Capítulo 10. Estrangeiros e nativos na universidade. Uma abordagem interacionista
p. 143-153
Texte intégral
Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela.
albert camus
Resumen ampliado en español
1Este capítulo se titula «Extranjeros y nativos en la universidad. Un abordaje interaccionista» y presenta algunos elementos para la comprensión del ingreso a la vida universitaria. Conceptualiza ese momento como regido por la transición de la condición de extranjero a la de nativo. Recupera los aportes de dos autores pioneros que inspiraron el interaccionismo simbólico, Alfred Schütz (1899-1959) y Georg Simmel (1858-1918) en torno a la noción de lo extranjero para problematizar los procesos psicológicos, antropológicos y sociológicos que actúan cuando un o una joven decide vivir la aventura académica.
2En Brasil, un país de reciente tradición universitaria, la universidad se ha reservado para la producción y difusión del conocimiento de sus élites como punto de reproducción de su poder económico y social. Recién la primera década del siglo xxi verá, bajo las vehementes protestas de sectores conservadores, la entrada en las universidades públicas brasileñas de jóvenes de familias pobres, negros, indígenas, quilombolas, personas con discapacidad y, más recientemente, personas transgénero. Este movimiento se da, inicialmente, no como una política de gobierno, sino con propuestas aisladas de instituciones que, presionadas por los movimientos sociales, toman la iniciativa de adoptar políticas de cuotas. Finalmente, en 2012 se promulga la denominada Ley de Cuotas, que modificará sustancialmente el panorama de las universidades públicas a través del ingreso de la diversidad étnica, racial, cultural y social representada por estos nuevos estudiantes de educación superior.
3El capítulo propone discutir cómo estos cambios afectaron la vida cotidiana de estas instituciones y cómo se están dando los procesos de afiliación institucional (Coulon, 2008) en este nuevo escenario. Las autoras concluyen que si el estudiante medio atraviesa una etapa de adaptación a la vida universitaria, los y las estudiantes provenientes de segmentos que recientemente accedieron a cursos de educación superior en universidades públicas, profundizan en la condición del extranjero. El tiempo, los espacios, el territorio, el lenguaje, las rutinas, en cada una de estas dimensiones, el hecho de sentirse desplazado de su mundo habitual, de la condición material y cultural en la que vive su vida ordinaria, añade una nueva capa de extrañamiento.
4Convertirse en miembro no es un proceso lineal, sino pleno de contradicciones, interrupciones, avances a velocidades variables. Ser estudiante de educación superior no da lugar a la afiliación automática. Solo cuando comparte significado con otros podemos decir que es «un verdadero miembro» (Strauss, 1999, p.151). Lo que quiere decir que asistir a un grupo no es sinónimo de afiliación, de sentirse miembro. Por ello, sostienen que la reciente entrada de jóvenes de familias sin tradición universitaria a la educación superior brasileña debe ser monitoreada institucionalmente. Algunas universidades públicas han hecho esfuerzos para desarrollar actividades dirigidas a estos estudiantes, pero las iniciativas son tímidas, restringidas a los primeros días en los campus y, en la coyuntura actual, las restricciones presupuestarias impuestas por el gobierno central a las instituciones públicas merman lo que ya había sido construido.
