A imagem do Brasil nos manuais de História e Geografia
p. 399-423
Texte intégral
Introdução
1Pretender analisar a imagem do Brasil tal como aparece nos manuais de história e geografia franceses pressupõe a definição de um corpus: o trabalho apresentado a seguir analisa um grupo de manuais escolares1, constituído essencialmente por manuais utilizados nos anos escolares franceses de «Cinquième» e «Terminale». Salvo algumas exceções, optamos por limitar o estudo a esse grupo por uma razão simples: é o único nível escolar em que os trechos sobre o Brasil têm certa consistência, prestando-se, assim, à análise qualitativa e quantitativa ao mesmo tempo que queríamos fazer.
2Esse fato já é por si mesmo uma informação: nesses anos letivos, os programas oficiais prevêem explicitamente o estudo do Brasil, e por varias vezes teremos a oportunidade de demonstrar a extrema importância dos programas oficiais. Parafraseando uma citação célebre no Brasil açucareiro do século XVII («Sem escravos, nada de açúcar, nada de Brasil»), poderíamos colocar como divisa deste estudo: «Sem programa, nada de capítulo, nada de Brasil».
3A esse respeito, temos que ressaltar a escassez de informações históricas sobre o Brasil dos manuais; fomos obrigados a analisar principalmente os manuais de geografia, pois o lugar ocupado pelo Brasil nos livros de história é praticamente inexistente. Seria muito instrutivo, numa perspectiva de comparação, perguntar aos «bacheliers» quem foi Tiradentes, qual era o regime político do Brasil entre 1822 e 1889, ou até mesmo quem foi Getúlio Vargas, figura histórica importante.
4Ao procurar analisar a imagem do Brasil, achamos interessante fazer o estudo por meio de imagens, ou seja, utilizando métodos da gráfica definida por Jacques Bertin: mais exatamente, pela utilização de matrizes que permitem a análise e a classificação visual da informação. Analisar imagens através de imagens não é, assim, um trocadilho ou jogo de espelhos; neste caso específico, trata-se de utilizar o instrumenta mais adequado, pois o número de manuais tratados é extenso demais para permitir uma análise linha por linha, e reduzido demais para justificar uma análise estatística, informatizada ou não. Decidimos, então, enfatizar os temas abordados pelos autores, seja em seus textos (e nos textos citados), seja nas imagens brasileiras, no sentido literal, que eles mostram (através de mapas ou de fotografias), e restituir uma síntese dessas através de outras imagens, matrizes e mapas, resumo de nosso trabalho.
5Para a elaboração deste estudo, foi necessário estabelecer, entre os diversos temas tratados pelos autores, uma diferenciação entre temas minuciosamente estudados (vários parágrafos, um mapa, uma ou várias fotos, um ou vários textos citados), temas estudados por alto (um ou outro dos elementos descritos) e, enfim, temas ausentes dos manuais. A última definição não significa que a palavra-chave que os caracteriza, que é a que está nas matrizes (cuja lista foi feita segundo o conteúdo dos manuais) não figure nos manuais – pois é evidente a preocupação dos autores de se mostrarem o mais completa possível, sem nada negligenciar, mas que outros temas tiveram prioridade. Esperamos, então, que nosso trabalho não seja transformado num teste comparativo ou num «quadro de honra» qualquer, mas que sirva para que se tente compreender qual é, globalmente, a imagem do Brasil salientada pela produção francesa de manuais escolares. Produção aliás, como será possível constatar, bastante homogênea em cada época, e que se diferencia mais por transformações no correr dos anos que por disparidades entre os diversos editores2.
Método (Todos os quadros seguem a tradução portuguesa – pp. 414-423)
6Nos manuais do primeiro e segundo ciclos foram examinados os contextos nos quais se situam os trechos sobre o Brasil (do capítulo coerente ao exempta citado), os temas brasileiros tratados no texto, mapas e fotografias do Brasil (assinalando, para as fotos, o tema e o lugar representado).
