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A metrópole é uma só? Reflexões sobre a governança metropolitana de Brasília

p. 121-135


Texte intégral

Introdução

1Brasília, capital do Brasil, construída em 1960, por decisão do Estado, vem sendo palco de uma situação muito peculiar no tecido metropolitano brasileiro: uma evidente dificuldade de chegar a um consenso sobre a sua natureza e limites de urbanidade. Sua destacada importância na integração nacional em função de sua posição central no país, além de ser o centro de tomada de decisões políticas nacionais, onde se concentram a gestão federal e as instituições públicas federais, parece só agravar os dissensos em torno de tal questão.

2Essa controvérsia, porém, encontra suas raízes na própria definição de Brasília, que coincide geograficamente com o Distrito Federal (DF), mas que possui naturezas político-administrativas, em tese, diferentes – enquanto este último se constitui como um ente federativo autônomo pari passu aos Estados, Brasília se constitui como sua única cidade. Esta relação de sobreposição parece ter sido tomada como óbvia, ao menos, pelo último governo do Distrito Federal (2014-18), quando, em seu site internet34 tratava a si mesmo como “Governo de Brasília”, também sem explicar com clareza a relação entre Distrito Federal e Brasília. O mesmo ocorre com a Lei Orgânica do DF, atualizada em 2017 (DISTRITO FEDERAL, 2018), que define Brasília como “Capital da República Federativa do Brasil”, “sede do Distrito Federal” ou mesmo “cidade” sede do Tribunal de Contas de Brasília, mas não expõe tal relação de sobreposição – nem mesmo nos artigos que concernem à organização administrativa do DF, tomando por óbvio algo que definitivamente não é.

3Nem mesmo a maior evidência jurídica que consiste na existência de uma mesma estrutura administrativa e legislativa para ambas as realidades político-administrativas tem conseguido superar tal controvérsia, fortemente ancorada no senso comum. Esta atipicidade tem gerado uma dificuldade de consenso gramatical entre seus habitantes. De fato, na linguagem corrente e no dia-a-dia da sua população, Brasília não equivale ao Distrito Federal. Como este último é dividido em regiões administrativas; Brasília é frequentemente compreendida como sendo apenas uma delas, coincidindo com o Plano Piloto, ou, no máximo, um pequeno conjunto destas mesmas regiões, conforme observado por Paviani na Unidade 1 desta coletânea. Mas tal controvérsia, contudo, não pode residir exclusivamente em tal atipicidade, pois encontra raízes históricas.

O dissenso em torno do que é chamado de Brasília e a questão metropolitana

4Para começar, é importante relembrar que o DF, em sua época de criação, agregou núcleos urbanos já existentes, como era o caso da cidade de Planaltina que foi parcialmente incorporada a esta nova territorialidade (deixando o “restante” em Goiás), com outros novos núcleos, inclusive o recém-criado núcleo de Brasília. Todos eles foram chamados de Regiões Administrativas (RAs), sendo atribuída à primeira região (RA I) ao que hoje chamamos de Plano Piloto. Mas nem sempre foi assim, do ponto de vista das nomenclaturas. O DF, ou seja, Brasília, está atualmente dividido em 31 RAs. E nenhuma delas hoje se intitula Brasília. Mas nem sempre foi assim : a RA, intitulada Plano Piloto (RA I), chamavase “Brasília” na época da sua criação, em 1960, e assim permaneceu até 1989, quando passou a se chamar com seu nome atual, “Plano Piloto”, embora com delimitação geográfica diferente da atual. Esta situação durou pouco e em 1990, o Plano Piloto voltou a ser chamado de Brasília, permanecendo novamente assim até 1997, quando volta a ser oficialmente denominada como “Plano Piloto”, mais uma vez com nova delimitação geográfica. Assim, Brasília passou pelos menos duas vezes por longos períodos de confusão metonímica: de parte a todo e de todo à parte.