10. 1. Introdução
5Queremos aqui trazer elementos para a compreensão de um momento muito importante da vida de um jovem: a entrada na vida universitária. Um período regido pela transição da condição de estrangeiro para a de nativo. Dois autores precursores, inspiradores do interacionismo simbólico, Alfred Schütz (1899-1959) e Georg Simmel (1858-1918), produziram ensaios sobre o estrangeiro. Fazia parte de sua época a preocupação com populações deslocadas, com a imigração para o novo mundo, que movimentou grandes contingentes populacionais no período em que construíram suas carreiras. Schütz, nascido na Áustria, ele próprio migra para os Estados Unidos onde terminou vivendo e produzindo suas obras. É sobre a ideia do estrangeiro que começaremos a trabalhar esse texto que tem como objetivo discutir, problematizar os processos psicológicos, antropológicos e sociológicos que atuam quando um jovem decide viver a aventura acadêmica.1
6No Brasil, a entrada na vida universitária não é uma escolha romântica como seria no final do século xix, na Alemanha ou na Áustria. País de tradição universitária recente reservou este espaço de produção e difusão do conhecimento para suas elites, como ponto de reprodução de seu poder econômico e social.2 Apenas a primeira década do século xxi assistirá, sob os protestos veementes de segmentos conservadores, à entrada nas universidades públicas brasileiras de jovens oriundos de famílias sem recursos, negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e, mais recentemente, de pessoas transgênero. Essa movimentação ocorre, inicialmente, não como política de governo, mas com iniciativas isoladas de instituições que, pressionadas pelos movimentos sociais, tomam a iniciativa de adotar políticas de cotas. Finalmente, em 2012, é promulgada a chamada Lei de Cotas,3 que modificará, substancialmente, a paisagem das universidades públicas pela entrada da diversidade étnica, racial, cultural e social representada por esses novos estudantes do ensino superior.
7O que importa discutir é como essas mudanças afetaram o cotidiano dessas instituições e como os processos de afiliação (Coulon, 2008) estão acontecendo nesse novo cenário. No próximo ano, 2023, a Lei de Cotas será avaliada na intenção de saber se ela cumpriu sua missão democratizadora e poderá ser desativada ou se ainda será necessária sua continuidade.4 Na atual configuração política do Brasil, o campo democrático teme pela interrupção desse dispositivo legal, promulgado, tardiamente, como política de governo. A reserva de vagas para segmentos alijados do ensino superior pode estar vivendo seu final.5
10. 2. O interacionismo simbólico e a ideia do estrangeiro
8Considerado como a segunda Escola de Chicago, o interacionismo simbólico é uma vertente teórica situada no cruzamento da sociologia, da sntropologia e da psicologia. Embora seu uso ainda seja tímido entre nós, essa teoria apresenta inúmeras possibilidades para a pesquisa em ciências humanas, na medida que acentua o papel do ator, da significação e da subjetividade em contraposição ao uso das noções correntes de sistema, estrutura e objetividade (Le Breton, 2004). Fazendo parte do que se convencionou chamar abordagem compreensiva não é, entretanto, de fácil entendimento, pois «a noção de interação simbólica ... tem muitos significados diferentes, uma série de nuanças que podem enganar» (Becker, 1996, p.186). Na compreensão desse autor uma das ideias mais importantes é a de que a organização social «consiste apenas em pessoas que fazem as mesmas coisas juntas, de maneira muito semelhante, durante muito tempo. Ou seja, para nós a unidade básica de estudo era a interação social, pessoas que se reúnem para fazer coisas em comum» (Becker, 1996. p. 186).
9Os autores interacionistas partilham a ideia de que a realidade social não se impõe aos indivíduos ou grupos,6 «sendo permanentemente modelada e reconstruída pelos atores ao longo e no interior de processos de interação» (Sampaio e Santos, 2009, p. 91). Interpretar é dar sentido a uma ação, a partir de George H. Mead, um dos pesquisadores mais influentes dessa corrente de pensamento. Mas, os autores que aqui privilegiamos, Schütz, um fenomenólogo, e Simmel, um sociólogo de primeira hora, que dedicaram sua atenção, entre tantos outros temas, para compreender o mundo da vida de um estrangeiro, aparecem como inspiradores dessa corrente de ideias que se desenvolverá nos Estados Unidos apenas no pós-guerra. Simmel e Schütz são considerados companheiros de estrada de praticamente todos os autores da Escola de Chicago, sejam eles da primeira ou da segunda fase.
10Simmel começa seu ensaio estabelecendo a diferença entre o vagabundo e o estrangeiro: ambos são definidos em relação a um determinado espaço ou território mas, ao contrário do vagabundo, que chega e não tem compromissos nem com o espaço, nem com quem o habita, e vai embora no dia seguinte; o estrangeiro permanece. O vagabundo nunca ultrapassará a ausência de laços que suas idas e vindas provocam.