7Estes dados foram coletados em quadros com dupla entrada, quatro para cada um dos dois ciclos. O processamento começa com a tradução destes dados numéricos em linguagem visual (etapa 2, figura p. 414). Para os temas, escolhemos a utilização de tonalidades diferentes e ordenadas, a saber: ausência do tema (em branco), presença (em cinzento), tratamento minucioso (em preto). O quadro de dados é então inteiramente transposto em faixas brancas, pretas e cinzentas.
8A segunda etapa consiste numa transposição das colunas mais pretas entre elas, e das mais brancas entre elas3; em seguida, recomeça-se a operação para as linhas. O material matricial concebido pelo Laboratório de Gráfica de Altos Estudos em Ciências Sociais torna possível realizar uma transposição, por permutação, das linhas e colunas.
9Novas permutações entre linhas e/ou colunas podem ser necessárias, para melhorar a homogeneidade das marcas pretas, brancas ou cinzentas; a manipulação cessa quando o pesquisador julga ter conseguido uma imagem ótima: a mais contrastada possível, que melhor faz aparecer os grupos coerentes.
10Os grupos de objetos são então separados por linhas espessas e numeradas com algarismos romanos5, os grupos de características das colunas são também separados por traços mais espessos, e designados por letras6. Grupos de dados são, assim, isolados: A I, A II, A III, B I, B II, CI, C II, C III, etc.7
11Os objetos do grupo B I aparecem, no exemplo simulado acima, fortemente marcados pela característica B, os objetos do grupo C II marcados pelas características de C II (característica 5 e 3). A caracterização dos objetos dos grupos I e II é média para as características A e B, e os grupos restantes são interpretados como fracos ou nulos.
12A interpretação do quadro de dados transformado em matriz permite levantar hipóteses, distinguir grupos de objetos e de características, no caso temas evocados a respeito do Brasil e manuais escolares, hipóteses que podem ser checadas voltando-se à fonte. Este método permite manter contato permanente com os dados e aprofundar, pouco a pouco, a reflexão sobre o assunto.
13Quando um dos eixos da matriz (x ou y) contém dados de localização geográfica, os resultados da classificação por permutação podem ser transferidos para um ou vários mapas. É o caso das matrizes sobre o tema da localização das fotografias do Brasil encontradas nos manuais; os grupos formados sobre a matriz são, então, cartografados com o fim de averiguar se sua distribuição espacial provoca o aparecimento de uma ordem espacial paralela à classificação matricial dos dados.
14A interpretação dos mapas está ligada à interpretação da matriz, e é sua complementar; suas legendas são as mesmas da matriz. Cada grupo individualizado na matriz é representado num mapa; cada mapa permite então uma análise precisa da localização dos temas de cada grupo (no caso, a localização das fotos que ilustram cada um dos temas).
15Quanto à matriz das fotografias, ela representa quantitativamente os dados de cada grupo: os traços representam por sua espessura o número de fotos de um lugar determinado ilustrando o tema referido. Distinguimos os casos em que a fotografia representa um lugar específico (círculo), um Estado brasileiro ou uma região (quadrado).
Primeiro ciclo
Contexto
16O piano escolhido para abordar o Brasil é bastante dependente do programa: (vor p. 415) à dispersão existente antes de 1987 opõe-se agora, claramente, o alinhamento de todos os manuais posteriores a um piano único: o primeiro grupo reúne todos os manuais, sem exceção, e nesse grupo só figura um manual anterior. A publicação do novo programa produziu um efeito evidente de nivelamento; nenhum manual coloca o Brasil dentro do quadro geral da América, nem do subdesenvolvimento; todos o situam dentro da América Latina (capitulo precedente do programa) e, como veremos, sob o ângulo particular dos contrastes do desenvolvimento econômico.
Textos
17Cinco grupos de manuais aparecem na matriz: o primeiro é constituído por uma única obra, publicada pela Editora Bordas em 1982, e que figura como precursora: a reedição do manual de 1978 (no 9 na matriz) relaciona o capitulo sobre a «economia brasileira» com «diálogos e dependências», o que é uma mudança importante de enfoque, e que corresponde a uma mudança de equipe.
