Capítulo 2: O trabalho social e as relações de classe na implementação do Programa Bolsa Família
p. 123-158
Texte intégral
1Este capítulo tem por objetivo evidenciar as fronteiras simbólicas e materiais de classe que estruturam a relação entre as assistentes sociais e as beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF).1 Para isso, vamos começar situando as assistentes sociais no espaço social e, então, descrever as condições objetivas de trabalho que condicionavam a implementação do programa. A ênfase está na visão que as assistentes sociais possuem do PBF e de suas beneficiárias. Em seguida, veremos o ponto de vista das beneficiárias, não apenas no que diz respeito à visão que elas têm do PBF e de seus agentes, mas também nas suas relações mais abrangentes com os indivíduos de classes mais elevadas.
1. Quem são as assistentes sociais? O habitus e o trabalho social
2A fim de fundamentar melhor a análise desenvolvida neste capítulo, é preciso considerar quem são as assistentes sociais e em que consiste o trabalho delas. Esta seção se concentrará em sua origem social e na estrutura do mercado de trabalho na região, e visa reconstituir o contexto social que condiciona suas [representações e suas ações na implementação do PBF. Para isso, utilizaremos o conceito de habitus, tal como definido por Bourdieu (1979), que é um sistema de disposições adquiridas e integradas, amplamente compartilhadas por uma classe, uma categoria ou um grupo que tende a reproduzir os condicionamentos de sua origem. É gerador e princípio unificador das práticas, e unifica um grupo de indivíduos compartilhando condições homogêneas de existência através de práticas similares (ibid.: 112).
3 Nossa análise do habitus das assistentes sociais é fundamentada no trabalho de Jeannine Verdès-Leroux (1978), que desenvolveu um estudo sobre o trabalho social na França. Seguimos a sua abordagem, que consiste em “conectar as características genéricas dos agentes à natureza das operações que eles efetuam” (ibid.: 57). Eis o caminho teórico percorrido pela autora:
Para dar conta do sentido unitário das práticas que são objetivamente atribuídas às funções globais da instituição, questionamos a razão de ser das condutas aos modos de proceder dos agentes, ou seja, usamos a noção de habitus, compreendida como sistema durável e transponível de esquemas de percepção, de apreensão e de ação. Mais especificamente que o pertencimento a uma fração das classes de que é o produto, esse sistema de disposições define o grupo dos agentes que o possuem [...]. Exercida por uma fração dominada, mas objetivamente integrada moral e culturalmente à classe dominante cujo arbitrário cultural e moral reproduz, e dispondo, nos limites de seu mandato, de uma autoridade delegada sobre as camadas dominadas, a ação do trabalho social conduz à questão da legitimidade da intervenção, questão que, se encarada do ponto de vista da população que é seu alvo, leva àquela da violência simbólica necessária à imposição. (Verdès-Leroux 1978: 10)
4 Quando a autora fala das assistentes sociais como “uma fração dominada, mas objetivamente integrada moral e culturalmente à classe dominante”, não podemos compreender isso como uma partilha do habitus com as classes superiores. Para as assistentes sociais estudadas aqui, veremos que a distância social que as separa das classes ricas – notadamente quando consideramos a sociedade brasileira em seu conjunto – é imensa. Entretanto, Verdès-Leroux identifica na ação desse grupo na França a reprodução de registros argumentativos característicos da “classe dominante”. É porque suas ações participam dessa reprodução de valores que podemos dizer que esse grupo é “dominado, mas objetivamente integrado” a essa classe, ou situado “em uma posição subalterna e delegada” a ela (ibid.: 58). A estrutura de classes brasileira apresenta, entretanto, um desafio importante quando aplicamos a teoria de classes de Bourdieu, e mais precisamente no caso das assistentes sociais estudadas aqui. Ao mesmo tempo em que essas pessoas estão muito distantes das classes altas às quais aspiram pertencer, sua posição é igualmente separada por um abismo no qual se encontram as beneficiárias do PBF. Se, por um lado, alcançar as classes dominantes só acontece raramente; por outro lado, o risco de caírem socialmente a ponto de se tornarem beneficiárias do PBF é ainda menos provável.
5 Isso significa que, diferentemente do caso francês, no qual algumas assistentes sociais poderiam ser originárias de classes superiores, a afinidade das assistentes sociais de Angico com aquela classe não é resultado de uma proximidade social, mas, sobretudo, de uma distância ainda maior em relação às classes que são seu objeto de trabalho, as assistidas pelo Estado. Inspirado pelo trabalho de Bourdieu, Jessé Souza (2012) retrabalhou diferentes teorias de classes para o caso brasileiro, notadamente quanto ao caráter simbólico da identificação de classe para além do capital econômico ao qual os indivíduos têm acesso. Utilizando o termo estigmatizante “ralé”, Souza descreveu como as classes mais baixas no Brasil inserem-se na sociedade brasileira como “inúteis e inadaptadas” diante das normas dominantes e das instituições que se percebem como modernas. Uma classe cujo aspecto fundamental é o de não possuir capital econômico nem cultural (Souza 2012). Essa distância simbólica é o que permite às assistentes sociais uma identificação mais automática, ou pelo menos automatizada, com as classes superiores, com as quais elas se sentem mais próximas.
6 A perspectiva de Verdès-Leroux, que acompanhamos neste capítulo, é a de compreender “a adesão pessoal das [assistentes sociais] à visão de mundo dominante” e as consequentes “relações ambíguas no que diz respeito às formas simbólicas de dominação” (ibid.). Procuraremos menos descrever os laços entre as assistentes sociais e uma classe dominante2 do que observar e descrever as suas relações com as beneficiárias do PBF, relações nas quais se expressarão as representações dominantes da pobreza neste grupo.
7 Mesmo que este capítulo não esteja explicitamente interessado na questão de gênero, ela o atravessa: são efetivamente as mulheres as afetadas pelas tensões aqui descritas, e qualquer avaliação de mérito que as beneficiárias do PBF sofrerão será definida pelas nomas de gênero que vão sobrecarregar as mulheres (Piccoli 2014). O mesmo ocorre com a raça, visto que as trabalhadoras sociais eram em sua maioria brancas, enquanto as beneficiárias eram principalmente negras ou mestiças. A distância social que existe entre essas classes e a difícil relação entre elas são reforçadas, ainda, pelos preconceitos raciais, os quais não podem ser ignorados. Consequentemente, as mulheres negras beneficiárias serão antes de tudo submetidas a preconceitos de classe e de origem, e sentirão de modo mais forte o estigma em relação aos pobres. O fato de este livro concentrar-se nas relações de classes não deve ser interpretado como se raça e gênero não fizessem parte da análise. Pelo contrário, ao abordar as relações entre beneficiárias e assistentes sociais e notadamente a forma como os indivíduos mobilizam mais essas categorias em vez de outras, o livro propõe um ângulo de abordagem para o estudo das desigualdades sociais da sociedade brasileira, cujas desigualdades de gênero e de raça são nela centrais.