5Além do mais, devem-se levar em consideração os aspectos culturais que diferenciam o núcleo central que recebe popularmente o nome de Brasília (Plano Piloto somado a outras três ou quatro RAs), bem como a forte segregação socioespacial, com claras diferenças nos índices de qualidade de vida e de violência urbana, por exemplo, reforçando a distinção entre Brasília e DF. Uma reportagem do jornal local de maior circulação, o Correio Brasiliense, publicada em 2013, apresenta dados interessantes sobre a situação da má distribuição de renda no DF. A primeira informação relevante encontra-se no título, “Apenas 5 das 31 cidades do DF concentram metade da renda das famílias”, nas quais as regiões administrativas são diretamente chamadas de “cidades” (MAIA, 2013). Já no corpo do texto, a reportagem explica que “E, das cinco cidades onde a renda de seus moradores é maior, apenas duas são consideradas de alta renda: Brasília e Sudoeste”, trazendo ainda mais à tona o dissenso em torno do que é chamado de Brasília. Para complicar ainda mais a situação, o atual Plano Piloto foi tombado pela UNESCO em 1987, como Patrimônio Cultural da Humanidade, passando a ser chamado “conjunto urbanístico de Brasília”, o que também reforça tal diferenciação.

6Mas esta controvérsia alcança novos contornos e é levada para a questão metropolitana. O acelerado crescimento de sua população, desde o início de sua formação, já refletia o quanto Brasília seria propulsora do surgimento de novas cidades dependentes dela. A cidade, planejada para ser fechada do ponto de vista de seu desenho urbano modernista, desenvolveu-se, prematuramente, de forma polinucleada (PAVIANI, 2010), no interior de um território reservado, um quadrilátero, intitulado Distrito Federal (DF). Sua rápida construção (1956-1960) mobilizou milhares de cidadãos, sobretudo do Nordeste do país, em busca de trabalho. Muitos deles levaram consigo seus familiares, impulsionando o primeiro movimento de densificação urbana em torno a uma cidade ainda em construção. Esse polinucleamento urbano, feito por ação direta do governo, foi criticamente chamado por Paviani de “periferização planejada”. Cidades, bairros-dormitório e áreas invadidas, gravitando ao redor de sua área planejada, surgiram quase ao mesmo tempo de sua criação, uma vez que o Plano Piloto não tinha condições de abrigar todos os imigrantes, especialmente os de menor poder aquisitivo (RIBEIRO; HOLANDA, 2015).

7Como consequência, em 2018, o Distrito Federal contou com uma população de 2.972.209 habitantes, distribuídas em RAs fortemente interdependentes (CODEPLAN, 2018). Todavia, esta interdependência extrapola claramente os limites do quadrilátero que conforma geograficamente Brasília/Distrito Federal. E um novo nível de dissenso agravado emerge : o que poderia, portanto, ser incluída nesta área de interdependência? São algumas as respostas possíveis, mas nenhuma delas com força suficiente para produzir um desejado planejamento coletivo para o enfrentamento dos muitos problemas comuns, tais como mobilidade, desenvolvimento econômico, habitação, saúde e educação.

Brasília e a governança metropolitana

8O reconhecimento de Brasília como metrópole é há muito tempo um consenso entre os estudiosos da urbanização brasileira e brasiliense (FERREIRA, 1985; PAVIANI, 2010; RIBEIRO; HOLANDA, 2015), bem como o fato de que a produção de seu espaço não pode ser compreendida sem levar em consideração as cidades goianas contíguas. No entanto, embora houvesse esse reconhecimento de cidades ao redor de Brasília com características metropolitanas, esta não poderia constituir-se legalmente como uma região metropolitana, pois só os estados poderiam criar regiões metropolitanas no interior de seu limite político-administrativo, excluindo, portanto, o DF. Brasília, capital indivisível em municípios, formava um fato metropolitano com os municípios de Goiás, mas não um fato de direito.