18O segundo grupo (B) compreende o conjunto dos manuais publicados em 1987, cujo parentesco é enfatizado pela análise matricial: a mudança dos programas provocou a padronização dos manuais, ponto importante ao qual voltaremos. Um grupo secundário (C) é formado pelos manuais da mesma edição que abordam número menor de temas.
19O tratamento de alguns temas do grupo III (importância do café, principalmente; depois, recursos naturais e presença das multinacionais) é a característica principal do grupo D; distingue uma série de manuais publicados entre 1978 e 1981, diferenciando-os bastante dos manuais mais recentes.
20O grupo E, finalmente, compõe-se de manuais que tratam superficialmente do caso brasileiro: são todas as obras mais antigas (com exceção do Hatier 1982, que é talvez uma atualização simplificada do manual de 1978 (no 6).
21Que temas caracterizam as diferentes gerações de manuais? (vor p. 416). O grupo IV é composto por temas abordados de maneira esporádica e pouco representativos. O grupo III, já citado, é o que caracteriza a geração de 1978-1981. Os grupos II e, principalmente, I, são os que predominam nos manuais recentes. Pode-se notar uma diferença nos temas levantados: os manuais 13 e 19 insistem no grupo II, que é o dos temas explorados pelos pesquisadores1 franceses que estudaram o Brasil recentemente (Amazônia, frentes pioneiras, migrações, contrastes regionais, economia informai), o que é natural, pois nos dois casos pesquisadores ligados a esses trabalhos participaram da equipe de redação. O grupo I, o mais importante, mostra as potencialidades e realizações do Brasil (imensidade, potência industrial, grandes projetos regionais, modernização agrícola), mas insiste também nos problemas enfrentados pelo Brasil de hoje (dívida externa, fome e miséria, problemas agrários, dependência, explosão demográfica), num enfoque balanceado e prudente, induzido em grande parte pelo programa oficial, que chama a atenção para «os contrastes do desenvolvimento».
22A análise dos grupos de temas confirma, assim, a análise das diversas gerações de manuais: a introdução de novos programas influiu muito na apresentação do Brasil nos manuais do primeiro ciclo, que é o mais importante, pois representa, freqüentemente, a primeira informação coerente que os alunos recebem sobre o Brasil, e atinge a toda uma faixa etária, contrariamente aos manuais do segundo ciclo.
Mapas
23A análise temática dos mapas isola dois manuais já distinguidos dos outros pela escolha dos temas; a ênfase dada aos temas recentes de pesquisa é acompanhada de maior utilização dos mapas (vor p. 417). De maneira geral, aliás, a utilização dos mapas é maior nos manuais mais recentes; o número de temas tratados por mapas aumenta claramente ao longo dos anos, com exeção de alguns precursores (1, 6,14).
24Os temas cartografados representam um certo número de dados de base, cuja representação por mapa é quase que obrigatória (grupo I, agricultura, densidade da população, indústria e minas); como alguns desses temas são mais sistematicamente representados nos manuais mais antigos (relevo, economia, situação na América Latina), eles contribuem para caracterizá-los, por serem, muitas vezes, os únicos mapas representados (com ausência de mapas sobre os temas dos grupos III e IVa, que os manuais mais recentes abordam).
Fotografias
25Nesta matriz, as linhas significam temas das fotografias selecionadas para ilustrar os textos relativos ao Brasil, e as colunas, lugares que essas fotos representam.
26Tendo em vista a análise matricial, os temas selecionados podem ser classificados em quatro grupos: o primeiro reúne as representações industriais e as paisagens de cidades grandes, das quais se mostram ao mesmo tempo os aspectos modernos e os contrastes entre habitações modernas e favelas. Para ilustrar estes temas, os autores escolhem, muitas vezes, o caso de Brasília, mas mais ainda o do Rio de Janeiro, cujas favelas são mostradas com freqüência.