1.1 Acesso aos cargos e conformação ao habitus do grupo
8Para compreender o habitus deste grupo específico – as assistentes sociais de Angico –, é importante considerar as condições de acesso ao emprego. Sendo a cidade mais importante da sua região, Angico é o principal destino para os jovens da região que desejam acessar o ensino superior nos estabelecimentos privados ou públicos. Via de regra, as instituições públicas de ensino superior no Brasil são mais reputadas e são gratuitas; as instituições privadas, pagas e menos reputadas, tornaram-se uma opção bastante popular para os jovens de classes menos elevadas graças a um programa federal de financiamento público, pelo qual os estudantes podem reembolsar o Estado em condições favoráveis. A graduação em serviço social pode ser cursada em uma das diversas instituições de ensino superior da cidade, que recrutam, a cada ano, cerca de 300 estudantes para este curso, e formam pelo menos uma centena. Em Angico, essa carreira atrai principalmente mulheres jovens de classes médias: oriundas de famílias que possuem um capital cultural (Bourdieu 1980) limitado, mas que se tornaram proprietárias de suas residências e podem pagar por estudos privados dos filhos graças ao trabalho remunerado ou como pequenas empreendedoras autônomas. Não se trata, portanto, de beneficiárias de assistência social e não habitam nos bairros menos favorecidos. Elas são majoritariamente brancas ou mestiças, raramente negras.3 As jovens assistentes sociais que encontrei ainda buscam uma ascensão social pelo emprego público em secretarias municipais de assistência social. Há poucas alternativas para este diploma: as Organizações não Governamentais (ONG) são raras, e em outras secretarias públicas não existem cargos específicos para assistentes sociais. Com exceção de um caso, as experiências profissionais de todas as assistentes sociais entrevistadas ocorreram exclusivamente nas secretarias de assistência social em diferentes municípios da região.
9Sendo as prefeituras quase a única fonte de emprego, trabalhar nelas implica aceitar uma situação de trabalho que está longe do ideal. Na Secretaria Municipal de Assistência Social de Angico, apenas cinco assistentes sociais dentre cerca de oitenta possuem um vínculo de trabalho estável, obtido após um concurso público em 2015, ocupando diferentes posições. Nenhuma das quinze assistentes sociais interrogadas possuiu alguma vez um contrato permanente de trabalho.4 Aquelas que permanecem muito tempo na mesma prefeitura são contratadas ano após ano através de um contrato temporário, o que não lhes oferece nem proteção nem perspectiva de carreira, e nenhum aumento de salário caso não alcancem cargos de coordenação. Antes de completarem doze meses, os seus contratos são interrompidos a fim de romper o vínculo empregatício contínuo que lhes daria direitos na condição de empregadas. No mês seguinte, elas são novamente contratadas com um contrato temporário. Apesar de precário, esse é o único tipo de contrato disponível, e paga mais do que qualquer outro emprego de nível inferior ao qual teriam acesso se não tivessem esse diploma em Serviço Social.
10Contudo, esse amplo grupo de assistentes sociais não é homogêneo em termos de origens sociais, e um contrato precário nem sempre significa uma situação de vida precária. As prefeituras escolhem esse tipo de contrato de trabalho principalmente para manterem a liberdade de empregar as pessoas diretamente ligadas a elas e às suas redes, e como um meio de ampliar estas. Essa é uma forma de “patronagem”, definida como a distribuição de empregos públicos àqueles que contribuíram para a obtenção de votos ou que têm esse potencial (Hilgers 2011: 575). Essa característica da administração pública brasileira é conhecida no Ceará pelo nome de derrubada: a substituição de toda a equipe da prefeitura quando um novo governo local se forma. Essa prática é verificada desde 1870 (Cordeiro 2007). A Constituição de 1988 estabelece que os servidores da administração pública em todos os níveis da federação devem ser recrutados por concursos públicos, mas também permite exceções temporárias.
11A legislação em vigor em Angico durante a realização do estudo (ver Quadro 2.1) abria a possibilidade de contratações sem concursos para cargos "em comissão" e "de confiança", reservados à alta administração e à direção das secretarias e programas. Para qualquer outro caso, a lei prevê o contrato de pessoas para uma duração determinada, para casos de "necessidade temporária e de excepcional interesse público", sem mais detalhes. Esses cargos podem durar no máximo 24 meses e qualquer prorrogação é vedada.
Quadro 2.1. Legislação em vigor sobre a contratação de funcionários públicos
Constituição da República Federativa do Brasil (Emenda Constitucional n.º 19, de 1998)
Art.º 37.º. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...] IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;
Lei Orgânica de Angico, capítulo “Sobre a administração pública"
[…] – A Administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Município, obedece aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:
[...] a investidura em cargo ou emprego público depende da aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos ressalvadas as nomeações para cargos em Comissão declarados em Lei de livre nomeação e exoneração; [...] os cargos em Comissão e as funções de confiança devem ser exercidos, preferencialmente, por servidores ocupantes de cargo de carreira técnica ou profissional, nos casos e condições previstas em Lei; [...] a Lei estabelecerá os cargos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.
Lei Complementar municipal de Angico, “Estatuto dos servidores do poder executivo”
[…] – A contratação de pessoal por tempo determinado da Administração Direta, das autarquias e das fundações públicas municipais, restringir-se-á a atender os casos de necessidade temporária, de excepcional interesse público, nos termos do art.º 37, inciso IX da Constituição Federal e do art.º 18, inciso [...] da Lei Orgânica Municipal.
§ O prazo máximo de contratação temporária de que trata este artigo será por tempo determinado de 24 (vinte e quatro) meses, findo o qual, não poderá haver prorrogação em nenhuma hipótese.
12A ausência de clareza sobre a "necessidade temporária e de excepcional interesse público" permite às prefeituras utilizar esse tipo de contrato. Com exceção dos casos nos quais um perfil técnico é absolutamente requerido, os concursos públicos são raros. Os cargos em comissão e os cargos de confiança são multiplicados ao máximo e os contratos temporários ultrapassam o limite de 24 meses pela interrupção e a retomada esporádica. Para ambos, não há critérios de seleção previstos em lei, já que são "de livre nomeação e exoneração". Assim, esses cargos são geralmente ocupados por aqueles que têm contatos pessoais na prefeitura. Quanto menor for o município, menos serão os cargos disponíveis, o que aumenta a importância da rede pessoal. Nas cidades médias e grandes, como Angico, nem sempre as redes pessoais determinam o acesso a tais cargos. Nas secretarias de assistência social prevê-se que alguns cargos sejam ocupados por agentes que possuem um perfil específico – assistentes sociais ou psicólogas –, o que dificulta sua eventual distribuição a pessoas integrantes da rede pessoal dos eleitos.
13Isso não significa que os concursos públicos serão privilegiados. Os cargos destinados às assistentes sociais também servem para estender a rede de influência e suas ocupantes serão incitadas a tomar partido em campanhas eleitorais, por exemplo, para conservar seus empregos. De todo modo, a rede pessoal desempenha um papel maior no acesso aos cargos mais elevados, “em comissão”, ou de confiança, para os quais não é previsto concurso público, não havendo exigência de qualquer perfil específico para seus ocupantes. A distribuição desses cargos também possui uma função fundamental na manutenção da máquina político-eleitoral:
Ao explorar os recursos públicos para prover cargos que podem ser distribuídos de acordo com critérios políticos, a máquina do partido ganha um meio de manter a coesão e disciplina internas. Os diversos grupos e indivíduos que compõem o Partido estão interligados por recompensas materiais como a patronagem, enquanto esses cargos apoiam o partido com um quadro de trabalhadores políticos que constantemente estão disponíveis para a organização e que responderão aos comandos da liderança. (Scott 1969: 1151)
14Em Angico, cerca da metade das assistentes sociais com quem me deparei no âmbito dessa pesquisa tinham ligações diretas ou indiretas com políticos eleitos, enquanto no caso das pessoas de cargos mais elevados da SAS, nos postos ditos “de confiança”, eram a imensa maioria (fig. 4). De acordo com as informações fornecidas pelas assistentes sociais entrevistadas, todos os cargos de coordenação da secretaria ou de responsáveis por projetos para um grande público – abrangidos pelo que chamamos “proteção social básica”5 – eram ocupados por pessoas “da confiança” do prefeito; isto é, diretamente ligadas (parentes, em geral) ao prefeito ou a alguém próximo dele, podendo ser mobilizadas para fins eleitorais. A distribuição desses cargos funciona como favores pessoais feitos a seus fiéis (e às pessoas próximas) numa lógica paternalista.
