Suplemento ao jornal e ao livro de botânica marcado O
p. 554-567
Texte intégral
1Paralelamente à correspondência1, dois outros tipos de documentos manuscritos nos esclarecem sobre a personalidade e o método de trabalho de Auguste de Saint-Hilaire: seu jornal de viagem e seus cadernos de coleta.
2No prefácio de seu primeiro livro, Auguste de Saint-Hilaire refere-se de fato à um documento de trabalho que lhe servirá à redação de seus relatos, seu jornal de viagem:
[…] eu pude ver tudo que havia de relevante, e reunir os ensinamentos mais preciosos. Todo dia eu escrevia um jornal detalhado do que se apresentava aos meus olhos, e aí anotava, tanto que me permitiam meus limitados conhecimentos, tudo aquilo que poderia contribuir a fornecer uma ideia exata do país que eu percorria. Foi neste jornal, escrito nestes lugares, que eu extraí a relação histórica que hoje eu começo a publicação.2
3Se este jornal de trabalho não foi encontrado por enquanto, uma pequena parte foi no entanto, publicada —aparentemente sem grandes cortes— na obra póstuma Viagem ao Rio Grande do Sul, que constitui a narração da última expedição do botânico. Charles-Roland de Dreuzy (1837-1899) seu sobrinho, respeitando as últimas vontades de seu tio, foi quem decifrou fielmente esta parte de seu jornal. Este tomo se destaca desta forma dos outros publicados anteriormente, evocando todos os dias da expedição de Saint-Hilaire no Rio Grande do Sul.
4O viajante Saint-Hilaire se revela então, deixando como testamento o testemunho comovente de um homem atormentado pela dúvida, extenuado após seis anos de aventuras e privações. O país que ele percorre nesta ocasião não oferece um aspecto tão agradável quanto Minas Gerais. A região é fria, alvo de reivindicações territoriais e imersa num ambiente de guerra. Sente falta de sua família («A lembrança de minha mãe constantemente me persegue »), torna-se ávido por notícias da Europa e muito lhe agrada quando encontra alguns exemplares do Constitutionnel, do Times e da Gazeta de Lisboa.
5O naturalista confessa: a descrição pitoresca, minuciosa e detalhada das peripécias de todo dia, permite também de imaginar a maneira como foram alimentados os outros relatos publicados. Descobrimos as relações com seus companheiros, mesmo quando elas se degradam, sua depressão manifesta que transpira em cada página, o retrato intransigente das pessoas encontradas.
6Enquanto a correspondência e o jornal de viagens de Saint-Hilaire nos esclarece sobre sua personalidade, os cadernos nos quais ele figurou a descrição das plantas coletadas, nos informa sobre seu método de trabalho. Conhecemos dez cadernos, todos conservados no Museu nacional de História natural de Paris. As notas de campo são sempre escritas do próprio punho de Saint-Hilaire, com os complementos de 1822 que acrescentam determinações, geralmente de novas espécies, (ver abaixo a descrição dos cadernos de coleta). O botânico H.A. Weddell denominou-os posteriormente como A1, A2, B1, B1bis, B2, B4bis, C1, C2, C3 e D. Alguns resultam às vezes da encadernação de catálogos separados.
7Uma análise minuciosa destes manuscritos foi realizada por J. D. Dwyer em 19553. Um número foi atribuído a cada espécime coletado. Pode-se assim enumerar, a partir dos cadernos, perto de 8 900 coletas com múltiplas duplicatas; correspondendo ao número de 30 000 exsicatas. Mas muitas peças não chegaram à França, devido à degradação dos espécimes pelos insetos.
8A tabela 1 apresenta as séries de números de coletas extraídas do caderno C3. Saint-Hilaire realizava entre uma a onze coletas por dia.
9Recentemente, os herbários de Saint-Hilaire foram integrados em uma nova base de dados informáticos «o Herbário virtual Saint-Hilaire» permitindo assim de homogeneizar o modo de citação do material e de aceder à totalidade das informações que acompanham os espécimes4.
10Além disso, os dados figurando nos cadernos de coleta C3 nos permitiram de enriquecer o Herbário virtual disponível na Internet5, completando as informações sobre as datas e as localidades de coleta dos espécimes dos herbários. A qualidade de dados de todo o herbário poderá ser assim aprimorada cruzando os cadernos de coleta das séries A, B, C e D com as Viagens ao interior do Brasil.