27O segundo grupo é o das grandes obras (rodovias, barragens, etc.): as escolhas mais freqüentes são a Amazônia e Itaipu.
28O terceiro grupo é o de paisagens naturais e cenas da vida rural: principalmente a Amazônia e o Nordeste; São Paulo, porém, é escolhido com freqüência, devido à sua agricultura modernizada.
29O quarto grupo, finalmente, focaliza os tipos humanos, retratos e cenas de rua: também nesse grupo a Amazônia esta bem representada.
30Os mapas extraídos da análise da matriz, cada um correspondente a um dos grupos que ali apareceram, mostram claramente esta preponderância da Amazônia (ou sem precisar o lugar, ou, às vezes, a cidade de Manaus), que só é menor no primeiro grupo, pela importância nele dada às cidades grandes do Sudeste: fora essa exceção, os autores preferem as imagens espetaculares e exóticas do interior às do Brasil desenvolvido.
Segundo ciclo
Contexto
31A maior parte dos manuais analisados (de no 1 à 11) corresponde ao programa de 1983 das turmas de «Terminales», e foram publicados naquele mesmo ano, salvo duas exceções (reedições posteriores) (vor p. 415). Neste programa, o Brasil não é mais estudado separadamente, mas integrado ao estudo do subdesenvolvimento ou das disparidades do desenvolvimento: o pais aparece como um dos três exemplos propostos, juntamente com a Índia e a África Ocidental. Os manuais de 12 a 16 são destinados a seções ou anos escolares diferentes, e foram incluídos a título de comparação, pois o Brasil aparece ou como ilustração de alguns grandes temas (turmas de «Terminales G», «Seconde») ou como um tema à parte (turma de «BEP»).
32Esta colocação particular influencia a imagem que é apresentada do Brasil. Ela permite-lhe, em primeiro lugar, estar presente nos manuais, no que é o único país da América Latina a merecer a honra, já que o México é, nos melhores casos, apenas evocado, e a Argentina, totalmente eliminada (lembremos que ela figurava, antigamente, na lista de grandes potências obrigatoriamente estudadas).
33O programa incentiva, além do mais, uma comparação entre os casos da Índia e do Brasil (quando se poderia esperar uma comparação com outros países da América Latina, que ocorre raramente). A opção feita é, muitas vezes, opor o «modelo brasileiro», extrovertido, baseado nos exportações, dominado pelas firmas multinacionais à «via indiana» de economia planificada, autocentralizada, com um setor público intenso. Esta comparação, muitas vezes implícita, leva com freqüência a um juízo de valor, a uma preferência pela segunda opção, que é aceitável, mas, às vezes, falseada pelo fato de que só se retêm de cada um desses países os fatos extremos que são úteis à demonstração: alguém que conheça o Brasil sabe que ele possui também um setor público importante, que as exportações só representam 5% do PIB, e que seria necessário fazer uma apresentação mais complexa do pais.
34De maneira geral, a inclusão do Brasil neste grupo do subdesenvolvimento leva, ou a dispersá-lo completamente dentro do piano temático (no qual só aparecem alguns exemplos brasileiros, ou no melhor dos casos, alguns trechos sobre sua agricultura, cidades, etc.), ou a consagrar-lhe um capítulo onde são acentuados alguns aspectos privilegiados que o autor julga úteis para a compreensão do subdesenvolvimento. Neste caso, muitas vezes, o destaque é dado aos contrastes sociais e regionais, muito grandes no Brasil, enquanto que a Índia presta-se mais a mostrar os problemas do crescimento demográfico, e a África Ocidental a ilustrar a dependência econômica e os problemas agrícolas. Constrói-se, assim, uma imagem deformada do Brasil.
