Capítulo 4. A fala que vem de dentro
p. 367-422
Texte intégral
1Perceber que representações do passado, visões e tipos de experiências servem para suster determinadas imagens urbanas e culturais da Mouraria do tempo presente, foi um dos objetivos desta pesquisa. Este capítulo e o que se segue abordam esse aspecto. Notando que, no presente capítulo ele é explorado e especificado a partir do ponto de vista dos de dentro, e no capítulo que se segue a partir da perspectiva dos de fora.
2Um dos primeiros aspectos que se destaca sobre como é percebido o bairro pelos de dentro é que, a par de uma lógica em que a importância da Mouraria é demarcada a partir dos seus próprios referenciais temáticos – como o fado, a Severa, a procissão, a marcha e o arraial popular, a vida de rua, etc. –, existe uma outra que questiona a sua existência como um bairro e que é particularmente expressiva em frases como: “[…] bairro, qual bairro? Que convivência?”, “Olhe para o lado e diga-me se isso é um bairro?”, “[…] os mouros voltaram às origens. Agora não são mouros árabes, mas são muçulmanos na mesma”, “[…] já viu o cartão-postal que se tornou a Mouraria?” Tendo-se aqui a impressão de que a visão do bairro como um contexto característico e típico cedeu lugar a uma percepção que acentua a sua descaracterização e transformação, como se as mudanças fossem tão intensas que, para aqueles que se consideram filhos da Mouraria, o bairro agora apenas fosse “caracterizado por ser o bairro da Mouraria, mais nada” (Sr. Paulino).
3Contudo, tais inferências levantam duas questões. Uma primeira questão refere-se ao facto de que, quando se procura compreender o processo de construção de determinadas visões e imagens do bairro através de como os indivíduos percebem o seu passado, é muito provável deparar com a constatação de que o antes é idealizado para enfatizar os aspectos percebidos como negativos no tempo de agora, através do ênfase que em tempos passados havia mais solidariedade entre os membros da comunidade, respeito pela ordem instituída, segurança, empenho nos rituais comemorativos, etc.1 Como se a percepção da atualidade local se desse por contraste com um quotidiano perdido e idealizado, onde a desilusão com o presente se constrói por um acumular de perdas: do território, dos edifícios emblemáticos, da convivência, da vida de rua, do bairrismo, etc., mas também da juventude de alguns. De facto, isto verificou-se relativamente aos filhos da Mouraria. Desse ponto de vista, é possível considerar que a percepção local de que o bairro está descaracterizado e que já não é nada está relacionada com essa valorização do antes por oposição ao agora.
4No entanto, a desilusão, o desencanto ou mesmo o conflito entre a idealização de um quotidiano e a sua realidade seriam explicáveis pela dificuldade que alguns indivíduos encontram para lidar com a alteridade, onde o outro é percebido como uma espécie de agente transformador dos elementos mais característicos da Mouraria e do seu lugar face aos outros bairros típicos, populares e tradicionais da cidade. Mas admitindo que tais considerações devem ser tidas em conta, creio que o que está em causa é mais profundo e complexo. E nas entrelinhas desse conflito e desencanto uma dúvida emerge: que características são essas cuja percepção de não continuidade parece ter cedido lugar a uma outra Mouraria?
5Na realidade, o que está em causa relativamente ao bairro da Mouraria não decorre de duas lógicas que parecem contradizer-se, mas é precisamente um problema de ambiguidade que emerge da dualidade de uma percepção que, por um lado, permite a invenção do bairro a partir dos seus elementos mais característicos, sendo aqui fundamental reter a ideia de que existe reciprocidade entre as lógicas endógenas e exógenas. Enquanto, por outro lado, quando os de dentro identificam o bairro como um contexto descaracterizado, essa conceção tem por base as dinâmicas sociais que presentemente são ali produzidas.2 Como se por detrás da percepção de que o bairro está descaracterizado, os de dentro estivessem insinuando que o bairro se vai caracterizando com outras práticas, temas, signos, etc., que não estão relacionados com aquilo que identificam como sendo uma Mouraria típica. Neste sentido, veja-se o depoimento abaixo:
“O bairro não fica sem ninguém, porque os filhos da Mouraria já poucos cá estão, porque vêm é as pessoas de fora. Porque, por exemplo, no meio teatral em que eu trabalhei, aqueles artistas todos têm a mania de ter casas em bairros históricos […], adoram esses bairros […], mas nós que vivemos cá estamos a ficar descaracterizados, porque vêm estranhos. O bairro não está deserto, mas as pessoas que cá vivem são estranhos aos filhos daqueles que nasceram cá no bairro. Se a gente for à procura dos filhos que nasceram aqui no bairro, já são poucos.” (Sr. Paulino)
6Portanto, ao retomar a temática que introduz o presente tópico, poder-se-ia reformulá-la invertendo a ordem inicialmente definida, colocando a questão do seguinte modo: que representações e tipos de experiências vivificadas pelos de dentro estão na base das visões e imagens de que a Mouraria está descaracterizada?
7Concordo com a posição de Firmino da Costa (1999) quando referiu que a imagem identitária dos bairros populares é um processo de construção que se alimenta reciprocamente das lógicas endógenas e exógenas, através de um redobramento simbólico conduzido do exterior. Ou com Cordeiro (1994b) quando referiu que:
“A imagem de cada bairro, associada a um ou outro aspecto da história urbana, tem-se produzido numa emaranhada teia de atributos que, tanto endógena como exógenamente, se vão criando, numa relação mais próxima ou afastada com um passado interpretado, inventado e acrescentado, numa espécie de variação permanente em torno de alguns temas centrais […].” (Cordeiro 1994b: 140)
8E, na continuidade das ideias de ambos os autores, importa considerar que o contexto local é relevante nas sociedades urbanas, sendo que as configurações culturais locais não significam guetos sociais. Assim, a par da intensidade dos laços sociais e das formas simbólicas próprias a esses bairros, eles são igualmente interceptados por significativos processos de mudança como também se configuram como cenários de múltiplas intersecções (Cordeiro e Costa 1999: 74-75). Dir-se-ia, assim, que a Mouraria se vai reconfigurando e reinventando como um bairro típico da cidade.
9As mudanças não são somente explicáveis pela ingerência dos outros no quotidiano do bairro, pois elas também estão na base da própria (re)configuração do nós e, como tal, dos que são de dentro. Observando ainda que, a par das tantas transformações por que passa o bairro, ele permanece. De modo que uma leitura mais atenta também mostra que por detrás de um sentimento de perda e do confronto com a alteridade, existem diferenciadas formas de experimentar, perceber, viver e sentir o bairro.
10Na realidade, a polarização existente entre os de dentro e os de fora, entre nós e os outros ou entre a Mouraria de antes (tempo passado) e de agora (tempo presente),3 é apenas a ponta de um imenso iceberg cujo cerne trata das disputas relativas à imagem identitária da Mouraria. Quando os de dentro veem o bairro como um contexto sem características, é relevante considerar que, como pano de fundo dessa percepção, existem determinados mecanismos de dominação simbólica e um “efeito de sobreposição desfocada” (Cordeiro e Costa 1999),4 ou ainda, adaptando a sugestão de Fantin (2000) para o presente caso, de que tais questões são subsidiárias de uma problemática relacionada com os dilemas e as disputas simbólicas pela imagem identitária do bairro no processo de construção da própria imagem da cidade.5 De modo que tais oposições também produzem diferentes visões e imagens do bairro, como perspectivas diversificadas frente ao seu património cultural, histórico e urbano, como ainda se refletem na imagem da cidade (Magnani, cfr. Fantin 2000). Mas não só, por detrás desses processos esconde-se também uma disputa pela própria apropriação social do espaço físico local. Pelo que interessa agora identificar alguns dos elementos que, do ponto de vista dos de dentro, contribuem para a construção de uma determinada visão da Mouraria.
