A imagem do outro
p. 31-35
Texte intégral
1Nosso colóquio é inédito. Um de seus atrativos reside nesta originalidade. Entretanto, o sentimento que o inspira é clássico. Amigos de um país estrangeiro, aficionados, especialistas, responsáveis... constatam que este é desconhecido, se afligem com isso: como aceitar tal ignorância, como deixar circular tais clichês, verdades tão cruelmente seletivas e parciais, tais erros, imagens aparentemente simples, falaciosas, e que podemos julgar perigosas? Então, aqueles que desfrutam de familiaridade e simpatia por aquele país, pensam que é preciso fazer alguma coisa. Não existe nada de mais apropriado, de mais espontaneamente adequado do que analisar as fraquezas e as falhas desta imagem do Outro, tanto no ensino e na informaçâo quanto no consumo cultural e ideológico; ou do que suspeitar seus efeitos perversos mais diretos, e pedir que seja substituída por outra imagem melhor, da qual se esperam, por sua vez, efeitos benéficos.
2Nosso colóquio estuda as imagens recíprocas da França e do Brasil. É uma tarefa importante e oportuna, e o programa demonstra que vai cumpri-la com acuidade, determinação e abertura de espírito. Meu papel, hoje de manhã, nesta comunicação preliminar, é de inteira cumplicidade com as demais comunicações a serem apresentadas, mesmo se o tom de minha intervenção pode parecer bem geral e algo defasado. As boas intenções merecem a homenagem de alguma lucidez.
3Em nome do realismo, e sem pretender ser original, gostaria de situar as condições em que se constrói, se move e se emprega a imagem do Outro.
4Minha primeira pergunta será a mais leve, menos literária, no entanto, do que se possa parecer. O propósito é fazer com que se ame, ou dar a conhecer o Brasil na França, a França no Brasil? Chamfort assim falava das mulheres: que é preciso escolher entre conhecê-las ou amá-las. Deixemos à psicologia galante esta preocupação «sexocentrada» e sem dúvida pertinente, para guardarmos apenas sua intuição geral. A escolha entre amar ou conhecer não é absoluta, mas existe. O conhecimento não acarreta necessariamente o amor, ou simplesmente a simpatia, mas de certa forma pode domá-los, canalizá-los, mantê-los à distância ou inibi-los. O amor não torna realmente cego, mas é diabolicamente seletivo.
5Diante da decepção que provoca em nós a difusão de «más» imagens do Brasil na França, pode-se reagir de várias maneiras: como é? uma simpatia tão mal esclarecida? ou então, o que vale um conhecimento de tão fria erudição? Na verdade, simpatia e conhecimento podem também ser postos a serviço um do outro. Porém, o mais lastimável é a situação em que se conjugam erro e antipatia. De fato, aquilo que, para resumir, chamo de estratégias pedagógicas, pode implicar duas posturas diferentes: que o conhecimento procura ser um quadro completo e coerente, enquanto a simpatia é subjetiva e seletiva; e que, se aqueles que sabem mais ou melhor podem se dar ao luxo, até certo ponto, de dar uma lição aos que sabem menos ou mal, não se pode ter a pretensão de administrar os amores de outrem. Deixa-se a cada qual sua capacidade seletiva, por mais estranhos ou desajeitados que possam nos parecer seus caprichos.
6Minha segunda observação visa a alertar contra uma tentação amplamente difundida: a de fazer uma leitura e uma interpretação demasiadamente diretas dos conteúdos dos manuais, das mensagens dos massmídias, das observações de comportamentos, das respostas a questionários... e a de proceder à substituição excessivamente direta por outros conteúdos, a fim de separar o joio do trigo; em suma escolher a denúncia e o ataque frontal dos conteúdos julgados «maus».
7Existe aí uma ilusão de ótica. Nos, adultos, intelectuais, pessoas engajadas política ou culturalmente... vemos nesses materiais que lemos em bloco uma coerência ideológica, e avaliamos sua perversidade à luz de problemas que temos em mente, e que sentimos no final de nossa própria trajetória ideológica e em função de nossa atualidade. Mas transportames tudo isso para nosso material, através de nossos modelos de análise.
