A cidade é uma só? Brasília e os perigos de uma resposta única57
p. 211-225
Texte intégral
Introdução: reflexões iniciais sobre as controvérsias da cidade
1Com frequência, Brasília emerge como interessante caso de estudo, seja por sua aura de “cidade inventada”, por sua singularidade histórica, por ser o centro dos poderes administrativo e político, por seus títulos de “cidade modernista” e Patrimônio Mundial ou, ainda, pela singularidade de não constituir um município e não fazer parte de um estado, mas de um Distrito Federal-DF. Ainda que tudo isso contribua para a construção de um imaginário sobre a cidade, bastante vinculado ao poder e a bordões como “capital da esperança” ou “capital do futuro”, a cidade é mais plural e complexa do que se pode supor. Se, por um lado, o questionamento proposto por esta obra - a cidade é uma só? - nos coloca diante de um desafio; por outro, nos instiga a tentar mergulhar na realidade.
2Se tomarmos, como ponto de partida, o Plano Piloto de Brasília – apresentado por Lucio Costa em 1956 – ficam evidentes as distâncias entre o plano e a realidade. Se, para Costa (IPHAN, 2014, p. 29), a cidade nasceu “pronta”, na realidade, Brasília ainda está em intensa transformação, tendo transbordado – mesmo antes de sua inauguração oficial – os limites do Plano Piloto e, inclusive, as bordas do quadrilátero delimitado pela Lei nº 2.874 (BRASIL, 1956). Nesse sentido, somos levados a refletir sobre os rumos do planejamento urbano, já que cidade planejada não se confunde com cidade pronta ou acabada – confusão que contrariaria, em essência, a ideia já bastante aceita de que as cidades são construções sociais, resultados de interações – produções e reproduções de diferentes atores (humanos ou não).
3Outra diferença entre plano e realidade diz respeito aos anseios por igualdade social. Se, em 1956, o urbanista fez um apelo – quase poético – à reunião, em uma mesma vizinhança, de diversas gradações sociais (IPHAN, 2014), uma década depois, reconheceu que Brasília já refletia as contradições de um país desigual, maculado por problemas que não se resolveriam com a simples transferência da capital (IPHAN, 2014). A observação da cidade contemporânea demonstra que a exclusão não tem a ver apenas com o distanciamento espacial e que, como diz Bourdieu (1999), a aproximação social depende de outras coisas, incluindo laços de amizade, infância, capital cultural ou linguístico, entre outros.
4Não se pode ignorar, por fim, que Brasília nasceu símbolo da integração nacional – meta-síntese do Plano de Metas do Governo de Juscelino Kubitscheck –, mas cresceu segregada e fragmentada – contrariando o modelo clássico de contiguidade e continuidade geográficas (MATHIEU et. al.,2006; PAVIANI, 2011). Foi criada para ser o oposto do Brasil, mas acabou explicitando a realidade brasileira e se tornando, talvez, a mais brasileira das cidades (WISNICK, 2010) e, neste cenário controverso, são múltiplas as possibilidades de responder se a cidade é uma só. Assim, tatear a realidade e, a partir disso, propor respostas pressupõe escolhas e a delimitação de um lugar de fala.
5No plano teórico-metodológico, busco problematizar respostas institucionalmente construídas “de cima para baixo” e ensaiar outras possíveis, edificadas a partir de visões pretensamente coletivas e indissociáveis do mundo cotidiano, a partir das práticas de uso do território. No campo analítico, divido a reflexão em três dimensões: a) a patrimonial (da Brasília idealizada); b) a socioterritorial (da Brasília realizada); e c) a experimental (da Brasília praticada). Com relação à primeira, as questões centram-se no processo de patrimonialização da cidade de Brasília e em suas consequências : afinal, a patrimonialização garantiu igualdade? No âmbito socioterritorial e no experimental, a ele intrínseco, parto do processo de formação das cidades-satélites em direção ao entendimento de que, enquanto políticas urbanas não refletirem práticas sociais, pouco avanço será possível.