O estrangeiro não pertence antecipadamente ... A combinação de distância e de proximidade, que toda interação entre humanos prevê, chega, nesse caso, a uma relação cuja formulação mais breve é: para o vagabundo, a distância significa que o próximo está longe, enquanto que para o estrangeiro significa que o longe está próximo. (Simmel, 1999, p. 663)
11O estrangeiro é um elemento do grupo, tanto quanto os pobres e os «inimigos do interior» – um elemento cuja articulação imanente ao grupo implica, ao mesmo tempo, uma exterioridade e um face a face. A rigor, ele é «alguém que não possui chão, não somente no sentido físico que essa palavra indica, como no sentido metafórico» (Simmel, 1999, p. 664).
12Georg Simmel pensa o estrangeiro, como um viajante potencial, alguém que «está fixado num grupo espacialmente determinado ou num grupo cujos limites são semelhantes a limites espaciais» (1999, p. 663). Mas a sua posição neste grupo é essencialmente determinada pelo fato de não ter feito parte desde o início, permitindo o sentimento de estar fora de lugar e de não pertencimento, como corpos deslocados. Para Simmel (2004, p. 664), o estrangeiro é elemento do próprio grupo, alguém que, «por definição, é não possuidor de terras» e é, por esta razão, que é visto e sentido como alguém móvel, que surge repentinamente por meio de um contato específico, mas sem um vínculo estabelecido com nada e com ninguém, em uma espécie de movimento de envolvimento e indiferença.
13Já a finalidade do ensaio de Schütz (1975)
é estudar, no quadro de uma teoria geral da interpretação, a situação típica na qual se encontra um estrangeiro quando ele se esforça para interpretar o modelo cultural do novo grupo social que ele aborda e de se orientar em seu seio. (p. 7)
14Entretanto, Schütz adverte que a sua compreensão, que será declinada ao longo do ensaio, não é restrita à situação de pessoas que chegam a um território que não conhecem. As situações passíveis de adotar essa mesma compreensão simbólica, indicada por ele, são variadas e pertencem ao mundo de todo dia. O que ele pretende é referir-se «à situação de abordagem que precede qualquer ajustamento social e o condiciona desde o início» (Schütz, 1975, p. 9).
15Schütz utiliza a expressão «modelo cultural da vida de um grupo» para designar todos os valores, instituições, sistemas de orientação e de conduta particulares «que caracterizam – ou constituem – cada grupo social num dado momento de sua história» (1975, p. 9). Na sua compreensão, o processo de apropriação desse modelo cultural não é, de forma alguma, homogêneo. O conhecimento daquele que age e pensa no interior do mundo da vida cotidiana «é (1) incoerente, (2) claro apenas parcialmente, e (3) não isento de contradições» (Schütz, 1975, p. 13). O recém-chegado vai precisar, então, conviver com a incerteza, a insegurança, às vezes mesmo com uma espécie de cegueira porque ele ainda não tem ferramentas para ler esse novo mundo onde se encontra. E se ele comete erros de interpretação e conduz sua ação de forma não compatível com as regras que ali funcionam, isso pode lhe custar caro. Será considerado não competente, tosco, parvo talvez.
10. 3. O estrangeiro em terras acadêmicas
16Nesse ponto, vamos situar o nosso estrangeiro: o estudante que chega à universidade pela primeira vez, depois de passar alguns anos de sua vida no espaço do ensino fundamental e do ensino médio.7
17Coulon (2008) pontua, com muita propriedade, a enorme diferença entre o mundo lycéen e o mundo universitário. As regras, o grau de autonomia e supervisão, os horários, a relação com os professores e, acrescentamos, o papel requerido das famílias diferem muito de um cenário para o outro. A ideia corrente de que o ensino médio prepara o jovem para o ensino superior não sobrevive a uma análise mais aprofundada.
