Capítulo 3 – O municiamento da campanha
Texte intégral
1Concebido o PTC em moldes de cobertura nacional, mas depois reajustado ao território continental, pensado e definido o funcionamento geral da grande campanha que se pretendia levar a cabo, activadas as estruturas de apoio logístico, havia que concentrar esforços no alistamento, selecção, treino e municiamento dos jovens que integrariam os pequenos destacamentos autónomos, cuja missão consistia em empreender uma ampla operação de dispersão pelo terreno português.
2Ao encontro do povo seria a senha mais apropriada para explicar idealmente o que se estava planeando. Assentar arraiais, estabelecer laços pacíficos com as populações abordadas, ganhar-lhes alguma confiança, persistir no contacto, infiltrar-se no universo, cujo nome de código era a cultura popular, capturar boas presas. Esta a expectativa de incidência etnográfica que imperava no centro de operações instalado em Lisboa.
3Sendo o grande objectivo uma auscultação do campesinato, havia que iniciar os futuros brigadistas na teoria e no método adequados. A experiência de campo adquirida por Michel Giacometti nos quinze anos anteriores foi a peça-chave que deu originalidade e feição própria ao PTC. O conhecimento do terreno para onde seriam despachados os jovens voluntários baseava-se, por certo, na existência duma rede considerável de informantes, consolidada e cimentada em inúmeros casos por repetidas visitas ao longo do tempo. Será lícito deduzir que nenhuma das localidades previstas nos esboços de distribuição das equipas pelos distritos continentais era desconhecida de M. Giacometti. Daqui resulta um facto importante: as equipas lançadas pelo País tinham como tarefa descobrir elas próprias o povo, mas como missão confirmar o conhecimento que outros dispunham das realidades da vida camponesa. Uma vez instaladas, as brigadas iriam actuar de acordo com uma série de informações, orientações e instruções. Torna-se importante analisá-las em pormenor.
4Vimos como os dias dedicados ao curso equivaleram a uma recruta aligeirada. Os responsáveis preocuparam-se mais com a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento de dinâmicas de grupo. Não se tratou de uma lavagem ao cérebro com teorias, correntes, métodos e aproximações discutidos nos grandes manuais da ciência antropológica ou etnológica. Os materiais escritos preparados apontam para o confronto com uma prática, em que se especula na espontaneidade adolescente, na curiosidade pelo desconhecido, na vontade dum bom desempenho. Assim se explica a redacção sucinta, esquemática, própria para consulta perante o enigma inesperadamente encontrado no terreno. Não se pretendia elaborar materiais de estudo.
5Outro elemento perceptível tem a ver com a diferenciação cultural, empiricamente conhecida do mentor do PTC. Embora não dispondo de experiência profissional, os jovens expedicionários recrutados estavam socialmente acima da maioria das pessoas do povo com quem iriam contactar; como pré-universitários representavam e provavelmente reproduziam atitudes e comportamentos culturais bem diferentes dos universos camponeses que iam defrontar. O seu treino centrou-se, por isso, mais na preparação e motivação para a missão a assumir, do que na reflexão prévia sobre as diferenças que iriam verificar e viver. Há, por conseguinte, a construção de uma linha forte de intervenção, no sentido de apreender e percepcionar clivagens múltiplas então caracterizadoras dos meios não-urbanos. Poder-se-á inferir um pendor para o conhecimento através da acção de recolha e da pesquisa de dados, mais do que o desenvolvimento de uma temática previamente preparada e formulada. A prática desencadeada pelos jovens será mais formativa para eles, do que construtiva para o aprofundamento do conhecimento do universo camponês.
6Distinguem-se na documentação escrita distribuída aos PTCs dois tipos de materiais compilados: a documentação genérica e os inquéritos.
7Vista como conjunto, dela ressalta a capacidade de mobilização e de congregação de esforços alcançada por M. Giacometti. Para além da ideia, não só elabora o enquadramento organizativo e administrativo do plano, como prepara elementos da vertente científica e metodológica. Mas, para surtir efeito, o envolvimento e o empenho pessoais têm de chegar mais longe. É preciso mobilizar mais contributos, a fim de cobrir outras especialidades: desde a elaboração de guias para a recolha de instrumentos musicais ou de literatura popular, à apresentação das bases do cooperativismo. Congregadas estas vontades, houve que reunir os formadores para as diversas sessões de meios-dias.