15Portanto, os cargos ditos "estratégicos", os mais visíveis e cobiçados, são ocupados por indivíduos das classes superiores, geralmente parentes dos eleitos ou de empresários ligados à vida política, raramente graduados em Serviço Social. As classes altas de uma cidade como Angico não estão entre as mais ricas do país, sendo compostas sobretudo por famílias envolvidas com a política local e por proprietários de estabelecimentos comerciais de importância regional. Indivíduos que fizeram fortuna através de uma profissão liberal (como advogados ou médicos) muitas vezes transitam para a vida política. Mesmo com essa distância material significativa, as elites locais identificam-se ideológica e esteticamente com as elites das grandes capitais (ainda que o inverso seja inimaginável). Isso ocorria no caso do Programa Bolsa Família e do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). A coordenadora do PBF fazia parte do círculo íntimo do prefeito. Ela tinha empresas na própria família que forneciam serviços de infraestrutura para a prefeitura. A coordenadora do CRAS era esposa de um eleito local do mesmo partido do prefeito (que ao final do período da pesquisa foi substituída pela sobrinha de outro político eleito). O exemplo extremo foi observado em dois municípios vizinhos, onde o cargo mais alto da SAS era ocupado na época da pesquisa (2014) pelas esposas dos prefeitos. Colocar a responsabilidade da assistência social nas mãos das primeiras-damas é um fenômeno tradicional no Nordeste, frequente em pequenos municípios6. Esse fenômeno atesta o potencial eleitoral e o caráter de “caridade pessoal” da assistência pública, identificando os serviços de assistência social com a pessoa do prefeito. Além disso, contribuiu para a construção da imagem de que no Brasil a assistência social é uma área feminina, o que é reforçado e refletido pela predominância de mulheres nas profissões assistenciais até os dias atuais.
16Além disso, como apontado anteriormente, os altos funcionários da assistência social muitas vezes vêm de classes mais ricas, porque o acesso a esses cargos lhes é garantido por laços familiares ou por amizade com políticos eleitos. É esperada uma conformidade das pessoas que não fazem parte dessas classes, o que geralmente está de acordo com suas aspirações de ascensão social. Isso vale não apenas para o acesso aos cargos mais altos (coordenadora), mas também para aqueles de assistentes sociais – que estão socialmente muito distantes dos agentes públicos mais precários da SAS, como os técnicos e a equipe administrativa. Para se tornar uma assistente social nesse cenário – o momento em que um indivíduo recém-formado inicia seu primeiro emprego na prefeitura – é necessário, portanto, um ajustamento. Bourdieu explica esse processo de ajustamento como produto dos mecanismos que orientam os indivíduos mais aptos a esses cargos, assumindo a forma de uma “‘vocação’ como adesão antecipada”, ou de uma “cooptação baseada na harmonia imediata das disposições” (1979: 123) aos olhos daqueles que já ocupam esses cargos. Essa adaptação ou predisposição manifesta-se a nível da aparência e do comportamento, que devem corresponder aos das classes superiores. Assim, a formulação do habitus do grupo recebe a influência direta do habitus de uma classe mais elevada, num processo de seleção ou exclusão de pessoas e comportamentos sem nenhum caráter formal.
17Essa configuração faz com que as práticas e a identidade das assistentes sociais estejam fortemente vinculadas às elites locais, visto que é por meio do capital social (vinculações à vida política) que os indivíduos podem continuar e progredir em suas carreiras. É nesse contexto que podemos falar de um habitus não dessa categoria profissional, mas compartilhado por diferentes atores de um campo formado pela superposição entre administração pública e política local. O conceito de habitus, conforme definido por Bourdieu (1979), é um sistema de disposições adquiridas e integradas, amplamente compartilhadas por uma classe, categoria ou grupo, que tende a reproduzir os condicionamentos de sua origem. É o gerador e princípio unificador das práticas, e unifica um grupo de indivíduos que compartilham condições homogêneas de existência, por meio de práticas semelhantes.
18Isso explica a relação entre as características fundamentais das condições econômicas e sociais e as características distintivas associadas à posição correspondente em uma determinada sociedade. Assim, cada posição ou condição de grupo é definida pelo que o diferencia daquilo que não é: “a identidade social se define e se afirma na diferença” (ibid.: 191). Esse processo de "alteridade" é comum aos "pobres" e aos "não pobres": é um processo de demarcação “em que a diferença é traduzida em inferioridade pela aplicação de códigos morais diferenciais a categorias sociais diferentes” (Krumer-Nevo e Benjamin 2010: 695, tradução nossa). Nas secretarias de assistência social de Angico, a linha divisória mais forte é a que separa quem tem e quem não tem formação universitária, que divide os agentes ocupantes de cargos superiores e o pessoal administrativo. As assistentes sociais, independentemente da sua origem social, pertencem ao grupo mais elevado, e devem assim diferenciar-se dos demais. O sinal mais visível de diferenciação entre as duas categorias de funcionários é o vestuário, uma vez que assistentes sociais e altos funcionários não são obrigados a usar uniformes. As assistentes sociais às vezes mantêm relações de amizade com agentes públicos que ocupam um posto inferior, mas essas relações são limitadas a indivíduos oriundos de classes não muito baixas, que não veem os cargos administrativos como correspondentes às suas competências. O técnico mais próximo das assistentes sociais era João, de 26 anos. Não tendo formação superior, João via sua posição como temporária, como algo necessário para o momento, o que lhe dava a possibilidade de pagar estudos complementares. Seu objetivo era sair de Angico por meio de concurso público. Já havia tentado vários processos seletivos, mas sempre sem sucesso, e dizia: "É questão de tempo, vai chegar." Para ele, assim como para muita gente no Brasil, o concurso público era uma forma de ter acesso a um cargo respeitado e bem remunerado sem necessariamente passar por uma formação universitária. Como a concorrência é grande, João dedica suas noites aos estudos, que são seu principal assunto de conversa com as assistentes sociais (e comigo). Suas interações são reservadas a esses momentos, quando ele se junta a elas rapidamente, mesmo durante o horário de trabalho (as assistentes sociais têm mais liberdade para organizar seu tempo, enquanto os demais servidores têm que contar as horas trabalhadas). Assim que um alto funcionário entrava na sala das assistentes sociais, João interrompia a conversa e se retirava. Nas saídas informais organizadas pelas assistentes sociais – nas quais às vezes eu estava presente – João só era convidado se nenhum alto funcionário estivesse presente. Ele me disse que não tinha amigos entre esses funcionários e que as assistentes sociais eram as únicas pessoas próximas que ele tinha no trabalho. Com exceção de outro colega técnico, também não tinha amizades entre a equipe administrativa. Interpreto o fato de as interações entre técnicos e assistentes sociais serem limitadas a momentos em que os superiores não estão presentes como uma estratégia de diferenciação que as assistentes sociais empregam no seu ambiente de trabalho.
19Para concluir, de todos os momentos-chave da formação do habitus das assistentes sociais – dos quais a formação universitária e a aprendizagem das tarefas cotidianas são exemplos – a entrada na instituição é marcante. As redes pessoais dos indivíduos desempenham um papel importante não apenas no ingresso, mas também em suas carreiras na instituição.
1.2. Fronteiras simbólicas entre assistentes sociais e beneficiárias
20A relação entre assistentes sociais e beneficiárias é marcada por fronteiras simbólicas de classe, aqui entendidas da seguinte forma:
Fronteiras simbólicas são as distinções conceituais que fazemos entre objetos, pessoas e práticas. [Elas] constituem um sistema de classificação que define uma hierarquia de grupos e as semelhanças e diferenças entre eles. Geralmente implicam e justificam a hierarquia de valor moral entre indivíduos ou grupos. (Small et al. 2010: 17, tradução nossa)
21Se, por um lado, sinais de distinção são previsíveis dadas as diferenças sociais e materiais extremas que separam esses grupos, sua manifestação deve ser entendida em uma lógica de distinção parcialmente intencional, o que Bourdieu chama de hexis corporal, uma "mitologia política realizada, incorporada, tornada disposição permanente, um modo duradouro de se portar, de falar, de andar e, assim, de sentir e de pensar” (Bourdieu 1980: 117). A hexis corporal segue uma lógica de diferenciação que constrói fronteiras simbólicas determinantes na relação entre assistentes sociais e beneficiárias do PBF.