11Em certo sentido, dir-se-ia que é através da leitura das dinâmicas e contextos que engendram a percepção do passado por parte daqueles que são de dentro que se torna possível entender a Mouraria enquanto contexto social, cultural e urbano do mundo presente. A partir dessa leitura, é possível evidenciar um conjunto de elementos, práticas, espaços, personagens e tipos culturais que se refletem numa determinada visão do bairro, cuja participação infere uma adesão que, conforme salientou Velho (1994: 97), pode ser “significativa para a demarcação de fronteiras e elaboração de identidades sociais”.
12No entanto, devido aos condicionalismos do trabalho de campo e ao tipo de estratégia de pesquisa adotada, não foi possível recolher depoimentos de um número expressivo de indivíduos, através dos quais pudesse reconstituir as suas biografias, dando atenção à forma como as diferentes gerações elegiam determinados espaços e práticas como valores representativos das suas relações com o bairro. Mas, ainda que sem essas reconstituições, pelas conversas informais, por algumas entrevistas mais aprofundadas, e após o difícil trabalho de colagem de um confuso conjunto de fragmentos, insinuações, metáforas e de referências esparsas e demasiado descontínuas, é possível avançar com algumas considerações.
13Através da interpretação de alguns depoimentos, conversas informais e entrevistas com os filhos do bairro, este capítulo pretende mostrar as formas como, na polarização entre o antes e o agora, e entre os de dentro e os de fora, se refletem as modificações por que passa uma determinada visão do bairro que se relaciona com a ideia de característico, típico e tradicional.
A construção de uma determinada visão do bairro
14Com o objetivo de ilustrar como certas experiências da vida quotidiana servem como suporte de uma determinada visão do bairro, serão sumariamente examinados oito casos exemplares de famílias que praticamente viveram a maior parte da sua vida na Mouraria. Esses casos foram aqui destacados porque me pareceram significativos e representativos dos dados recolhidos, procurando desse modo evitar uma súmula repetitiva de informação.
15Seguidamente, reflito sobre a totalidade das informações recolhidas relativamente à percepção dos tempos passados, para mostrar como é expressa uma determinada visão do bairro através da polarização entre o antes e o agora, os de dentro e os de fora.
Casos e famílias
16Os casos exemplares selecionados são apresentados pela ordem de idade daqueles que foram os principais interlocutores das entrevistas. Assim, dos mais velhos para os mais novos, temos resumidamente:
Senhora cuja família migrante veio viver para o bairro em 1947, pouco antes da intensificação da destruição urbanística ali efetuada.
Marido e esposa nascidos na Mouraria, tendo constituído família em 1947, tendo visualizado e sentido os efeitos das demolições enquanto indivíduos adultos, salientando que a segunda geração continua a viver no bairro, com tendência para a terceira geração ir residir para fora do bairro.
Marido nascido no bairro, a esposa na envolvência, casados em 1946, com a segunda geração a viver fora do bairro.
Marido e mulher nascidos e criados na Mouraria, tendo constituído família em 1949, com a segunda geração a viver fora do bairro.
Marido e mulher nascidos e criados no bairro, casados desde 1959, quando a Baixa da Mouraria já estava praticamente destruída, tendo experimentado as demolições do bairro enquanto adolescentes, salientando que a segunda geração vive fora do bairro.
Marido e mulher nascidos e criados no bairro, casados por volta de 1959, com a segunda geração a viver fora do bairro.
Marido e mulher de famílias migrantes, mas criados no bairro, tendo-se casado em 1960, com a segunda geração a viver fora do bairro.
Marido e mulher nascidos e criados no bairro, casados desde fins dos anos 80, período de intensificação do comércio grossista e do tráfico e consumo de droga, com muitos parentes diretos a viverem fora do bairro.
A família da D. Sofia
“Estava sentada num banco público situado no Largo do João do Outeiro, quando D. Sofia se sentou ao meu lado para descansar da íngreme subida da rua. Ela vinha do Centro de Dia situado na Rua da Mouraria, onde costuma ir após o almoço. Eu tomava notas e ela perguntou-me o que estava para ali a escrever, e assim começámos a conversar, e no decorrer do trabalho encontrámo-nos algumas vezes no mesmo banco.
D. Sofia, nasceu em 1917 em Torres Vedras no seio de uma família que vivia com muitas dificuldades. Não foi à escola e ainda muito jovem começou a ajudar os pais, primeiro cuidando dos irmãos, depois a ajudar a mãe a vender frutas. Mas pouco fala dos familiares de Torres Vedras, apenas se recordando de umas crianças com quem brincou e cuja família mais tarde migrou para Lisboa, vindo a instalar-se no mercado da Ribeira com uma banca de peixe. Através dessa família, com 14 anos, D. Sofia veio para Lisboa para servir como empregada doméstica numa família composta por cinco pessoas. A casa para onde foi trabalhar ficava em Campo de Ourique e os seus patrões eram clientes da banca de peixe dos seus vizinhos de Torres Vedras. Portanto, D. Sofia trabalhou em Campo de Ourique aproximadamente dez anos. Pelo seu relato fica a impressão de que poucas vezes saiu da envolvência próxima da casa onde trabalhava e residia. Contudo, os seus patrões mudaram-se para o Brasil e D. Sofia viu-se forçada a arranjar trabalho numa Lisboa bastante desconhecida para ela. Trabalhou em muitas casas, vivendo precariamente até encontrar serviço numa casa situada na Rua Luciano Cordeiro, onde trabalhou até se casar, aos 30 anos de idade. Rapidamente engravidou e nasceu-lhe a filha Maria.
Mas o marido faleceu quando a filha tinha um ano, tendo que ir novamente à procura de trabalho. Conheceu, então, um senhor solteiro que vivia na Mouraria e lhe ofereceu um quarto na sua casa em troca dos serviços de limpeza doméstica. Até então, D. Sofia nunca tinha ouvido falar do bairro da Mouraria, recordando-se de que quando veio viver para o bairro, em 1947, ainda existia a Praça da Figueira e a Baixa da Mouraria.
Entretanto, D. Sofia continuou a trabalhar como empregada de limpezas em diferentes casas. Quando a filha tinha 15 anos, faleceu o senhor que lhe tinha cedido o quarto mas mãe e filha permaneceram na casa. Maria seguiu os estudos e formou-se na Casa Pia como educadora de infância, vindo mais tarde a trabalhar numa escola na envolvência do bairro. Maria nunca se casou, apenas teve um namorado que trabalhava numa tabacaria para os lados de Alvalade. No entanto, Maria faleceu quando tinha apenas 39 anos de idade, ficando D. Sofia sozinha.