Textos
35A imagem do Brasil apresentada nos manuais do segundo ciclo é composta por três grupos de temas (vor p. 418):
36a) Uma grande potência dividida entre o Estado e as multinacionais, marcada pelos contrastes sociais e regionais, pelos conflitos fundiários. O resultado da manipulação matricial resume, neste caso, da melhor maneira possível, a impressão suscitada pela leitura dos manuais: esses temas são, de maneira evidente, os que constituem, para os autores, a originalidade principal do Brasil dentro do conjunto dos países subdesenvolvidos. Eles formam o núcleo comum dos três grupos de manuais, o ponto mais importante dos grupos A e B (este último incluindo também outros temas), e estão ainda muito presentes no grupo III, que é composto, essencialmente, por livras não destinados às turmas de «Terminales» (ou seja: «BEP», séries preparatórias). temas oriundos de pesquisas
37Há mais de-cinqüenta anos que os geógrafos franceses têm trabalhado muito no Brasil: desde que uma missão universitária francesca contribuiu para a fundação da Universidade de São Paulo. Nessa equipe de jovens professores, da qual faziam parte, entre outros, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel, havia um geógrafo, Pierre Monbeig, que formou e orientou as primeiras gerações de geógrafos brasileiros. Ao retornar à França, ampliou o campo dos estudos brasileiros; fundador e diretor do Instituto de Altos Estudos da América Latina, de um Laboratório Associado do Centre Nacional da Pesquisa Científica-CNRS, ele foi diretor de pesquisas sobre o Brasil. A influência de Pierre Monbeig marca muito esse grupo: sua tese versava sobre as frentes pioneiras, e esse tema, que continou a fascinar os geógrafos franceses, aparece novamente, junto com os da ocupação espacial e da formação do território, também presentes. Este grupo de pesquisadores trabalhou, em seguida, na Amazônia, e também no Nordeste, ainda sobre os fenômenos pioneiras, que se basearam, nos anos 70, nas grandes obras (rodovias, barragens, perímetros irrigados), e que provocaram, muitas vezes, importantes crescimentos urbanos – todos temas encontrados nesse grupo. Confirma-se, então, o que havíamos pressuposto para o primeiro ciclo: os resultados da pesquisa geográfica se transmitem aos manuais. Isso se vê na seleção dos textos citados, dos mapas reproduzidos, e na presença de vários géografos ou diretamente vinculados ao laboratório dirigido por Pierre Monbeig (Michel Foucher e Hervé Théry), ou que participaram de pesquisas associando-os a esse laboratório (Claude Bataillon), entre os autores de capítulos sobre o Brasil. Este grupo de temas aparece principalmente nos manuais do grupo B, que o incluem no núcleo comum do grupo I, mas também, mais dispersos, nos manuais dos grupos A e C.
38Aqui aparece uma imagem complementar da imagem principal do grupo I, junto com oposição tradicional/moderno e o rápido crescimento demográfico.
39Ela diz respeito principalmente aos manuais que não são destinados às turmas de «Terminales»; retoma de maneira mais resumida e brutal a imagem apresentada pelos manuais mais clássicos. Acrescentam-se aí notações negativas (endividamento, favelas, dependência), sobre as quais alguns manuais são mais prolixos, e análises sobre composição étnica da população brasileira (sociedade multirracial, presença dos dos índios, dos negros), muitas vezes presentes sem, no entanto, constituir um tema que permita uma estruturação.
40É possível basear-se nessa presença difusa para mostrar o que não mais faz parte desses manuais, temas eliminados ou que passaram para um segundo piano. O tema da miscigenação é um deles, como o da grande potência tropical. Com exceção do único manual de «Seconde» tomado como exemplo, e no qual o Brasil serve de ilustração dos fenômenos zonais, um único outro manual evoca a posição tropical do Brasil. Outros temas tornaram-se ainda mais rarefeitos, como o da seca, que ocupava o primeiro piano nos anos 60, quando os textos de Josué de Castro eram muito citados; a esse respeito cabe notar que a grande seca de 1979-1984 não é sequer mencionada nos manuais. A título ilustrativo, mencionaremos aqui o tema do «país novo», que desapareceu, apesar de tão freqüente nos anos 50 e 60.