QUADRO 2. Documentação genérica
DOC. | TÍTULO [nº pp] | AUTOR |
1 | Plano Trabalho e Cultura [5 pp] | Michel Giacometti |
1a | Lista exemplificativa de preços de compra aconselhados, para servir de guia na aquisição de ferramentas e instrumentos de trabalho, utensílios domésticos, objectos e peças relacionadas com o transporte, instrumentos musicais [2 pp] | Michel Giacometti |
2 | Distribuição das Equipas (Junho 1975) [7 pp] | Michel Giacometti |
2a | Normas para a constituição das equipas e sua distribuição pelas áreas de trabalho [1 pp] | Michel Giacometti |
3 | Guia de Inquérito Musical Popular [6 pp] | Michel Giacometti |
7 | Equipa Nº [2 pp] | Michel Giacometti |
8 | Recolha de Literatura Popular (metodologia e exemplos) [16 pp] | Manuel Viegas Guerreiro |
9 | Alguns exemplos de Ferramentas, Instrumentos e Máquinas usados pelo nosso povo na sua luta pela sobrevivência e bem-estar [15 pp] | Michel Giacometti (colaboração de Maria Micaela Soares) |
11 | Pequeno Guia para a Recolha de Instrumentos Musicais Populares [5 pp] | Ernesto Veiga de Oliveira |
15 | Informação Cooperativa [20 pp] | Federação das Cooperativas de Produção |
8A documentação genérica estrutura a organização da campanha em si, pela distribuição dos efectivos adolescentes em equipas que irão assegurar o – espera-se – pleno êxito da grande operação. Não admira o tempo que a isto se dedica. (Documentos 1, 2, 2a, 7). Para além disso, comporta guias para orientar o sentido das recolhas.
9O Guia de Inquérito Musical Popular fornece um calendário abrangendo as festividades cíclicas tendo em conta a sua representação regional e o aspecto vocal e instrumental. Estariam assim os jovens colectores munidos de conhecimentos que lhes permitiria reencontrar no povo o religioso, a diversidade na organização e nas representações do trabalho, o ritual e o político. A concepção desta grelha, destinada a fazer inquirir junto do povo quais as melodias próprias da esfera religiosa, do trabalho ou dos folguedos, parece querer fazer incidir a atenção daqueles que a consultam nos aspectos menos atendidos e divulgados da cultura popular: a crítica à sociedade, a tomada de partido nas grandes contendas em torno de ideais, assim como o realçar das consciências profissionais, assumidas como identidades produzidas. Se tivermos em conta o momento político em que o curso é ministrado aos adolescentes de ambos os sexos, este documento pode ter-lhes aberto uma perspectiva no sentido de não olhar o povo que iam encontrar como um conjunto homogéneo de grupos sociais, incapacitado de reflectir e posicionar-se perante ideais de manutenção ou transformação da sociedade. Entreabre-se uma noção de cultura popular destituída de inércia, porque perspectivada a sua abordagem numa dinâmica histórica.
10Ligado a este domínio, aparece o Pequeno Guia para a Recolha de Instrumentos Musicais Populares, redigido por E. Veiga de Oliveira, que recolhera nos anos sessenta uma colecção de instrumentos musicais (Oliveira 1964, 1982: 8-9).1 Neste apanhado, que sintetiza em esquema os resultados da obra citada, encontra-se exposta a distribuição regional dos instrumentos musicais populares, estando o País dividido em 9 zonas. Uma segunda secção dá conta dos instrumentos para marcar o ritmo e acompanhar a dança; a terceira, são os instrumentos da Semana Santa, Carnaval, Serração da Velha, Assuadas e troças; na quarta, os instrumentos ligados a profissões; na quinta, os instrumentos de passatempo individual; e na sexta, os instrumentos-brinquedos.
11Como se vê, no domínio do vocal e do instrumental, os futuros jovens colectores foram instruídos nos segredos da matéria pelas pessoas que mais tinham batido o terreno português. Nos dois casos, tal verificara-se ao longo da década de sessenta. M. Giacometti dispunha sobretudo de um considerável património composto de registos sonoros. E. Veiga de Oliveira recolhera instrumentos para constituírem uma colecção especializada. Ambos haviam trabalhado em paralelo. Enquanto o primeiro mantinha em sua casa o acervo, onde também figuravam exemplares de instrumentos, o outro trabalhara para enriquecer uma estrutura museológica. Dos PTCs esperava-se algum complemento incidindo sobre uma das duas vertentes desenvolvidas: a expressão musical como acção cultural reveladora de tipos de relações sociais, ou a complementação do acervo instrumental levantado e recolhido, como base material daquela expressão.