D. Sofia trabalhou até quase aos 75 anos de idade. Hoje vive de uma pequena reforma e passa as tardes a conversar com aqueles que costumam ir ao Centro de Dia ou com os vizinhos que encontra nas ruas do bairro. Diz sentir-se do bairro, por ser onde viveu a maior parte da sua vida, tendo apenas voltado a Torres Vedras duas ou três vezes. Ela gosta muito quando chega a época da Procissão de Nossa Senhora da Saúde, referindo que o bairro fica muito bonito. Contudo, considera que quando veio viver para o bairro era mais calmo e gostava mais, dizendo que atualmente a Rua Marquês de Ponte de Lima, onde vive, tem muito movimento por causa das pessoas de fora que foram para ali viver, como os chineses e africanos.”
A família do Sr. Vasco
“A referência do Sr. Vasco foi-me dada no Gabinete Local da Mouraria (GLM). Ele é membro da Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e um importante impulsionador e organizador da procissão relacionada com essa santa. É do Partido Socialista (PS), membro da Assembleia de Freguesia do Socorro e ainda participa de variados grupos e associações locais. Telefonicamente, marcámos um primeiro encontro em sua casa. À minha espera tinha o livro sobre a freguesia (Mendes 1996), fotos da família e fotocópias de artigos de jornais cujo tema era o Centro Comercial da Mouraria que, segundo ele, ‘foi quem desgraçou’ o bairro. Através dele conheci alguns dos intelectuais6 do bairro. Depois desse primeiro dia, encontrámo-nos vezes seguidas pelas ruas do núcleo do bairro ou nos tão concorridos bancos da Rua da Mouraria, onde pela manhã costuma ir sozinho e ao meio da tarde vai acompanhado da esposa. Passado mais de um ano do nosso primeiro encontro, certo dia comentou: ‘Ainda não acabou a pesquisa? Não sabia que a Mouraria tinha assim tanta história para contar […]’. Noutro dia, encontrámo-nos numa das sessões da Assembleia de Freguesia do Socorro e ao ver-me sentada num dos cantos da sala a tomar notas, logo disse: ‘A menina gosta mesmo do bairro! Mas hoje a assembleia foi fraquita […]’, marcando desse modo a sua posição por contraste à de uma senhora que vive nas Olarias e que anteriormente me havia dito: ‘Hoje a menina até teve sorte porque às vezes isso aqui é só peixeirada!’
O Sr. Vasco nasceu em 1927, na casa em que vive atualmente. O pai era de Arganil, e jovem ‘veio à aventura. Porque naquela altura vinha-se pela aventura por aí abaixo. Essas mercearias todas, aqueles rapazitos, os miúdos, era tudo rapaziada que vinha da província. Aqui que era o vazadouro, aqui que era a América para eles. É Lisboa e continua a ser […], só que hoje é brasileiros, africanos, chineses […].’
O pai trabalhou no comércio e conheceu a esposa num dos arraiais da Praça da Figueira. A mãe era de Aveiro. O Sr. Vasco teve quatro irmãos que morreram ainda pequenos, somente sobrevivendo uma irmã que se casou com um rapaz do bairro e com quem teve dois filhos, um dos quais presentemente vive nos Açores e o outro em Santarém. Entretanto, a irmã faleceu e ele perdeu o contacto com essa parte da família. A D. Eulália, sua esposa, é filha única de uma família originária de Oliveira do Hospital. Ela nasceu no bairro, em 1925.
O casal conheceu-se numa ida ao cinema ‘Piolho’ (designação para o cinema que funcionou no Salão Lisboa). Casaram-se em 1947 na Igreja do Socorro. Um momento saudosamente relembrado através das fotos tiradas em frente da igreja que logo seria destruída. Ele trabalhou numa caserna militar, para onde foi ainda muito jovem. Ela começou como aprendiz de costureira na casa de uma senhora, mas depois o marido conseguiu que ela se tornasse costureira da caserna militar onde ele trabalhava. Ambos estão reformados.
Em 1952, nasceu o João, único filho do casal e que foi criado pela mãe da D. Eulália. Ele não completou os estudos e, por influência paterna, conseguiu trabalho no mesmo local onde o pai trabalhava. João casou-se com uma rapariga do bairro, indo viver para a casa que havia sido da avó materna. Teve dois filhos, ambos criados pela D. Eulália. A mulher de João não trabalha para fora. Por motivo das reformas antecipadas, onde contou o tempo em que fez a tropa em África, João reformou-se com aproximadamente 45 anos de idade, mas para compensar os parcos rendimentos trabalha como motorista num lugar onde também trabalha o seu neto mais velho. Esse filho de João casou-se com uma rapariga que não é do bairro e têm uma menina. Vivem na casa dos sogros, na periferia de Lisboa. O filho mais novo de João vive com os pais e foi o único que seguiu os estudos, encontrando-se em fase de conclusão do 12.º ano. Tanto o Sr. Vasco como o filho João têm casa para os lados da Trafaria, onde costumam passar as temporadas de veraneio.”
A família do Sr. Julião
“A minha relação com o Sr. Julião iniciou-se, e de certo modo continuou, através de um convívio à janela. Conheci-o quando andava a efetuar os inquéritos junto dos comerciantes da Calçada de Santo André e casualmente perguntei-lhe se um estabelecimento comercial que ficava ao lado da sua casa estava a funcionar normalmente. Ele da sua janela de rés do chão e eu em pé na rua começámos uma conversa que duraria aproximadamente hora e meia. Mais tarde vim a encontrá-lo nos bancos da Rua da Mouraria, mas quase sempre que passava na rua onde ele mora encontrava-o a apreciar o movimento da sua simpática janela e assim trocámos impressões diversas vezes, com ele sempre a ressaltar que ‘a Mouraria, Mouraria mesmo é aqui para trás da minha casa’.
O Sr. Julião nasceu em 1927 na casa onde vive, mostrando-se contente com o facto de que, embora a casa seja antiga, a Câmara fez obras há pouco tempo. Portanto, embora ele viva na Calçada de Santo André, considera-se bairrista, tendo sido criado com os avós paternos que viviam na Rua do Capelão, indo para lá logo pela manhã cedo quando os pais saíam para ir trabalhar. Conhece desde pequeno o Sr. Vasco, o Sr. Paulino e o Sr. Francisco entre tantos outros bairristas da Mouraria, tendo participado com afinco de algumas das atividades associativas locais. A sua mãe também nasceu na casa onde vive, mas os seus avós maternos nasceram na zona das Olarias, tendo mudado para aquela casa porque era maior. O pai nasceu na Rua do Capelão, onde viviam os avós. A mãe trabalhava como mulher a dias, ‘lavava um tanque de cimento cheio por 15 tostões’. O pai trabalhava para a Companhia dos Caminhos de Ferros Portugueses (CP). Teve três irmãos, dois deles trabalhavam na construção civil e outro era tipógrafo. Os irmãos depois de casarem foram viver para o lado das Olarias, sendo ele o único que continuou a viver na casa dos pais. Os seus irmãos, contudo, já faleceram e ele pouco contacto tem com os sobrinhos que foram viver para longe do bairro, em Caneças. Contudo, os seus irmãos eram muito mais velhos que ele, e quando nasceu eles já trabalhavam, por isso foi criado com os avós paternos.
