ferida. O justo da justiça não advém do sujeito que a ministra, mas da vítima que sofreu a injustiça. A alteridade ferida da vítima é a referência ética que define os princípios do que é justo; ela delimita o critério do justo para os procedimentos corretos da administração da justiça. A alteridade humana se torna, nesta perspectiva, o objetivo que legitima os fins dos procedimentos, ou seja, restaurar a injustiça cometida4. Neste sentido, a justiça das vítimas é uma justiça do outro, uma justiça da alteridade humana. Os direitos humanos pensados nesta perspectiva hão de repensar-se, em primeiro lugar, como os direitos do outro vitimado.
31Quando os direitos humanos são pensados a partir da injustiça das vítimas, têm de abandonar o hipotético estado de igualdade natural e focar-se na condição histórica dos sujeitos. Não é possível compatibilizar a condição histórica do injustiçado com consensos procedimentais que impõem um ponto zero da sociedade e apagam o valor histórico dos acontecimentos. A validade dos direitos humanos sempre há de se reportar à memória do acontecido, à memória das vítimas, e não aos princípios abstratos de uma fundamentação. A situação de injustiça em que se encontram as vítimas não permite colocar um véu de ignorância sobre o acontecimento que provocou tal violência. Não se pode desconhecer a injustiça passada como meio para conseguirmos procedimentos universais comuns a todos. Neste suposto, sacrifica-se a vítima ao conceito, a injustiça cometida é esquecida em nome do consenso futuro.
32A grande maioria das teorias modernas da justiça pensam o justo a partir dos interesses do sujeito. Este define de modo subjetivo ou pelo consenso (que nada mais é do que uma forma mais elaborada de subjetividade da maioria) o que é justo ou injusto. Na modernidade, desloca-se de forma “clara e evidente” o sentido da justiça para o procedimento. Procura-se no procedimento o sentido do justo. Quando Rawls apela para a metáfora do véu da ignorância como um dos princípios da justiça procedimental (Rawls, 1985, p. 143-226), esse véu não só cobre de ignorância os sujeitos a respeito da justiça do outro senão que ainda encobre as vítimas com uma densa capa de invisibilidade epistemológica para a justiça.
33Há de se constatar que a imparcialidade dos procedimentos é válida, fundamental para ministrar a justiça, pois sem ela pode-se cair com facilidade no arbítrio e como conseqüência na arbitrariedade. Mas a redução da justiça à imparcialidade do procedimento ignora facilmente a realidade objetiva da condição das vítimas e da injustiça por elas sofrida. Os direitos humanos, quando vinculados às normas e procedimentos, aparecem como princípios formais ou transcendentais com múltiplas interpretações possíveis, e não como um meio de fazer justiça, seja para prevenir ou reparar a violação da dignidade humana.
34Estes são, entre outros, alguns aspectos críticos que a perspectiva das vítimas coloca á compreensão transcendental ou formalista dos direitos humanos. Porém vejamos com mais detalhe como a tradição filosófica já tinha forjado um sentido da justiça diferente daquele que os liberais elucubraram. Para melhor contextualizar nossas contribuições teóricas a este debate, se faz necessário traçar, ainda que breve, um esboço genealógico de alguns filósofos e discursos que pensaram desde diversas perspectivas este problema.
I
35Aristóteles, ainda na Grécia antiga, pensa que a justiça, a diferença das outras virtudes, só pode existir em relação ao outro. No seu livro vi da Ética a Nicômaco, Aristóteles, constrói sua teoria da justiça com o pressuposto de que:
“A justiça entendida neste sentido é a virtude completa. Mas não é uma virtude absoluta e puramente individual; é relativa a um terceiro e isto é o que faz que na maioria dos casos seja tida pela mais importante das virtudes” (Aristóteles, 1982, p. 171-172)
36Aristóteles amplia a tese de que a justiça é relativa a um outro para tanto se utiliza do aforismo de Bías (também atribuído a Solon) de que “o poder é a prova do homem” porque o exercício do poder é sempre em relação a o outro, aos demais, à comunidade. A justiça é a virtude do poder porque se realiza para o bem do outro e não para bem de si mesmo. Segundo o estagirita, a justiça cria um “bem estranho” porque não é um bem que se faz para si mesmo senão para os outros. Continua Aristóteles afirmando que o homem mais perfeito não é o que emprega a virtude em si mesmo, mas o que faz para o outro. Embora reconhece que isso sempre é uma coisa difícil. Conclui Aristóteles afirmando que, por tudo o dito anteriormente, não há de considerar-se a justiça como uma simples parte da virtude, mas como a virtude plena. Em contrapartida a injustiça não é uma parte do vício, mas a sua plenitude.
37A modo de corolário do I capítulo do livro vi, Aristóteles analisa a evidente diferença entre a justiça e a virtude em geral. Mantém o princípio de que a virtude perpassa ambas dimensões (eu-outro) embora não de forma idêntica. A virtude em relação ao outro é justiça, em relação a si mesmo é hábito moral. Embora a teoria aristotélica da justiça tenha muitos limites5, nela encontramse já princípios claros que pensam a origem da justiça a partir da alteridade humana, como uma justiça do outro.
38Santo. Tomás é um pesquisador e divulgador da obra do estagirita na alta idade media. Nele ecoam as teses de Aristóteles sobre a justiça como virtude em relação ao outro. Para Santo Tomás a justiça tem menos a ver com o sentimento ou vontade do sujeito que com a reparação (objetiva) da injustiça cometida. A virtude da justiça acontece no ato objetivo da reparação da injustiça cometida e não na disposição subjetiva de quem o faz. Santo Tomás entende que a justiça é correlata ao bem comum. Este existe a partir do que denomina de uma justiça geral na qual cada ser humano há de desenvolver seus talentos pessoais em prol do bem comum, contribuindo desta forma para a justiça comum. Só depois Santo Tomas fala de uma justiça particular (Tomás de Aquino, 1964).