A capital-patrimônio: uma história de Brasília
6Para esclarecer o ponto de partida desta reflexão, começo aludindo às respostas institucionais supramencionadas. Ao estabelecer, como princípio fundamental, a indissolubilidade do DF, a Constituição Federal de 1988 sugere que a cidade é (ou deve ser) uma só; ao vedar a utilização do termo “satélite”, considerado pejorativo, o Decreto 19.040 (DISTRITO FEDERAL, 1998) deixa implícita sua resposta: com a supressão das satélites, restaria apenas a cidade, no singular; similarmente, a mudança do nome ‘Governo do Distrito Federal’ para ‘Governo de Brasília’, também simboliza uma reposta – de natureza totalizante – que aparenta querer atenuar (ou eliminar) as diferenças e tensões entre as 31 Regiões Administrativas (RAs).
7Neste ensaio, que se propõe multidisciplinar e que se apoia na categoria de “práticas” de uso do território – conforme discutido, sobretudo, por Crosta (2009) –, busco respostas que correm na contramão, que emergem de práticas forjadas nas periferias, nos movimentos de cultura de rua; nas narrativas de candangos deslocados de seus lugares originais de moradia. A abordagem sociocêntrica e pragmatista aqui proposta confere centralidade ao que emerge da experiência pública e possibilita a construção de respostas que fomentem a diversidade e permitam encontrar, nela, as chaves para acessar outras Brasílias (CROSTA, 2009; BOULLOSA, 2013).
8A reflexão acerca da unicidade (ou não) de Brasília – pautada na ideia de cidade-patrimônio – retoma resultados de pesquisas anteriores (ver PERES, 2016; PERES; BESSA, 2016), em função, sobretudo, da percepção de que a arquitetura de Oscar Niemeyer, com seu branco intenso e suas curvas características, parece constituir a imagem mais forte da urbe, contrariando outras experiências situadas fora do perímetro urbano patrimonializado. As pesquisas citadas identificaram, porém, que o nexo entre patrimonialização e desenvolvimento urbano só é evidente na teoria (documentos, legislação, discursos, mídia), mas não na prática.
9Parte dessa incongruência deve-se, sobretudo, ao tipo de patrimonialização da cidade: por designação (induzida pelo poder político ou por grupos hegemônicos, detentores de saberes especializados) em lugar de uma patrimonialização por apropriação (induzida por grupos populares, movimentos sociais, associações de bairro, etc.) (PERES, 2016). Essa distinção é basilar, pois apropriarse implica sempre em uma atitude de poder (GONÇALVEZ, 1996) – gera identificação e pertença –, enquanto o processo induzido pelo Estado – que culminou com a inclusão de Brasília na Lista do Patrimônio Mundial (1987) – gerou exclusão, deixando uma parte significativa de habitantes “de fora” do perímetro tombado (um quantitativo populacional que, em 2015, já somava 2.395.862 habitantes, segundo dados da Codeplan (2018))58. Para estas pessoas, a história de Brasília é distinta daquela que se pretende “oficial”. Ademais, no processo de construção de uma história pautada em símbolos dominantes, outras histórias (também patrimonializáveis), relativas a sítios vernáculos, tradições, festas, etc., foram soterradas.
10Nesse sentido, a manifestação da UNESCO (2015) – que, com base nos critérios i e iv, considera Brasília uma obra-prima do gênio criativo humano e que um excelente exemplo de um tipo de conjunto arquitetônico que ilustra um estágio significativo na história da humanidade – caminha pari passu com tal soterramento de memórias, gentes, práticas e histórias: acerca do frio que fazia à noite nos acampamentos, da rotina de trabalho nas empreiteiras, das partidas de futebol no campo da Metropolitana, da bica d’água que secou e virou monumento turístico. O processo parece maculado por um equívoco fundamental, alertado por Cefaï (2011) : congelaram-se sistemas simbólicos já fixados em vez de se perseguir o dinamismo das ações simbólicas.