O Sr. Julião completou o 4.º ano da escola primária, assim como os seus irmãos, referindo que ‘não foi por aí além, porque naquela época era difícil’. Ainda muito jovem, foi trabalhar para o porto de Lisboa na área da construção naval e atualmente está reformado. Em 1946, conheceu a esposa nas marchas e bailes que se realizavam na Mouraria. Casaram nesse mesmo ano. A esposa nasceu no bairro da Graça e era ajudante de cozinha numa casa na Avenida Almirante Reis que servia comida para fora. Tiveram três filhos que, depois de casados, foram viver em Queluz e na Amadora. A sua esposa faleceu há alguns anos e hoje vive sozinho. Sente-se animado com dois afilhados, filhos de amigos, sobretudo porque sempre lhe telefonam para o convidar para ir à praia ou fazer um passeio.
Lembra-se que antes era muita miséria, que muita gente só tinha a sopa dos pobres para se alimentar e que não havia reformas, mas agora há os sem-abrigo, ‘um cartão de visita muito mal para o país. Eu tenho pena dessa gente, mas tem lá em baixo um balneário para eles, mas eles não vão lá, só lá vai um ou dois, estão para ali sujos […]’. De antigamente, sente falta do movimento, salientando que o período que mais gosta do bairro é quando das festas populares:
‘Gosto daqui, o ambiente é bom, mas noutros tempos era mais agressivo, porque havia as casas das meninas, mas isso agora acabou, foi tudo lá para o Intendente. Naquele tempo era a rapaziada nova e a polícia a querer manter respeito. Naqueles tempos não havia liberdade, agora veio a liberdade, mas muita gente não sabe vivê-la. Agora isso aqui é sossegadinho à noite. As pessoas que aqui circulam são poucas, são as mais antigas. Às 10, 11 horas da noite já não vejo ninguém, […] e antes era um movimento aqui a subir e a descer, havia muita gente que trabalhava na Baixa.’
O Sr. Julião diz que já foi um ativo participante do Grupo Desportivo da Mouraria (GDM), mas atualmente diz que pouco lá vai porque é longe e já não há nada para se entreter. Não costuma ir à Associação dos Reformados da Freguesia do Socorro porque, segundo ele, o ambiente é pesado e depois ‘metem-se todos nos copos’. Gosta de ir à Rua da Mouraria e estar lá a conversar com os amigos. Também costuma ir à tasca da Travessa do Poço, no Largo do Terreirinho.”
A família da D. Júlia
“Fiquei a conhecer a D. Júlia no seu local de trabalho, numa das instituições locais onde, apesar dos seus 68 anos, ainda trabalha como auxiliar de recepção e, de uma forma simpática e delicada, vai ajudando aqueles que a procuram. Desse modo, fui conhecendo um pouco melhor o bairro através de uma vida contada nos intervalos do seu atribulado trabalho e sobretudo por entre os nossos encontros casuais na rua. Das lembranças, enfatiza a destruição da Baixa da Mouraria e da Igreja do Socorro onde foi batizada.
D. Júlia, é nascida e criada na Mouraria, onde também nasceu…
‘[…] minha mãe e nasceu cá os meus filhos. Fui criança e empregava-me. Nessa altura também era muita falta de emprego e eu mais umas amigas que ainda tenho de infância, ainda se conserva as amizades antigas, íamos aos anúncios […]. Mas a vida também era muito difícil naquela época, porque a minha mãe ficou viúva com quatro filhas e então levou as outras três e ficou cá eu, que era a mais velha, tinha 13 anos quando o meu pai faleceu.’
A mãe vendia no mercado da Ribeira, mas com o falecimento do marido teve que colocar as três filhas mais novas num orfanato, pois não conseguia sustentá-las, ficando somente com a D. Júlia que, sendo mais velha, já podia trabalhar, tendo para tal abandonado a escola primária sem completar o segundo ano: ‘[…] se a gente andasse com um sapato um bocadinho mais coiso, não era bem recebida nas escolas, faziam uma discriminação assim. Não queria então ir à escola, antes queria tomar conta da minha irmã mais nova.’
Depois foi trabalhar como moça de recados num alfaiate: ‘[…] a gente nunca se sentava, era o patrão a arrear e a gente ia a fazer recados. E depois, então, quando vinha o sindicato a gente dava jeito de fugir. […] Assim nunca tínhamos descontos, assim, porque a gente tínhamos que buscar os descontos à bolsa.’
Mais tarde, a mãe voltou a casar com um senhor do bairro, que vendia lotaria. Melhorando a situação económica, foram buscar as crianças que estavam no orfanato, que voltaram para o bairro já com o ensino primário completo e seguiram as profissões de cabeleireira, encadernação e confeção de malas de couro.
Sobre o pai, D. Júlia pouco fala, apenas referiu que tem conhecimento de umas primas paternas que vivem na Rua da Amendoeira. Por parte da mãe, a família é oriunda da Mouraria, Alfama e de São Vicente, onde até hoje tem familiares a viver.
Em 1946, conheceu o seu futuro marido que, era de uma família do bairro e ‘vivia melhor’, pois tinham uma banca na Praça da Figueira, com empregados a ajudarem-nos. O marido tinha uma irmã que se tornou amiga de D. Júlia, sendo através dela que conheceu o marido. Aos 18 anos engravidou e teve que se casar apressadamente, vindo viver para a casa da sua mãe e que já havia sido a casa da sua avó. Mal havia nascido a filha, engravidou novamente, tendo um rapaz. Sempre viveu com a família na casa da mãe e do padrasto, uma casa pequena onde só havia ‘um quarto, um quarto grande, tinha a casinha de jantar e tinha cozinha, e depois eu tinha feito obras, e o meu marido fez uma casa de banho. Mas tinha muito sol.’
Nessa época, o marido não conseguia encontrar emprego e tiveram muitas dificuldades económicas. Mais tarde, ele tirou a carta de condução e conseguiu empregar-se como motorista na Carris. Era muito forte e costumava participar como forcado nas touradas. Mas por ironia do destino, faleceu aos 44 anos devido a problemas no coração.
Quanto aos maridos das irmãs, dois são da Mouraria e o terceiro é de Alfama, onde vive o casal. As outras duas irmãs foram viver para Belas, onde criaram os filhos. Quanto aos filhos de D. Júlia, casaram com pessoas do bairro mas foram viver para o Cacém. Já tem três netos adultos que completaram cursos de especialização ou a universidade. A neta mais velha já está casada e tem uma filha.
No verão, D. Júlia costuma ir para a Costa da Caparica, onde a filha tem uma roulotte num parque de campismo. Mas caso haja algo importante no bairro, interrompe as suas férias e volta para a Mouraria, como foi o caso da morte de um primo seu ou quando se trata do batizado de algum conhecido.