II
39Já posicionados na nossa contemporaneidade percebemos que as implicações do individualismo para o discurso dos direitos humanos não passaram desapercebidas na filosofia. A crítica filosófica do individualismo moderno foi feita por muitos pensadores de um amplo leque filosófico que abrange desde o personalismo de Emmanuel Mounier (Mounier, 2004) ou Jacques Maritain (Maritain, 1941; 1947), pensadores da Teoria Crítica como Eric Fromm (Fromm, 2004), Walter Benjamin (Benjamin, 1996), Theodor Adorno e Max Horkheimer (Adorno, e Horkheimer, 2006), da teoria política Hanna Arendt (Arendt, 2001), da hermenêutica humanista como Paul Ricoeur (Ricoueur, 1991), pensadores da alteridade como Franz Rosenzweig (Rosenzweig, 1997), Martin Buber (Buber, 2004), Hans Jonas (Jonas, 2006), entre outros. Todos eles fizeram questionamentos filosóficos agudos a respeito do modelo antropológico individualista da modernidade inerente à teoria dos direitos humanos. Desse amplo espectro de autores, nos propomos apresentar, de modo sintético, o esboço de algumas teses centrais de dois filósofos: Simone Weil e Emmanuel Levinas.
40Simone Weil percebeu as contradições do individualismo moderno e as implicações deste nas teorias do direito e da justiça. Na sua obra, O Enraizamento, desenvolve a tese de que o direito existe como obrigação para com o outro. Contrariando as teses do individualismo moderno, Simone Weil parte do princípio de que a “noção de obrigação ultrapassa a noção de direito, que lhe é subordinada e relativa” (Weil, 2001, p. 7). Pois qualquer direito não é eficaz por si só, mas pela obrigação que corresponde a ele. A realização do direito não provém dele mesmo, mas do seu reconhecimento como obrigação pelos outros. Algo se torna direito quando é reconhecido como obrigação para com o outro. Caso não exista o reconhecimento da obrigação, o direito também não existe.
41Invertendo a lógica do individualismo moderno, Simone Weil afirma que é a obrigação que institui o direito e que este existe sempre como direito do outro. Os direitos que eu tenho são obrigações que os outros têm para comigo e vice-versa, os direitos dos outros são obrigações que eu tenho para com eles. Nesta dialética do eu-outro, direito-obrigação, Weil inverte os princípios filosóficos do individualismo moderno propondo que o outro é a referência para pensar seu direito, e que a obrigação para com o outro se constitui o princípio do direito.
42Weil questiona o binômio dualista da modernidade que fraturou o ser político da pessoa em direitos e deveres dizendo que: “Um homem considerado em si mesmo, tem somente deveres, entre os quais se encontram certos deveres para consigo próprio” (Weil, 2001, p. 7). Os outros têm direitos quando considerados desde o ponto de vista do sujeito (do eu). De igual forma, o sujeito tem direitos quando considerado desde o ponto de vista da responsabilidade dos outros para com ele. Conclui afirmando que um ser humano que estivesse sozinho no universo não teria nenhum direito (pois ninguém estaria obrigado para com ele) e sim teria obrigações (para consigo mesmo e o universo).
43A diferença do formalismo jurídico, a noção de obrigação que perfaz o sentido do direito é sempre relativa a situações de fato e leva em conta as condições históricas dos sujeitos. Enquanto os direitos se apresentam sob certas condições, a obrigação para com o outro, segundo Weil, é sempre incondicionada. Ela está sobre todas as condições. O objeto da obrigação é sempre o ser humano. “Há obrigação para com todo ser humano, pelo simples fato de ser humano” (Weil, 2001, p. 9). Uma obrigação eterna, incondicionada, recolhida de forma confusa (e imperfeita) no direito. Uma obrigação que se manifesta de forma objetiva como dever de justiça para com o outro
44Weil chega afirmar que nenhum ser humano pode se livrar da obrigação para com o outro, como vinculo social dos direitos. Quem pretende se livrar da obrigação para usufruir meros direitos estará cometendo crime. A obrigação para com o outro ser humano está além das convenções sociais ou dos costumes culturais. Por isso, afirma, é uma obrigação incondicionada. Os chamados direitos positivos recolhem, sempre de forma imperfeita, a incondicionalidade da obrigação. A legitimidade ou ilegitimidade destes direitos é correlativa a sua coerência ou contradição no modo como implementam a obrigação para com os outros.
45A obrigação se manifesta, em primeiro lugar, pelo respeito ao outro ser humano e na seqüência pela solução das necessidades básicas da sua existência social. A noção de obrigação, longe do formalismo do direito moderno, remete às condições materiais da existência humana. Weil lembra que esta noção de obrigação que origina o direito se encontra presente nas tradições mais antigas, como a dos egípcios, como consta no Livro dos Mortos onde se define a justiça e a justificação após a morte como o momento em que alguém puder dizer: “não deixe ninguém passar fome”, ou da tradição cristã originária de Jesús que vincula o sentido da justiça à obrigação para com aqueles que são vítimas, a tal ponto que no julgamento final, para Jesus, o único critério de justiça será aquilo que se fez ou deixo de se fazer para com os mais necessitados: o que fizestes a um destes pequenos a mim o fizestes (Mt, 25, 45).
46Para Simone Weil, a obrigação de respeito às coisas é relativa ao serviço que prestam às pessoas. A obrigação da propriedade depende do modo como ela serve para a vida dos outros. O direito de propriedade só merece respeito se cumpre seu papel primeiro: cobrir as necessidades fundamentais da vida humana, caso contrário a propriedade, devendo cumprir a obrigação para com o outro, deixa de ser um direito legítimo do particular. Assim também as instituições sociais merecem um respeito relativo, dependendo do modo como servem para promover a vida humana. A obrigação para com uma instituição (pátria, lei, Estado, etc.) só existe se ela serve efetivamente para o bem dos outros, caso contrário deixa de merecer o respeito e a obrigação necessária. A virada epistemológica e histórica que Simone Weil propõe sobre o sentido do direito e da justiça a partir das vítimas a levou a dizer que: “é necessário complementar a Declaração dos Direitos do Homem com uma declaração das obrigações para com o ser humano” (Weil, 2009, p. 8).