18Como exemplo, podemos citar, no caso de escolas brasileiras, como a atividade denominada pesquisa é compreendida nesses dois espaços: quando um estudante do ensino médio é solicitado a pesquisar sobre um tema, esta ação deve ser compreendida como buscar em livros e, atualmente, na internet, o que é dito sobre aquele assunto. O aluno não é advertido que não deve cortar e colar textos que localiza e, muito menos, de que é necessário referenciar sua busca. Se a mesma atitude, aprendida no ensino médio, for reproduzida no espaço acadêmico, ele, certamente, não terá seu trabalho aceito e, a depender do corta e cola que realizou, será acusado de plágio, que é um crime previsto pelo Código Penal Brasileiro, por desrespeito à Lei da Propriedade Intelectual.
19Não há sinalização do início e do final de cada curso, a entrada e a saída da sala de aula é razoavelmente tolerada pelos professores, nunca um diretor de faculdade irá chamar os pais de um estudante para uma conversa porque algum problema de comportamento foi identificado. A relativa liberdade desfrutada pelos estudantes universitários é confrontada com a alta supervisão das escolas em graus anteriores da escolarização.
20Nestes últimos anos, temos realizado pesquisas e orientado estudos de mestrado e doutorado sobre diferentes aspectos da vida e da cultura de estudantes universitários.8 São capítulos de livro e artigos em revistas científicas teses e dissertações que foram elaboradas no âmbito de programas de pós-graduação onde atuamos nas universidades. Além disso, projetos de iniciação cientifica e relatórios de cooperação internacional trataram também de vida universitária, um mundo que parece anódino, rotineiro, sem interesse, como se, nas universidades, apenas uns ensinassem e outros aprendessem... Baseadas nesses trabalhos e apoiadas na compreensão de Kaufmann (1996) sobre o trabalho de suspensão teórica, que resulta da produção de conhecimento em um dado campo, que construímos esse artigo a partir das pesquisas que realizamos ou orientamos, fazendo interlocução com nossa abordagem teórica preferencial, o interacionismo simbólico.
21O que observamos, ao longo desses mais de dez anos de pesquisa nesse campo, diz respeito ao fato de que os estudantes recém-chegados experimentam o sentimento de não pertencimento, traduzido, inicialmente, pelo desinteresse institucional sobre a vida que tinham antes e a cultura que aportam, especialmente quando se trata de estudantes cotistas. Suas narrativas confirmam a necessidade de as instituições de ensino superior levarem em conta suas origens. Além disso, as narrativas expressam que o percurso até sua chegada em um curso universitário se assemelha a uma corrida de obstáculos, experiência totalmente diferente para os herdeiros (Bourdieu e Passeron, 1964). De alguma forma, esses estudantes clamam por justiça cognitiva conceito que, segundo Santos (2005), alia-se e materializa, no seio das universidades, a demanda por justiça social. Sem acesso à palavra, sem que suas histórias possam ser escutadas, sua cultura respeitada e com poder de influenciar seu destino acadêmico, permanecerão corpos que se movimentam em terra estranha. Suas narrativas têm um tom de reivindicação. O que almejam da instituição é que suas vidas sejam consideradas e, especialmente, sejam valorizadas a sua origem e coragem.
22Logo que iniciam o curso, tomam consciência de que ninguém vai fazer nada em seu lugar e que devem se adaptar às contingências dessa nova cultura: administrar o próprio tempo, entender e dominar a etiqueta do relacionamento com os professores e colegas, encontrar uma rotina para dar conta das tarefas e para estudar, aprender a tomar notas úteis para alimentar suas leituras, encontrar um acordo entre a escrita que praticavam antes e a que lhes é exigida agora.
23Entre as exigências acadêmicas, acrescentam-se outras que implicam em mobilização emocional: falar em público, organizar e fazer apresentações, superar diferenças para conseguir trabalhar em grupo e, sobretudo, aprender o valor da dúvida e da pergunta como ferramentas de aprendizagem.