12Esta forma de conjugar conhecimentos empíricos não é tão nítida no domínio da literatura oral. A Manuel Viegas Guerreiro coube não só a elaboração do Documento 8, intitulado Recolha de Literatura Popular (Metodologia e exemplos), como de igual modo o esclarecimento dos futuros brigadistas, a chamada de atenção para os modos de procedimento face aos eventuais informantes. A estas questões foi dedicada a tarde de uma quarta-feira, porque a manhã tinha decorrido ao som da explanação das técnicas de pesquisa etnográfica. Refira-se que a inserção desta especialidade, pela colaboração do seu responsável na Universidade de Lisboa, demonstra a ligação de M. Giacometti a este domínio do saber. Estabelece-se assim uma ponte entre o PTC e a esfera académica, na esperança de que a actividade dos jovens possa vir a ser vantajosa para a investigação científica. Adiante se verá que isto viria a suceder.2 Tanto durante aquele Verão Quente, como posteriormente, muitos jovens e curiosos se iniciariam nesta matéria, aproveitando o municiamento preparado para a missão estudantil. Se relativamente aos documentos anteriores se dava a conhecer uma diversidade vocal e instrumental, agora a rapaziada apercebia-se de lógicas da sabedoria popular, cuja recolha e fixação seriam de continuar a aprofundar.
13O associativismo foi outro pendor forte na ideia global do PTC. A concepção do Documento 15, intitulado Informação Cooperativa, conduz-nos à acção prática da permanência no terreno, apresentada aos jovens voluntários. Primeiro, faculta-se o quadro formal para a formação de uma cooperativa, explicitando todos os passos burocráticos através de minutas (escritura, estatutos, registo, inscrições, etc.). Depois aborda-se o conteúdo. Pensa-se em cooperativas operárias de produção, e apresentam-se proposta de fórmulas cooperativas adequadas à situação macroeconómica então vivida. Ao PTC poderia interessar sobretudo o sector agrícola, caracterizando o documento as diferenciações políticas entre os campos do Sul e os do Norte.
14A formulação adoptada como título para o Documento 9 – Alguns exemplos de Ferramentas, Instrumentos e Máquinas usados pelo nosso povo na sua luta pela sobrevivência e bem-estar – é, em si, significativa, pois traduz de feição assumida um conteúdo programático. Sob este ponto de vista formal, os textos anteriormente apresentados e discutidos parecem enquadrados e titulados pela relevância técnico-científica que se pretende alcançar. Da leitura de alguns, ressalta no entanto uma orientação para o empenhamento activo, quer no encaminhamento do olhar, quer no posicionamento político manifestado. Isto havia sido depreendido do Guia de Inquérito Musical Popular (Doc. 3) e, sobretudo na questão do associativismo (Doc. 15).
15Pressentida esta diferença, passemos em revista a matéria exposta.
16Aos colectores são feitas advertências no sentido do respeito da ordem na organização das recolhas em vista. Para que a ficha museográfica (ficha 3 Inq. B) possa ser preenchida "com o máximo rigor", há que observar as técnicas com "precisão absoluta", "recorrer a fontes diversificadas de informação", e "confrontar as mesmas e procurar outras, enquanto subsistirem dúvidas". Chama-se ainda a atenção para o papel dos suportes de informação complementar, que consistem na recolha de todos "os documentos relacionados com o objecto (recibos e facturas de venda e compra, fotografias antigas, textos impressos e manuscritos, etc." Aos adolescentes aconselha-se o registo das "tradições, superstições, contos e anedotas, ditos e provérbios, textos poéticos e cantos que, de qualquer forma, estejam ligados ao objecto ou a uma ou outra das suas partes". Pretende-se um artefacto envolvido numa ou várias leituras. No que respeita ao registo da imagem parada, M. Giacometti enumera as regras: estabelecer a sua escala, mostrando-o em plena manipulação, se possível; cobertura das sequências técnicas em que ele intervém.
17Em seguida, são apresentados utensílios, agrupados por categorias correspondentes a actividades.
18À cabeça (I), enumeram-se as "ferramentas usadas na conservação e aproveitamento da mata, amanho, cultura e preparo da terra", subdividindo-se estas pelas seguintes fases processuais: (1) roçagem e corte da mata, corte e apanha da lenha, corte e poda das árvores, colheita da fruta, fabrico do azeite e do vinho; (2) cava, lavra, destorroamento, carrego do estrume; (3) ceifa e corte do feno; (4) debulha e trilha, limpeza de cereais e carrego da palha, descamisada do milho; (5) o fabrico do azeite e do vinho.