22É na sua aparência que notamos os primeiros sinais dessas fronteiras. Mesmo que a (ainda fraca) ampliação do acesso aos estudos universitários tenha permitido a existência de assistentes sociais de classes menos abastadas, mas ainda distantes das classes populares visadas pelo PBF, integrar esse grupo requer uma conformação estética. Isso é facilmente visto em sapatos de salto e roupas novas; maquiagem e cabelos arrumados; os acessórios, brincos grandes e pulseiras douradas; iPhones; bolsas de marca. As assistentes sociais, como todos os funcionários públicos, podem usar camisetas fornecidas pela SAS, com logotipos institucionais. Isso é comum entre agentes públicos de nível inferior ao de assistentes sociais, e às vezes até obrigatório, no caso de motoristas ou recepcionistas. Entre elas, o uso desse tipo de uniforme não era comum, assim como entre os agentes públicos de alto escalão, para quem as roupas representam uma oportunidade de exibir sinais distintivos de classe.
23Nenhum esforço para esconder ou não destacar esses sinais distintivos pôde ser observado, com exceção dos momentos em que elas não se sentiam seguras o suficiente para circular com tais signos distintivos, que então se tornaram ostensivos, em determinados locais dos bairros onde trabalhavam. Ao contrário, as assistentes sociais às vezes tendiam a manifestar abertamente certos atributos de sua posição social, por exemplo, quando conversavam sobre compras importantes ou sobre suas viagens à capital na presença de uma ou duas beneficiárias que esperavam na sala por um encontro. Durante as reuniões no escritório do PBF, notámos as diferenças entre os acessórios usados pelas assistentes sociais e os das beneficiárias, que não possuem joias de ouro, bolsas de marca ou óculos escuros, ao contrário das assistentes sociais. Quando as reuniões acontecem em casa (encontros que nunca são anunciados), as beneficiárias estão na esfera doméstica, privada. Elas sempre usam chinelos e roupas simples. Nunca usam maquiagem ou cabelo alisado (que são reservados para ocasiões especiais).
24Nessas relações, as beneficiárias assumem uma postura passiva, com um tom gentil para responder às perguntas feitas e relatar os problemas encontrados. Nos raros momentos em que elas manifestam sua indignação por algum problema com o PBF, as assistentes sociais respondem com incompreensão: "Senhora, o que você está me dizendo não é possível, você se confundiu", diz uma das assistentes sociais a uma beneficiária que descreve as constantes flutuações no valor do seu benefício. Se as beneficiárias se expressam com mais intensidade, as assistentes sociais pedem que eles se controlem, destacando seu poder burocrático: "Nessas condições não posso fazer nada por você, estou aqui para fazer meu trabalho e você deve me respeitar.” A empatia e a amizade das assistentes sociais estão reservadas a um número limitado de beneficiárias: àquelas “que realmente precisam”, “que sofreram muito”, “que estão tentando lutar contra as dificuldades da vida”. É aí, quando vamos além das aparências que marcam essas relações, que encontramos as fronteiras simbólicas mais relevantes para a construção de sua relação enquanto agentes com as beneficiárias da assistência social.
25Para além dessas reuniões, as assistentes sociais e as beneficiárias não se encontram em outros contextos, pois não moram nos mesmos bairros ou frequentam os mesmos locais. Durante as minhas estadas em Angico, nenhuma das assistentes sociais da prefeitura havia sido anteriormente beneficiária do PBF ou da assistência social em geral. As assistentes sociais adotam estratégias de diferenciação intencional para marcar e acentuar a distância que as separa das beneficiárias. Para uma assistente social, ser funcionária da administração pública e participar de um programa federal é um sinal de distinção.
26No processo de formação do grupo de assistentes sociais, classe e categoria profissional contribuem para a formação de um habitus que deve ser interpretado pela posição ocupada por esses indivíduos no campo da administração pública e da vida política de Angico. Isso significa que as práticas e valores dominantes do grupo são controlados por interesses econômicos e políticos (de classe), não por um ethos profissional. Essa confusão entre interesses políticos e práticas profissionais faz com que a identificação dos indivíduos com o grupo envolva uma aspiração em termos de estilo de vida. Ao mesmo tempo, a configuração racial do grupo – predominantemente branco com alguns indivíduos mestiços que ocupam posições hierárquicas baixas correspondendo às suas origens de classe – comprova a capacidade de cultivar um habitus que reforça o distanciamento social com relação às classes trabalhadoras, de maioria negra.7
27Uma parte importante desse habitus são os mecanismos de naturalização das construções sociais, como as representações da pobreza, que também definem a relação entre assistentes sociais e beneficiárias, incluindo as práticas de diferenciação estabelecidas pelas primeiras. Assim, a reprodução das práticas punitivas da pobreza entre as assistentes sociais deve ser entendida sobretudo como consequência da dominação política.
28Durante a pesquisa, as assistentes sociais nunca fizeram reflexões sobre categorias de gênero, raça ou classe como explicativas de sua relação com as beneficiárias. A posição de classe delas simplesmente não era um tópico de conversa. No entanto, o que era constantemente evocado por elas era a expertise adquirida que lhes permitia “entender” e julgar as situações que consideravam “extremas”, “difíceis”, “vulneráveis”.
1.3 Fronteiras espaciais e desigualdades das posições
29Enquanto as fronteiras simbólicas são um mecanismo de categorização social culturalmente construída, a relação entre assistentes sociais e beneficiárias também é marcada por fronteiras espaciais: uma configuração espacial que enquadra esses encontros. Essa configuração reflete a assimetria da relação e serve para reforçá-la e para manter o poder das assistentes sociais sobre as beneficiárias, característica própria das relações de street-level bureaucracy. O encontro entre esses atores ocorre em duas ocasiões: na casa das beneficiárias e no escritório do PBF. Em ambos os casos, todas as condições favorecem a passividade das beneficiárias e o controle da interação pelas assistentes sociais.
30O primeiro sinal dessa assimetria é que as beneficiárias nunca são avisadas sobre as visitas domiciliares. As assistentes sociais chegam normalmente em carro oficial (com a logomarca do PBF) e com um motorista que por vezes entra nas casas com as assistentes sociais (a razão principal, segundo as próprias assistentes, é a segurança, pois trata-se quase sempre de bairros pobres com taxas elevadas de violência). Diversas vezes, ao acompanhar as assistentes sociais em suas visitas, a beneficiária estava ocupada com afazeres domésticos ou profissionais, acordando de uma soneca ou cuidando de seus filhos. A visita era, quase sempre, uma nítida perturbação. Nenhuma opção era dada à beneficiária pela assistente social a não ser recebê-la e comprometer-se a respondê-la. As primeiras palavras trocadas durante as visitas domiciliares indicam claramente que, ao se tornar beneficiária do PBF, deve-se estar preparada para uma inspeção a qualquer momento, como indica esta observação:
[A assistente social Ana bate à porta, que está parcialmente aberta, e chama a beneficiária pelo seu nome]
Beneficiária: Sim, sou eu.
Ana: Olá, senhora, meu nome é Ana, assistente social do Bolsa Família. [silêncio enquanto espera a porta ser aberta] Preciso fazer algumas perguntas pra senhora, tá bom?
Beneficiária: Mas é de quê, exatamente?