9Este entrave foi contornado, em tese, em 1998, com a instituição da Região Integrada de Desenvolvimento Econômico do DF e Entorno (Ride-DF). No processo de discussão das suas delimitações, porém, predominou a articulação política em detrimento da leitura mais fria das reais relações de interdependência entre os municípios que poderiam compô-la. Criada no âmbito de uma política de desenvolvimento regional, a Ride-DF surge com o objetivo de realizar a articulação da ação administrativa da União, dos estados de Goiás e de Minas Gerais e do DF, para promover a redução das desigualdades entre regiões e desenvolver o território. Até junho de 2018, a Ride foi composta pelo DF, 2 municípios mineiros e 19 municípios goianos. No entanto, com da Lei Complementar nº 163, de 14.6.2018 o governo federal autorizou a agregação de mais 12 municípios35 à Ride-DF, justificando que os novos municípios apresentam uma forte ligação socioeconômica com o Distrito Federal. Hoje, a Ride DF é coordenada por um Conselho Administrativo da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Coaride)36, que fazia parte, até dezembro de 2018 da estrutura do Ministério da Integração Nacional (MI),37 e contava com a participação dos Ministérios da Fazenda, Planejamento e Orçamento38, além de representantes dos Estados de GO, MG, do DF e dos Municípios (tendo só um representante de todos os municípios). Porém, por conta de prioridades e baixo recurso orçamentário, a criação da Ride, na prática, quase nada resolve sobre a questão metropolitana (SOUZA, 2017).

10Pelo contrário, conforme afirmam Ribeiro e Holanda (2015), a situação da Ride-DF só reforçou a centralidade de Brasília e a dependência dos demais municípios em relação a ela e gerou um ônus em vários sistemas públicos do DF (emprego, saúde, educação). Diversos serviços insuficientes nos municípios limítrofes para as suas populações são demandados ao Governo do Distrito Federal (GDF), demonstrando, por um lado, uma comprovação clara e expressa de dependência dos municípios do entorno a Brasília, mas, por outro, uma lacuna evidente de estrutura e instrumentos de governança metropolitana. Próprio por isto, diversos estudos vêm pontuando a necessidade de uma estrutura de governança metropolitana para Brasília e sua região imediata de influência (CODEPLAN, 2012; HOLANDA, 1985; PAVIANI, 2010; RIBEIRO; HOLANDA, 2015), discordando abertamente da proposta da Ride.

11Neste sentido, Holanda (1985), em seu artigo “A morfologia interna da Capital”, nomeia o conjunto urbano formado por Brasília e os núcleos de Goiás limítrofes como um único sistema urbano chamado por Área Metropolitana de Brasília (AMB), que para ele, assim como para vários outros autores, teria muito mais sentido do que a Ride. De fato, com o objetivo de fundamentar a existência de uma dinâmica metropolitana entre Brasília e os municípios goianos adjacentes, bem como estabelecer o conceito de espaço metropolitano de Brasília com base em critérios para classificação de municípios metropolitanos, a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN) divulgou, em dezembro de 2014, Nota Técnica nº1/2014 da AMB, de acordo com essa, o Espaço Metropolitano de Brasília deveria ser formado por 12 dos 21 municípios que compunham a Ride do DF e Entorno até junho de 2018, sendo que, destes, somente 7 apresentariam fluxos mais intensos (Valparaíso de Goiás, Novo Gama, Cidade Ocidental, Luziânia, Águas Lindas de Goiás, Santo Antônio do Descoberto, Planaltina) e 5 apresentariam fluxos menos intensos (Formosa, Padre Bernardo, Alexânia, Cocalzinho de Goiás e Cristalina), com os demais nove municípios da Ride-DF não mantendo com o DF relações de natureza metropolitana.39 Se consideramos a recente agregação dos 12 municípios incluídos na Ride-DF pela Lei Complementar nº 163, de 14 de junho de 2018, a articulação de natureza metropolitana com esses municípios parece ser ainda menor. A incompatibilidade entre a metrópole funcional (AMB) e a metrópole institucional (Ride-DF) parece impactar nas condições de vida da população cada vez mais assinaladas por carências de serviços urbanos e ao mesmo tempo geradores de demanda. Questões como a segregação espacial, degradação ambiental, aumento da violência e da criminalidade além da distribuição da prestação de serviços públicos, como transporte, habitação, saúde, educação, para citar apenas alguns dos problemas urbanos, perpassam os limites político-administrativos, tornando-se cada vez mais necessárias respostas coletivas e verdadeiramente metropolitanas; no entanto, essas não conseguem ganhar vida.