47A crítica de Simone Weil se centra nas contradições inerentes à justiça procedimental, já que é insuficiente para a implementação efetiva dos direitos humanos. Tal insuficiência deriva de estar voltada para a preservação da lei e da ordem e só de forma colateral pensar a efetivação dos direitos humanos como demanda da condição histórica das vítimas. A injustiça é identificada, na visão formalista, com a transgressão da ordem, deixando de lado a condição da vítima. O outro vitimado é sempre um momento segundo da justiça procedimental. Para pensarmos na efetivação dos direitos humanos teremos que inverter a lógica da justiça formal e pensar o sentido da justiça a partir do outro, em este caso a partir das vítimas da injustiça. A efetivação dos direitos humanos deverá repensar as contradições do modelo do direito formal e da justiça procedimental, visando o sentido da justiça para além do procedimento. O sentido da justiça deve ser procurado na injustiça sofrida pela vítima. É a alteridade humana que deve servir de critério ético de justiça. As vítimas são o outro da injustiça (Mate, 2005, p. 261-280).
III
48Emmanuel Levinas talvez seja o filósofo que fez críticas mais contundentes ao modelo “ontológico” do eu moderno. O objetivo da obra deste autor é traçar uma crítica à ontologia do eu, que constitui a base da violência estrutural e cultural de nossas instituições ocidentais e modernas: “‘eu penso’ redunda em ‘eu posso’... a ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder” (Levinas, 2000, p. 33). Em seu lugar propõe uma metafísica da alteridade em que o outro se apresenta como relação necessária e primeira e a ética se torna a metafísica primeira (Levinas, 2000, p. 26).
49Inicialmente, Levinas questiona o princípio naturalista do eu. Enquanto natural, se torna uma realidade auto-suficiente, constituída por si mesma e prévia à relação com o outro. Ainda coloca em xeque o principio filosófico moderno que identifica a essência natural do eu com a razão. Critica a onipotência da razão do eu pela qual se relaciona com o outro objetivando-o na forma de conceito, “neutralizando o outro e englobando-o... em que a razão soberana apenas se conhece a si própria... nada mais a limita” (Levinas, 2000, p. 31). Invertendo o axioma da auto-suficiência natural do eu racional, afirma que o sujeito é naturalmente insuficiente e existe, antes de mais nada, como abertura para a relação. A alteridade não é uma opção da vontade autônoma do eu, mas a condição de possibilidade de sua existência. O eu não existe em primeiro lugar com uma vontade autônoma para depois decidir relacionar-se com os outros. Para o sujeito, o outro é primeiro e a abertura para a relação é sua condição necessária. A subjetividade é o resultado, criativo, dessa relação.
50Levinas, invertendo a perspectiva moderna do eu, faz da abertura para a alteridade a condição necessária da existência humana. É neste sentido que Levinas entende que a relação ética é metafísica (Levinas, 2000, p. 23) pois ela se impõe como condição de possibilidade do ser do sujeito. A alteridade nos abre, necessariamente, para a relação com o outro. Essa abertura é prévia a nossa vontade, já que é pela abertura que constituímos o modo de ser da vontade. Esta não existe como um dado natural do sujeito, pois se constitui na relação com o outro. A relação é prévia à vontade, daí que a autonomia desta deve ser compreendida em relação ao outro do qual se sente dependente e responsável. A abertura é primeira, universal e necessária, ou seja, metafísica. A vontade do sujeito não emana de forma espontânea do eu, não é um dado natural da sua essência, senão que se constitui historicamente a partir da relação histórica com o outro. A vontade do eu, longe de ser algo natural ou espontâneo, é histórica e circunstancial. Daí que sua liberdade também estará afetada pela historicidade, como veremos.
51A individualidade do sujeito se forja através duma indefinida rede de experiências de vida em que os outros se integram às vivências do eu constituindo-o como sujeito histórico e não natural. A subjetividade não é o santuário do eu solipsista, ela se encontra habitada pela presença dos outros com os que se relacionou ao longo de sua existência. A sujeito é, antes de mais nada, o resultado das relações com os outros. Sua subjetividade é formada pela experiência da relação: é uma construção histórica cujo resultado depende das vivências relacionalmente construídas. “A relação com outrem põe-me em questão, esvazia-me de mim mesmo e não pára de me esvaziar, descobrindo assim em mim recursos sempre novos. Não me sabia tão rico, mas já não tenho o direito de guardar nada” (Lévinas, 1998, p. 234).
52Na seqüência do pensamento de Levinas, poderíamos afirmar que sem a abertura para a alteridade, o sujeito não seria humano, permaneceria na consciência natural dos outros seres vivos. O que define o humano como humano não é uma essência individual recebida pela natureza, mas sua abertura para a alteridade. Por ela, a subjetividade se constitui através da relação com o outro; sem ela, a subjetividade nem poderia existir. Através da relação o sujeito existe como criação histórica (Ruiz, 2006). A relação que torna histórico o sujeito também o singulariza escapando de qualquer forma de universalismo naturalista ou de padronizações formatadoras.
53Todavia, explorando o objeto de nossa reflexão, os direitos do outro, para Levinas a justiça é o modo como se realiza o sentido pleno da ética como metafísica primeira. Isso significa que a abertura metafísica do ser humano só se realiza plenamente quando sua relação com o outro se torna uma prática de justiça. Esta posição contradiz a filosofia moderna do eu que pensa a sua realização a partir do interesse próprio. Para Levinas esta é uma ontologia que reduz o outro aos interesses do eu: “a ontologia como filosofia primeira que não põe em questão o mesmo, é uma filosofia da injustiça” (Levinas, 2000, p. 34). Desmarcandose das filosofias do eu, Levinas sustenta que a relação com o outro é íntegra quando é justa. Invertendo a lógica do individualismo, afirma que é a justiça e não a liberdade que dá sentido pleno à relação, e como conseqüência à própria liberdade. “A relação com o outro não se converte, como o conhecimento, em gozo o possessão, em liberdade. O outro se impõe como uma exigência que domina esta liberdade, e partir dai, como mais original que tudo o que passa por mim” (Levinas, 2000, p. 109). Sendo a alteridade a dimensão primeira do ser humano, a ética não pode mais ser reduzida a um código consensual de valores, normas ou preceitos definidos livremente. A ética existe além dos códigos e aquém da vontade, ela se impõe ao sujeito como relação necessária com o outro. A ética é inerente à dimensão da alteridade. Por ela nos abrimos ao outro vinculando-nos numa relação primeira que se torna necessária e universal, metafísica. Para Levinas o outro se apresenta sem ser convidado, existe antes do eu e estabelece a relação sem prévio aviso ou consentimento. O outro, desde a perspectiva metafísica, é condição necessária do eu6.
