Interações semióticas entre a França e o Brasil
p. 203-209
Texte intégral
«O futuro entra no presente sob a forma de alteridades »
M. de Certeau
1Sociedades e culturas podem hoje, saturadas de comunicação, estabelecer intercâmbios e confrontar imagens de si mesmas que elas se destinam reciprocamente. São elas assim suscetíveis de se tornar objetos de conhecimento, permitindo estudos comparativos e justificando o surgimento de regiões disciplinares responsáveis pelo tratamento de constituintes específicos aos diferentes domínios das atividades humanas, que podem servir a um cotejo, tendo como fim o estabelecimento da singularidade das estruturas sociais.
2No entanto, qual é o lugar do outro, habitante do imaginário? A pergunta, para além de sua impertinência, suscita não só a possibilidade de uma interrogação sobre o papel deste outro na dinâmica das sociedades, mas também permite principalmente dar um sentido aos estudos comparativos resultantes de nossa época.
3O outro é, na verdade, uma referência ambígua: prisoneiro do código socio-cultural que denega a sua diferença, localizando-o nos limites próprios de um tempo e espaço determinados, ele é, simultaneamente, a irreductível alteridade que se encontra no princípio mesmo do progresso. O outro não deixa assim de ter incidência sobre o desenvolvimento e o futuro de um grupo que o integra ou aceita o confronto. Ou seja, os grupos sociais podem ser vistos como efeitos produzidos pela presença heterogênea do outro: termo de uma alternativa necessária ao enriquecimento das experiências humanas, pertençam estas à área científica, técnica ou qualquer outra, no espaço social que ele atravessa e sobre o qual ele opera, deixando marcas. O que significa dizer que o outro está na origem das suas transformações. De onde a importância primordial de uma interrogação sobre este lugar onde se inscreve a dinãmica de uma estrutura, sua descontinuidade e sua renovação. Qualquer estudo comparativo deveria poder integrar a extensão do seu impacto estrutural, a fim de apreender as estruturas visadas para além de sua dimensão estática, ou seja, para dar sentido ao desafio do outro que elas convocam.
4É desta dinâmica, inscrita também nos postulados e nos procedimentos científicos, produtos das interações entre outros singulares, que vou agora falar rapidamente, respeitando os limites do tempo que me é imposto. Mais precisamente, tratar-se-á aqui dos resultados das interaçôes de conhecimentos e métodos que dizem respeito às estrutu as socio-culturais entre a França e o Brasil. A ciência semiótica será o lugar a partir do qual tentarei avaliar o impacto do outro na pesquisa, apesar dos modelos teóricos que, sabemos todos, não nos permitem pensar no que lhes é irreductível, mesmo se este irreductível constitui a sua condição primeira. Se é verdade que uma das origens da ciência das significaçôes esta inscrita na experiência singular dos Tristes trópicos, o procedimento propriamente científico que a caracterizara se encontra dela dissociado ou, pelo menos, não lembra o fundo do qual ela se desprendeu para adquirir o seu estatuto próprio.
A Herança da semiótica
5Semiótica e semiologia são hoje duas disciplinas distintas no conjunto das ciências humanas e sociais, com os seus métodos e objetos específicos. Se esta última considera o signo como objeto, definindo-o segundo uma perspectiva saussuriana ou pierceana, a semiótica, quanto a ela, se interessa pelos sistemas significantes e se define como a ciência da significação, afirmando, através da metodologia que propõe, a sua diferença em relação à ciência dos signos postulada por Saussure ou por Pierce. Construindo o seu objeto como uma arquitetônica de patamares de significação, ela se coloca ao nível em que todas as práticas sociais podem ser apreendidas independentemente do seu modo de manifestação. Daí a sua importância atual, que ultrapassa os limites de seu território próprio: a semiótica pode, concebida desta forma, servir de metodologia para as ciências humanas e sociais que estudam os fatos sociais e humanos, visando as suas leis.
6Assim elaborada em França, a semiótica, desenvolvida em torno de A.J. Greimas e de seus colaboradores, é a síntese de correntes científicas importantes: tais como a linguística (F de Saussure, L. Hjelmslev, E. Benveniste) por um lado, a antropologia, por outro (G. Dumesnil, W. Propp, C. Lévi-Strauss).