19Seguem-se (II) as "ferramentas usadas na criação e domesticação de animais, pastoreio e fabrico de queijo", que abrangem: (1) a criação e domesticação de animais, (2) o pastoreio e o fabrico do queijo.
20Na categoria (III), figuram as "ferramentas que servem para tirar e transportar água e cortiça, fazer lume, obter sal e mel, apanhar algas, peixe, aves e outros animais, trabalhar pedra e barro, madeira e ferro, preparar linho e lã, fabricar cordas e cestos". Integram-se: (1) a água e o lume, (2) a cortiça e o mel, (3) o sal e as algas, (4) a pesca e a caça, (5) a pedra e o barro, (6) a madeira e o ferro, (7) o linho e a lã, (8) as cordas e os cestos.
21Na última categoria (IV) encontramos os "utensílios e alfaias domésticas, objectos e peças relacionadas com o transporte".3 Subdivididos em: (a) utensílios domésticos, (b) o transporte (tracção animal).
22O esquema engloba para cada alínea uma listagem de objectos, sublinhando-se a incidência regional e as variações de terminologia. Pode-se assim supor, que munidos destas instruções específicas, ao longo da campanha, os jovens colectores recorreram frequentemente a este documento. Em anexo dispunham de algumas notas de fundamentação científica destes critérios adoptados por Michel Giacometti. Eles proporcionam-nos a possibilidade de saber as referências bibliográficas em que se apoiava o mentor do PTC, em termos de abordagem da cultura material.
23No respeitante à parte onde se expõem os ciclos produtivos e as sequências técnicas existentes – ou em vias de extinção – no campesinato português, é mencionada a colaboração que foi prestada e a bibliografia utilizada.4 Trata-se do enquadramento do universo empírico abordado.
24Quanto à inserção teórica, verifica-se uma aproximação baseada na história das técnicas, onde os conceitos e as classificações se centram na comparação da diversidade entendida à escala geral. Numa primeira nota, define-se a técnica, como um conjunto de processos de transformação de matéria(s) e de gestos e rituais, que estabelecem a linguagem. É uma perspectiva sintetizada do manual de J. A. Mauduit.5 Quanto à divisão das técnicas segue-se a elaboração de Marcel Mauss, difundida no seu manual (Mauss 1947). Ao apresentar definições e classificações de instrumentos de trabalho, M. Giacometti apoia-se em autores, como Georges Montandon, e A. Leroi-Gourhan para referir critérios distintos na abordagem ergológica.6 Relativamente a este último trata-se da chamada abordagem dinâmica, dirigida para a classificação dos utensílios segundo o movimento e o seu modo de aplicação.7 Finalmente, aborda-se a noção de ferramenta, instrumento, máquina e indústria. Aqui também transparece a história comparada da técnica, vista na óptica ergológica. Embora as definições sejam extraídas novamente do manual de Marcel Mauss, a inspiração vem de Franz Reuleaux.8 Este remate ao documento permite desde já reconhecer no seu autor a formulação de uma tentativa de apresentar a cultura material num âmbito generalizado e num quadro teórico globalizante. Não sabemos o efeito que isto surtiu junto dos jovens ao longo da campanha. Certamente que os convenceu do saber empírico do povo. Mas de grande utilidade no terreno foi de certeza a compilação da utensilagem por alíneas, o que lhes permitiu uma consulta antes do preenchimento dos talões de aquisição de material etnográfico (Ver Anexo 1).
25Para além da teoria, há a prática. Nas suas incursões etnográficas, os PTCs devem ter com maior frequência olhado para o Documento Anexo 1 (Doc. 1a). Equipara-se a uma cotação de bolsa. Se, por um lado, ainda em Lisboa, alguns devem ter feito contas ao orçamento disponível, receando a respectiva rotura, uma vez lançados na aventura pelas aldeias portuguesas, cedo se aperceberam que a estrela da sorte estava do seu lado. A maioria dos objectos foi oferecida. Muitas equipas devolveram bastante dinheiro desta rúbrica.
26Passada revista à documentação genérica verifica-se que ela continha informação variada, de tipo formativo. Compunha-se de música popular e da ocorrência dos seus trechos mais expressivos ao longo do ciclo anual de festividades; os instrumentos existentes e utilizados; a literatura popular, implicando o registo sonoro e a transcrição de versões provavelmente ainda não arquivadas e tratadas; a realidade do trabalho, apreendida pelas suas representações, nomeadamente a recolha da cultura material; o associativismo ao nível da produção, como programa político tendo em conta o contexto então vivido.