11Todos aqueles que, ao associarem Brasília à capital da esperança, uniramse ao grupo de trabalhadores que construiu a cidade – na expectativa de poderem, também, ser construídos por ela – são parte do patrimônio invisibilizado. É nesse sentido que ousamos afirmar que a patrimonialização – não de Brasília, mas de um perímetro quase restrito ao Plano Piloto – contribuiu para fortalecer a construção de uma heterotopia – no sentido conferido por Foucault (1984, p. 415): outro lugar que, embora localizável, situa-se num espaço de ilusão que denuncia como ainda mais ilusório qualquer espaço real, um lugar que tem o papel de criar “espaços tão perfeitos, tão meticulosos, tão bem arrumados quanto o nosso é desorganizado, maldisposto e confuso”.
12O cineasta Adirley Queirós – em palestra no Centro Universitário IESB, para estudantes de arquitetura – dialoga com o filósofo ao afirmar que
Brasília é apartada. Essa Brasília que está aqui [Plano Piloto], pra mim, é apartada. Brasília é uma projeção holográfica, não é isso? Há possibilidade zero de fruição social. Possibilidade quase nula de agregação. Você imagina... sobre a ideia de não murar as superquadras... Não existe um muro material, mas existe um muro imaginário (...) (QUEIRÓS, 2017).
13Mesmo a segregação denominada “imaginária”, porém, possui evidentes dimensões concretas. Assim, responder se Brasília é uma só pressupõe perceber as consequências nefastas da patrimonialização e do discurso totalizante sobre a cidade, que, além de não garantir melhores condições de vida e justiça social para mais de três milhões de habitantes, têm cobrado altos preços, sobretudo dos que vivem distantes do Plano.
A “invenção” das satélites
14Nesta e na próxima seção, discuto alguns achados iniciais de pesquisa doutoral,59 que têm, como pano de fundo e alicerce teórico, respectivamente, o Movimento hip hop da Ceilândia e a categoria de “(prática das) práticas” de Pier Luigi Crosta. A proposta é que, por meio da construção de um olhar pragmatista (a partir de DEWEY, 1927; CROSTA, 2009; CEFAÏ, 2011; BOULLOSA, 2013), seja possível enxergar outros elementos, indispensáveis à construção de respostas não universais, mas situacionais.
15Vale começar dizendo que, quando a cidade completou 10 anos, sua população já ultrapassava os 500 mil habitantes previstos na Lei nº 1.803 (BRASIL, 1953) e que a maioria da população já não morava na cidade denominada ‘Brasília’, mas em cidades-satélites (que surgiram muito antes da ocupação do Plano Piloto). Campanhas de “erradicação de invasões”, conduzidas pelo governo, riscaram do mapa de Brasília diversos núcleos urbanos, assentamentos e acampamentos de obras, não em função da saturação do Plano Piloto – cuja população tem apresentado crescimento lento e soma em 2018, 225.020 habitantes (CODEPLAN, 2018)60 –, mas em função da intenção de deslocar a população de menor renda para as franjas do quadrilátero, em um processo de “segregação planejada” que originou Taguatinga (1958), Sobradinho (1959), Gama (1960) e Ceilândia (1971) (PAVIANI, 2010).
16O filme “A cidade é uma só?” (2011) – que inspirou os debates acerca desta obra – explicita as controvérsias da vida cotidiana, as tensões entre a Ceilândia e o Plano Piloto e a construção do que Cefaï (2011) denominaria “regimes de engajamento”, problematizando o caráter “asséptico da urbanização” de Brasília e denunciando a violência por trás das remoções. Relatos de moradores (AMMAN, 1987; VASCONCELOS, 1988), a obra de Adirley Queirós, letras de rap (CÂMBIO NEGRO, 1993; VIELA 17, 2001, 2014a, 2014b) e narrativas de praticantes do hip hop da Ceilândia (JAMAIKA, 2016; JAPÃO, 2016, 2017; MOREIRA, 2017; RIVAS, 2017) revelam que as pessoas foram carregadas com seus pertences, nas boleias de caminhões ou carroças, e jogadas na Ceilândia, a 30 km de onde moravam, sem água, luz, asfalto ou rede de esgoto. Quando questionados se Brasília e Ceilândia são a mesma cidade, nos dão suas respostas:
Pro Governo é. Porque era Governo de Brasília e do Distrito Federal e agora é só Governo de Brasília (...). Só que aquela Brasília é muito mais bem tratada do que essa aqui... Então não é... Pra mim, aqui é Distrito Federal, sempre foi... “Eu sou ceilandense... Eu não sou brasiliense!” (JAPÃO, 2016). Ceilândia é Ceilândia... Nós estamos dentro do Distrito Federal e não dentro de Brasília (JAMAIKA, 2016).