Há quatro anos, viu-se obrigada a sair da casa onde sempre vivera porque o edifício ruiu, tendo sido realojada provisoriamente fora do núcleo da Mouraria, onde ainda vive:
‘Estava um dia a trabalhar e veio uma senhora me dizer que um prédio estava todo caído para cima do meu. […] Depois eu fui desalojada, mas eu não quis sair da minha freguesia, não quis ir para Chelas, então, mandaram-me para uma pensão, mas para pensão eu não estava habituada a estar em pensões, para a pensão era quando eu ia com o meu marido passear, fazer excursões. Então, eu não quis e fui assinar um termo de responsabilidade e pus-me lá dentro de casa […]. Uma vizinha de cima deu-me uma cama, a outra deu-me uma mesa e eu tornei lá a meter-me. E depois viram que eu realmente meti-me lá e fizeram-me um tecto, um telhado, daquelas tábuas de madeira das obras. Estava o prédio mesmo a cair, como agora caiu, só caiu agora […]. Então, havia uma casa livre em São Cristóvão, foi uma senhora que até me disse […], então, avisei o Gabinete Técnico. Mas a casa estava muito velha e eu disse que não podia ir para uma casa velha porque a minha casa estava impecável, […] porque eu também tinha uma casa de banho, tinha feito uma armação em toda a cozinha que cabia lá o frigorífico, cabia o lava-loiças, tudo moderno, cabia tudo e não podia tirar aquilo dali, ficou lá dentro. Depois, arranjaram-me essa casa em São Cristóvão e lá estou, fizeram lá obras.’
D. Júlia como a família que já não vive na Mouraria são muito entusiastas com tudo o que se relacione com o bairro: a procissão, as festas, a amizade com os vizinhos, os livros que saem sobre o bairro, etc. A família que ali não vive costuma visitá-la e não perdem um arraial popular. A filha, apesar de viver no Cacém, trabalha no mesmo local que a mãe e acompanha tudo o que se passa no bairro.”
A família do Sr. Paulino
“Conheci o Sr. Paulino por intermédio do Gabinete Local da Mouraria (GLM). Após um primeiro contacto telefónico da minha parte, marcámos um encontro nos bancos da Rua da Mouraria. Esse encontro decorreu numa bela tarde de primavera, num dia em que o movimento na rua estava frenético, apenas quebrado pelo ritmo pausado dos que estavam sentados nos bancos. Apresentámo-nos e fui convidada a ir a sua casa, onde nos esperava D. Amélia, a sua esposa. Em casa, tinha para me mostrar o famoso livro sobre a freguesia (Mendes 1996), fotos, documentos pessoais e um vídeo que registava uma entrevista sua para um programa televisivo do Júlio Isidro e cujo tema era a Severa – repare-se que o Sr. Paulino é conhecido como um dos intelectuais do bairro. Nessa entrevista, também participou a mulher e um primo. Depois encontrámo-nos diversas vezes e das muitas trocas de impressões, conversas e risos penso que nasceu uma amizade. Através dele, conheci outros moradores e muitos dos habituais frequentadores dos bancos da Rua da Mouraria.
O Sr. Paulino nasceu em 1934, na casa onde ainda vive, onde teria nascido o pai. O avô paterno nasceu no bairro mas noutra casa. Tem muitos parentes paternos a viver na Mouraria. A sua mãe era de Estarreja e os tios maternos andaram na pesca do bacalhau. Por volta dos 18 anos, a sua mãe veio para Lisboa trabalhar com um irmão que vendia peixe no mercado da Ribeira, mas quando esse irmão voltou para Estarreja, ela veio viver para a Mouraria com uma conhecida sua lá da terra, indo ambas morar num quarto no mesmo prédio onde vivia aquela que mais tarde se tornaria a sogra do Sr. Paulino. Da parte de mãe, não tem parentes no bairro e perdeu o contacto com os seus familiares de Estarreja.
A mãe do Sr. Paulino era varina e vendia o peixe nas ruas do bairro, onde acabou por conhecer o marido, com quem teve dois filhos, sendo que o mais velho faleceu com 18 anos. Era analfabeta, mas o pai tinha a 3.ª classe e foi fiscal da Câmara.
O Sr. Paulino foi batizado na antiga Igreja do Socorro. O seu nome vem do padrinho, que era subchefe da polícia no bairro. Em 1959, casou-se com a D. Amélia, também nascida em 1934. O conhecimento do casal vem dos tempos de miudagem e das brincadeiras na rua. A D. Amélia tem poucos familiares a viver no bairro. A mãe ainda jovem perdeu o único irmão e, mais tarde, os seus dois primeiros filhos.
Aos 13 anos, o Sr. Paulino parou de estudar para ser aprendiz de torneiro de metais, profissão que seguiu durante 50 anos, numa oficina localizada na envolvente do bairro. Aliada à lembrança do trabalho precoce recorda-se dos tempos de miséria que viveu comparativamente à melhoria das condições socioeconómicas do presente, recordando que após o nascimento da filha teve de compensar o parco orçamento familiar com outro trabalho à noite. Reformou-se como torneiro de metais há pouco tempo. Também D. Amélia começou a trabalhar muito jovem, não tinha 10 anos quando se iniciou na costura em casa de uma senhora e depois numa alfaiataria na Rua dos Fanqueiros. Em 1955 tornou-se eletricista bobinadora numa fábrica de máquinas elétricas. Também se reformou há pouco tempo.
A Susana, única filha do casal, nasceu em 1961, data também recordada pelo Sr. Paulino por causa da controversa destruição do Arco do Marquês de Alegrete. A filha tinha que dormir na casa da mãe de D. Amélia por falta de espaço na casa dos pais, onde também vivia o pai do Sr. Paulino. A Susana abandonou os estudos ainda jovem para trabalhar. Conheceu o marido nas férias de verão passadas na zona da Trafaria, onde o Sr. Paulino tem casa desde 1975. Susana vive fora de Lisboa. O seu único filho é o orgulho da família e, apesar dos seus 12 anos, já tem mais escolaridade que os seus ascendentes. Pais e avós estão envolvidos na educação do rapaz, que tem explicador de português e matemática, máquina fotográfica, bicicleta, skate e um computador fornecido pelo avô que, entretanto, recorda que naquele tempo… ‘aqui neste bairro quem tinha uma telefonia já era rico. Eu, quando tinha 16, 17 anos, só existia telefonia, rádio. E, então, a gente ia para baixo das janelas ouvir as telefonias, punham as telefonias à janela para a gente ouvir […].’
Em 1934, os pais de D. Amélia saíram na marcha do bairro. O casal, vestido para o desfile, foi fotografado e mais tarde essa imagem foi reproduzida num cartão-postal que D. Amélia mostra com orgulho. Contudo, ela e a filha nunca desfilaram na marcha, porque as lides da vida não deixavam tempo livre, mas ainda assim iam assistir ao desfile. Presentemente acompanham o desfile da marcha pela televisão. O Sr. Paulino, aos 13 anos, foi aguadeiro na marcha:
‘Eu e um rapaz que é o Santos fomos de aguadeiros. E as marchas em vez de chegarem da Liberdade, subiam. Ora, no verão, os marchantes coitados a cantarem tudo, transpiravam e andavam sempre a pedir água, […] e em vez de andarmos a dar água, andávamos a vender ao tostão, a 10 centavos cada copo de água. Então, íamos sendo presos, queriam já correr com a gente. […] Os marchantes não davam nada e a gente vendia é a água.’