27Do conjunto de matérias e de perspectivas de acção, ressalta o facto de só o documento dedicado à cultura material conter elementos de índole teórica. Na verdade estão simplificados, pois enumeram-se definições e classificações.
QUADRO 3. Documentação do Inquérito A
DOC. | FICHA | TÍTULO [n.º pp] | AUTOR |
4 | 1a | Inf. Doc. Son. Informantes [2 pp] | Michel Giacometti |
5 | 1b | Inf. Doc. Son. Informantes [2 pp] | Michel Giacometti |
6 | 2 | Transcrições [1 pp] | Michel Giacometti |
QUADRO 4. Documentação do Inquérito B
DOC. | FICHA | TÍTULO [n.º pp] | AUTOR |
10 | 3 | Informações Museográficas [2 pp] | Michel Giacometti |
QUADRO 5. Documentação do Inquérito C
DOC. | FICHA | TÍTULO [n.º pp] | AUTOR |
12 | Levantamento das Condições de Saúde. Formulário [15 pp] | Michel Giacometti | |
13 | Medicina Popular e Cautelas Supersticiosas [29 pp] | Michel Giacometti |
28Se até agora nos confrontámos com o municiamento como princípio e necessidade, o restante material era a munição para fogo real. Devia e tinha de seguir na bagagem dos destacamentos de caça à cultura popular. Eles constituiriam a prova do material tomado do Povo, e só esses poderiam passar à posteridade. Um pacote de três inquéritos, implicando o preenchimento de muito papel. Poder-se-á desde já afirmar que a prova a que seriam sujeitos os jovens era de dificuldade acrescida. Além da aceitação por parte das populações não ser um dado previamente adquirido para todas as localidades previstas, também a própria capacidade dos brigadistas constituía uma incógnita. A recolha de tão grande manancial de informação, mais ainda a sua boa arrumação nas cabeças e nos papéis, pressupunha forte motivação e alguma disciplina. Na prática, alguma capacidade em engendrar soluções para uma divisão do trabalho, quer em termos de sexo, quer dos efectivos a distribuir por tarefa. Em devida altura será feito o balanço, mas, como antecipação, diga-se não ter ocorrido naufrágio generalizado das pessoas envolvidas e dos bens adquiridos.
29O Inquérito A foi dedicado à fixação da tradição oral. Numa ficha (Doc. 4) enquadrava(m)-se o(s) informante(s),9 sendo pedida informação bastante pormenorizada: título e género do trecho, circunstâncias da recolha, observações sobre a eventual fonte do informante, seu(s) nome(s) completo(s) e alcunha(s), data de nascimento, naturalidade, estado civil, profissão e grau de instrução, interpretação e formação musical e novamente observações.10 A ficha seguinte (Doc. 6) era a folha onde seria feita a transcrição do registo sonoro. A ligação entre as fichas estava assegurada pelos respectivos cabeçalhos. Aqui deveriam figurar a equipa, o pesquisador ou colector, o nº da cassete, a face, o nº do trecho, assim como a marcação no contador do gravador. Finalmente era solicitada a localidade e a data em que se consumara o acto de recolha. O Doc. 6 chegaria à sede sempre bastante repleto de texto. A fim de evitar posteriores desconsolos, as margens traziam um alerta para as normas fundamentais dos colectivos de produção intelectual. Em letras maiúsculas lê-se:
“Escreve legivelmente para facilitar o trabalho dos camaradas dactilógrafos.”
30Em breve, saberemos que houve equipas esmagadas pela oralidade popular. Mostram-no os desarranjos nos gravadores, os brados à sede, e o envio num caso ou noutro de novos aparelhos, regra geral com mudança de marca. Naquele Verão quente muito som foi devorado.