Tabela 1 Número de coletas diárias no caderno C3.
Data | Localidade | No de coleta | Quantidade de coletas |
6 de setembro de 1818 | Praia do Anjo (RJ) | 86-96 | 11 |
10 de abril de 1819 | Serra dos Pyreneos (GO) | 692bis-700 | 9 |
Junho de 1819 | Montes Pyreneos (GO) | 701-709 | 9 |
Rio Grande (RS) | 1858 | 1 | |
5 de setembro de 1820 | Rio das Pelotas (RS) | 1859-1864 | 8 |
6 de setembro de 1820 | Rio das Pelotas (RS) | 1865 | 1 |
8 de setembro de 1820 | São Francisco de Paula, Rio das Pelotas (RS) | 1866-1869 | 4 |
1° de outubro de 1821 | San Miguel (Uruguay) | 2004-2020 | 19 |
11Saint-Hilaire não viajava com todas suas coletas, como testemunha as últimas páginas do caderno D: «Livro catalogado d contendo a descrição das plantas que eu coletarei numa viagem que eu me comprometi a fazer de R. de J. a S. Paul passando por Minas Geraes e cujo objetivo é de buscar as [riscado: plantas] caixas que eu deixei nesta última cidade»6. De modo semelhante, nas cartas destinadas à Jussieu ou à Deleuze7, Saint-Hilaire menciona várias vezes o armazenamento de caixas no Rio, e solicita regularmente notícias das coleções que chegaram em Paris.
12Infelizmente, nenhuma indicação é comunicada por Saint-Hilaire nos seus cadernos, sobre o modo de coleta, de preparação e de secagem dos espécimes. Foi ele o único coletor? Ele preparava as amostras de herbário no campo, ou na volta do campo ou nas casas onde se hospedava? Ele secava seus herbários na chama, como se pode imaginar? Aleatoriamente, nos relatos das viagens, descobrimos somente que, por vezes, faltou papel.
13Na Flora brasiliae meridionalis, Saint-Hilaire propaga no entanto, sobre o pouco de crédito que ele concede aquilo que ele não foi colhido por ele mesmo. O naturalista trabalha sozinho. Ele se diferencia nisto do método de K. von Martius que associa na obra coletiva Flora Brasiliensis, todos os coletores e todos os especialistas do momento.
14Devido à firmeza da escrita dos cadernos, Dwyer questiona o fato que as descrições tenham sido redigidas de noite, no final de jornadas extenuantes como descreve Dreuzy na introdução da obra póstuma: «No rancho, sentado sobre as malas, ilu minado pela claridade trêmula de uma vela enfumaçada, devorado pelos mosquitos atraídos pela luz.»
15Saint-Hilaire nem sempre estanciou em condições precárias. Assim, o naturalista apresentava aos fazendeiros e aos ricos burgueses os passes fornecidos pelas autoridades portuguesas, e as cartas de recomendação fornecidas por personalidades importantes que lhe permitiram de beneficiar da hospitalidade dos brasileiros.
16As fazendas antigas de 250 anos não são raras no Brasil e é ainda possível visitar várias casas nas quais Saint-Hilaire permaneceu, como por exemplo a fazenda de Sabinópolis ou a das Laranjeiras. Ele desfrutava assim de cômodos e de dependências de conforto relativo, mas suficiente para realizar as dissecações e as análises florais mais detalhadas. Desconhecemos no entanto, de qual material óptico Saint-Hilaire dispunha. Provavelmente as análises eram realizadas alguns dias após a coleta, uma vez que os viajantes permaneciam às vezes várias semanas no local.
17Os fitófagos continuam à ser um flagelo, ainda hoje, para um botânico que coleta em áreas tropicais. Saint-Hilaire confia sua inquietude na correspondência: «Mas eu receio que enquanto eu continuo a coletar aqui, o que eu deixei no Rio de Janeiro esteja sendo atacado por insetos.»8
18E de fato, nas caixas que conservam o material e que aguardam o naturalista, os danos9 são frequentes, assim como ele anota na Viagem ao Rio Grande do Sul:
[…] Eu encontrei os pássaros e os insetos no melhor estado possível. Mas duas malas de plantas tinham sido completamente devastadas pelas larvas de escaravelho-aranha-brilhante, e são aquelas que colhi nas minas novas, às margens do Rio S. Francisco, entre Rio de Janeiro e o rio Doce, nas montanhas de Tapanhoacanga e na proximidade de Ubá. […] confesso, a dor que experimentei vendo as perdas feitas no meu herbário, alterou sensivelmente minha saúde e me privou quase inteiramente de minhas forças [...]