O pai do Sr. Paulino participava da organização da procissão, foi membro fundador do Grupo Desportivo da Mouraria (GDM), onde ajudou a organizar várias atividades sociais e culturais, como a marcha, os bodos de Natal e o apoio aos mais carenciados, etc. Teve alguns problemas com as forças de segurança, tendo mesmo a casa sido invadida por polícias que o levaram preso, conseguindo livrar-se porque tinha um primo que era capitão da Guarda Nacional Republicana. O Sr. Paulino também participou ativamente no GDM e depois na comissão de moradores. Antes do 25 de Abril divulgou panfletos na via pública contra o salazarismo e por causa da sua atuação política teve alguns problemas com a polícia, que começaram quando ainda tinha os seus 13-14 anos…
‘Quando fui aprender o ofício era aqui no Intendente e vinha almoçar a casa. Então, na hora do almoço, acabei de almoçar, com fato-macaco vestido, vou por aqui abaixo e assentei-me ali na porta à esquina, na rua […] e o polícia embirrou que eu não devia estar ali assentado e levou-me preso. Teve que ir a minha mãe à esquadra pagar uma multa, multa essa que foi 25 tostões, na altura já era dinheiro. Ela teve que pagar 25 tostões para eu sair, para não ter que ir preso para a prisão dos menores. Por eu estar ali assentado, a senhora veja como era o regime, eu fui preso e tive que pagar uma multa.’
O Sr. Paulino é do PS e membro da Assembleia de Freguesia, mas considera-se cansado e pouco estimulado com o bairro dos tempos de agora. Com dedicação participa, juntamente com outros amigos do bairro, das reuniões de um grupo de amigos do bairro, dos encontros com os amigos nos bancos da Rua da Mouraria e, de forma descontraída, nos arraiais populares e na procissão.”
A família do Sr. Francisco
“Conheci o Sr. Francisco através de outro morador do bairro e logo no nosso primeiro contacto ofereceu-me um livro da sua autoria em que conta sobre alguns aspectos da sua vida no bairro, e emprestou-me alguns artigos de jornais sobre a Mouraria para que eu fotocopiasse. Ele foi um importante impulsionador do Grupo Desportivo da Mouraria, mas hoje somente participa no grupo de amigos Os Carneiros. Contudo, até hoje costuma assistir aos ensaios da marcha da Mouraria e vê-la desfilar no Pavilhão Carlos Lopes. Gosta dos arraiais populares e, quando é o caso, costuma assistir às sessões de fado que decorrem no GDM. Com ele fui pela primeira vez ao ensaio da marcha da Mouraria, sendo também ele quem me mostrou o Palácio dos Marqueses de Távora, onde atualmente funciona o GDM.
O Sr. Francisco nasceu em 1934. Ele e o irmão mais velho seguiram os passos do pai na profissão de sapateiro. Os pais vieram de Fajão, uma terra próxima da Serra da Estrela,7 tendo migrado com um filho recém-nascido para Lisboa no dealbar dos anos 30, em busca de uma vida melhor. Ele, mais os seus dois irmãos mais novos, nasceram na Mouraria, na Rua do Capelão. Os tios paternos migraram mais tarde para Lisboa e abriram restaurantes, mas nunca viveram no bairro.
A morte do pai deixou a sua mãe com quatro filhos para criar, pelo que o Sr. Francisco começou a trabalhar como sapateiro aos 9 anos de idade, fazendo todos os serviços de sapataria, vindo mais tarde a especializar-se no arranjo de sapatos ortopédicos, tarefa a que se dedica presentemente, mas de que pensa reformar-se com alguma brevidade. Durante a sua infância, as dificuldades eram tantas que ele e os irmãos tiveram de recorrer à sopa dos pobres para poder sobreviver. Mesmo assim, conseguiu completar a 4.ª classe com boas notas, paralelamente ao trabalho e à impossibilidade de fazer os deveres à noite, porque a mãe não deixava porque gastava muito petróleo.
Casou-se com uma senhora do bairro, com quem teve uma filha. Viveu a maior parte da sua vida no núcleo da Mouraria, mas a sua oficina era na envolvência do bairro. Divorciou-se após 27 anos de casado. Voltou a casar e foi viver para a Mouraria alargada, numa casa onde tem a oficina. A filha é técnica superior nos Correios e vive fora do bairro, casada e com uma filha.
Para além do irmão mais velho, não tem outros parentes a viver na Mouraria. Esse irmão está reformado e vive com a mulher na casa que era da mãe. Os sobrinhos casaram e saíram do bairro, indo viver em Almada.
Durante 50 anos, esteve ligado à coletividade do GDM, mas agora diz que já não tem idade ‘para essas coisas’. Trabalha de ‘domingo a domingo’ e tira férias no verão, costumando ir para a província, em Fajão, onde a irmã tem casa. É assumidamente bairrista e conhecido como um dos intelectuais do bairro.”
A família da D. Aurora
“Conheci a D. Aurora num dos arraiais populares, onde ela vendia bifanas numa das bancas locais. Desde esse dia, passámos a cumprimentar-nos. Posteriormente, descobri que ela tinha um estabelecimento comercial que funciona como um ponto de encontro dos moradores. É casada com um dos intelectuais do bairro. As nossas trocas de impressões ocorreram essencialmente no seu local de trabalho, onde ia comentando as suas impressões diante dos clientes que atendia, que muitas vezes também participavam da conversa.
D. Aurora nasceu numa aldeia próxima de Góis, em 1939. Veio para a Mouraria quando tinha 8 anos para servir na casa de famílias mais abastadas. O pai foi o que primeiro migrou para Lisboa, com 25 anos, para encontrar trabalho e casa, tendo-se fixado no bairro. A mãe, ela e os dois irmãos vieram em seguida. O pai nasceu em 1911 e ainda é vivo, ajudando-a nos trabalhos do seu comércio quando ela vai preparar o almoço. O pai trabalhou como carpinteiro e a mãe vendia frutas no mercado da Ribeira. Os dois irmãos de D. Aurora casaram-se com raparigas do bairro e continuam a viver ali com a família. Um dos seus irmãos fez a tropa em Angola e quando voltou montou o estabelecimento de que agora ela toma conta, desde que ele faleceu num acidente.
O marido de D. Aurora, o Sr. Tiago, nasceu na mesma aldeia que ela, tendo vindo para a Mouraria com os pais e os quatro irmãos ainda pequenos. É limpa-chaminés, como também eram os seus dois irmãos e o pai, mas estes já faleceram, apenas restando as duas irmãs que entretanto se casaram com pessoas ali do bairro, onde ainda vivem. Os filhos, depois de casarem, foram viver fora do bairro.
D. Aurora casou-se em 1960 com 21 anos de idade e o marido com 26 anos. Tiveram dois filhos. O rapaz, de nome João, tem atualmente 36 anos e seguiu a profissão do pai, trabalhando com ele na envolvência próxima do núcleo do bairro. São sócios-gerentes de uma firma de limpa-chaminés. O João casou-se com uma rapariga do bairro, com quem teve dois filhos, e vivem no Cacém. João completou o 7.º ano da escola e praticou futebol amador no Benfica. A filha de D. Aurora terminou o liceu e especializou-se em línguas, trabalhando como tradutora.
Já casada e com filhos, D. Aurora completou a 4.ª classe de instrução primária no curso noturno para adultos que funcionou no GDM, na Rua do Capelão. Não completou o ensino primário quando criança porque: ‘[…] andava na escola da Rua da Madalena pela manhã e à tarde trabalhava, fiz até à 3.ª classe nessa escola e fui excluída da 4.ª porque já tinha 14 anos. Então, comecei a trabalhar o tempo inteiro como costureira, até vir aqui para a banca.’