7Pelo que me diz respeito aqui, vou me deter exclusivamente na herança antropológica e no nome de C. Lévi-Strauss.
Interações originárias
8Nomeado membro de uma missão universitária francesa no Brasil, C. Lévi-Strauss foi, no período 1935-1938, Professor na Universidade de São Paulo, tendo participado ainda de sua fundação1. De 1935 a 1939, ele organizou várias missões etnográficas no interior do país, onde contactou com sociedades indígenas, prolongando o confronto vivido nos espaços urbanos que lhe ofereciam também uma diversidade de usos e costumes, uma variedade de objetos que nutriam a sua reflexão e anunciavam já o que ia ser o trabalho de um pesquisador que começava, de fato, naquele momento, junto aos grupos indígenas do Brasil central, «a inventoriar e a compreender» no que consistia a diferença de cada mundo que percorria. E antes de inicar a sua primeira experiência como etnólogo, ele confessa que não podia imaginar «o papel involuntário» que ele e os seus colegas da Missão francesa iriam desempenhar na evolução da sociedade brasileira2.
9No seu texto Tristes trópicos, é assim que ele dá conta da imagem que ele fazia do Brasil, antes de sua viagem: «o Brasil e a América do Sul não significavam muita coisa para mim. Os países exóticos me pareciam como o oposto dos nossos, o termo de antípoda encontrava no meu pensamento um sentido mais rico e mais ingénuo que o seu conteúdo literal.(...) Cada animal, cada árvore, cada pedaço de capim, devia ser radicalmente diferente (...). O Brasil se esboçava na minha imaginação como feixes de palmeiras retorcidas, dissimulando arquiteturas estranhas, o todo banhado num cheiro de incenso, detalhe olfativo introduzido furtivamente, me parece, pela homofonia inconsciente percebida entre as palavras «Brésil» e «grésiller», mas que explica mais que toda experiência adquirida, que ainda hoje penso no Brasil como num perfume queimado»3.
10O outro, de fato, vai desorientar o viajante europeu no momento de sua chegada. Ele constata a estranheza da paisagem que – diz ele – «não entra em nenhuma das categorias tradicionais»4. Trata-se de um outro espaço, mas também de uma outra temporalidade, com uma cadência que confere um sentido próprio ao presente vivido: não havendo o hábito do passado, este cede sempre o seu lugar ao desejo do novo. Somente este existe neste novo mundo articulando uma outra linguagem. Estranhos para ele ressoam os nomes da fauna e da flora que aprendeu a conhecer, mas estranhos também, barrocos até, para um ouvido europeu, eram os nomes dos seus alunos da universidade. O contraste percebido se estende a tudo, não sem que o viajante se interrogue sobre a sua experiência da diferença dos usos, dos costumes, das instituções e também das imagens recíprocas dos Brasileiros, para em seguida elaborá-la e assim dar conta do deslocamento das fronteiras que balizavam seus valores e suas certezas.
11Não é acaso neste deslocamento das certezas adquiridas, provocado pela interação com o outro e com os sistemas que organizam a sua vida e as suas experiênças, nesta falta de limites reconhecidos que este confronto instala, que se constrói o saber do etnólogo necessariamente tecido da alteridade do outro?
12A descoberta desta sociedade outra, com as suas práticas culturais significantes assim como as dos Bororo do Mato Grosso Central, dos Caduveos do Sul, ou dos Nambikwara, instalados entre Cuiabá e a Amazônia, com os quais ele entrava em interação, já o fazia nesta época observar que se pode falar, referindo-se ao conjunto dos costumes de um povo, de sistemas, que, não sendo ilimitados, se oferecem como um repertório ideal, capaz de ser reconstituído, e suscetível de permitir, por outro lado, a escolha de certas combinações.