Mapas
41Segundo esta matriz, distinguimos quatro grupos de manuais: um único manual no primeiro, abundantemente ilustrado por mapas originais (forma sozinho o grupo de mapas IVb) (vor p. 419). O quarto grupo (grupo D) é particularmente pouco ilustrado, o que se explica, no caso do manual no 15, pelo fato de ser um memento destinado às séries preparatórias. Os dois outros grupos destacam-se pelo número de temas tratados sob forma de mapas.
42Dentre esses temas, alguns parecem ser praticamente obrigatórios: população e agricultura formam o grupo I, presente em quase todos os manuais, menos os do grupo D, jà citado. Outros são, freqüentemente, cartografados: com mais freqüência no grupo A que no grupo B. Finalmente, os grupos III e IV o são esporadicamente: não se chega a conclusões muito claras a respeito; os autores escolhem o tratamento a dar a um tema – texto, mapa ou fotografia – segundo os documentos disponíveis. Não existe uma estratégia especial de uma ou outra editora, nem uma orginalidade especial para o caso brasileiro; o mapa é, muitas vezes, o meio mais prático de estudar o que a falta de espaço e a ênfase dada a alguns aspectos mais aparentes do modelo brasileiro de desenvolvimento obrigam a menosprezar no texto escrito.
Fotografias
43A matriz demonstra que a dispersão é, neste caso, maior do que no primeiro ciclo (p. 421 e 423). Somente o grupo I (principalmente o tema «paisagens urbanas modernas») mostra uma certa concentração: um privilégio concedido a São Paulo, que predomina no segundo ciclo, da mesma forma que a Amazônia e o Rio de Janeiro predominavam no primeiro. O Rio só retoma um lugar importante no grupo II, como tipo de cidade flagelada pelas favelas (sendo raro que se mostre as favelas das outras cidades brasileiras). Para o resto, a regra é a dispersão, como o demonstram a matriz e os mapas.
44Desta análise pode-se extrair uma pequena lista de fotografias «vedetes» nos manuais, para uso dos futures autores:
paisagem urbana moderna de São Paulo;
favelas do Rio de Janeiro;
rodovias transamazônicas;
represa de Itaipu.
5. Conclusão: qual é a imagem?
45Quail é imagem final do Brasil que sobressai desses manuais? Parece ser possível selecionar alguns aspectos mais evidentes:
461. Potência: o Brasil é apresentado como uma nova grande potência, ou como uma potência emergente, dotada de recursos importantes, principalmente de espaço e riquezas naturais. No entanto, esta imagem positiva é acompanhada de sérias limitações (pontos 3 et 4).
472. Espaço. O caso brasileiro fascina os geógrafos pela presença de sua «fronteira», tanto no passado (com os «ciclos econômicos», que contribuíram para a criação do território), como hoje em dia (grandes projetos regionais, frentes pioneiras). A pesquisa geográfica estudou minuciosamente estes temas, principalmente na Amazônia, e publica documentos que se encaixam nos manuais, tanto nos do primeiro como do segundo ciclo (isto se evidencia nas matrizes sobre os temas, ver pontos 3.2 et 4.2.).
483. O papel traiçoeiro da pesquisa. O problema é que se estabelece, por vezes, entre os interesses dos pesquisadores (função da evolução da realidade brasileira e das preocupações de cada um deles), o eixo fixado pelos autores dos programas e a aplicação de suas recomendações pelos autores dos manuais, um ciclo positivo de retroação, que se fecha sobre si mesmo ou quando os autores de manuais são eles próprios pesquisadores especialistas em Brasil, ou quando esses autores se baseiam nos trabalhos dos pesquisadores. Este modo de funcionamento em circuito fechado causa um efeito de exageração dos fatos, tanto por simplificação e desejo de exatidão quanto por falta de espaço; ele tem ainda o inconveniente de eliminar particularidades demonstradas pela análise preliminar; por um efeito de repetição, as intuições ou demonstrações provisórias transformam-se em verdades definitivas no final do circuito, e tendem, principalmente, a ocupar todo o espaço disponível para o estudo do Brasil.