12Esta dificuldade de existência concreta de uma área metropolitana evidencia-se pelos desafios não vencidos de construção de uma governança metropolitana, entendida aqui como um conceito mais amplo do que o conceito de governo, como aponta (LEFEBVRE , 2009, p. 225),

A transição de “governo” para “governança” traz uma abertura do sistema de atores às forças econômicas e sociais; ii) o foco no processo e não na estrutura, ou seja, ênfase nos processos e não nas instituições; (iii) abertura territorial e não fechamento, o que significa que o território metropolitano a ser governado não pode ser pré-definido, mas, ao contrário, varia de acordo com a natureza dos problemas a serem levados em conta; e finalmente, (iv) colaboração entre iguais, entre parceiros com base em acordos voluntários, contratos, etc.

13São muitos os estudos brasileiros que problematizam tais dificuldades. Para começar, há estudos que interpretam o que seria um excesso de metropolização como resultado quase exclusivo de um nocivo voluntarismo político e partidário do que por ações concretas para possibilitar o exercício de funções públicas de interesse comum (FERRÃO, 2013; GARSON, 2009; IPEA, 2011; MARICATO, 2003; MOURA, HOSHINO, 2015), mas também como consequência de uma nociva combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo, cooptado e captado, com todas as formas de apropriação privatista das cidades (RIBEIRO, 2008; RIBEIRO; SANTOS JUNIOR; RODRIGUES, 2015), deixando pouca ou nenhuma margem ao alcance das chamadas funções de interesse comum, impulsionadas pela evidente associação entre legislação, restrições do mercado e exclusão social (MARICATO, 2003). Legitimidades funcionais, política e social conformam uma das bases da crítica de classe à questão urbana e suas representações (LEFEBVRE, 2005), aportando uma importante contribuição para o debate sobre o variado, fragmentado e persistente processo brasileiro de metropolização formal. Estes estudos convivem ainda com outros que buscam explicações no desenho institucional municipalista do Federalismo brasileiro (FERNANDES, 2013; GARSON, 2009;), bem como em seus processos de governo e governança (GARSON, 2009; ROLNIK; SOMEKH, 2004; SPINK, TEIXEIRA; CLEMENTE, 2009) e participação em processos de gestão urbana e metropolitana (FERNANDES, 2004).

14De qualquer perspectiva assumida, a gestão destas novas institucionalidades vem se mostrando insuficiente (FERNANDES, 2013; RIBEIRO, 2012), mesmo nos poucos casos em que há uma maior coerência na definição de seus limites territoriais, quando se instala um processo de governança mais próximo dos defendidos pela literatura, com conselhos deliberativos, fundos gestores ou agências específicas, e com envolvimento dos três entes federativos (RIBEIRO, 2012). Dentre as explicações para tal insuficiência, frequentemente emergia a falta de um marco legal próprio a tal escala e complexidade multiatorial e interfederativa de ação. Um conjunto de vozes que apresentava tal lacuna começou a assumir maior densidade com a aprovação do Estatuto da Cidade, para, três anos depois, aportar no Congresso Nacional no formato de um projeto de lei que viria a resultar, 11 anos mais tarde, no Estatuto da Metrópole (2015).40

15No processo de elaboração do Estatuto da Metrópole, foi proposta a criação de regiões metropolitanas interestaduais. O foco era principalmente o DF poder configurar uma institucionalidade para área metropolitana entre estados, mas esse dispositivo foi vetado pela então presidente em 2015. Assim, no caso do DF, o Estatuto da Metrópole ficou praticamente sem grande aplicabilidade, não obstante se reconheçam avanços, de uma forma geral, sobretudo em termos epistemológicos. No final do mandato do governo Michel Temer, em dezembro de 2018, foi assinada a Medida Provisória 862/18 que altera o Estatuto da Metrópole e autoriza o DF a instituir uma região metropolitana com municípios limítrofes ao seu território. Embora a MP 862/18 não defina os municípios limítrofes que integrarão a região metropolitana, isso poderá ser feito por leis complementares locais, após negociação entre os governadores. Essa MP, no entanto, será ainda analisada separadamente, em comissões mistas, criadas especialmente para esse fim e os pareceres serão votados posteriormente nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado.

16Todas estas dificuldades acabam por constituir um terreno fértil para se pensar os desafios metropolitanos a partir de novos olhares analíticos. Um destes olhares, propomos aqui, possui uma matriz pragmatista, particularmente vista pelo olhar da sociologia francesa, e traz para o centro das discussões a noção de público.