13Essas primeiras reflexões, suscitadas pelo espaço social heterogêneo do Brasil, estruturado a todos os níveis, iam atingir a sua forma mais elaborada durante os anos 50 e 60, com a extensão que Cl. Lévi-Strauss fazia da teoria saussuriana à sociologia e à etnologia. O encontro com Saussure se deu através da metodologia proposta pela Escola de Praga e a partir das estruturas elementares da língua, e dos modelos lógicos, C. Lévi-Strauss pôde considerar os termos de parentesco, por exemplo, como elementos de significação integrados em sistemas.
14Queríamos saber dos linguistas-dizia ele na sua Antropologia Estrutural* – o segredo do seu éxito. Não poderíamos, nos também, aplicar ao campo complexo dos nossos estúdos –parentesco, organização social, religião, folclore, arte – esses métodos rigurosos cuja eficiência cada dia é verificada pela linguística5.
15Isto é, se o desejo de inteligibilidade dos conjuntos significantes heterogêneos levou C. Lévi-Strauss a enveredar pela linguística que lhe permitia extrair deles as unidades constitutivas, afin de organizá-las em sistemas – mesmo se ele admitia que não era possível levar muito adiante o paralelo entre a língua e os outros conjuntos sociais e humanos –, através desta extensão, ele encontrava as preocupações do semioticista. Ele, não ensinava que a constituição de uma semiótica da cultura pressupõe que se coloque em evidência uma arquitetura profunda, edificadora das práticas culturais significantes, mostrando a importância dos conjuntos binários de unidades distintivas, cujo papel, para lá das superficies manifestadas que elas regem, é o de ser um princípio organizador?
16Em Tristes trópicos, lê-se:
17«Toda paisagem se apresenta a princípio como uma imensa desordem que deixa livre da escolha do sentido que se prefere lhe dar. Mas... o sentido augusto entre todos não é acaso aquele que precede, comanda, (...) explica os outros?»6.
18Do contínuo ao descontínuo: é através do procedimento que visa estabelecer o inventário das unidades e da sua inserção numa rede relacional que o sentido augusto, representado sob a forma de uma estrutura profunda, poderá ser destacado, para além da desordem da superficie observada. Conhece-se hoje a generalidade do modelo semiótico que nestas premissas se inspirou. Ele é postulado como um invariante da atividade humana significativa, localizado anteriormente à sua manifestação, em qualquer substância.
O retorno
19A semiótica que Lévi-Strauss, através de sua experiência vivida em parte no espaço brasileiro, ajudou a construir, voltou para o Brasil. Ela é hoje adotada pelos pesquisadores em vista de um conhecimento aprofundado das manifestações socio-culturais do universo brasileiro.
20No Brasil, a existência da semiótica, assim como a da semiologia, é muito recente para que se possa fazer a sua história. No entanto, é possível delinear o percurso próprio a este campo de saber, que se estende dos anos 50 até aos nossos dias7.
21No início dos anos 50, os prolegômenos do saber semiótico e/ou semiológico nascente se manifestam num lugar heterogêneo e rico: o da corrente «concretista» em poesia, que se constitui na sequência da revolução artística e da linguagem instaurada pelo Modernismo. E isto paralelamente aos estudos linguísticos que, por sua vez, ressentem o alargamento do campo científico e dele participam.
22Depois destes primeiros passos num domínio desconhecido, assiste-se à ascensão desta disciplina, através da leitura das traduções das obras dos semioticistas conhecidos sobretudo na Europa, principalmente (A.J. Greimas, J. Kristeva, U. Eco, etc.) mas também nos Estados Unidos (C.S. Pierce). Tratava-se antes de uma aventura conceptual que se realizava além ou aquém das especificidades epistemológicas. Estas, de fato, não impediam as migrações dos conceitos dum campo teórico para outro ou a aproximação de teorias incompatíveis. E, parece, somente nos últimos cinco anos que a delimitação do campo semiótico se fez mais nitidamente. E esta se deu através dos intercâmbios materiais e intelectuais, acrescidos pela intensidade das comunicações. Existem hoje grupos organizados em tomo dos diferentes códigos teóricos e metodológicos. De fato, as teorias semióticas e/ou semiológicas partilham os espaços universitários (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Paraíba, Paraná, Brasília) e disputam faculdades, departamentos, centras e associações. A Associação Brasileira de Semiótica, fundada em 1974, está dividida em associações regionais, cada uma tendo projetos de pesquisa diversificados.