49Daí decorre que a imagem do Brasil, tal como é apresentada pelos manuais escolares, é deformadora, simplificada, redutora; os autores esquecem, às vezes, de mostrar, sobre o Brasil, fatos simples e evidentes que uma criança ou adolescente deveria saber. Eles se esquecem por serem levados a essa situação pela leitura e utilização da literatura existente, de especialistas preocupados pelo eixo de suas pesquisas do momento, e pela aplicação rigorosa das recomendações oficiais, que são, elas mesmas, instruídas pela leitura dos textos desses especialistas.
504. Um tema que é tratado mais indiretamente é o dos problemas sociais, principalmente a questão da terra (talvez porque na série de «Cinquième» um capítulo especial seja consagrado aos problemas agrários na América Latina). Anteriores aos recentes debates sobre a reforma agrária, os manuais não podem ser criticados por limitarem-se a constatar a situação existente (principalmente porque até agora não foi possível esperar mudanças nesse campo). O tema da dependência é evocado com freqüencia, principalmente através da dívida externa.
515. Contrastes. Aspecto salientado tanto pela própria intitulação do programa de «Cinquième» quanto pelo lugar ocupado pelo Brasil no programa das séries «Terminales». Por preocupação pedagógica e espírito de simetria, os autores tratam, muitas vezes, dos contrastes por duplas, o que leva a uma visão dualista do país (regiões vazias e populosas, regiões ricas e pobres, culturas de subsistência e de exportação, latifúndio e minifúndio, favelas e bairros ricos, setor modemo e setor informai da economia, Estado e multinacionais, etc.) enquanto que a pesquisa mais recente tende antes a demonstrar que este modo de ver não basta, e que estes conjuntos são interligados e integrados num sistema complexo.
526. Nesta imagem dualista, não cabem a classe média, os assalariados urbanos, os setores e paisagens mais parecidos com os existentes na Europa. O desejo de mostrar o que é «típico» ou diferente desfigura o país, leva a exagerar os extremos, e as reações dos franceses, assim escolarizados, ao chegar ao Brasil são, muitas vezes, de surpresa diante de cenas corriqueiras semelhantes às que deixaram em seu país. É verdade que procuram, rapidamente, o que já conhecem; encontram, e sentem-se tranqüilizados. Mas isso já é uma outra história, que ultrapassa em muito o contexto desta pequena análise...
53No entanto, se ela pretende a uma continuidade, duas observações devem ser feitas. A primeira é que as aquisições recentes da pesquisa se transmitem com uma relativa facilidade aos manuais escolares, com uma inércia normal de alguns anos, e pode-se esperar que os recentes trabalhos sobre a economia informai e sua relação com o setor «formai», sobre o poder local e os efeitos da redemocratização, sobre a nova expensão da agricultura brasileira nos cerrados, por exemplo, serão difundidos no meio dos autores dos manuais e aparecerão nas próximas gerações de manuais, quando os últimos editados serão substituídos. Porém, salvo atualizações, e a eliminação de manuais de pouca vendagem, novas edições só são publicadas quando os programas oficiais mudam.
54Esta constatação nos leva à segunda observação: sobre o peso determinante dos programas, de sua estrutura e redação. Aconselhados aos alunos, compradores e usuários finais, por professores muito escrupulosos com o programa, este é seguido de perto pelos manuais, que se permitem, no máximo, algumas adaptações. Conclusão: como o demonstramos para as séries de «Cinquième» e «Terminale», e poderíamos fazê-lo também para os outros anos escolares, a maneira como o Brasil é apresentado depende muito da posição que ele ocupa no texto oficial. Dissemos que o Brasil não tem muito de que se queixar, pois ao menos faz parte desse texto, enquanto outros paises do mesmo interesse não são sequer mencionados. Mas ele ocupa um posição muito peculiar, ou seja, como ilustração de idéias gerais-embora justas-sobre o Terceiro Mundo, sobre os contrastes regionais e as «vias de desenvolvimento» adotadas por alguns grandes países. Apesar dos esforços de alguns autores para dar do Brasil uma imagem equilibrada, esta premissa é visível na imagem que é traçada do país.