24Narrativas de estudantes indicam como é difícil, no início, orientar-se no campus, localizar as salas de aula onde acontecem as disciplinas em que se matricularam, obter informações ou resolver problemas administrativos junto aos servidores técnicos, entender hierarquias e o funcionamento cotidiano da universidade. Para ter sucesso em suas demandas, devem identificar corretamente as funções, responsabilidades e procedimentos de Departamentos, Colegiados, Congregação, Coordenação Acadêmica, entre outras instâncias administrativas.
25A distância entre as unidades no campus também é causa de problemas pois o desconhecimento do espaço pode render situações difíceis, como matricular-se em disciplinas contíguas que acontecem em unidades distantes umas das outras, que tem como consequência chegar atrasado às aulas ou ser reprovado por faltas porque a chamada já fora feita antes de o estudante chegar. Outra dificuldade relacionada à distância tem a ver com o tempo que o estudante dispensa, diariamente, para chegar à universidade e, depois, retornar à casa. Os estudantes ingressos por ações afirmativas moram, em sua maioria, em bairros periféricos ou outras cidades próximas. Já contabilizamos isso e grande parte deles pode gastar mais de quatro horas diárias com locomoção. O desgaste físico e o cansaço são apontados como condições desfavoráveis e que, dificilmente são levadas em conta pelos professores. E essa condição de jovens periféricos acrescenta outra camada à condição de estrangeiro: o desconhecimento desses bairros onde habitam os segmentos médios e altos da cidade. Os peixes não têm consciência da água: habitam o mundo possível para a sua condição de peixe. Mas, a arquitetura espontânea das periferias onde habitam e o ordenamento dos bairros da cidade onde se situa a universidade contrasta e, muitas vezes, intimida pela ausência de repertório comportamental para que circulem, sentindo-se bem.
26Ainda na dimensão espacial, aparecem as condições de moradia. Não apenas as casas não oferecem privacidade nem lugar dedicado à guarda de livros e outros materiais, como, em bairros populares, por exemplo, em nossa região, escutar música muito alta faz parte da rotina diária, som que invade lares onde as tarefas acadêmicas deveriam ser realizadas com tranquilidade e condição de concentração. Não raro, querelas com o mundo do tráfico eclodem nas comunidades, bloqueando saídas e entradas, impedindo que frequentem as aulas, às vezes, por vários dias.
27Ainda lidam os novos estudantes com a aura do mundo acadêmico que, ignorando suas origens, cita autores sem a necessária contextualização, cuja referência eles desconhecem. Uma estudante, tendo muito escutado acerca de Foucault em várias aulas, imaginava que o autor era um professor da instituição, o qual, algum dia, ela iria conhecer.
28Mas a condição de estrangeiro é espaço para uma manifestação peculiar dos nativos: o trote.9 É assim que é chamada no Brasil, uma espécie de recepção aos calouros comandada por estudantes veteranos que tem suas origens nas universidades medievais, a qual sobrevive até hoje, embora modificado. O que pudemos compreender da literatura consultada refere-se ao fato de que, na chegada, os novos, nossos estrangeiros, são recebidos com práticas que confirmam sua condição de outsiders, que podem se materializar num espectro que pode ir da humilhação à violência. O que mais impressiona é o trote ser admitido pelos novos estudantes como fazendo parte de um ritual de recepção, ainda que outros temam passar pela experiência. O neófito deve reconhecer que não sabe, que está chegando num mundo que desconhece, cujas regras são ditadas do exterior, pelos nativos.