54Na abertura necessária para a alteridade, o outro se apresenta como relação. Esta é constituída (e me constitui) antes que o eu possa decidir. A autonomia do sujeito não tem a liberdade de negar sua abertura para alteridade. O eu está necessariamente aberto para a relação com o outro sem que sua liberdade possa impedi-lo. A abertura para o outro é condição da própria liberdade. Nessa abertura o outro se manifesta, se apresenta inicialmente como uma epifania que interpela o eu sem que este possa evitá-lo.
55A interpelação é uma categoria filosófica da relação. Ao relacionar-me, a condição humana do outro apela para mim. Seu apelo é sempre uma interpelação. Sua presença me interpela antes que eu possa impedi-lo. O apelo e a interpelação são inerentes ao momento primeiro da relação. A interpelação se sobrepõe a minha liberdade, a condiciona, ao ponto de fazer dela uma liberdade interpelada. A liberdade do eu não existe prévia à interpelação do outro. A liberdade, quando se a reconhece, já existe como resposta ao apelo do outro. “A minha liberdade não tem a última palavra, não estou sozinho” (Levinas, 1999, 87). É uma liberdade interpelada que se manifesta livre no modo como responde à interpelação que a constitui. A verdadeira liberdade é sempre uma resposta às interpelações do outro. A liberdade livre dos condicionamentos históricos da alteridade é uma ficção. “O outro impõe-se como exigência que domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo o que se passa em mim” (Levinas, 1999, 74). A liberdade, quando vem a existir já aparece interpelada e como conseqüência, o modo autêntico de desenvolver a liberdade será respondendo aos apelos que a condicionam.
56A liberdade é uma prática e não um estado do sujeito. Enquanto prática, se realiza plenamente quando responde à interpelação do outro e quando essa resposta se efetiva na forma de responsabilidade própria pelo outro: “filosofar é remontar aquém da liberdade, descobrir a investidura que liberta a liberdade do arbítrio”. A liberdade não existe como essência natural do sujeito, ela é uma prática histórica através da qual o sujeito responde aos apelos dos outros (Levinas, 2000, p. 71).
57A interpelação é sempre histórica, a sua intensidade e gravidade dependerá da condição de vida do outro. A interpelação se torna mais aguda quando o outro é uma vítima da injustiça. A injustiça cria a vítima. Toda vítima real é produzida por uma injustiça, sem essa correlação poderemos falar só metaforicamente de vítimas. A condição de injustiça que sofre a vítima é sempre uma interpelação sobre a que não se pode passar indiferente. Sua dor, embora externa, não me é estranha. Sua interpelação sutura as distâncias entre o eu e o outro fazendo-o meu próximo. Levinas entende que essa abertura interpeladora nos abre essencialmente para a experiência do Bem e da bondade como prática da responsabilidade: “Esta anterioridade da responsabilidade com relação à liberdade significaria a Bondade e o Bem, a necessidade para o Bem de ele escolher-me primeiro antes de que eu esteja em condições de eleger, ou seja, de acolher a sua eleição” (Levinas, 1999,194).
58Seguindo as teses de Levinas podemos afirmar que a proximidade não é opção caridosa do sujeito, mas imposição da relação metafísica da alteridade. O próximo não é uma categoria moral ou religiosa, mas uma presença interpelante que se antepõe a minha liberdade. O outro é meu próximo antes de eu decidir sobre tal condição. A minha liberdade será sempre o tipo de resposta que dou à interpelação de tal proximidade. Posso negá-la, ignorá-la, fechar os olhos para ela, mas não tenho como evitá-la. Resulta cínico denominar de liberdade a opção de ignorar a proximidade do outro, pois a liberdade se realiza como tal quando acolho os apelos da proximidade e os transformo em responsabilidade e compromisso. Embora seja livre para negar o outro, a liberdade não se realiza como tal no ato da negação mas na prática de acolhida do outro. Em todas as hipóteses, a liberdade será sempre o modo como justifico a interpelação do outro.
59Interpelado pela condição do outro vitimado, o eu está intimado a dar resposta. A resposta que a vítima demanda é uma responsabilidade comprometida com sua condição. O sujeito interpelado é também um sujeito responsabilizado. Ele se torna responsável pelo apelo do outro vitimado. A responsabilidade é prévia a minha liberdade. Ela penetra em minha subjetividade como apelo da condição da vítima antes de que eu possa impedi-lo. “A responsabilidade para com o outro, responsabilidade ilimitada que não está medida pela rigorosa compatibilidade do livre ou não livre…” (Levinas, 1999,196) A interpelação nos torna responsáveis pelo outro antes de que possamos manifestar nossa liberdade.
60Levinas não nega a liberdade, porém a interpela desconstruindo o sentido moderno e até ocidental que a investiu com o sinônimo da arbitrariedade. A liberdade arbitrária não é algo natural. Na pretensão de absolutizar a auto-suficiência do eu, ela se torna o principio de toda arbitrariedade. A liberdade sem responsabilidade nem condicionamentos históricos, além de ser uma ficção idealista, se torna o artifício ideológico pelo qual submetemos arbitrariamente o outro aos interesses (egoístas) do eu. “A espontaneidade da liberdade não se questiona. Só a sua limitação seria trágica e provocaria um escândalo” (Levinas, 1999,105). Então o que é liberdade para Levinas?
61Levinas questiona a desvinculação feita pela filosofia racional entre a liberdade e a justiça, e a conseqüente submissão arbitrária desta à aquela. O sujeito é livre, porém exerce sua liberdade como justificação da resposta à interpelação do outro. Liberdade é a forma como justificamos a responsabilidade pelo outro. Ninguém está livre da responsabilidade pelo outro, uma vez que aquela se anuncia como momento primeiro da relação. Todos somos livres, porém nossa liberdade se exerce, como prática histórica, ao dar resposta aos apelos da responsabilidade. A nossa liberdade se mede pelo tipo de resposta que damos à relação com o outro: “A verdade liga-se assim à relação social, que é justiça” (Levinas, 2000, p. 59). A resposta que nos responsabiliza pelo outro é o critério julgador de nossa liberdade. A responsabilidade (inevitável) pelo outro deriva sempre em demanda de justiça. Na relação, a justiça transparece como princípio ético que julga a resposta que damos a nossa liberdade. Por isso a verdadeira liberdade se realiza como plena justiça. Ou seja, a liberdade se constitui como prática de responsabilização justa pelo outro.