19Para ilustrar, apresentamos um exemplo de uma descrição de campo, sempre tirada do caderno C3 (cf. folha 36 da versão on-line)10 tão precisa que dificilmente podemos imaginar o autor: «No rancho, sentado sobre as malas, iluminado pela claridade trêmula de uma vela enfumaçada»... As análises morfológicas são exatas e predispõem à publicação da flora.
[Descrição de 10 plantas: No 692 bis à 700]
709 Hyptis m.l. Cálice obconical oblongo pubescente viscoso um pouco curvado 5-fido à div. lineares-agudas. Corola roxo muito pálida mais longas que o cálice. E com filetes pilosos. Ginóbase maior que os lobos, sem aproximá-los, mais alto na frente, mas sem se prolongar em dente. Lobos ovoides obtusos glabros. Estilo glabro com 2 dentes curtos e obtusos. Flores reunidas 7 à 8 em pequenos pacotes envolvidas de brácteas pubescentes viscosas das quais uma ou duas lanceoladas, as outras lineares agudas. Arbusto de 4 aos 5 p. ramoso na parte superior. pl. viscosa.
20Intercalado entre as descrições das plantas, o caderno catalogado C3 comporta os elementos de três relatos que serão retomados na publicação de Viagem às nascentes do Rio de S. Francisco e pela província de Goyaz para os dois primeiros e no livro póstumo Viagem ao Rio Grande do Sul para o último.
21São notas que antecedem provavelmente o Jornal de viagens precitado, não como palavras lançadas no campo tais um esboço de pintor, mas como um rascunho fazendo objeto de uma redação, de adições e de pentimentos.
22Apresentamos aqui a visita à Casca d’Anta em Minas Gerais, na Serra da Canastra, em 9 e 10 de abril de 1819. É precisamente este evento geográfico que justifica o título da obra publicada trinta anos mais tarde numa versão mais detalhada: a descoberta das nascentes do Rio São Francisco, grande rio do Nordeste, desconhecidas nesta época.
Eu descreverei na minha terceira Viagem a cachoeira das Antas, à qual nenhuma obra, ao meu conhecimento, descreveu até agora. Eu vi esta cachoeira cair da montanha; mas devo admitir que não observei o ponto onde suas águas despejam na terra11.
23Estas notas de campo já incluem os principais elementos do relato publicado, e os parágrafos são retomados literalmente, o autor se contentando sempre de melhorar seu estilo. A versão publicada, mais detalhada, é enriquecida de conhecimentos geográficos da época.
Suplemento ao jornal e ao livro de botânica marcado O
249 avril Capueira da Casca d’Anta 7 l.