31No meio desta azáfama contagiando pontualmente inúmeras aldeias portuguesas, onde camponesas e camponeses despejavam saber memorizado para as máquinas devoradoras de som, ligadas a fitas que os expropriariam dos seus autores, os jovens brigadistas olhavam em redor, em busca de objectos. Puxavam de outra folha A4, a ficha museográfica (Doc. 10) e tratavam de reunir os elementos que a sede lhes pedia e o curso lhes tornara mais plausíveis. Para escrever, havia que saber: designação local, antecedendo-a de uma a três fotografias, desenho(s) ou foto(s) e designação das várias partes, local e data da recolha, características socioeconómicas da localidade e particularidades em relação às localidades vizinhas, matéria, técnica de fabrico,11 forma e decoração, função passada e actual, nome do proprietário, profissão, habilitações literárias, idade, observações, usos e crenças. Por fim, as referências: oferta/venda, caderneta nº, talão nº, cassete nº, face, trecho nº, contador do gravador. A terminar este cruzamento de níveis de informação, a indicação relativa às fotos: a caderneta e o nº da(s) foto(s). O avanço por este domínio museográfico equivalia à polivalência de mãos manipulando instrumentos e aparelhos: lápis ou esferográfica, captura de imagens (paradas), observação do objecto a apresar, conversa sedutora com o nativo, discurso legitimador da cobiça trazida. Eventualmente queda para o desenho, ou seja, novamente análise do artefacto. A tudo isto acrescia o gravador para as recolhas sonoras. Consumiam-se metros de rolos fotográficos e gastavam-se pilhas.
32Nem sempre foi possível determinar se os brigadistas estabeleceram ligações entre os inquéritos. Na memória dos indagados, quinze anos passados, esvaneceram-se os pormenores da eficácia das técnicas de captura utilizadas.
33Se as tarefas e o envolvimento previsível aumentavam dia após dia nesta campanha de assédio pacífico ao povo, as responsabilidades também. Haviam trazido nas mochilas — e guardavam agora talvez debaixo das camas, quando as tinham — o Inquérito C (Doc. 12 e 13). Compunha-se de um Levantamento das Condições de Saúde12 e de outro sobre Medicina Popular e Cautelas Supersticiosas.13 Constituíam dois extensos documentos repletos de perguntas, a maioria delas subdivididas em alíneas.
34Em termos concretos, o das condições de saúde implicava que o inquiridor se centrasse na base familiar. Para tal deveria informar-se na Junta de Freguesia ou na Câmara Municipal sobre a situação dos ausentes, porque supostos emigrantes. Depois pedia-se a identificação, com alcunha, do informante para além de outros dados acessórios à identificação (estado civil, situação de parentesco na família inquirida, habilitações literárias, profissão, etc.). O questionário estendia-se por 15 longas páginas dactilografadas em formato A4, abrangendo 60 perguntas, para além dum espaço final de observações. Os PTCs deveriam indagar inúmeros aspectos das infra-estruturas domésticas: a água (6 perguntas, 31 hipóteses de resposta), os melhoramentos mais desejados e a forma de financiamento mais justa, o saneamento, a propriedade, o tratamento dado ao lixo, combate a insectos e a outros animais daninhos (ratos, pulgas, piolhos, formigas, mosquitos, moscas, baratas, percevejos, outros, não sabe, não respondeu, são as respostas possíveis compiladas por alíneas), a assistência médica, as doenças havidas na família naquele ano, vacinação das crianças menores de 12 anos existentes na família, circulação da informação sobre a obrigatoriedade das vacinas (posto de saúde, médico particular, professora, padre, estudante, emigrante que regressou à terra, MFA, vizinho, rádio, televisão, outros, não sabe, não respondeu são as alíneas postas à escolha),14 recurso a remédios caseiros, os animais em casa, cuidados higiénicos que lhes são concedidos — a pergunta nº 27 é dedicada ao combate à raiva. Segue-se a alimentação, com incidência no consumo de carne, peixe, legumes, saladas, fruta, por tipo e forma de aquisição; o leite, o vinho, ovos, queijo. Nesta longa marcha deverá ser solicitada informação sobre a ementa do dia anterior (as alíneas são pequeno almoço, almoço, lanche, jantar, não sabe, não responde). O bloco seguinte de questões aborda a relação com as crianças escolarizadas; depois os efectivos de electrodomésticos disponíveis, a leitura de jornais e de revistas, idas ao cinema (quem e quantas vezes por mês), programas de rádio e de televisão preferidos. Passa-se depois à relação da família com o exterior. Pretende-se saber quem são as pessoas mais queridas da população, o âmbito de convivência dos membros da família. O questionário remata com assuntos mais delicados
“A Senhora faz alguma coisa para evitar os filhos?”
35Na pergunta seguinte, indaga-se o método contraceptivo usado. As interrogações derradeiras poderão ter sido mais melindrosas. O nº 59 tem a ver com a religião da família, a última, a nº 60, com o total mensal da renda familiar. Qualquer outro elemento poderia ser acrescentado pelo inquiridor, pois o nº 61 era um espaço destinado a observações.
36Pela forma como está concebido e apresentado, o formulário sobre as condições de saúde só podia ser tarefa a concretizar pelo lado feminino das equipas; a redacção das perguntas é feita em função duma inquirida, o que é normal, quando se abordam a dada altura aspectos sobre a natalidade.