62A liberdade, ainda que interpelada, não é determinada na sua resposta. Somos livres para responder de muitas formas ou para não responder. Em todos os casos a liberdade não pode furtar-se à interpelação. Podemos fazer da nossa liberdade um meio para omitir-nos à interpelação do outro, podemos, como Caim, dizer que não temos nada a ver com a sorte do outro: “o que tenho eu a ver com a sorte de meu irmão”. Podemos utilizar a nossa liberdade, inclusive, para explorar o outro e nos aproveitar mais ainda da sua situação fragilizada. Contudo e em qualquer hipótese, não podemos furtar-nos á interpelação nem à responsabilidade. E nunca poderemos dizer que estamos realizando nossa liberdade ou que estamos nos realizando como seres humanos livres quando utilizamos o outro como meio para nossos interesses, porque no ato egoísta a liberdade é negada por não se realizar em forma de justiça.
63A liberdade é definida pelo tipo de resposta que damos às interpelações dos outros. Levinas (d) enuncia a liberdade livre da responsabilidade pois é um falacioso eufemismo do ego-centrismo que tenta justificar o injustificável, ou seja, a utilização instrumental do outro em favor do eu. Levinas identifica como falsa liberdade aquela que nega o socorro do outro vitimado. A liberdade só se realiza como tal na forma de justiça.
64Justiça, para Levinas, é a resposta que damos à interpelação do outro de modo a restaurar a sua dignidade negada. A verdadeira liberdade é aquela que se realiza como justificação responsável pela sorte do outro: “A existência na realidade, não está condenada à liberdade, senão que está investida como liberdade” (Levinas, 1999,107). A liberdade se realiza como justiça. Ela não é previa à justiça, mas conseqüência da verdadeira justificação dos nossos atos. “Mas, o Outro, absolutamente Outro –Outrem- não limita a liberdade do Mesmo. Chamando-o à responsabilidade, implanta-a e justifica-a” (Levinas, 1999,176). Desta forma Levinas inverte o sentido da liberdade moderna e a lógica da justiça do eu.
os direitos humanos e a justiça das vítimas
65Pensarmos os direitos humanos a partir da alteridade exige inverter os termos da relação entre o sujeito e os direitos. Nesta perspectiva, o direito não surge do eu, da sua condição natural individual ou da essência da sua natureza, mas da relação com o outro.
66O direito se torna justo quando é reconhecido como direito do outro. Porque: “ainda antes das formas do ordenamento, o direito está em necessária relação com a vida mesma da comunidade” (Esposito, 2005, p. 35). O direito, na perspectiva da alteridade, é o modo como reconhecemos a responsabilidade pelo outro, assim como os outros também reconhecem a sua responsabilidade sobre mim. O direito é sempre um direito devido ao outro. Nesta perspectiva podemos nos remeter ao pensamento de Roberto Esposito sobre a comunidade (Esposito, 2003, 2005, 2009). Para este autor, seguindo a própria etimologia do termo, o que define a comunidade é o múnus, ou seja, o dever para com o outro. O sentido etimológico do múnus da comunidade é aquilo que cria o do comum. O múnus da comunidade implica numa relação de obrigação para aquilo que é comum, uma responsabilidade para os outros. A relação comunitária desenvolvida pelo um múnus implica aos sujeitos com o comum da comunidade. Sem essa implicação do dever para com os outros, a comunidade desaparece, em seu lugar se abre um vazio desestruturante da convivência que traz como conseqüência final o fim da comunidade. O múnus cria os vínculos comunitários e faz da relação um laço social em que as responsabilidades para o comum vinculam os sujeitos entre si. O comum da comunidade beneficia a todos que dela participam, porém para que exista como tal se exige como princípio ativo o dever para aquilo que é comum, múnus, e não o direito ao próprio (interesse).
67O próprio do eu é sempre uma propriedade, uma apropriação motivada pelo interesse próprio. Pelo sentido etimológico, o múnus que a comunidade compartilha não é uma propriedade, pertencimento ou possessão, muito pelo contrário é um dom, uma dádiva do sujeito para o comum, um dever para com os outros sujeitos da comunidade (Esposito, 2003, p. 30). Essa relação de doação gratuita expropria, ainda que parcialmente, aquilo que o eu tem como sua principal propriedade: a subjetividade. Na vivência da comunidade há um esvaziamento do sentido do próprio, da propriedade, através de numa expropriação de si volcando-se para o valor daquilo que é comum. A experiência comunitária produz uma desapropriação do sentido proprietário do sujeito para investi-lo de uma experiência de doação ou dádiva de si para aquilo que é comum (Esposito, 2003, p. 31).
68Contrariando a dinâmica comunitária, nas sociedades modernas se processou uma tendência acentuada de substituir o múnus do dever para pelo ônus do benefício próprio. Tal substituição provocou o esvaziamento do sentido comunitário colocando em risco a existência da própria comunidade social. O ônus, a diferença do múnus, se afirma na propriedade do próprio, no direito ao particular. O ônus é motivado pelo interesse próprio que faz da propriedade o modo de afirmar-se individualmente frente àquilo que é comum. O ônus procura a vantagem e o beneficio individual fazendo da rivalidade o modo da relação interpessoal. A procura do ônus particular esvazia a comunidade daquilo que lhe é essencial para sua subsistência: o dever para com os outros, o múnus.
69A dinâmica proprietária do ônus conduz a comunidade a um estado de rivalidade em que os indivíduos procuram o próprio em detrimento daquilo que é comum. Para evitar que a comunidade se desintegre num estado de guerra natural, é implantada a força do direito. “Poderia se dizer que o direito conserva a comunidade mediante sua destituição. Que a constitui destituindo-a” (Esposito, 2005, p. 37). Nestas condições o direito se impõe pela força com uma função imunitária cujo objetivo é defender o próprio da ameaça do outro. As relações sociais se tornam, mais e mais, relações jurídicas, e cada vez menos são assumidas como responsabilidade para com o comum. Os conflitos cada vez mais são resolvidos como confrontos legais e menos como problemas morais. Há uma acentuada tendência à juridização da vida como único recurso à falta de responsabilidade ética pelo outro.