O marido completou a 4.ª classe da primária, tendo que abandonar os estudos para ir trabalhar porque as dificuldades eram muitas. É considerado um dos indivíduos mais bairristas da Mouraria e um daqueles que mais impulsionaram a coletividade local – o GDM –, sendo mesmo tido como o principal intelectual do bairro, costumando dar entrevistas na rádio e escrever para os jornais (como A Capital e o Correio da Manhã) abordando temáticas relacionadas com a Mouraria. No entanto, o Sr. Tiago atualmente participa pouco das atividades associativas, envolvendo-se com mais afinco no grupo Os Carneiros, juntamente com outros amigos do tempo de criança. D. Aurora contou-me que o marido ‘até já foi fazer a limpeza da chaminé na casa do Rui Veloso’, e que é por isso que esse cantor tem ‘aquela música que fala dos limpa-chaminés […].’
Para D. Aurora, o bairro mudou muito com a destruição da Baixa da Mouraria e a construção do Centro Comercial da Mouraria, referindo que antes era tudo ‘como se fosse uma só família’. Comentou que ainda assim…
‘Não trocava a Mouraria por outro bairro. Eu digo-lhe uma coisa: quando vou a casa do meu filho e quando volto e vejo as escadinhas velhas de cá, que alívio, que fascínio! Vou dar um outro exemplo: quando a minha filha estava mal, aluguei uma casa na praia e ela ficou mal lá, era um prédio e gritei, gritei, estava num rés do chão e ninguém veio acudir. Na Mouraria não é assim, tem aquele estilete que até parece o Casal Ventoso, quando vêm não é pessoas de cá. A Mouraria é como uma aldeia. Quando éramos pequenos, os da Rua do João do Outeiro não podiam se misturar com os da Rua do Capelão, era logo porrada, mas depois de adultos ficaram tudo amigos. Mas quando iam jogar para Alfama, juntavam-se todos contra os de lá […]. Os Carneiros são quem ainda revivem os tempos antigos.’
Nas férias de verão e nos feriados da Páscoa, D. Aurora, o marido, filho e netos, costumam ir para a aldeia em Góis, onde ainda têm casa. E quando chega o período das festas populares, monta sempre a sua banca de bifanas, dizendo que esse é o período em que mais gosta do bairro.”
A família do Sr. Manuel
“O facto de ter tirado uma fotografia ao filho do Sr. Manuel facilitou a nossa aproximação, pois até então só nos conhecíamos de vista. Ele, entretanto, já havia sido referido por outros moradores como sendo uma ‘pessoa importante’ para o meu trabalho, pois é tido como um bairrista convicto. Depois, enquanto aprendia a lidar com um trabalho que se desenvolvia na rua, entre as tantas casualidades que sucediam, fui colhendo as informações preciosas que me eram espaçosamente reveladas pelo Sr. Manuel. Homem ágil, envolvido com o bairro e os seus vizinhos que, apercebendo-se dos meus interesses de trabalho, me deu indicações das reuniões no GDM, das festas, dos acontecimentos do fim de semana em que eu não estive presente, das sessões da Assembleia de Freguesia, etc. É um participante ativo do GDM, a coletividade que considera fundamental revitalizar porque é um símbolo da Mouraria, de modo que está sempre a imaginar novas atividades que permitam a sua reanimação. É um organizador ativo dos arraiais populares e da marcha, onde os filhos costumam desfilar. Também é membro da Assembleia de Freguesia.
Nasceu em 1964 e praticamente foi criado sem o pai, que faleceu quando era criança. Teve uma vida de dificuldades no seio de uma família de sete irmãos sustentados pela mãe. Aos 14 anos largou a vida de brincadeiras nas ruas do bairro, deixou a escola e entrou no mundo do trabalho, vindo a tornar-se mecânico de automóveis. A sua mãe, com 78 anos, ainda vive na casa onde ele nasceu. Seis dos seus irmãos casaram-se e foram viver para a periferia de Lisboa. A irmã mais velha vive em Alfama, na casa que pertencia ao marido. Os irmãos quando voltam ao bairro estranham porque ‘já não conhecem ninguém’. O Sr. Manuel tem primos que vivem na Mouraria.
Os pais nasceram na Rua das Farinhas, na freguesia de São Cristóvão / São Lourenço. Vieram viver para o núcleo da Mouraria depois de casados. O pai foi estivador e também era sócio de uma varina do bairro. Como trabalhava no porto, trazia o peixe fresco para a tal senhora vender. Ainda pequeno, Manuel ajudou a vender o peixe na esquina das ruas da Mouraria / Capelão. A avó materna vendia peixe no mercado da Praça da Figueira, onde a mãe também trabalhou. Com a destruição deste mercado, a mãe foi vender no Martim Moniz, mas isso durou pouco tempo e depois começou a lavar roupa para fora. Quando era criança, a mãe do Sr. Manuel fez recados às prostitutas que viviam no bairro.
Conhece a esposa desde pequeno das brincadeiras de rua. Casou-se em meados dos anos 80 e tem três filhos. Vivem num pequeno fogo com apenas dois quartos, localizado num edifício em estado de ruína iminente.
O Sr. Manuel conhece muitos dos habitantes do bairro, com quem convive de maneira simpática, lembrando que alguns não gostam dele por causa das suas ‘afrontas de meninice’, como a de um vizinho que mal lhe fala por causa das vezes que fez fogueiras em frente à sua casa e dos vidros que quebrou quando jogava à bola. Lembrando-se das dificuldades de criança, diz que procura fornecer aos filhos tudo aquilo que não teve como, por exemplo, uma bicicleta, pois ‘olhava alguns miúdos que tinham e sonhava ter uma, e como tive sorte na vida, hoje tenho uma bicicleta minha e cada um dos meus filhos tem a sua própria bicicleta’.
Alguns dos seus amigos do bairro, entre meados dos anos 70 e 80, começaram a traficar para suster a necessidade de consumir droga, muitos dos quais, segundo ele, já faleceram.”
17Muito embora, devido às condicionantes do trabalho, não tenha sido possível explorar com mais profundidade o percurso de vida dos indivíduos, foi possível detectar a existência de certos elementos comuns, certas regularidades na vida dos de dentro que me pareceram funcionar como base para uma determinada visão do bairro. Mas estes indivíduos inserem-se numa sociedade global, complexa e estratificada, não sendo um grupo autocontido, o que os coloca frente a diversificadas situações e visões do mundo. Importa clarificar, como referiu Velho (1998: 60), que aqui interessou captar o tom dominante pelo qual determinados sistemas de classificação implicam “mapas de orientação através dos quais as pessoas e os grupos se situam no mundo, estabelecem suas estratégias, traçam seus objetivos e se organizam em geral”.
18Assim, quando me reporto a certas regularidades na vida de tais indivíduos, faço referência a uma determinada visão do bairro fundamentada numa considerável precariedade socioeconómica, na entrada precoce no mundo do trabalho aliada ao abandono da escola, nos modos de constituir família, de organizar o trabalho, de habitar, de estabelecer relações sociais, de representar o bairro, de participar nas instituições, nos rituais comemorativos locais e na vinculação socio-espacial à Mouraria, pois mesmo que ali não tenham nascido viveram a maior parte das suas vidas nesse bairro.