25Eu sabia confusamente, há bastante tempo, que existia na Serra da Canastra12 ou na vizinhança uma cachoeira muito conhecida, mais ninguém não tinha podido me dar informações mais precisas à este propósito e parti esta manhã da Fazenda de João Dias convencido que teria que andar 3 léguas para chegar à cascata e que ela caia dos montes vizinhos da Serra. Como os montes são mais baixos que a Serra da Canastra, eu esperava pouca coisa para a botânica deste passeio e levei pouca quantidade de papel. Trouxe comigo José Mariano
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26de quem já experimentei por várias vezes à sagacidade em não se perder mesmo quando as indicações são incompletas. A medida que nos afastávamos da fazenda de João Dias, o país se tornava mais montanhoso oferecendo sempre matas nos vales e pastos sobre os montes. No entanto havíamos percorrido mais de três léguas e não avistamos nenhuma casa se bem que já nos tivessem anunciado várias. Nenhum viajante, nem gado, embora estivéssemos avistando campos recém queimados por todos os lados; uma bela solidão, mas uma solidão profunda. Para nossa grande satisfação, finalmente encontramos uma negra à quem perguntamos o caminho e soube com tanta
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27surpresa com prazer que não nos tínhamos desviado em nenhum momento. José Mariano captava todos os indícios, tirava conclusões as mais justas e ele tem a arte de se conduzir com segurança em um país onde outros poderiam se perder centenas de vezes. Soubemos pela negra que embora tivéssemos percorrido um longo caminho, estávamos ainda bem longe da cascata. Já tínhamos atravessado vários riachos de limpidez sem igual, entre eles os chamados Ribeirão da Prata e Ribeirão da Capivara e durante o restante do dia atravessamos vários outros que se juntam ao Rio São Francisco. A medida que avançávamos, melhor descobríamos a serra da Canastra. Visto de mais perto, seu cume não apresenta mais a
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28mesma regularidade; mas está longe de apresentar as anfractuosidades que se observam habitualmente nas grandes cadeias de montanhas. A serra da Canastra tem quase 5 de comprimento mas ela é separada por um pequeno desfiladeiro (talvez ¼ de légua) de uma outra montanha chamada Serra do Rio Grande, menos alta menos regular que se dirige do oeste [nota de rodapé: Sudeste] e se junta aos outros montes mais orientais da Comarca de São João. Devemos mesmo olhar a Serra da Canastra e a do Rio Grande como uma mesma montanha ou seja segundo o que me disseram elas se encontram na extremidade ocidental do desfiladeiro que existe entre elas. Seja o que for após percorrer por volta de 4 l. avistamos as primeiras choupanas, mas elas estavam um pouco afastadas do caminho, mais tarde vimos outra
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29na beira da estrada. Paramos aí um momento e fomos informados que estávamos ainda a uma grande distância da cachoeira. Eu perguntei ao proprietário desta choupana como ele poderia viver em tal solidão. Eu não gosto de barulho me respondeu, eu não estou só pois que tenho minha mulher e meus filhos e fora o sal, minha terra produz com abundância tudo o que preciso. Até então tínhamos sempre à nossa frente o lado ocidental da Serra que é o mais comprido, mas nós nos dirigíamos um pouco para o sul. O lado oriental [nota de rodapé: estende-se por uma inclinação mais ou menos acentuada, ele] apresenta pastos e não me parecia inacessível de parte alguma. Quanto mais nos aproximávamos da Serra, menos as casas
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30são raras, distinguimos algumas plantações de milho e algumas cabeças de gado vacum. Logo mais penetramos este desfiladeiro que separa a Serra da Canastra da Serra do Rio Grande, e que beira o lado meridional da primeira. Estávamos muito perto. Aí seu cume é plano. O flanco, em grande parte de sua altura ostenta rochas sulcadas inacessíveis perfeitamente entalhadas em pontas sob a qual estendem-se pastagens e matas num suave declive até embaixo de um profundo vale, é lá que começa o Rio São Francisco. Os rochedos que acabo de citar embora formando uma muralha [nota de rodapé: quase vertical] não são entretanto inteiramente nus:
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31aqui e ali são revestidas de uma relva muito fina que revela, por intervalos, uma coloração cinzenta. Em parte alguma, creio que vi uma vegetação tão bela e tão fresca como esses pastos que como já disse estendem-se sob os rochedos a pique. E as nuances mais escuras dos bosques não lhe são inferiores em beleza. Entrementes, penetramos um Capão onde a vegetação apresentava uma extrema frescura. Ouvimos o ruído das águas que correm no fundo do vale. Chegamos em uma choupana e perguntamos onde se encontrava a casa de Felisberto que sabemos residir muito perto da cascata. Ele próprio, ali presente respondeu-nos que nos serviria de guia.