70Na perspectiva individualista, quando se coloca a questão: quem fica responsabilizado pelos direitos do outro? a resposta imediata é despejar a responsabilidade num terceiro, normalmente o Estado ou entes públicos. Na visão individualista do direito, as necessidades do outro não são a minha responsabilidade. No máximo podem ser objeto de minha solidariedade opcional (caridade voluntária), mas o eu não se sente moral ou juridicamente responsável pelo outro nem por seus direitos básicos para uma vida digna. Na visão liberal, quando o outro se encontra despojado dos direitos, vivendo numa condição indigna do ser humano, eu não tenho dever de direito para com ele, o máximo que se me solicita é a compaixão voluntária de uma ajuda pontual. Considera-se que eu não sou responsável pela privação dos seus direitos. Como conseqüência eu posso continuar indiferente sem ser responsabilizado por isso, posso seguir adiante sem que tal atitude denote qualquer forma de injustiça para o outro É meu direito! O individualismo liberal cria a indiferença como a forma natural de relação com o outro. Transfere a responsabilidade dos direitos para o Estado ou qualquer outra entidade pública eximindo ao sujeito da responsabilidade pelo outro: do dever pela proteção, defesa e implementação dos seus direitos.
71Na perspectiva da alteridade, os direitos do outro, a sua negação, me interpelam e por sermos humanamente interpelados, somos também responsabilizados pela implementação desses direitos, pela sua defesa. É certo que o patamar de responsabilidade não é igual para todos, que há quem por sua condição social e possibilidades reais tem uma responsabilidade maior, como é o caso, por exemplo, dos responsáveis públicos. Mas isso não apaga a parcela de responsabilidade que eu tenho pelos direitos do outro, que é a mesma que todos temos pelos direitos dos demais. O modelo liberal de direito eximiu aos sujeitos da responsabilidade para com os direitos do outro, reduzindo tal responsabilidade aos casos particulares em que há uma implicação direta nos fatos. Afora isso, todos estão isentos de responsabilidade sobre os direitos dos outros. Enquanto isso, todos se dizem portadores de direitos que os outros devem respeitar.
72A perspectiva do eu introduz o princípio da indiferença como categoria ética, política e jurídica que legitima o direito a não me responsabiliza pelos direitos do outro. A cultura da alteridade inverte tal perspectiva, propondo a responsabilidade como categoria ético-política que faz do direito um compromisso de cada um pelos direitos do outro.
73Na visão liberal, o direito é o dispositivo social que me permite defenderme do outro. Ele tem uma função imunitária que me defende do outro: “neste sentido primeiro e radical deve entender-se o papel imunizador do direito” (Esposito, 2005, p. 35). Ao afirmar meu direito estou-me protegendo do outro que pode querer invadir a minha liberdade, em suma, a minha propriedade. Num suposto estado natural de competição geral em que vivemos (a guerra de todos contra todos), o direito é criado como instrumento de defesa dos interesses do eu para preservá-los da ambição dos outros. Nesta hipótese, há uma outra questão a ser analisa: a cumplicidade do direito com a violência.
74O direito necessita da força (violência), pois, segundo reza a tese clássica, o direito sem força perde a força do direito. Walter Benjamin analisou agudamente as implicações extremas a que conduz a imbricação do direito com a violência, quando esta se torna a única garantia daquele (Benjamin, 1995, p. 160). Nesta aliança, o direito se identifica com a ordem do status quo, no qual o direito cumpre o papel de legitimar a ordem e defendê-la a través da força (violenta). O direito tende a monopolizar a violência como a forma legítima de defender a ordem e a violência serve para garantir o direito como a forma legal de preservação da ordem. Tal cumplicidade reduz os direitos à ideologia da ordem e faz da violência sua última (talvez única) garantia. “o interesse do direito em monopolizar a força diante do individuo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito” (Benjamin, 1995, p. 162). Esta dinâmica gera uma espiral em que o direito e a violência se retroalimentam com o único objetivo de defender-se contra todas as tentativas externas de transformar a ordem. Qualquer iniciativa que vise modificar a ordem, no seu sentido estrutural, será catalogada como uma afronta aos direitos e se persistir em tal objetivo imediatamente será qualificada de violência ilegítima a ser reprimida. Benjamin já nos alertou que, na visão individualista, o direito nasce como irmão siamês da violência. Um necessita do outro para existir
“Embora a primeira vista possa parecer paradoxal, em determinadas circunstâncias pode ser designado como violência também um comportamento assumido no exercício do direito. Tal comportamento, quando é ativo, pode ser chamado de violência, quando exerce um direito que lhe cabe para derrubar a ordem jurídica pela qual tal direito lhe foi otorgado” (Benjamin, 1995, p. 163).
75A violência da justiça procedimental seja na versão ius aturalista ou na versão positivista, coloca-se na relação de meios e fins. No ius naturalismo se legitima como meio para os fins naturais da sociedade, para o positivismo se justifica como fim a partir dos meios corretos da ordem justa. Como já (d) enunciou Benjamin no ensaio Sobre uma crítica da violência, em ambas perspectivas direito e ordem se identificam. Benjamin expõe a radical identificação entre direito e ordem, e conseqüentemente a identificação do direito com legitimador da violência da ordem. Uma violência que tem dois momentos chave: violência instituinte e violência mantenedora da ordem. Tal tese deveria ser matizada em muitos aspectos, contudo, há de se constatar (e concordar com Benjamin) que ela vigora numa parte significativa das sociedades modernas. Presente em muitos de seus procedimentos e instituições, tal cumplicidade do direito com a violência é inerente a muitos acontecimentos históricos (violentos) (Benjamin, 1995, p. 163). Toda ordem se legitima por um direito que por sua vez é instituído como o regime legal da ordem. Nessa equação, a justiça é transferida para dentro da ordem a modo de corpo legal do direito vigente. A injustiça, neste caso, se identifica com a transgressão legal da ordem e da sua lei positiva. Nessa equação, a administração da justiça terá como objetivo primeiro restaurar a transgressão legal contra a ordem, conferindo-lhe o máximo de estabilidade e evitando sua transformação. Esta é uma justiça útil (para a ordem) que se legitima pelos procedimentos.