37Daqui ressaltam dois factos. Primeiro, se tudo corresse no terreno como previsto no plano e no papel, as brigadas estariam logo à partida presas a uma divisão de tarefas ditada pelo sexo; compreensível nesta perspectiva o imperativo imposto logo no início do curso respeitante à distribuição dos jovens pelas brigadas. Segundo, a aplicação do tempo. Não podemos esquecer que era de cerca de 3 semanas o tempo útil disponível para cobrir cada localidade. Assim, pode-se partir da hipótese teórica de que o Inquérito C, no fundo, seria a tarefa inevitável e principal das brigadistas nesta grande missão de encontrar o povo.
38Esta suposição torna-se mais evidente ao analisarmos todo o Inquérito — pelo menos, como foi planeado e elaborado. Não se trata aqui tanto de proceder a uma tentativa de crítica interna sobre a sequência e o conteúdo das questões formuladas,15 mas de apreender a lógica que o autor quis introduzir no longo questionário. Ela é explícita na pergunta 17. e)
“Em caso de doença na família, a Senhora procura tratamento:
1.na terra:
a) Santa Casa da Misericórdia
b) posto de saúde da Casa do Povo
c) médico particular
d) farmacêutico
e) benzedor, endireita, bruxo
f) outros
g) não respondeu
1. fora da terra:
h) onde?
i)porquê?”
Surge também na pergunta nº 25
“A Senhora costuma usar remédios caseiros (mezinhas)?
2. Sim
3. Não
4. não sabe
5. não respondeu.”
39Lembra-se ao inquiridor que a resposta positiva "será indicativa de que poderá proceder-se ao inquérito (Doc. 13)". Era a ligação para a recolha de dados sobre Medicina Popular e Cautelas Supersticiosas.
40É diferente a estruturação do questionário sobre esta matéria do saber empírico camponês. As questões estão agrupadas alfabeticamente, começando por Abcessos e adenites (íngua) e terminando nas Verrugas. Ao longo de 28 páginas, estão compiladas 89 entradas temáticas, havendo para cada uma a respectiva contextualização. Vejamos um exemplo:
“Amenorreia (falta de menstruação). Emprega-se chás de erva das sete sangrias ou sargacinha dos montes? Chás de Nêveda? Caldos de galinha preta? É conhecida a quadra popular que se segue?
À sargacinha dos montes
Devo eu obrigações:
Que encobre os meus segredos
Em certas ocasiões.
As folhas de esopa (ensopo) ou nozes de cedro tomadas em chás, em jejum, são utilizadas com fins abortivos? Outros: (...)”
41Resumindo o âmbito de municiamento das brigadas, pode-se afirmar que a guia de marcha emitida aos brigadistas estabelecia a execução destas movimentações articuladas, implicando tanto infiltrações na intimidade camponesa, como incursões por horizontes esvanecidos, em três séries. Cada uma delas corresponderia a uma localidade de permanência.
42Tarefa árdua, concentrada e ampla, esta missão de descobertas em que se lançariam os destacamentos do PTC. Adivinhavam-se rotas nunca antes por eles ou por elas navegadas.
43Nos capítulos que formam a terceira parte foi ensaiada uma ordenação de boa parte dos vestígios deixados pela Missão, que congregou os esforços de mais de uma centena de brigadistas percorrendo o País. Apresentam-se materiais dispersos e variados, mas que incidem sobre um contexto determinado de recolha de cultura popular. Como esta noção é muito abrangente, decidimo-nos por uma abordagem do PTC centrada no subconjunto do seu acervo que nos levou a desvendar a aventura vivida por aqueles adolescentes durante o Verão de 1975: a colecção etnográfica do Museu do Trabalho (Setúbal).
44Perante o avolumar de pistas, testemunhos, deduções, dúvidas e algumas certezas, houve que criar uma grelha para a sua arrumação. É passada revista a cada equipa, tendo em conta as seguintes alíneas: a) o seu raio de acção, b) a sua composição, c) os fragmentos recuperados. É uma inspecção a um estaleiro, onde constantemente se descarregaram materiais de índole muito diversa. Eis o estado de andamento duma escavação inacabada.
Notes de bas de page
1 Pensada para enriquecer a colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, esta encontra-se depositada no Museu Nacional de Etnologia (Lisboa).