Ana: Não se preocupa, é coisa básica, não demora muito não. A gente conversa aqui, ou pode entrar? Ele [apontando para mim] é meu estagiário que me acompanha, ele pode entrar também? (Com Ana, 25 anos, assistente social do PBF, novembro de 2014)
31Além das visitas domiciliares, um momento importante de encontro entre as assistentes sociais e as beneficiárias acontece no escritório do PBF. Esses encontros podem ser solicitados pelas beneficiárias de forma espontânea, na recepção do escritório, ou, o que é mais comum, solicitado pelas assistentes sociais durante as suas visitas ao domicílio. No primeiro caso, os agentes de acolhimento são encarregados de evitar encontros inúteis com as assistentes sociais – que têm uma carga de trabalho extenuante – e, por isso, perguntam detalhadamente os motivos pelos quais a beneficiária solicita uma entrevista. A regra é tentar resolver os problemas sem encontrar uma assistente social, diretamente com os agentes de acolhimento – geralmente pedindo às beneficiárias que esperem um pouco mais para que a situação se normalize ou que aceitem a normalidade de um problema conhecido – ou com técnicos. No caso de um pedido de agendamento “válido”, esses agentes devem certificar-se de que a beneficiária está de posse de todos os documentos necessários para o seu encaminhamento. Várias vezes, durante o pouco tempo em que esperava as assistentes sociais para nossos encontros, vi beneficiárias serem mandadas de volta para suas casas pelo agente de acolhimento.
32Quando a passagem pelo acolhimento é bem-sucedida, as beneficiárias ocupam um lugar na sala de espera, planejada para acomodar cerca de quarenta pessoas. É uma sala equipada com televisão e um bebedouro. O corredor que dá acesso às outras salas é “fechado” por uma corrente de plástico que pende de uma parede à outra. As beneficiárias não podem ultrapassar esse limite sem autorização. Cada pessoa que atravessa a barreira fecha-a depois, o que acontece mais ou menos a cada dez segundos. As salas com acesso limitado são: a sala dos entrevistadores, a das assistentes sociais e a da coordenação.
33A sala dos entrevistadores tem cerca de vinte mesas, dispostas lado a lado, com duas cadeiras uma de frente para a outra, para o entrevistador e o entrevistado. Nessa sala são realizadas as inscrições no programa e a atualização das informações relativas ao cadastro familiar. A sala da coordenação é de acesso exclusivo das três pessoas que ali trabalham e a porta fica fechada o dia todo – o principal motivo é o ar condicionado da sala. Exceto em casos muito raros, as beneficiárias não têm acesso a essa sala. As assistentes sociais vão ali apenas em poucas ocasiões para discutirem com a coordenadora do programa.
34Por fim, a sala das assistentes sociais, também por causa do ar condicionado, permanece com a porta fechada. Um agente de acolhimento controla as beneficiárias que chegam, uma a uma. A sala é, na verdade, compartilhada com outro grupo de funcionários responsáveis pela digitalização dos cadastros preenchidos pelos entrevistadores, seja durante a sua criação ou a atualização dos documentos. O espaço é dividido por uma parede baixa, deixando às assistentes sociais uma mesa grande. De um lado da mesa há um computador e três lugares que ficam de frente para a porta. A beneficiária acolhida senta-se do outro lado, de frente para as assistentes sociais presentes – que podem ser mais de uma. Do seu lado há mais cadeiras, onde agentes vêm sentar-se para discutir com as assistentes sociais, bem como estagiários ou outros convidados. Não existe, de forma alguma, mesmo considerando todo o escritório, a possibilidade de um encontro privado com uma assistente social.
35Durante os encontros, seja no domicílio ou no escritório, outra prática atesta a assimetria da relação: o controle absoluto do cadastro familiar, um documento impresso contendo as informações da família beneficiária. Em todos os períodos da pesquisa, nunca vi uma beneficiária ter acesso a seu cadastro. Mais especificamente, o documento é manuseado pelas assistentes sociais de maneira a esconder o que é escrito ou o que elas observam. Em alguns casos, as assistentes sociais indicavam um dado específico para fundamentar suas afirmações, mas sempre mantinham o cadastro sob seu controle. Essas ações resultam da maneira como as assistentes sociais concebem seu papel no PBF, que nem sempre corresponde ao esperado pelas prescrições do programa.
1.4. Contestação de seu papel no programa
36O PBF foi criado com o objetivo de minimizar o poder discricionário dos agentes locais na determinação da natureza e do valor dos benefícios fornecidos. Ele seria, assim, uma “intervenção social burocrática” na qual os agentes apenas aplicariam regras e normas para identificar aqueles que têm o direito à assistência, em vez de uma “intervenção individualista” na qual os agentes teriam o poder discricionário de avaliar os casos individuais e de estabelecer as necessidades e as intervenções necessárias (Paugam 2002).
37Ainda que a gestão local do programa fosse feita pelos municípios, o benefício determinado por um indicador era pago diretamente às famílias. O principal papel dos municípios era, portanto, o de garantir a qualidade da base de dados sobre as beneficiárias, embora a margem de manobra dos agentes fosse limitada a priori pelo caráter autodeclaratório das informações básicas durante a inscrição no programa – medida tomada explicitamente para reduzir o poder discricionário dos agentes locais.
38Para não depender de avaliações formais, privilegiando a simplicidade da informação autodeclarada, o PBF não previa a contratação de assistentes sociais para a gestão do programa, mas a encorajava. Assim, as assistentes sociais reivindicavam coletivamente um papel que ia além de suas atribuições burocráticas e, para isso, apoiavam-se em sua formação profissional:
A gente não é burocrata, não faz sentido empregar assistente social pra fazer esse trabalho se não se espera uma avaliação séria das necessidades das pessoas. Um técnico não poderia fazer nosso trabalho, eles não têm a mesma sensibilidade que a gente. (Ana, 25 anos, assistente social do PBF, novembro de 2014)
39Elas reivindicavam um trabalho complexo – em oposição às atribuições previstas – que não pudesse ser reduzido a simples procedimentos e, portanto, que não podia ser exercido por um empregado sem qualificação. Trata-se, assim, de uma rejeição do papel burocrático que lhes era atribuído pelo programa. Além disso, várias assistentes sociais declararam não terem tido muito poder de ação no âmbito do PBF. A assistente social Joana associou essa contestação de seu papel a uma contestação do formato de todo o programa:
Eu adoro o PBF, acho que é uma revolução, de verdade. A única coisa que eu mudaria seria colocar um acompanhamento melhor das famílias. Se a gente encontrasse elas o tempo todo, a gente poderia avaliar mesmo a situação delas, porque você sabe que muda o tempo todo… às vezes elas precisam de mais e, às vezes, de menos. E olha, vai além da renda, porque tem gente que não tem muito, mas que pode contar com seus parentes, que já tem uma casinha, etc. Depois tem outros que não conseguem nem chegar ao bolsa, e que têm muitas despesas, porque precisa pagar aluguel, transporte, às vezes ajudar parentes que não moram com eles… Tudo isso, a gente não vê na renda. Por isso que a gente [assistentes sociais] não pode ficar só com isso [renda], tem que olhar com mais atenção. E aí a gente tem nosso jeito pra colocar essa avaliação dentro do benefício, mas não é fácil. (Joana, 26 anos, assistente social do PBF/CRAS, novembro de 2013)
40No entanto, vemos que Joana começa sua crítica evidenciando seu apoio ao programa, para não ser confundida com pessoas que prefeririam a eliminação do PBF. A sua crítica é estruturada justamente em torno do reconhecimento das necessidades que são menos visíveis. O distanciamento intencional desse discurso foi menos evidente na entrevista com Mara, que ocupava um cargo de coordenação dentro da Secretaria de Assistência Social. Com experiência na gestão do PBF, a sua visão é que o programa carece de um instrumento formal para inibir a omissão de dados pelas beneficiárias:
Quando chega uma averiguação, que os assistentes sociais vão fazer, que você tem algo a mais, um pouco a mais do que um outro que não tem quase nada, então você 'tá saindo do perfil. E eles não querem sair do perfil. Óbvio, né? Aí começa as omissões de informações. E aí gera também o cruzamento de dados, as auditorias, que aí é uma… vamos dizer assim, uma confirmação daquilo que tu não me disseste. E aí vem a responsabilidade do assistente social, que ele vai fazer um laudo, dizer que aquela pessoa está realmente fora do perfil. Aonde eu acho que peca: por exemplo, eles disseram que iam ter punições para pessoas que estavam utilizando o programa de má-fé, que tem pessoas de alto nível, ou então de médio nível, que esteja usufruindo do programa. […] Tipo devolução do dinheiro, por que é dinheiro público, né? Você está lesando o poder público. Automaticamente, era tipo uma punição. Como tem outros programas aí. Como, por exemplo o BPC. Então por que não o PBF? Até hoje ainda não teve esse caso exitoso de uma pessoa colocar a mão no bolso e devolver o dinheiro. Pessoas com poder de compra um pouco maior, que não têm necessidade disso [PBF] omitindo, falsificando informações. (Mara, 40 anos, coordenadora da assistência social básica da SAS, outubro de 2014 — entrevista gravada)
41Deve-se notar que tais penalidades mencionadas por Mara nunca foram formalmente consideradas pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Durante a minha pesquisa ouvi diversas vezes sobre esses mitos – sempre negados pelos meus conhecidos do MDS – que evocam os anseios dos agentes locais do PBF, reveladores de uma disjunção entre suas expectativas profissionais associadas ao status de seu cargo e suas atribuições estritas. Por outro lado, essa disjunção nunca é fonte de conflitos entre as assistentes sociais ou na administração do programa, já que o papel que elas reivindicam é amplamente aceito (pela administração central) ou mesmo desejado (pela administração local). Esse contexto difere da análise de Merton sobre os burocratas que experimentam uma “discordância entre seu lugar no seio da hierarquia e sua posição face ao público” (1997: 195). No PBF, as assistentes sociais não encontram objeções ao exercício de tarefas que vão além de suas atribuições burocráticas, e seu poder é reforçado por suas ações e por sua posição alcançada na administração do programa.