76Desde o olhar da alteridade, o direito não fica restrito ao artifício legal que me separa do outro para reivindicar o que é meu. Ele se torna o dispositivo pelo qual se implementa a responsabilidade pelo outro. O direito é direito do outro porque se origina da relação primeira constitutiva de toda forma de comunidade, a responsabilidade pelo comum, pelo outro. O direto existe como técnica institucional de resposta à interpelação do outro. Da interpelação surge a responsabilidade que por sua vez cria o direito como meio para garantir a dignidade do outro, da qual eu/todos somos responsáveis. O direito, entendido desde a perspectiva da alteridade, longe de ser a meio de dissuasão do outro é a ponte que me vincula a ele. Se é verdade que em muitos casos a exigência do direito pode requerer a força, também é verdade que o direito liberal desconhece a força do imperativo ético a relação humana que é capaz de fazer que o direito se efetive como responsabilidade ética pelo outro. A minha responsabilidade pelos direitos dos outros não será exigida pela violência do direito do eu, senão pela acolhida da interpelação ética do outro.
77O grande desafio desta perspectiva é educar a consciência para a responsabilidade pelo outro sem apelar para o fácil caminho da violência institucional que garante o direito do eu. Desta forma, o direito se desvincula da violência passando a existir como uma prática de justiça. A justiça realiza-se como justificação de minha liberdade para com o outro, como resposta à responsabilidade que tenho para com seus direitos. A justiça da alteridade supera a justiça formal do direito pois não se limita a cumprir o legalmente previsto, senão que visa restaurar a dignidade do outro, mesmo que a lei não me obrigue a isso. Ela existe além da lei.
78Olhar o direito desde a perspectiva do outro reporta-nos de novo para a justiça e não para a lei. A relação da justiça moderna com as vítimas confronta dois campos epistemológicos adversos. Em primeiro lugar questiona o sentido do que se considera justo. Para a justiça procedimental o justo se deriva da aplicação do procedimento correto, porém para uma justiça a partir da vítima o sentido do que é justo está co-referido à reparação da condição da vítima, à restauração dos seus direitos, ao necessário para uma vida digna.
79A justiça procedimental e a justiça das vítimas não deveriam ser perspectivas contraditórias. Porém, na prática, a justiça ministrada pelos procedimentos formais tem a lei (e a ordem) como sua referência principal (muitas vezes única) ignorado, em muitos casos, o sentido que a vítima deve ter para definir o que é justo. Em tal caso, o sentido (procedimental) da justiça tende a reparar a ordem violada na transgressão da lei, deixando num segundo plano a situação histórica da vítima.
80Os direitos humanos, através da pergunta pela justiça se encontram, mais uma vez, numa encruzilhada de sentidos. Tal impasse leva à questão: quais os elementos que podem ajudar a resignificar este novo sentido dos direitos humanos a partir da justiça das vítimas? Talvez devamos começar pela negativa. Não se trata de reivindicar uma justiça das vítimas no sentido genitivo possessivo do termo. Não são as vítimas as que têm que fazer justiça por si nem para si mesmas. Se assim fosse, a justiça facilmente derivaria em vingança, a equanimidade poderia se transformar em ódio, a isonomia poderia ser substituída pela arbitrariedade e a violência tenderia a justificar-se como direito (“justo”) das vítimas. Definitivamente o sentido da justiça não se atinge mais plenamente porque as vítimas administrem a sentença dos seus algozes. A justiça não é justa porque sejam as vítimas que ditem sentenças ou administrem os procedimentos.
81Para repensar os direitos a partir do que é justo para as vítimas haverá que interpretar tal pressuposto no sentido do genitivo ablativo, ou seja, uma justiça a partir das vítimas (Mate, 2003, p. 100-125). Em tal condição o elemento qualificativo (as vítimas) se torna essencial para definir o elemento substantivo (justiça). A justiça das vítimas se propõe a construir o sentido do justo a partir da alteridade ferida das vítimas. Seu objetivo é reparar o mal feito para elas. A preservação da lei e a ordem serão conseqüências derivadas do anterior. Se a lei ou a ordem entrarem em contradição com a restauração justa da alteridade ferida, haverá de se questionar a justiça da lei e a legitimidade da ordem. O procedimento correto é importante como meio adequado para ministrar as decisões mais pertinentes à justiça das vítimas. Ele evitará a vingança, o ressentimento ou a parcialidade injusta. Porém o procedimento não pode exaurir o sentido do justo nos meios que utiliza para ministrar a justiça. O justo da justiça não está no procedimento, mas é correlativo à restauração da injustiça cometida contra as vítimas. Para que os direitos humanos adquiram uma responsabilidade social ampla, hão de ser compreendidos como direitos das vítimas. Perante o sofrimento das vítimas, todos somos responsáveis por implementar os direitos que lhes restaurem a dignidade negada. Os direitos humanos não são o direito de apropriação do interesse individual, mas os direitos da responsabilidade para com o outro vitima da injustiça.
Bibliographie
Des DOI sont automatiquement ajoutés aux références bibliographiques par Bilbo, l’outil d’annotation bibliographique d’OpenEdition. Ces références bibliographiques peuvent être téléchargées dans les formats APA, Chicago et MLA.
Format
- APA
- Chicago
- MLA
biliografia
adorno, Theodor e Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
Agambem, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: ufmg, 2002.
Agambem, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003.
Arendt, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forenser Universitária, 2001.
Aristóteles. A política. São Paulo: Hemus, 2006.
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Livro vi, cap. i. Madrid: Espasa Calpe, 1982.
Benjamin, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996.
Benjamin, Walter. “Crítica da violência, crítica do poder’. In. Id. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1995.
Buber, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2004.
Esposito, Roberto. Immnitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu, 2005.
10.1515/9781503620520 :Esposito, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Madrid: Amorrurtu, 2003.
Esposito, Roberto. Comunidad, inmunidad y biopolítica. Madrid: Herder, 2009.
Fromm, Erich. Ter ou ser. São Paulo: Zahar, 2004
Hobbes, Thomas. Leviathan. Matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008
Hobbes, Thomas. Leviatán. Cap. 14. Madrid: Altaya, 1997.