A formação de público nos problemas metropolitanos

17O público passa a ser considerado como a principal categoria de análise das relações sociais e das relações entre Estado e Sociedade a partir da obra seminal de John Dewey (1927) “O público e seus problemas”. Para ele, o público é aquele conjunto de atores que se sente mobilizado pelas consequências indiretas de problemas ao qual eles mesmos atribuem uma qualidade de público: conjunto de pessoas, organizações e instituições indiretamente afetadas pela percepção compartilhada de consequências indesejáveis de uma situação problemática e que se envolvem para tentar elucidá-la e resolvê-la. Esta mobilização provoca uma corporificação social que passa, ao mesmo, tempo, a se sentir público de um problema e a defender a sua qualidade de público. Neste sentido, o público é um corpo social que se constrói processualmente, fenômeno que ele próprio chamou de publicização.

18Dewey compreendeu o processo de publicização como um movimento de enquete coletiva, de investigação coletiva, voltada para a definição de situações problemáticas cujas consequências começam a ser percebidas como afetando um conjunto de pessoas que foram qualitativamente ou quantitativamente percebidas como suficientemente importantes para serem coletivamente governadas, até que certo consenso concernente ao reconhecimento da situação problemática a transformar em problema público. A enquete desencadeada coletivamente por uma sociedade, ou melhor, por um conjunto de pessoas, organizações e instituições, na qual a situação problemática vai ser identificada ao mesmo tempo em que a composição das comunidades afetadas, também é construída.

19A problematização de uma situação, portanto, está irremediavelmente associada à construção de seus públicos (CEFAÏ; TERZI, 2015). Segundo os autores, a definição de uma situação problema é uma situação que provoca perguntas e que, portanto, chama para a análise, discussão e investigação. O governo de problemas públicos se faz principalmente através das experiências e de como as situações são problematizadas, bem como do público ou da comunidade. Problematização (definição de uma situação problemática) e publicização (configuração de públicos relativos à situação problemática) são dois aspectos de uma mesma dinâmica. O processo de transformação de uma situação problemática em um problema público concerne à maneira pela qual uma sociedade identifica, caracteriza, analisa e tenta resolver as consequências indiretas de transações privadas que são percebidas como importantes para a organização dos valores coletivos.

20O problema da governança metropolitana, nesta perspectiva, não consegue constituir-se como público. Não há um conjunto de atores, com relevância quantitativa, tampouco qualitativa, que advogue a importância deste problema, atribuindo-o a qualidade de público.

21No caso da área metropolitana de Brasília, o conjunto de atores institucionais que poderiam atribuir a qualidade de público aos problemas metropolitanos, como organizações da sociedade e/ou atores governamentais, principalmente os municípios que constituem a área metropolitana, tem certa dificuldade em reconhecer ou priorizar efetivamente os problemas metropolitanos. Por parte das organizações da sociedade parece haver dificuldades ou talvez baixa compreensão dos problemas no âmbito metropolitano. No que se refere aos atores municipais, há uma organização, a Associação dos Municípios Adjacentes a Brasília (AMAB), criada em 1988 para fortalecer politicamente a região e buscar soluções aos problemas ocorridos, tendo em vista o célere processo de urbanização da região. Essa associação, contudo, parece não conseguir uma presença marcante que impulsione ou crie condições para fomento de público aos problemas metropolitanos. Composta por 21 municípios que integram a Ride-DF e Entorno, com exceção da Capital Federal, a atuação da AMAB se dá principalmente em articulações políticas com organizações tais como a Federação Goiana de Municípios ou a Frente Nacional de Prefeitos. A própria ausência de Brasília como membro já evidencia a falta de representatividade da mesma. Não por acaso, segundo entrevista com a Secretaria da AMAB, os prefeitos têm dificuldades em se reunir e muitos preferem ir diretamente aos Ministérios para demandar recursos do que se articular para definir políticas conjuntas. Em entrevista com ex-presidente da AMAB, do município de Valparaíso de Goiás, apesar de haver o reconhecimento de alguns prefeitos sobre a necessidade de uma maior articulação entre os municípios e também com o Distrito Federal, falta uma visão mais ampla do problema. Os prefeitos acabam se concentrando principalmente na busca de soluções para seus problemas internos, distanciando-se da articulação para discutir políticas comuns para os problemas metropolitanos, seja por falta de visão, tempo ou por problemas político- partidários.