2 Posteriormente, o Documento 8 do PTC viria a ser publicado num caderno do FAOJ (1976), tendo sido feita segunda edição. Nela, o autor refere como “casos excepcionais (...) os de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, que, há muitos anos e sem desfalecimentos, se têm aplicado à recolha e estudo de textos literários populares, embora mais voltados para a música regional portuguesa” (Guerreiro 1982: 8).
3 O documento em discussão tem um lapso. Na página 8, há um engano na contagem romana, pois ao ponto III, segue-se o V. A emenda é da responsabilidade dos autores.
4 Colaboração de Maria Micaela R. T. Soares, então na Junta Distrital de Lisboa; no final lê-se: “Para a elaboração do presente Guia de Inquérito, utilizámos, entre outras, as seguintes obras: Etnografia Portuguesa, de José Leite de Vasconcelos; Através dos Campos, de José da Silva Picão; Os Arados Portugueses, de Jorge Dias; Objectos e Alfaias Decoradas, de Fernando Galhano”.
5 Jacques-André Mauduit, especialista de pré-história da África Austral, ligado ao Musée de l'Homme. Publicou, entre outros estudos, um manual de etnografia (Mauduit 1960), em que supomos ter-se apoiado M. Giacometti.
6 Georges Montandon (1879-1944), talvez o único representante do difusionismo, com alguma relevância na história da etnologia em França. A sua principal obra, L´Ólogènese culturelle, Traité d'Ethnologie cyclo-culturelle et d'Ergologie systématique, foi publicada em 1934. Dedicou-se a pesquisas no Extremo Oriente. Marcel Mauss considerava-o um autor a consultar com reservas (Mauss 1947: 38).
7 A. Leroi-Gourhan (1911–1986) é autor de uma vasta e influente obra. Destaca-se Évolution et Techniques, em 2 volumes (1945), e Le Geste et la Parole, também em 2 volumes (1965). Existe tradução portuguesa (Leroi-Gouhran 1980, 1980a, 1984, 1984a). Ao mencionar este especialista do estudo da documentação tecnológica, M. Giacometti certamente tinha em mente uma das obras referidas, naquela altura só acessíveis na edição francesa. Mas o pequeno esquema que introduz no documento para o PTC, para ilustrar o movimento e o modo de aplicação, parece ter sido extraído de outro autor – A. Haudricourt – no texto em que este último cita precisamente o primeiro (ver. Haudricourt 1968: 758). O esquema coincide no seu princípio, notando-se uma adaptação parcial dos exemplos escolhidos. No Documento 9 do PTC foram omitidos os utensílios da etnografia extra-europeia. Embora pouco relevante no contexto em apreço, parece-nos provável que M. Giacometti tivesse consultado demoradamente algumas entradas desta enciclopédia.
8 Franz Reuleaux (1829–1905) foi professor na Universidade de Berlim (1864-96); criticou a indústria alemã durante a Exposição Universal de Filadélfia (1876), por produzir mal e barato. É autor de uma reputada obra sobre teoria das máquinas, intitulada Theoretische Kinematik (1875).
9 O Doc. 5 é, grosso modo, uma repetição do Doc. 4.
10 Esta segunda entrada de informações seria para inserir “dados úteis que dizem respeito ao(s) informantes(s): traços psicológicos salientes, comportamento social (integração na comunidade ou marginalização)”.
11 Na ficha: técnica de publicação. Trata-se obviamente de um lapso de dactilografia.
12 Na contracapa lê-se: “Elaborado pela Escola de Saúde Pública, com base num trabalho de campo do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública de São Paulo (1969), e adaptado por Michel Giacometti para o Plano «Trabalho e Cultura» “.
13 Neste documento refere-se a colaboração prestada por Rosália Heitor Ferreira e, no final: “Formulário elaborado a partir de dados por nós recolhidos em várias localidades, de Norte a Sul do País, ou extraídos das seguintes obras: Tradições Populares de Entre-Douro-e-Minho, por Joaquim Pires de Lima e Fernando Pires de Lima (Barcelos, 1938); Tradições e Usanças Populares, por Alberto V. Braga (Esposende, 1924); Tradições Populares Transtaganas, por A. Thomaz Pires (Eivas, 1927).”
14 A questão das vacinas aparece na pergunta 24. Ao introduzir uma alínea 7 (MFA), pretendia-se provavelmente avaliar a repercussão das Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica espoletadas pela instituição militar.
15 A título exemplificativo refira-se a pergunta nº 44: “Quanto é que a Senhora compra de feijão por semana (ou por mês)?”. Não há questões idênticas sobre o consumo de arroz ou massa, açúcar ou sal.
Auteur
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003