10. 4. À guisa de conclusão
29Apresentamos, neste capítulo, diferentes dimensões do modelo cultural da vida de um grupo específico: os estudantes recém-chegados ao ensino superior. Em muitas dessas situações descritas, temos a forte impressão de que a condição de estrangeiro ganha outra camada e torna-se dupla. Se o estudante comum passa por uma etapa de adaptação a essa nova vida, os estudantes, com origem em segmentos que apenas recentemente tiveram acesso a cursos superiores em universidades públicas, mergulham, mais profundamente, na condição do estrangeiro tão bem descrita por Schütz e Simmel. O tempo, os espaços, o território, a linguagem, as rotinas, em cada uma destas dimensões, o fato de sentir-se deslocado de seu mundo habitual, da condição material e cultural onde vivem suas vidas ordinárias acrescentam uma nova camada de estranhamento. Eles não utilizam a norma culta para se expressar, não usam tênis, mas sandálias rasteiras. O longe que está perto é, a todo momento, reatualizado.
30Descrevendo sua compreensão sobre a afiliação de uma pessoa a um grupo, Strauss (1999) sublinha a importância da linguagem, do desenvolvimento de «sentidos compartilhados» (p. 149) nas interações que estabelecem e que culmina com a afiliação do estrangeiro ao grupo. O que não é, de modo algum, uma noção simples, mas sim, problemática. O fato de tornar-se membro não é um processo linear comportando contradições, interrupções, avanços em velocidades variáveis. Ser estudante do ensino superior não resulta em afiliação automática. Apenas quando ele partilha sentido com outros, podemos afirmar que ele é «um membro de verdade» (Strauss, 1999, p. 151). O que significa dizer que frequentar um grupo não é sinônimo de afiliação, de sentir-se membro. E Strauss (1999) insiste: «o que eu [afirmo] ser o coração da afiliação: ... é seu caráter simbólico» (p. 153).
31Pensamos que a entrada recente de jovens de famílias sem tradição universitária ao ensino superior brasileiro deveria ser acompanhada institucionalmente. Algumas universidades públicas têm empreendido esforços para desenvolver atividades voltadas para esses estudantes, mas as iniciativas são tímidas, restritas aos primeiros dias nos campi e, na atual conjuntura, as restrições orçamentárias impostas pelo governo central às instituições públicas fazem minguar o que já havia sido construído. O contingenciamento financeiro efetivamente dificulta, quando não impede, cuidar e acolher os novos estudantes.10 Sonhamos com um tempo em que o estrangeiro que chega em nossos campi tenha lugar seguro para guardar sua bagagem e disposição de escuta e interlocução de seus professores, gestores e colegas.
Bibliographie
Agência Câmara de Notícias. (2021, 29 de setembro). Comissão aprova proposta que transfere de 2022 para 2032 a revisão da Lei de Cotas. https://www.camara.leg.br/noticias/799182-comissao-aprova-proposta-que-transfere-de-2022-para-2032-a-revisao-da-lei-de-cotas
Bourdieu, Pierre y Jean Claude Passeron. (1964). Les Héritiers. Les Éditions de Minuit.
Coulon, Alain. (2008). A Condição de Estudante. edufba.
Kaufmann, Jean-Claude. (1996). L’Entretien Compréhensif. Nathan.
Le Breton, Daniel. (2004). L’ínteractionisme symbolique. Quadrige/ Presses Universitaires de France.
O Estrangeiro (livro). (2022, agosto). Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Estrangeiro_(livro)
Sampaio, Sônia Maria Rocha y Georgina Gonçalves Santos. (2011). O interacionismo simbólico como abordagem teórica aos fenômenos educativos. Revista Tempos e Espaços em Educação, 6, pp. 91-100.
Santos, Boaventura S. (2005). A justiça social vai obrigar a que se comprometa com a justiça cognitiva. Diversa: Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, (8).
Schütz, Alfred. (2003). L’Étranger. Éditions Allia.
Simmel, Georg. (1999). Sociologie. Études sur les formes de la socialisation. Presses Universitaires de France.
Strauss, Anselm. (1999). Espelhos e Máscaras: a busca de identidade. Editora da Universidade de São Paulo.
Notes de bas de page
1 Albert Camus tem, como seu livro mais conhecido, O Estrangeiro. O Senhor Meursault, o protagonista do romance, seria, segundo nossa compreensão, um estrangeiro de dentro, um estranho de si mesmo, bem ao gosto da filosofia do absurdo. Diz o autor sobre sua obra, em janeiro de 1955: «Eu resumi O Estrangeiro há muito tempo, com uma observação que admito ser altamente paradoxal: “Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte”. Só quis dizer que o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo» [grifo nosso] (Wikipedia, 2022).