22Por parte do Distrito Federal, apesar de haver algumas tentativas de cooperação e diálogo com os municípios da área metropolitana, por meio da criação de Secretarias do Entorno ou de articulação de assuntos metropolitanos, de parte de alguns governos, esbarra-se sempre em dificuldades legais e administrativas, principalmente de ordem orçamentária..

Considerações finais

23O entendimento do que pode ser compreendido como público no tema da governança metropolitana parece que vem sendo muito mais perseguido a partir da reinterpretação do que seja o “público” nos seguintes termos : porque o público não preenche, assume, ocupa nem mesmo os pouquíssimos espaços que lhes são dados, concedidos, criados para a resolução ou tratamento dos problemas considerados como de relevância pública para o nível metropolitano de governo? Esta pergunta, porém, admite a existência de uma dicotomia entre o “nós”, ou seja, aqueles que criam os espaços de participação, e um “eles”, ou seja, aqueles que deveriam desempenhar o papel que lhes foi solicitado a desempenhar. Além disto, perguntas de pesquisa construídas desta forma parecem ainda admitir que a ativação do público seja um processo que é independente do processo de formação e construção dos próprios problemas, e de suas alternativas possíveis de solução.

24É possível, porém, começar a pensar de outra maneira. O público não pode ser visto como um ente abstrato e inexistente, que se forma somente quando é chamado a fazê-lo. O público é uma experiência coletiva que se constrói com o tempo, em função de uma motivação agregadora, a qual, por sua vez, vai se conformando à medida que este mesmo público vai sendo formado (DEWEY, 1927). Sem público não há problemas de dimensão metropolitana, dentro de uma democracia. Com isto, podemos pensar que o público da Ride ou da AMB só poderia ser construído à medida que a dimensão metropolitana dos problemas públicos fosse sendo construída. Melhor, na medida em que a metropolitização dos problemas, e se consequência da necessidade de uma gestão para além dos muros municipais, vá sendo construída. E um caminho valioso pode ser tomado com o enfrentamento inicial da compreensão do que é Brasília, da sua relação com o DF e sua periferia. Um dos principais paradoxos que se impõe a tal processo de construção é que a dimensão metropolitana dos problemas públicos deva ser, por si só, considerada como o principal problema público metropolitano. Este paradoxo tem produzido um conjunto de problemas relacionados à governança metropolitana que tem se mantido como limitados exclusivamente à esfera do conhecimento especializado; quando, se retomássemos John Dewey, prestaríamos muito mais atenção seria dada ao que de fato possui uma forte capacidade transformadora: a formação de público para os problemas metropolitanos. Se há público, ele mesmo se encarrega de produzir, historicamente, suas próprias estruturas possíveis de governança metropolitana.

Bibliographie

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Notes de bas de page

34 Disponível em: http://www.df.gov.br.

35 As configurações da Ride-DFantes e depois de 2018 pode ser visualizada no Mapa 4 no Caderno de Mapas nesta obra.

36 Teve sua primeira definição dada pelo Decreto nº 2.710, de 4 de agosto de 1998, mas só começou a funcionar, efetivamente, em 2000, e seu regimento interno foi aprovado somente em 2011.

37 Com a recriação da Sudeco, em 2009, a estrutura do COARIDE e a administração geral da Ride-DF passaram a esta autarquia, vinculada ao MI. Em 01.01.2019, com a mudança de governo federal, houve a criação do Ministério do Desenvolvimento Regional, com a fusão do Ministério da Integração Naciona l e do Ministério das Cidades.

38 No recente governo empossado em 01.01.2019 houve uma fusão dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, bem como a agregação de parte do Ministério da Indústria e Comércio Exterior e da Receita Federal, todos sob o comando do Ministério da Economia.

39 O Mapa 5 no Caderno de Mapas nesta obra apresenta a AMB e a Ride-DF na sua configuração atual.

40 Lei 13.089, de 12 de janeiro de 2015.

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