8O material é neutro por natureza, e é quem o recebe e o manipula que lhe dá sentido, em função de sua bagagem, de seu itinerário e das implicações que sente. Estudar e compreender é relacionar o Novo com aquilo que já sabemos, já somos e já pensamos, e darmos nós mesmos sentido à novidade. O ensino não é a «transmissão» de conhecimentos apreensíveis de um único modo, pede-lhes também o aprendizado e a apropriação. A sociologia da cultura nos mostra hoje que o consumo cultural é um tipo de produção, um «re-trabalho» sobre o que os autores e os produtores pensaram e quiseram, o que é desconcertante e frustrante, de início, para o autor, o cientista, o professor ou o jornalista; mas no fundo, quem sabe, um alívio – é a ditadura tranquila dos especialistas que deveria nos arrepiar. As representações e a bagagem afetiva e cognitiva de cada um determinam a recepção de tudo o que circula. E sendo assim, deveríamos sem mais nem menos visar a substituir as «más» imagens pelas boas, ou antes buscar as razões e os usos de tais imagens?
9As «más» imagens não ocupam o lugar que a ciência ou os técnicos teriam tido a imprudência de deixar vazio. Têm recursos próprios, origens e implicações que é tão útil conhecer quanto os seus conteúdos.
10As imagens do Outro – e será minha terceira observação – não resultam todas do presente, nem do próprio lugar onde podemos surpreendê-las. Imagens passionais, senhas, esquemas, idéias obsessivas, pensamentos crispados, objetos... sobrevivem de relações passadas, reais ou fantasiadas entre nossa sociedade e a do Outro, e voltam dando sinal de vida sempre e sempre, para espanto de nossa lógica e de nosso conhecimento metodicamente construído. Há alguns anos, em Marselha, um colóquio se propôs estudar a presença, entre nos, de um Egito formado de signos muito diversos provenientes de uma sequência de imaginários mais ou menos antigos. O grande germanista Robert Minder dedicou-se a estudar as imagens afetivas da história alemã na França e da história francesa na Alemanha, e a recolher anedotas e objetos derrisórios em flagrante delito de pregnância bem mais forte e durável do que os conhecimentos fundados na dignidade. O recente e belo livro de Jean-Paul Duviols nos transporta à América hispânica vista e sonhada pelos europeus durante três séculos. Michèle Duchet e uma equipe do CNRS nos revelam que as gravuras de Théodore de Bry imprimiram, durante varias gerações, a imagem européia do selvagem americano. O inventário eficaz da imagem do Outro, portanto, pode utilmente pegar o caminho de uma arqueologia imprevisível da lembrança e de uma genealogia dos esquemas afetivos e intelectuais, pelo menos tanto quanto o caminho de uma revista analítica do presente. Alías, este colóquio o previu deliberadamente.
11Um ponto capital fornecerá a minha última observação: representar-se o Outro é frequente e fundamentalmente falar de si de uma outra maneira. Elege-se ou inventa-se, no Outro, aquilo que contrasta ou se assemelha, conforme o quanto gratifique. O Outro incomoda, visto ser diferente, é preciso reduzi-lo, domesticá-lo, dar-lhe um lugar e um papel; deciframo-lo através da imagem ideal de si. Ao defini-lo, definimo-nos e colocamo-nos nos mesmos. Nem as imagens positivas do Outro nem as negativas fogem a este mecanismo, e existe sempre um interesse, mesmo se desinteressado, em conhecer o Outro tal como decidimos conhecê-lo – sem dúvida, até mesmo em ciência.
12É humano cultivar assim sua própria identidade. Em nada peço que se repudie um comportamento tão profundamente enraízado. Quero somente chamar a atenção dos que desejam ser realistas para uma consequência ineluctável: quem quiser manter à distância as representações míticas do Outro, em favor de um melhor conhecimento, deve, em vez de retificar a imagem simplificada do Outro, construir uma maneira menos condescendente de cultivar a própria imagem, uma relação mais exigente, menos infantil, menos gratificante, talvez, com sua própria identidade. Neste sentido, melhorar o modo de usar a imagem do Brasil na França poderia ser, primeiro, melhorar o modo de usar a imagem da França e vice versa.
13Finalmente, o que se pode, fazer, então, trente a esta ambição geral de promover uma melhor imagem do Outro – Brasileiro, mas também Mexicano, Alemão, Belga, Malgache ou Chinês...? Sugeriria três vias.