55É evidente que nosso propósito não é o de criticar os programas, ainda mais que eles refletem o que foi, há pouco tempo atrás, a preocupação principal dos pesquisadores: estes dois temas, os contrastes internos do Brasil e o «modelo brasileiro» foram e continuam sendo amplamente estudados por eles e foi, provavelmente, através da leitura de seus trabalhos que os autores dos programas fizeram desses temas a idéia principal da análise do Brasil. Entretanto, ao fazer isso, tornaram a análise muito inflexível, levaram os autores a exagerar os traços, principalmente porque acharam na literatura existente farta matéria para ilustrar estes temas e aí, evidentemente, chega-se à conclusão que o Brasil é um assunto sério demais para ser deixado só nas maõs dos brasilianistas, e os programas, um objetivo importante demais para ser entregue à responsabilidade exclusiva dos inspetores (do Ministério da Educação).
56Uma imagem não pode ser decretada; mas ela pode ser secretada por circunstâncias que escapam ao controle: talvez fosse preferível que a imagem do Brasil apresentada pelos manuais escolares franceses seja discutida pelas partes interessadas, que ela seja colocada no centra dessa discussão, e que sua elaboração seja um dos objetivos, claramente explicitas, dos textos que se decida consagrar ao Brasil.
Annexe
Anexos
O Brasil nos programas oficiais franceses: de Jules Ferry até hoje (1)
Programa de 1874
Portaria de 23 de julho de 1874
Série: « Seconde »
América do Sul
Formação territorial. Constituição e população dos Países. Império do Brasil e repúblicas de origem espanhola. Colônias européias. Cidades principais.
Programa de 1880
Portaria de 2 de agosto de 1880, B.A. no 456,1880, p. 890.
Série: «Seconde»
África, Ásia, Oceânia, América:
Insistir sobre: Egito, Império das Índias, Indochina, China, Japão, Ásia Rússia, Estados Unidos, Brasil, colônias Britânicas e Neerlandesas.
Programa de 1902
Portaria de 31 de maio de 1902, B.A. no 1522, 1902, t. LXXI, p. 760.
Série: «Sixième»
América: noções de geografia física; noções de geografia política e econômica (insistir unicamente sobre o Canada, Estados Unidos, México, Brasil, Chile, República Argentina).
Relações com a Ásia, Oceania e Europa; imigração.
Programa de 1905
B.A., no 1684 e 1689, t. LXXVIII, p. 713
Circular de 28 de julho de 1905, completada pela portaria de 28 de julho de 1905.
Série: «Sixième».
República Argentina e Brasil: geografica física e econômica; desenvolvimento da colonização.
Programas de 1925/1941/1942/1946-47
Classe de Filosofia
As principais potências econômicas do mundo
A República Argentina e o Brasil.
Programas de 1947-48: idênticos aos de 1945-46.
Programa de 1952: modifica o programa de «sixième»
Programa de 1955: idêntico ao de 1945-46
Bibliografia
Obras analisadas: Primeiro Ciclo
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9. Istra | T | Coleção Grell-Gaudin | 1983 |
10. Magnard | T | Col. Prevõt-Dupãquier | 1983 |
11. Nathan | T | Nova Col. Nathan | 1984 |
12. A. Colin | T | Coleção Baleste | 1987 |
13. Belin | TG | 1983 | |
14. Delagrave | BEP 2 | Col. Bertrand | 1985 |
15. Nathan | BEP 2 | Col. Pelanne-Bodin | 1985 |
16. Nathan | Seconde | 1987 |
Notes de bas de page
Auteurs
Professor na universidade de Belo Horizonte.
Professor de segundo ciclo, pesquisador do CNRS.
Encarregado de Pesquisa – CNRS (CREDAL).
professor de primeiro ciclo.
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