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32Penetramos em um bosque e pouco a pouco começamos a ouvir o ruído da cachoeira. Segundo o que me disseram na casa onde anotei as indicações sobre o caminho, eu já sabia que ela tombava do lado meridional da Serra da Canastra. Deixando o bosque que venho de citar, avistei o cume e logo a seguir eu a descobri completamente, tanto quanto podíamos vê-la do lugar onde estávamos. O espetáculo nos arrancou, à José Mariano e a mim, um grito de admiração. No lugar onde a agua cai, os rochedos a pique da montanha se curvam um pouco nas suas extremidades e deixam vislumbrar uma fenda larga e profunda que se estende em ziguezague em dois terços de sua altura. Do ponto onde a fenda se [... ?] majestosamente [riscado depois adicionado: de uma altura considerável] uma bela cortina de agua cujo volume é maior de um lado que do outro. O
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33terreno que se estende abaixo da encosta da cachoeira é muito desigual. Um outeiro coberto de uma bela relva encobre a parte inferior da cortina de agua e no lado direito [adicionado: desce em sua direção] um bosque verde sombrio. Tal é a nascente do rio São Francisco. A vista que acabo de descrever é aquela que vejo da casa de Felisberto. [Nota de rodapé: Esta noite, enquanto escrevo, há um claro luar e a cachoeira parece iluminada por (...?) a luz (?) que (?) um pasto (...?)] Felisberto nos recebeu muito bem. Sua casa é uma humilde choupana [adicionada: sem móveis e] desprovida de qualquer tipo de conveniência. Feijão [adicionado: cozido na agua] e leite constituíram nosso jantar; por cama, me deram um colchão de palha de milho sem (...?), mas tudo isso me parecia oferecido de bom grado. Felisberto contou que suas terras produzem tudo com abundância. Mas nesta terra distante, nenhuma mercadoria circula. O algodão é a planta menos bem sucedida. Somente o gado vacum
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34se vende facilmente. Os comerciantes de gado costumam busca-los aqui, e encontramos um deles em uma das casas que nos recebeu. Aqui muito se queixa das ervas venenosas que como se diz danificam o rebanho no entanto como ninguém conhece as ervas em questão, podemos considerar esta afirmação como uma conjetura elaborada para explicar a morte súbita dos animais. A casa de Felisberto é situada na beira de uma estrada pouco frequentadas que conduz à cidade de Desemboque conhecida pela fertilidade das terras aos seus arredores. Esta estrada segue o desfiladeiro que divide as duas Serras e que pode medir ao que me disseram 4 l. de comprimento. 10 de abril. Felisberto me propôs ontem de
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35me conduzir pela manhã ao pé da cachoeira, mas algumas ocupações o impediram e ele me indicou como guia se cunhado Manoel Lopes que mora à meia légua de sua casa. Antes de me despedir de Felisberto, eu quis gratifica-lo, mas isto não foi fácil. Este homem me demonstrou uma bondade, uma paz de espírito, uma resignação à vontade do céu, uma paciência para suportar a pobreza que encontra-se somente longe das cidades. Partimos, José Mariano e eu às 11 h. da casa de Manoel Lopes em direção da cascata. Após a travessia de um bosque denso e [adicionado: seguindo] uma pequena trilha pouco frequentada e entravada por
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36bambus, chegamos à beira do Rio São Francisco que nesta altura se encontra a uma meia légua da nascente e pode ter 20 a 30 pés de largura. Suas aguas, de uma limpidez e frescura extremas tem pouca profundidade e permitem a visão dos seixos do leito por onde correm. Pus-me descalço para atravessar o rio e não foi sem pena que o consegui porque o fundo estava repleto de pedras extremamente escorregadias. Na outra margem encontramos um outro bosque ainda mais difícil de transpor que o primeiro. Manoel Lopes que me precedia era obrigado, quase a cada passo, de cortar os bambus e os ramos das arvores
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37que atravancavam nosso avanço. Atravessamos uma segunda vez o R. de S. F. e depois de transpor um pasto, encontramos a beira do rio [adicionado: recoberta de paus] tão obstruída por galhos de arvores e bambus que tivemos que caminhar pelo leito do rio. Por este caminho até a cachoeira havia grandes pedras escorregadias que por vezes estavam recobertas pelas aguas, e por outras elevavam-se acima de sua superfície que me teria sido impossível progredir se Manoel Lopes e José Mariano [nota de rodapé: mais habituados que eu a andar descalço] não me dessem a mão continuamente. Enfim, após uma caminhada extremamente árdua e durante aquela corríamos sem cessar o risco de cair