17A Ceilândia constitui, assim, um caso emblemático da formação socioterritorial, cultural e identitária de Brasília. Cerca de 80 mil pessoas, deslocadas para a terra (lândia) da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), precisaram sobreviver apesar do abandono na “terra sem lei, no fim do mundo” (conforme depoimento do rapper X, em ‘Rap, o Canto...’, 2005) e a despeito da ruptura de laços comunitários, afetivos, da confiança e das relações de solidariedade, fatores-chave nos processos de mobilização e de atorização (CEFAÏ, 2011).
18Embora Lucio Costa (IPHAN, 2014) tenha planejado uma cidade que pudesse dar vazão ao devaneio e à especulação intelectual, fomentando as artes e a cultura, perguntamo-nos:
qual cultura? A priori, uma cultura predominantemente exógena e branca, que atendesse às elites políticas, burocráticas e intelectuais que, para cá, migraram (...). Durante muitos anos, a cidade deu vazão apenas à cultura encerrada dentro dos muros do Plano Piloto – com a poesia de mimeógrafo, com o jovem poeta morador da Asa Sul, Nicolas Behr, com o rock (...) – que, embora tenha sido exportada para o resto do Brasil como tipicamente brasiliense, camuflava o fato de que havia muitas “cidades inventadas” dentro da “cidade inventada” (PERES; BESSA, 2017, p. 6).
19O transbordamento do movimento hip hop pela cidade, por meio dos saraus, das batalhas de rima, dos grupos de dança, dos eventos e festivais, das escolas e universidades – tornando-se objeto de pesquisa, apropriando-se dos corredores do Instituto Central de Ciências – ICC/UnB e dos degraus do Teatro de Arena, por exemplo – representa um contraponto à racionalidade arquitetônica e à configuração socioterritorial da cidade. Nesse movimento, os espaços vão sendo ressignificados por novos fluxos, novas gramáticas e por processos de aprendizagem. A reinvenção do cotidiano a partir de novas experiências é o que abre brechas para a formulação de outras respostas.
Imaginando respostas: as práticas de uso do território
20“Prática”, enquanto categoria, ganhou relevância entre planejadores urbanos – a partir de princípios teóricos franceses – e foi discutida, embora a partir de diferentes tradições filosóficas, por autores como Lefebvre (2001), DaMatta (1987), Bourdieu (1999, 2001), De Certeau (1994) e Crosta (2007, 2009). Buscando interfaces entre os pensamentos desses autores e as reflexões aqui propostas, parto da premissa de que o espaço (público) é uma variável praticável de um lugar – quer dizer, o espaço é um lugar praticado, que só existe a partir da apropriação (individual ou coletiva) e do compartilhamento de sistemas de signos, códigos, gramáticas. O espaço público, nesse sentido, é resultante de um conjunto de práticas em interação (conectadas, sobrepostas, interferentes), que pressupõe a mobilização (ou ativação), nas práticas presentes, de lógicas e recursos acumulados de experiências anteriores, para que novas práticas existam. É desse processo – ou, nas palavras de Crosta (2009), da prática-das-práticas –, que emergem significados, conhecimentos, territórios e públicos.