2 Nossas primeiras universidades datam das primeiras décadas do século xx.
3 A Lei 12.711/2012, sancionada em agosto de ste ano, garante a reserva de 50 % das matrículas nas universidades públicas e institutos federais de educação, ciência e tecnologia para alunos oriundos integralmente do ensino médio público. Recomenda a lei que cada instituição respeite a distribuição regional de populações discriminadas conforme previsto pelo último censo demográfico.
4 Atualmente, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que altera para 2032 a data da avaliação da Lei de Cotas. O projeto já passou pela Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e segue para ser examinado pelas Comissões de Direitos Humanos e Minorias, de Educação e de Constituição, Justiça e Cidadania (Agência Câmara de Notícias, 2021).
5 Pesquisadores de grandes universidades brasileiras estão associados para apresentar dados sobre estudantes cotistas, ao longo desses dez anos, que permitam à sociedade compreender o alcance desta lei e a necessidade da sua continuidade.
6 George Hebert Mead, o jornalista Robert Park, Hebert Blumer, Evert Hughes, Howard Becker, Anselm Strauss, William Foote White, Erving Goffman e Daniel Glaser.
7 A estrutura do sistema de educação no Brasil está organizada em dois níveis: o primeiro nível é a educação básica, subdividida em educação infantil (creche), com duração de quatro anos; pré-escola, com duração de três anos, destinada para crianças entre 4 a 6 anos de idade, e ensino fundamental, do 1º ao 9º ano, ou seja, com duração de nove anos. O ensino fundamental I, do 1º ao 5º ano, é destinado para crianças entre 6 a 10 anos. A segunda parte do ensino fundamental, o fundamental II, acontece entre o 6º e o 9º ano, e é destinado a adolescentes entre 11 a 14 anos. A educação básica também é constituída pelo ensino médio, com duração de três anos, destinado a jovens entre 15 a 17 anos. O segundo nível é a educação superior.
8 Esses trabalhos foram desenvolvidos no ambiente do grupo de pesquisa Observatório da Vida Estudantil (ove) cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa do Ministério da Educação do Brasil. Os livros publicados, as dissertações e teses concluídas se encontram disponíveis no Repositório Institucional da Universidade Federal da Bahia.
Instagram ove: @oveufba
ri ufba: https://repositorio.ufba.br
9 A palavra trote remete à necessária domesticação de cavalos para que realizem com maestria esse passo, em escolas de equitação.
10 Recentemente a Universidade Federal da Bahia (ufba) foi obrigada a reduzir, para quase a metade, o valor das bolsas de permanência voltadas para os estudantes vulneráveis.
Auteurs
Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton. Bahía, Brasil.
Es profesor del Instituto de Humanidades, Artes y Ciencias de la Universidad Federal de Bahía. Trabaja en el campo de la vida y la cultura de los estudiantes de educación superior y coordina el grupo de investigación del observatorio de vida estudiantil. Es profesor de programas de posgrado en psicología y estudios interdisciplinarios en la universidad. Se desempeña en el Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador de Bahía, Brasil.
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras. Bahia, Brasil.
Es doctora en Ciencias de la Educación por la Universidad de París VIII, Francia. Es profesora asociada de la Universidad Federal del Recôncavo da Bahia, UFRB, donde dirigió el Centro de Artes, Humanidades y Letras entre 2011 y 2015 y fue vicerrectora de la misma universidad entre 2011-2015 y 2015-2019. Es profesor del Programa de Posgrado en Estudios Interdisciplinarios de la Universidad, EISU de la Universidad Federal de Bahía y del Programa de Posgrado en Políticas Sociales y Territorio de la Universidad Federal de Recôncavo. Se desempeña en el Centro de Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas, Brasil.
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