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38atingimos o pé da cachoeira que havíamos descoberto anteriormente. Da casa de Felisberto, estávamos a mais de um quarto de légua e eu a descobria que por partes. Vou descrevê-la tal como a vi estando assim o mais próximo quanto possível. No lugar onde ela cai, os rochedos a prumo formam uma concavidade pouco amena. Vislumbra-se sobre a cachoeira uma grande fenda, mas eu estava perto demais para avaliar a forma e a extensão. Se ontem eu disse que a cascata não fazia que o terço da altura dos rochedos, é que da casa de Felisberto descortina-se que parcialmente. Hoje, que eu a vi de diferentes ângulos, creio poder afirmar com mais certeza que ela começa a cair no terço da altura dos rochedos a partir do cume. Foi atribuído na minha frente 240 palmos de altura, mas creio que esta medida é exagerada. Ela não se precipita com rapidez, mas
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39Ela forma uma bela cortina de agua branca e espumante que flui lentamente e parece formar grandes flocos de neve. Suas aguas são recolhidas em uma bacia semicircular revestidas de pedras empilhadas sem fim e elas (?) elas se escorrem por uma fenda bastante grande para formar o Rio São Francisco [nota de rodapé: que tem perto de 700 léguas de curso e recebe uma série de outros rios.] Ao despencar as aguas da cachoeira fazem um estrondo que escuta-se de longe e ao mesmo tempo produzem uma névoa extremamente fina que sente-se o ar mobilizado por sua queda a uma distância considerável. Dos dois lados da cachoeira as rochas úmidas mesmo quase a pique são revestidas de uma relva delicada e a [...] que deixam ver por intervalos sua cor negra. Acima dos rochedos o terreno estende-se em declive da direita para a esquerda até o rio. Na parte mais próxima da cachoeira, exibe apenas arbustos; mas a poucos passos de distância
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40já é coberto de espessas florestas entre as quais se percebe à esquerda uma grande quantidade de palmeiras com troncos finos e longos. O verdor de todos estes vegetais de um intenso frescor é alimentado sem cessar pela vizinhança das aguas. Em frente da cachoeira, o horizonte é delimitado pelas montanhas coroadas de rochedos pertencentes à Serra do Rio Grande. Para sentir o quanto este conjunto é encantador, mesmo se minha descrição é imperfeita, basta para estimular a imaginação relembrar tudo aquilo que seduz na natureza, o céu mais azul, os altos rochedos, uma cachoeira majestosa, as aguas límpidas, a vegetação mais fresca, enfim as matas virgens que apresentam todas as diferentes formas de vegetação dos trópicos.
Notes de bas de page
1 Cf. Sarthou (Corinne), Pignal (Marc), Romaniuc-Neto (Sergio) & Lamy (Denis), «Auguste de Saint-Hilaire: o botânico através de sua correspondência» no presente volume.
2 Saint-Hilaire (Auguste de), Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, Paris: Grimbert & Dorez libraires, 1830, vol. 1, p. VIII.
3 Dwyer (John D.), «The Botanical catalogues of Auguste de St. Hilaire», Annals of the Missouri botanical garden, vol. 42, fasc. 2, 1955, pp. 153-170.
4 Pignal (Marc), Romaniuc-Neto (Sergio), De Souza (Sidnei), Chagnoux (Simon) & Lange Canhos (Dora Ann), «Saint-Hilaire virtual herbarium, a new upgradeable tool to study Brazilian botany», Adansonia, vol. 35, n ° 1, 2013, pp. 7-18.
5 http://hvsh.cria.org.br/
6 Releva-se que a cota «d», sem dúvida à uma feliz coincidência, corresponde ao caderno denominado posteriormente «D» do botânico Weddell.
7 Cf. Sarthou (Corinne), Pignal (Marc), Romaniuc-Neto (Sergio) & Lamy (Denis), «Auguste de Saint-Hilaire: aspectos de sus correspondência» neste presente volume.
8 Carta de Saint-Hilaire à Deleuze, 18 de setembro de 1820 (selo de Nantes). Peça 18.
9 Saint-Hilaire (Auguste de), Voyage à Rio Grande do Sul (Brésil) [Publicação póstuma sob a direção de Dreuzy Charles Louis Rolland de], Orleans: H. Herluisson livraria-editora, 1887, p. 492.
10 http://hvsh.cria.org.br/exsicataViewer?barcode=P00721028&haspages=0
11 Viagem às nascentes do Rio de S. Francisco e pela província de Goyaz.
12 Parque Nacional da Serra da Canastra é situado à proximidade das cidades de Delfinópolis, Sacramento et São Roque de Minas. É atualmente objeto de numerosas pressões por empresas de mineração.
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