21Sobre isso, Lefebvre (1994) propõe uma discussão (de base marxista) em que associa o espaço social a um uso específico, a uma prática espacial/social que o próprio espaço expressa e que, simultaneamente, o constitui. A grande questão levantada por Lefebvre é que a espontaneidade da prática repetitiva (constituinte da cotidianidade e base da prática inventiva) – ou seja, o espaço vivido da cidade – é comumente afogado pelo espaço pensado (concebido/ produzido) por uma técnica urbanística impositiva. Nesse sentido, poder-se-ia atribuir a crise da cidade racional-funcionalista ao fato de que projetos urbanos (como o de Brasília), ao privilegiarem o progresso (tempo-linear ), esquecem o espaço (vivido), suprimindo práticas e disciplinando usos.
22Por sua vez, observar os fenômenos urbanos a partir da premissa de que o território é o uso que se faz dele (CROSTA, 2009) pode ressignificar, inclusive, a forma de se pensar e de se fazer política urbana, pois esse olhar sugere que políticas públicas não se resumem ao que o Estado faz ou ao que a sociedade demanda. Devem, em lugar disso, ser concebidas como fluxos : processos interativos de políticas, que levam os atores a reexaminarem seus quadros interpretativos e a construírem, coletivamente, novos significados a serem compartilhados (CROSTA, 2007). Nessa linha de pensamento, uma política pública nada mais é do que uma construção analítica, motivo pelo qual a razão urbanística (o conhecimento especializado) deveria submeter-se ao controle da interação social (o conhecimento derivado da experiência).
23Proponho, a partir daqui e para fins reflexivos, um exercício ousado – mas, possivelmente, rico – de imaginação. Se dirigíssemos a questão – a cidade é uma só? – a Ricoeur (1997), ele, provavelmente, nos responderia que uma identidade ou uma definição de brasiliense não pode existir, porque o que chamamos de nós mesmos não se reduz apenas àquilo que somos, aqui-agora, mas também àquilo que esperamos e que ainda não somos. Diria, então, que a identidade de Brasília é múltipla e está em constante transformação. A mesma pergunta, se feita a Lefebvre (1991), talvez fosse respondida a partir do mundo vivido – o núcleo da práxis. É provável que ele respondesse que a cidade não é uma só, justamente porque cada um de seus habitantes modela distintamente um espaço vivido e é, também, talhado por ele.
24A mesma conversa, com Crosta (2009), poderia delinear dois caminhos: na escala do indivíduo, talvez fosse possível afirmar que a cidade é sempre uma só (pois cada um percebe sua cidade, de maneira única/particular, ainda que com base em experiências individuais e coletivas); na escala da coletividade, porém, assim como a identidade, a cidade só pode existir no plural, pois resulta da interação entre práticas pluais. Quiçá, Crosta complementasse a resposta – ressaltando a natureza política das práticas –, para enfatizar que cidade e identidade estão sempre em suspenso, em constante recomposição. Se perguntássemos a Cefaï (2011), talvez destacasse os perigos de se invocar uma cultura de Brasília, defendendo que, em lugar disso, seria preferível observar as singularidades locais – mergulhar em lugar de sobrevoar.
25Nicolas Behr (apud REZENDE Jr. et al.,2018), poeta radicado em Brasília, diria que a cidade ainda é uma folha em branco e que cada um pode projetar sua própria cidade, como fez ao inventar “Braxília”, uma não-Brasília, cuja alma não estaria no Plano Piloto, mas nas cidades-satélites, onde ainda parece restar lugar para o caos, o conflito, o improviso. A fabulação de tais respostas sugere que são nas indeterminações (definições em aberto) que existe a possibilidade do novo, da emergência de outros atores e práticas que, se por um lado tiram as coisas de sua ordem (dita natural), amassam a linha do progresso – aproximando (desordenadamente) pontos até então distantes, embaralhando e confundindo intenções, ações, fins, meios –, por outro lado, permitem o abandono de um unitarismo que não dá conta da diversidade, senão anulando-a (CROSTA, 2009).