23Integrados aos curricula de licenciatura, de 2° ou 3° ciclo, ou beneficiando de um estatuto disciplinar privilegiado – como é o caso na Universidade Católica de São Paulo, em que se pode preparar um mestrado ou um doutorado em comunicação e semiótica – este campo de saber visa uma panoplia de objetos verbais e não-verbais, que se desenvolvem num quadro interdisciplinar, mais precisamente, no quadro de programas de linguística, teoria literária, ciências da comunicação, etc.
24Por outra lado, o diálogo entre esses pesquisadores que se deslocam no interior do Brasil de um Estado a outra para comunicar as suas experiências e os seus resultados, os intercâmbios internacionais, principalmente com pesquisadores franceses e americanos que organizam seminários nas diferentes universidades brasileiras, estão na origem do desenvolvimento desta disciplina nos últimos anos. Importantes pesquisas estão em andamento e testemunham o desenvolvimento e o estado da riqueza atual da disciplina.
25Fiel à orieritação francesa para a apreensão científica dos objetos socio-culturais, a Universidade de São Paulo, o Centra de Estudos Semióticos de Araraquara e seus pesquisadores se dedicam à análise dos discursos sociais, investindo o projeto de uma semiótica geral, contribuindo por isso para a sua realização.
26O confronto dos modelos teórico-semióticos com as alteridades representadas pelos diversos materiais socio-culturais que esses pesquisadores elegem, visando a sua apreensão e descrição, pode permitir que a estranheza opere, deslocando os limites do formalismo, no intento de reajustar e/ou fazer progredir o projeto semiótico. Concentrando as suas preocupações nos diferentes textos da cultura brasileira, «os valores dos grupos (...), as visões do mundo de uma sociedade de classes, os traços e as marcas de uma ou várias culturas»8, a pesquisa não despertará aquilo que Michel de Certeau chamou de suspeita epistemológica? Ainda que o modelo semiótico seja considerado como capaz de se construir independentemente de uma perspectiva social e histórica, ele não é inteiramente alheio a esta presença do outro, susceptível de deslocar certos presupostos, restituindo-lhe o seu futuro.
Conclusão
27Além das imagens que elas se destinam respectivamente, o futuro de cada sociedade, mas também de cada domínio de pesquisa, é indissociável de sua interação com o outro: outro prévio, verdadeiro, enigmático, ligado à contingência, que sem ser instaurado comanda o campo que ele inaugura ou desloca.
28Isto é, o confronto recíproco dos produtos imaginários entre sociedades tem um sentido na medida em que, e se, ele permite dar conta de maneira como cada uma, num domínio preciso da atividade humana e social, considera a sua interação com o outro. Além da simples constatação da existência e da forma desses produtos imaginários, coloca-se a questão da constituição de um domínio, de um espaço, de um campo, de uma sociedade. Constituição que está relacionada com a inscrição da diferença que, no seio das identidades, opera sobre a sua afirmação, deslocando-as e condenando-as a uma descontinuidade permanente.
Notes de bas de page
1 C. Lévi-Strauss. Tristes tropiques, Paris, Plon, 1955, p. 114.
2 Tristes tropiques, p. 18.
3 p. 50.
4 p. 104.
5 Antropologia estrutural, Paris, Plon, 1974, p. 79.
6 p. 60.
7 Vou me inspirar, no decorrer desta intervenção, no trabalho que Maria Lúcia Santaella Braga, Presidente da Associação Brasileira de Semiótica, apresentou no 3° Congresso Internacional de Semiótica na Universidade de Rosário (Argentina), cujo título era «A semiótica no Brasil» assim como sobre A Pesquisa semiótica na América Latina que Diana Luz Pessoa de Barros, Presidente do Centra de Estudos Semióticos de Araraquara, expôs durante o mesmo Congresso, realizado em 1987.
8 Diana Luz Pessoa de Barros, op. cit., p. IV. (texto datilografado).
Auteur
Universidade do Porto (Portugal). Presidente da Associação Portuguesa de Semiótica.
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