42Essa configuração revela a assimetria da relação delas com as beneficiárias e evidencia que está longe daquela esperada: o encontro do cidadão com a administração pública – que pode ser considerado em si mesmo como a expressão da cidadania (Hasenfeld 1985) –, o momento de ativação de direitos sociais mais que o da desigualdade da relação, na qual as assistentes sociais têm um poder absoluto sobre as beneficiárias e sobre suas interações. A intervenção burocrática proposta, com uma aplicação rigorosa das regras pelos agentes para identificar aqueles que têm direito à assistência (Paugam 2002), é contestada sistematicamente pelas assistentes sociais porque as privaria daquilo que lhes parece essencial em seu trabalho: a sensibilidade para avaliar as necessidades caso a caso e determinar as intervenções necessárias. A adoção informal (porque não prevista) de uma intervenção individualista, na qual os agentes têm o poder discricionário de avaliar cada caso, exige das beneficiárias uma adaptação às regras informais de implementação do programa. A expectativa do consentimento dos usuários pelas assistentes sociais é uma característica típica das relações de street-level bureaucracy, resultado do reconhecimento do poder de decisão dos agentes. Um certo número de práticas visa obter a conformidade dos usuários, como a violação da intimidade, o isolamento dos usuários uns dos outros e um sistema competitivo de distribuição de recompensas (Lipsky 2010). Vejamos agora o que as beneficiárias do PBF pensam dessas relações.
2. Pontos de vista das beneficiárias sobre o Programa Bolsa Família e as assistentes sociais
43Após ter considerado as distinções de classe percebidas pelas beneficiárias em suas relações com as assistentes sociais, veremos o ponto de vista daquelas sobre o que estas chamam de “eventos aleatórios” da burocracia do PBF.
2.1. As relações de classes
44O principal argumento desta subseção é que as relações entre esses dois grupos são determinadas por relações de classe. Mais precisamente, as beneficiárias identificam nas assistentes sociais comportamentos produzidos por representações da pobreza que elas encontram em todas as suas interações com pessoas de classes mais elevadas. Para demonstrá-lo, analisaremos trechos de entrevistas com as beneficiárias: primeiramente, suas impressões sobre os discursos que criticam o PBF em um quadro geral e, depois, a visão que elas têm de suas relações com as assistentes sociais.
45Embora a pergunta não tenha sido feita diretamente a todas as entrevistadas, dezenove (de 35) beneficiárias declararam já ter escutado que o PBF “deixa as pessoas preguiçosas”, que entre as beneficiárias “só tem pessoas que não querem mais trabalhar”, ou que “queria que o PBF acabasse para ver o que todas essas pessoas [as beneficiárias] vão fazer”. Elas eram unânimes em afirmar, antes de mais nada, que não achavam que isso fosse verdade. Algumas beneficiárias afirmaram que sempre que ouviam essas “críticas”, elas defendiam o programa e suas beneficiárias. Para elas, trata-se de “preconceitos” contra o PBF e os “pobres”. Em suas falas, elas compartilharam os preconceitos mais comuns, a começar por aqueles sobre o trabalho, e ressaltaram a importância do benefício no contexto de pobreza, como é o caso desta resposta forte de uma entrevistada: “Tem gente que pensa que a gente quer viver só com a bolsa, mas eu te digo: não é o bastante pra viver não. Eu gostaria de trabalhar se eu pudesse. E outra coisa, tem gente que diz que a gente tem mais filho pra ganhar mais… você acha que eu vou botar filho no mundo pra ver eles sofrer?” (entrevistada n.º 14, 30 anos, dois filhos, beneficiária desde 2007, dona de casa).
46Porém, algumas beneficiárias não estavam preparadas para discutir sobre isso com essas pessoas. A vergonha provocada pela estigmatização é uma das razões que inibe a manifestação de uma opinião nessas situações mesmo quando as beneficiárias têm uma noção do PBF enquanto um “direito”:
– Eu tenho orgulho. É um reconhecimento do direito dos pobres, enfim, né? Assim, é verdade que tem muita gente que não gosta… eles pensam que o Bolsa Família faz as pessoas preguiçosas.
– A senhora já ouviu isso pessoalmente?
– Não pra mim diretamente, mas sim. As vezes nas salas de espera de hospital, ou com os patrões.
– E como a senhora reage quando as pessoas dizem essas coisas?
– Eu não gosto de dizer que sou beneficiária. Eu acho que isso não é verdade, a gente não vai parar de trabalhar, claro. Mas eu tenho vergonha do jeito que os outros vão olhar pra mim, que eles vão achar isso de mim. E não é verdade.
(Entrevistada n.º 19, 38 anos, três filhos, beneficiária desde 2006, trabalhadora informal esporádica.)
47Quatorze das beneficiárias encontradas são trabalhadoras domésticas, de forma permanente ou por dia. O trabalho doméstico é um dos locais privilegiados de encontro entre as beneficiárias e as pessoas de classes superiores, e faz parte das situações mencionadas pelas entrevistadas nas quais elas ouviram tais críticas feitas ao programa. O discurso crítico da parte das classes altas foi encontrado sobretudo entre as beneficiárias mais jovens:
– A gente [em situação de pobreza] precisa mesmo [do Bolsa Família] pra viver, e a gente escuta que os beneficiários não querem trabalhar. É uma ignorância esse pensamento, eu acho que eles não conhecem nossa realidade. Só com o dinheiro do Bolsa a gente não sustenta uma família não, então como é que para de trabalhar?
– De quem a senhora escutou esse tipo de crítica?