Considerações finais (ou a contínua busca por respostas)
26Brasília impede reducionismos ou análises simplistas, ao menos não sem o risco de apagamento da diversidade e do conflito (incluindo sua dimensão positiva), ambos responsáveis pelas rupturas que permitem as mudanças sociais. Ao assumir, como demonstrado, que tanto a cidade quanto o espaço público (e também as políticas urbanas) são resultados eventuais de práticas sociais – múltiplas, transversais, temporárias ou permanentes, intencionais ou não –, reconhecemos a impossibilidade de dar conta de sua totalidade.
27Não se pode definir uma única identidade de Brasília, simplesmente porque ela não existe no singular. Brasília, seus imaginários e suas estéticas – centrais ou periféricas – transitam por lugares múltiplos, do “Rock Brasília” dos anos 80 à cena hip hop, que projetou a Ceilândia nacionalmente. Estéticas periféricas, porém, dificilmente conseguem subverter padrões culturais tidos como oficiais, senão com muito esforço e insistência. Apesar disso, movimentos socioculturais e artísticos, se articulados, têm potencial para criar circuitos capazes de construir e de difundir um conjunto de valores, de modos de fazer, de pensar e de dizer – práticas, para Crosta (2009) – em que outras pessoas se reconheçam.
28Afastar-se da experiência prática (nossa e dos outros) – e substituir o conhecimento prático pelo erudito – carrega consigo a responsabilidade pelo apagamento de outras histórias (BOURDIEU, 2001). Em termos coletivos, um discurso totalizante acerca de Brasília tende a fomentar um grave déficit representativo, sobretudo porque a invisibilização de determinadas práticas (sociais, culturais, artísticas, estéticas, econômicas, intelectuais, midiáticas, etc.) produz isolamento e abandono, sentimentos prejudiciais à construção coletiva e democrática das cidades (CEFAÏ, 2011). Contrariamente, alinhar-se ao pensamento pragmatista significa considerar que respostas legítimas podem emergir de conversas banais, de práticas cotidianas, de interações no nível da rua, de saberes locais, de experiências públicas.
29A busca por uma essência de Brasília não tem sentido se esta não refletir a pluralidade das práticas para além do valor histórico-arquitetônico, para além dos bens de “pedra e cal” e para além dos discursos institucionais. Diante disso, é possível uma resposta única? Do lugar (de fala) escolhido, não. Se a cidade é o êxito de diversas práticas de uso (CROSTA, 2009), ela não equivale a um projeto, mas a um processo. E se uma prática é sempre muitas práticas, um suposto ‘mesmo território’ é único (no sentido da particularidade), mas nunca é o mesmo.
Bibliographie
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Notes de bas de page
57 Agradeço à Profª. Drª. Rosana de Freitas Boullosa, ao Prof. Dr. Luiz Fernando Macedo Bessa e aos colegas (Cadu, Camilla, Grazy, Jéssica, Nara, Renata, Vic), integrantes do grupo de pesquisa “Processos de Inovação e Aprendizagem em Políticas Públicas e Gestão Social”, por terem possibilitado as leituras, as discussões e, sobretudo, a experiência de construção compartilhada de conhecimento, a partir do que desenvolvo muitas das reflexões que se seguem.
58 A area tombada compreende as RAs Plano Piloto, Cruzeiro, Sudoeste/Octogonal e Candangolândia, correspondendo a 16% do total da população do DF. Os dados populacionais encontram-se na Tabela 1 no Anexo desta obra.
59 Doutorado em Desenvolvimento, sociedade e cooperação internacional da Universidade de Brasília iniciado em 2017.
60 A população do Plano Piloto foi estimada em 198.240 em 2000, 208.825 em 2010; 219.202 em 2015; e espera-se que alcance 230.310 em 2020 com a ocupação do Noroeste (CODEPLAN, 2018). Dados populacionais disponíveis na Tabela 1 do Anexo.
Auteur
Doutoranda em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pela Universidade de Brasília. Membro do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais. Membro do Grupo de Pesquisa “Processos de Inovação em Políticas Públicas e Gestão Social” (CIAGS/EAUFBA e GPP/FACE/UnB).
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