141. o ensino – penso em particular, e por deformação profissional, no ensino da história – dispensa conhecimentos já organizados e construídos, «conteúdos» como se diz de maneira não muito feliz nas reflexões sobre o ensino. É necessário e sábio. Mas este ensino poderia ser, para qualquer tempo, lugar e grupo ensinados, um terreno de exercícios que desenvolvesse uma domesticação progressiva dos rudimentos de um pensar histórico: especialmente um jogo sobre as categorias do Mesmo, de Semelhante e do Outro, profundidade dos tempos e diversidade cultural das sociedades humanas, jogo que obriga sempre a conjugar a proximidade e a alteridade.
15Sem instituir necessariamente um ensino da etnologia, com essa etiqueta erudita, nossas disciplinas também poderiam dar deliberadamente oportunidades organizadas para se observar outras culturas, mostrando que são inteligíveis em si mesmas, e não por referência às nossas próprias idéias. Contra o ritual que consiste em se olhar olhando os outros, simpáticos ou antipáticos, o simples fato de postular que a observação dos outros pode ser uma observação refletida, e de exercitá-la, mesmo de modo primário e com resultados fatuais bem modestos – pode ajudar a combater a tendência a funcionar por estereótipos.
162. Se contemplar o Outro é uma armadilha, e se o diálogo com ele é falso, modo condescendente de falar de si, poderíamos tentar desmontar a armadilha por uma astúcia bem legítima. Ele e eu não estamos sós no mundo; que se introduza então um terceiro que venha confundir-me nas minhas certezas. Um terceiro singular, jogado na conversa, o relato ou o estudo, que sirva de teste, de reativo, de contestação ás gratificações que a reclusão solitária com um único outro garantia neste contexto. Pode-se, deve-se também mobilizar, além de terceiros, uma potência superior, a do conceito, a das referências gerais e dos temas que organizam o nosso pensamento. Um historiador francês, Paul Veyne, tentou, há dez anos atrás, convencer seus colegas de que, se a história continua sendo um inventário das diferenças, a melhor maneira de individualizá-las é reunindo-as em torno do conceito mais geral, em vez de classificá-las por datas.
173. Enfim, para conhecer o Outro, em vez de ouvir os cientistas, os especialistas, os responsáveis pelas definições de uso externo, talvez fosse melhor ir ao encontro de expressões que este Outro usa para falar de si, para si, e através das quais diz sua própria identidade? Caminho difícil, pois muitas coisas me escapariam... mas quem sabe... em suas buscas, representações, obsessões e enunciados eu talvez perceba o essencial, nem que seja por tradução. Por exemplo, em sua literatura, em sua historiografia ou ciência social, em que as perguntas sucessivas não serão menos interessantes do que as respostas sucessivas.
18Quis com isto dizer que nossas imagens presentes remetem ao seu próprio mecanismo e muito à história, esta gestação racional do «imaginário retrospectivo» (expressão usada por Albert d’Haenens); que a história é o que aconteceu mas também o que foi imaginado e não menos real do que existiu «objetivamente». E acrescento que mobilizamos e pensamos melhor esta história quando a construímos para pensar as nossas próprias iniciativas e projetos. A história deveria ser mais reconhecida como uma disciplina feita para o future. A verdadeira questão, aqui, é a de nossas intenções.
Bibliographie
NOTAS
Michele DUCHET (so a dir. de), L’Amérique de Théodore de Bry, Paris, CNRS, 1987. Jean-Paul DUVIOLS, L’Amérique espagnole vue et rêvée, Paris, Promodis, 1985.
Robert ILBERT et Philippe JOUTARD (editado por), Le miroir égyptien, Marseille, J. Laffitte, Le Quai, 1984.
Robert MINDER, Remarques sur les images affectives de l’histoire franco-allemande et Manuels d’histoire et inconscient collectif, textos escolhidos em l'Allemagne d’aujourd’hui, suplemento ao vol. 79,1982, «La pensée vivante d’un humaniste», Robert Minder.
Paul VEYNE, L’inventaire des différences, Paris, Seuil, 1974.
Auteur
Professor na Universidade de Paris VII.
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