– De gente rica, sempre. Eu já escutei e muito, de dentista, professor, na prefeitura. Eu escuto essas críticas de patrão também, mas eu não tô lá pra trabalhar do mesmo jeito? É um absurdo! Eles estão é com raiva porque os pobres se vestem que nem os ricos agora, é isso.
(Entrevistada n.º 29, 27 anos, um filho, beneficiária desde 2010, empregada doméstica).
48A forma como as beneficiárias percebem em seu cotidiano as representações da pobreza é significativa para a compreensão da construção de sua própria imagem enquanto beneficiárias. Mas qual a relação entre essa percepção, de um lado, e sua relação com as assistentes sociais e a administração do PBF, do outro? Meu argumento é que as assistentes sociais são vistas pelas beneficiárias primeiramente como membros das classes altas, o que produz um efeito de antecipação sobre a maneira de serem vistas e tratadas. Como veremos em seguida, as beneficiárias entrevistadas pensam que as assistentes sociais integram nessa relação as mesmas representações que aquelas de pessoas de classes superiores.
49Esses efeitos de antecipação e essa desigualdade percebida pelas beneficiárias coexistem com boas relações – declaradas por 8 das 35 entrevistadas – ou com relações indiferentes – declaradas por 7 entrevistadas. As boas relações são marcadas pela intimidade, por exemplo quando as assistentes sociais perguntam pelas crianças ou acompanham uma gravidez. Em dois casos particulares, essas relações resultam de processos administrativos do PBF que foram favoráveis às beneficiárias.
50Contudo, as relações negativas foram majoritárias, principalmente por terem sido tratadas de forma ruim por uma assistente social. Várias delas disseram ter medo ou não gostar das visitas domiciliares, e a história a seguir dá uma ideia sobre essas interações:
Eu nunca tive uma relação boa com elas [assistentes sociais]. Desde a primeira vez, não foi legal. Uma assistente social veio ver se meu ex-marido morava aqui. Eu disse que não, mas ela entrou na minha casa e olhou em cada canto, como se ele tivesse escondido lá! É ridículo… Eu repetia que ela podia ir olhar a casa dele, que não era tão longe, mas ela nem me respondia. Ela pensava mesmo que eu tava mentindo, desse jeito. E é assim em todo canto, elas não acreditam nunca na gente. (Entrevistada n.º 34, 23 anos, dois filhos, beneficiária desde 2011, trabalhadora doméstica informal).
51Como nas relações positivas, os processos administrativos também desempenham um papel aqui: uma beneficiária – que já teve problemas com seu benefício e cujos esforços para resolvê-los foram infrutíferos – diz que as assistentes “não querem nos ajudar, elas não se esforçam para compreender nossa situação”. Outra (entrevistada n.º 33, 24 anos, um filho, beneficiária desde 2012, dona de casa) caracteriza as assistentes sociais como “agressivas”, sentindo-se julgada durante seus encontros. Ela explica esse ponto dizendo que as assistentes sociais “vêm às nossas casas e não nos fazem perguntas, elas tiram suas próprias conclusões se gostam da pessoa ou não”. Para ela, as decisões burocráticas tomadas pelas assistentes sociais dependem de sua relação pessoal com as beneficiárias, ou ao menos de suas “impressões”, as quais não levam em conta uma análise completa da situação. A beneficiária já teve problemas com seu benefício e lamenta ter perdido dois meses deste por causa de uma suspensão que, no fim das contas, provou-se ser incorreta após várias visitas ao escritório do PBF. Duas outras beneficiárias também fizeram referência à falta de esforço das assistentes sociais para compreenderem sua situação, e as duas tiveram problemas com seu benefício, os quais não conseguiram resolver em suas visitas ao escritório do PBF. Os erros provocados por “preconceitos” ou por “avaliações incorretas” das assistentes sociais são particularmente nocivos para a sua relação com as beneficiárias.
52A título de conclusão, uma beneficiária (entrevistada n.º 29, 27 anos, uma criança, que recebe o benefício desde 2010, empregada doméstica) expressa bem o argumento principal evocado antes: “As assistentes sociais são iguais ao resto, elas nos olham de cima, como se a gente não fosse iguais.” A forma de olhar para elas, de não acreditar nelas, a agressividade: o comportamento das assistentes sociais é visto pelas beneficiárias não apenas como uma característica específica de seu trabalho, mas também como uma marca de sua posição de classe enraizada em suas atividades de trabalho. O “preconceito” e a “injustiça” sentidos pelas beneficiárias em suas relações com as assistentes sociais são a prolongação de um sentimento mais amplo que diz respeito a todas as interações com pessoas de classes mais altas, o qual também se manifesta no PBF e nas atividades relacionadas. A distância social entre os grupos não deve ser confundida com uma homogeneidade de interações entre indivíduos. Com efeito, a origem da ambiguidade sentida pelas beneficiárias é consequência da multiplicidade de relações sociais com diferentes assistentes sociais. Nesse contexto, a proximidade social (inclusive a identificação racial) das assistentes sociais com as beneficiárias pode ter um papel na empatia e na consequente generosidade demonstrada na escolha de procedimentos administrativos.
2.2. As justificações do “direito” à assistência social
53A literatura existente sobre a dimensão de “direito” do PBF8 não permite compreender como a própria implementação do programa esconde das beneficiárias o fato de ser um direito social – ainda que seja um programa governamental e não um direito constitucional – ao qual elas deveriam ter um acesso igual e impessoal. Algumas das beneficiárias questionadas formularam uma justificação de seu direito ao PBF como o direito a uma vida digna, que reflete o princípio da incondicionalidade:9 a ajuda às pessoas em situação de pobreza como um reconhecimento de sua humanidade e de seu direito à plena cidadania. A assistência social asseguraria, assim, as necessidades fundamentais das pessoas para que estas possam exercer seus direitos de cidadãs.
54Essa justificação se encontra, por exemplo, na imagem do PBF como um direito de ter algo como retorno da parte do governo. O programa é, então, uma compensação do pagamento de impostos, a qual deve ser proporcional às suas necessidades:
Quanto do nosso dinheiro não vai pra eles [governo]? Tudo que a gente faz contribui com o governo. Receber alguma coisa de volta é um direito de todo brasileiro. Quanto dinheiro os ricos recebem? O que a gente recebe não é muito. Os ricos gastam tanto dinheiro com coisa besta... eles gastam num sapato o que a gente ganha num mês. E nossas despesas aumentam, então a gente devia ganhar mais. (Entrevistada n.º 28, 33 anos, três filhos, beneficiária desde 2008, trabalhadora informal esporádica).