Jonas, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma Ética para a civilização tecnológica. RJ: Contraponto / puc-rio, 2006.
Kant, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento [Aufklärung]. In: Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974, p 100-107.
Lévinas, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget. 1998.
Lévinas, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000.
Lévinas, Emmanuel. Totalidad e Infinito. Salamanca: Sígueme, 1999,
Locke, John. Segundo Tratado do governo civil. São Paulo: Martin Fontes, 2001.
Maritain, Jacques. Humanismo integras. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1941; Maritain, Jacques. Direitos do Homem e a Lei Natural. São Paulo, Editora: Olympio, 1947.
Marx, Karl. A questão judaica. São Paulo: Centauro, 2003.
Mate, Reyes. “En torno a una justicia anamnética”. In Id. (org) La ética ante las víctimas. Barcelona: Anthropos, 2003.
Mate, Reyes. “Por uma justiça das vítimas”. In Id. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
Mounier, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro, 2004
Mounier, Manuel. De la propiedad capitalista a la propiedad humana. Buenos Aires: Lojle, 1984.
Rawls, John. Teoría de la justicia. México: fce, 1985.
Ricoueur, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1991
Rosenzweig, Franz. La Estrella de la Redención. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1997.
Ruiz, Castor M.M. Bartolomé. As encruzilhadas do humanismo. Petrópolis: Vozes, 2006.
Santo Tomás de Aquino. Summa Theologicaii, ii. Madrid: bac, 1964.
Weil, Simone. O Enraizamento. São Paulo: Edusc, 2001.
Weil, Simone. Escritos de Londres, París, 1957, p. 74 Apud. González Faus, José Inácio.
Simone Weil e o encontro entre as culturas.puc, Rio de Janeiro, 2009.
Notes de bas de page
1 Foi notável o impacto que provocou em todo o mundo a argumentação oficial utilizada pelo governo dos eeuu e Inglaterra para a invasão de Iraque como defesa da liberdade e dos direitos humanos que estariam sendo negados nesse país. Lembrando que a guerra contra Sérvia, a invasão de Kuwait a intervenção contra Afganistão realizaram-se “oficialmente” sob a bandeira da defesa dos direitos humanos
2 Adam Smith, 1723-1790, era filósofo moral e se tornou o principal teórico da economia política do liberalismo defendendo a tese de que as relações sociais se regulam naturalmente pelo choque de egoísmos ou de interesses particulares, os quais são guiados por uma mão invisível do mercado de modo a harmonizar pela lei da oferta e da demanda os interesses em conflito. Smith, Adam. A riqueza das nações
3 Jeremy Benthan, 1748-1832, filósofo defensor da teoria utilitarista, junto com Stuart Mill e James Mill. Influenciado por Adam Smith defende o liberalismo econômico como modelo de vida. Concebeu o modelo do “panoptico” de prisão como ideal político de governo de toda a sociedade.
4 Sobre a preeminência ético-metafísica da alteridade sobre a subjetividade remetemos aos estudos de Emmanuel Levinas para quem o Outro é a condição de possibilidade do sujeito e a alteridade é a relação primeira de todo ser humano. Como conseqüência disso, a ética é a condição necessária do existir humano e se torna a metafísica primeira. Id. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000
5 A teoria sobre a justiça de Aristóteles, desde o nosso ponto de vista, tem muitas lacunas reducionistas para ser uma justiça das vítimas. Entre elas podemos destacar a identificação que faz em muitos momentos entre justiça e lei, assim como entre injustiça e transgressão da lei. Aristóteles é filho de sua sociedade, a qual não tem percepção clara do sentido da alteridade humana. A falta de consciência crítica a este respeito levou Aristóteles a legitimar a servidão como condição natural da desigualdade da natureza dos homens. Esta se recolhe de maneira precisa no cap. ii do livro I da Política. Cf. Aristóteles. A política. São Paulo: Hemus, 2006
6 Entre as críticas feitas a Levinas destaca-se a de que na sua filosofia o eu fica anulado pelo outro. É conveniente destacar que seu pensamento não pretende submeter o sujeito a uma hetoronomia abstrata, ao “poder do outro”. Tal feito levaria seu pensamento a uma gravíssima aporia: “Se o outro pode me investir e investir a minha liberdade por si mesma arbitrária, é porque eu mesmo posso me sentir, afinal das contas, como o Outro do Outro”. Levinas, Emmanuel. Totalidad e Infinito. Salamanca: Sígueme, 1999, p. 107.
Auteur
Dr, Filosofia. Professor Pesquisador Titular do Programa de Pós-Graduação Filosofia, Unisinos. Coordenador Cátedra Unesco-Unisinos de direitos humanos e violência, governo e governança. Coordenador Grupo de Pesquisa CNPq Ética, biopolítica e alteridade. www.armazemdafilosofia.com
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Análisis económico de los procedimientos de selección de contratistas del Estado en el Derecho colombiano
Hacia un mecanismo eficiente y transparente
Mónica Sofía Safar Díaz
2009
Casos de concentraciones empresariales en el sector energético europeo
Milton Fernando Montoya Pardo
2012
Regulación del mercado de energía eléctrica en América Latina
La convergencia entre libre competencia e intervención estatal
Luis Ferney Moreno
2012
Normas técnicas y derecho en Colombia
Desafíos e implicaciones para el derecho en un entorno de riesgo
Héctor Santaella Quintero
2008
Cátedra Unesco y Cátedra Infancia: justicia transicional y memoria histórica
André-Jean Arnaud, Castor M.M. Bartolomé Ruiz, Yolyn Elena Castrillón Baquero et al.
2015
Los contratos de transferencia internacional de tecnología
América Latina, Estados Unidos y la Unión Europea
Manuel Guerrero Gaitán
2014
Política criminal y “prevención”
Carol Sierra Ramirez, Nilton Rosas Camacho Deily, Jorge Luis Triana Sánchez et al.
2015
Cátedra Unesco. Derechos humanos y violencia: Gobierno y gobernanza
Problemas, representaciones y políticas frente a graves violaciones a los derechos humanos
Bibiana Ximena Sarmiento Alvarez et Marcela Gutiérrez Quevedo (dir.)
2016