55No discurso de várias beneficiárias, o PBF é percebido como “o reconhecimento de suas necessidades”. Da mesma forma, as expressões “nosso direito” e “direito dos pobres” eram usadas indiferentemente. Essas beneficiárias tinham um sentimento de alívio: “Até que enfim eles olharam para nós.” Se isso pode dar uma ideia de gratidão por um favor recebido, o próximo trecho revela uma noção progressiva de direito elaborada em torno do fato de que os pobres não veem o retorno dos impostos pagos da mesma forma que os ricos:
A gente não paga imposto em tudo que a gente compra? Cadê esse dinheiro, então? A gente paga esses impostos pra quê, então? A gente não tem esgoto aqui, as escolas são ruins, mesma coisa para os hospitais. Pelo menos a gente tem isso [PBF]. Se eles não conseguem fazer alguma coisa pela gente, melhorar um pouco nossa vida, é bom que eles dão direto pra gente então. (Entrevistada n.º 29, 27 anos, um filho, beneficiária desde 2010, empregada doméstica)
56Se a visão do PBF enquanto direito não é algo isolado dentre as beneficiárias (13 das 35 entrevistadas) – utilizando a palavra “direito” ou expressões conexas que poderiam dar a ideia de um direito impessoal –, este não foi, contudo, o discurso dominante. Mesmo aquelas que compartilharam a opinião mostrada nos trechos precedentes descrevem igualmente uma realidade paralela imponente: a insegurança diante da continuidade do pagamento do benefício. Todas as pessoas questionadas manifestaram medo ou, em certa medida, incompreensão sobre a forma como o programa funciona. Essa incompreensão é reforçada pelos casos conhecidos em que o valor do benefício é considerado como desproporcional (inferior ou superior) em relação à necessidade experimentada pela família. Ao mesmo tempo, de forma semelhante ao que outros autores encontraram (Ávila 2013; Tebet 2017), as beneficiárias demonstram um tipo de aceitação da forma como o programa funciona, assim como uma falta de compreensão sobre seus “mistérios”. Ainda que a anulação definitiva do benefício seja vista como “injusta”, ela é aceita: “Mas é assim mesmo.” Nota-se que essa resignação é a expressão de um sentimento mais amplo de aceitação dos inconvenientes da vida, característico da cultura da população do Semiárido, que se apoia tradicionalmente na religião católica para enfrentar a pobreza extrema e as dificuldades ambientais da região. Mas essa resignação é sobretudo resultado de uma relação criada pela Estado: como mostra Auyero (2011), quando faz os beneficiários da ajuda social esperarem, o Estado reafirma seu poder, exigindo respeito e deferência dos cidadãos pobres. Reich (2005) também mostrou como as decisões que dizem respeito à proteção da infância, tomadas pelos trabalhadores sociais, dependem da deferência para com suas avaliações em nome do Estado. Além disso, a espera da maneira como essas intervenções serão recebidas está ligada às crenças normativas de raça, de classe e de gênero. Chegando a uma conclusão similar ao círculo vicioso aqui apresentado, Reich (2005: 110) vê como esse sistema pode se reforçar, já que, “para os pais que não viveram a intervenção do Estado como coercitiva, restritiva ou punitiva, a deferência é mais fácil”.
57Enfim, esses inconvenientes da vida, dos quais fazem parte também os problemas com a burocracia do PBF, são uma expressão da vontade de Deus, que deve ser aceita. As implicações desse tipo de raciocínio serão analisadas no próximo capítulo.
Conclusão
58Este capítulo teve como objetivo estabelecer as representações que as assistentes sociais e as beneficiárias do PBF tinham umas das outras, assim como suas visões do programa e de seu funcionamento. Sem pretender estabelecer relações deterministas, pudemos vincular as condições sociais e de emprego das assistentes sociais e sua relação com o PBF e com as beneficiárias. As assistentes sociais participam da reprodução das representações dominantes da pobreza no Brasil, que é mais intensa nas classes superiores. Isso se explica em parte pela posição subordinada desse grupo com as classes superiores locais, o que não quer dizer que as assistentes sociais partilham o habitus dessas classes, ou que elas se identificam enquanto “classes dominantes”, mas antes que manifestam uma boa vontade cultural fundada num desejo de ascensão social. Esse fato torna-se ainda mais evidente quando consideramos a dominação dos serviços municipais de assistência social por indivíduos provenientes de classes mais altas, resultado direto das condições de acesso à administração pública municipal.
59Sua relação com as beneficiárias também é marcada por fortes desigualdades de posições sociais, assim como na administração do programa. Essa desigualdade de posição é vista pelas beneficiárias como expressão do pertencimento das assistentes sociais às classes superiores: as beneficiárias consideram que suas relações com as assistentes sociais são similares àquelas que têm com seus patrões. Isso gera tensões entre esses dois grupos, tensões que são visíveis, e que têm um impacto sobre a forma como as beneficiárias entendem o PBF. É importante destacar, mais uma vez, que as análises feitas neste capítulo não podem ser generalizadas a priori para outros contextos, mesmo no Brasil. Elas são restritas às interações entre beneficiárias e assistentes sociais na implementação do programa.
60O fato de que as assistentes sociais sejam vistas pelas beneficiárias como próximas das classes superiores parece resultar diretamente de dois fatores. Primeiro, da função exercida pelas assistentes sociais no âmbito do PBF, a partir da qual controlam as beneficiárias para além das demandas explícitas do programa, numa contestação explícita de suas atribuições previstas. Em segundo lugar, ainda que em Angico várias assistentes sociais sejam originárias de classes médias, esse grupo permanece dominado por indivíduos de classes altas, já que as funções mais altas são reservadas em sua maioria a pessoas com laços familiares com os políticos eleitos. Contudo, os trabalhadores sociais formam no Brasil um grupo profissional que está longe das classes superiores, que está na origem do reconhecimento dos direitos sociais dos mais pobres. No nosso caso, mostramos que a distância social que separa as assistentes sociais e os beneficiários permanece enorme, em particular no Nordeste. Além disso, sem autonomia profissional, a ação das assistentes sociais de Angico é determinada por uma economia dos capitais econômico, social e cultural do campo político, e não profissional.
61Descobrimos que as assistentes sociais das classes superiores – normalmente as coordenadoras das secretarias – e aquelas que provêm das classes médias compartilham as mesmas representações da pobreza e a mesma visão do PBF. Essas representações correspondem às representações dominantes na população brasileira, e vão seguramente ao encontro do papel histórico que as assistentes sociais desempenham na luta contra a pobreza, principalmente na formulação das leis e das políticas públicas. Resta-nos explicar como essas diferentes representações e tensões entre os dois grupos afetam a implementação do PBF, e porque ele não é necessariamente percebido direito pelas beneficiárias. Isso vem em parte da fragilidade institucional do programa, mas é sobretudo na sua implementação e nas interações das beneficiárias com seus agentes que se encontra a explicação dessa representação. Esse é o objeto do próximo capítulo.
Notes de bas de page
1 Algumas partes deste capítulo foram retrabalhadas e publicadas na revista Etnográfica (Eiró 2022b).
2 Como mostramos no capítulo anterior, a representação segundo a qual os pobres seriam oportunistas e responsáveis por sua situação é difundida entre todas as categorias sociodemográficas da população brasileira, e de formas mais forte nas classes superiores – aquelas com uma renda familiar mensal superior a cinco mil reais.
3 No Brasil, a categoria "negro" tem um sentido amplo, que inclui os "pardos" (mestiços) e os "pretos"; a primeira é uma categoria racial muito fluida, que ganha sentido em contextos sociais específicos, e os indivíduos categorizados como "pretos" não escapam de um olhar racializado.
4 Para se tornar um agente público no Brasil, é preciso passar por um concurso público. Além destes, outros tipos de emprego podem oferecer uma proteção justa aos empregados, como os "estatutários" e os "celetistas". Nenhuma das assistentes sociais encontradas na pesquisa tinha esse tipo de contrato, o que também é o caso para 53,9% dos trabalhadores sociais nos escritórios municipais de assistência social no país (Brasil 2015).
5 Em oposição à “proteção social especial”, que oferece serviços especializados e contínuos para as famílias e os indivíduos em situação de violação dos direitos (físico, psicológico, sexual, tráfico de pessoas e outros).
6 Como mencionado no primeiro capítulo, Michel Temer, que assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, em setembro de 2016, colocou a sua mulher como “embaixadora” de um novo programa de assistência social complementar ao PBF, o Criança Feliz.
7 Devo agradecer a Telmo Humberto Lapa Caria e a Octavio José Rio do Sacramento, que me levaram a fazer essa reflexão essencial para a compreensão das dinâmicas aqui analisadas.
8 Ver Capítulo 1, seção 2.1, “Criação e evolução do PBF”.
9 “No setor de urgência, a noção de incondicionalidade aparece como uma outra modalidade de acolhimento e de apoio das pessoas, afastando os limites de acesso aos serviços de proteção. Quando a condicionalidade mantém muito elevados os limites de acesso e pode se tornar um fator de exclusão, a incondicionalidade alarga as portas de entrada em dispositivos abertos a todos” (Vidal-Naquet 2005: 10-11).
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