Memórias do lugar
“Há algo na disposição espacial que torna legível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência.” (Bosi 1994: 451)
19Uma das primeiras impressões com que fiquei é de que o antes e o agora eram demarcados pelos indivíduos mais velhos – acima dos 60 anos – a partir de dois momentos distintos. O primeiro está relacionado com a destruição da Baixa da Mouraria nos anos 40 do século XX, e o outro momento com a entrada dos indianos no âmbito da atividade comercial (meados dos anos 70), e a posterior edificação do Centro Comercial da Mouraria (anos 80). Mas essa primeira impressão logo levantou algumas dúvidas: será que essa maneira de distinção entre o antes e o agora alude a uma percepção uniforme do tempo? Será possível falar numa percepção do passado que infere a ideia de tempo linear e contínuo, quando é sabido que a memória é descontínua, fragmentada em factos e episódios separados (Velho 1994: 103)? Observa-se ainda que entre o primeiro e o segundo momento acima referidos existe um interregno de tempo de 30-40 anos, ou seja, um período considerável na vida de uma geração. Assim sendo, como falar numa demarcação do tempo se não se sabe muito bem onde acaba o antes e começa o agora?
20Certamente, tais momentos implicam períodos históricos com especificidades ao nível político, urbano, cultural e socioeconómico. Também não se deve descuidar o facto de que alguns indivíduos tinham consciência dessas especificidades. Isto é evidenciado particularmente na distinção que fazem entre o regime do Estado Novo e o regime democrático que se seguiu. Contudo, embora os acontecimentos sejam percebidos como ligados a períodos distintos, a importância dos dois momentos acima referidos na distinção que os de dentro fazem do antes e do agora não advém propriamente do facto de serem marcos cronologicamente demarcáveis.
21Na realidade, ainda que certas datas e períodos sirvam como referência às lembranças dos indivíduos, o que está em causa não é a existência de uma certa percepção linear do tempo, mas sim que determinados acontecimentos marcaram profundamente a visão que os de dentro têm do bairro. Precisamente porque são marcos que funcionam como operadores de demarcação simbólica e social entre o antes e o agora. Neste sentido, pode dizer-se que um momento é englobado no outro, como que funcionando como um único marco de demarcação do tempo. Assim, os interregnos de tempo entre um e outro momento não são particularmente expressivos na leitura que os de dentro fazem das mudanças que se processaram no bairro. Curiosamente, o livro intitulado Socorro, Freguesia Mourisca – Berço do Fado (Mendes 1996), desempenha um papel importante na demonstração de como o agora se distingue do antes. Muito embora o livro identifique períodos e datas históricas, não me pareceu que a sua importância socio-local adviesse de ser possível através dele ordenar a percepção do tempo, mas porque o livro facultou o acesso a um conjunto de fotografias que servem para os mais velhos explicarem como eram as dinâmicas sociais num contexto cujo espaço físico havia sido consideravelmente alterado.8
22Contudo, considerando que para além do antes e do agora também existia um tempo longínquo percebido como sendo o tempo de antigamente, observei que esse período não era referido a partir de um marco referencial que permitisse demarcá-lo, remetendo para um período lendário,9 onde eram sobretudo evocados determinados personagens como, por exemplo, a Severa, os fadistas e as prostitutas de antigamente. Neste sentido, observo que apesar de não ter sido possível explorar com profundidade a forma como as diferentes gerações locais lembram o passado, pareceu-me que, por parte dos indivíduos mais novos, na distinção entre o antes e o agora, havia uma maior interferência do período lendário. Se bem que existissem distinções na percepção do passado e do presente, nesses casos fiquei com a impressão de que o antes se confundia mais rapidamente com o antigamente, fazendo lembrar Pina Cabral (1989: 276) quando referiu que o antes é um “estágio intermédio entre o agora e o antigamente”.
23Portanto, ao ter como referência os aspectos acima referidos e os limites da pesquisa, interessa mostrar algumas referências sociais, culturais, simbólicas e urbanas que estão na base de uma determinada imagem do bairro. Saliento também que serão privilegiados alguns dos fragmentos de conversas e opiniões que me pareceram mais significativos e tomados como representativos do restante dos dados recolhidos.
A Severa e o tempo de agora
24A personagem da Severa, associada ao ambiente do fado, é um dos principais símbolos do bairro. Muito se falou e se escreveu sobre esse símbolo, ligando-o à chamada tipicidade do bairro ou à sua má fama, ao ponto de muitas vezes a Mouraria ser também referida como um bairro mafioso. O problema é que, quando se liga tipicidade à má fama pode daí surgir um certo embaraço que acaba por situar a Mouraria num espaço liminar onde a sua duvidosa tradição tanto pode ser tema de interesse e emblematização como de segregação e estigmatização. Mas o que se torna interessante é que, se para muitos a múltipla convivência entre o carácter típico e a má fama do bairro é motivo de embaraço, para os de dentro essa convivência serve sobretudo para reforçar a tipicidade local. Não porque estejam inconscientes de que tal situação os possa colocar numa situação de liminaridade, mas precisamente porque a eficácia simbólica do mito da Severa advém, em grande medida, do mistério e da ambiguidade que o envolve, conferindo ao bairro uma singularidade que permite reforçar ainda mais a sua emblematização. Assim, vejamos como é interpretado o antigamente no bairro a partir da figura da Severa e do ambiente que a envolvia, e como essa percepção se reflete no antes e é emblematizada no tempo de agora.
25A consciência de que à Mouraria é atribuída má fama era patente sempre que os seus moradores se referiam à omissão feita do local de residência como estratégia para serem exogenamente aceites, ou na constatação de que provocam desconforto quando assumem que são da Mouraria. Por exemplo, D. Aurora contou-me que o filho, quando era adolescente, jogava futebol no Benfica e participava em várias outras atividades desportivas e festivas. Certo dia, ele revelou onde vivia, verificando que os seus colegas ficaram estupefactos e não entendiam como uma pessoa “direita e responsável” podia ser de um bairro como a Mouraria. Note-se aqui, que a autoconsciência da liminaridade da Mouraria incomoda, pois sabem perfeitamente que, associado à miséria local, havia a prostituição, brigas e muitos desacatos à ordem instituída, e que tais situações facultaram (e facultam) a construção de imagens pejorativas do bairro e, como tal, dos seus moradores. Neste sentido, veja-se como o Sr. Vasco interpreta a má fama do bairro:
“A Mouraria tem uma má fama, mas eu não gosto nada dessa má fama, porque eu quando fui para as oficinas, só por dizer que era da Mouraria as pessoas olhavam para mim como se eu fosse quase um marginal. Até prostituição que na altura era bastante grande, as raparigas da Mouraria iam para outros lados, não pousavam aqui, a verdade é esta, mas a Mouraria, os fadistas […], havia para ai desacatos, facadas […], mas não era a malta da Mouraria, a malta da Mouraria lá tinha respeito. A Mouraria tem grandes tradições […].”
26O fragmento acima serve para mostrar como é driblado o reconhecimento da má fama do bairro a partir de duas estratégias: imputando o protagonismo da desordem aos de fora e aliviando a carga negativa dos protagonistas locais da desordem, reportando as suas práticas para outros sítios, já fora da Mouraria. Tal estratégia tem eficácia por admitir a ambiguidade e incorporá-la na própria configuração da imagem identitária do bairro, dissimulando ou admitindo alterações de espessura no seu sentido ou, ainda, invertendo o seu significado, que de um bairro com má fama transforma-se num bairro com grandes tradições. E é justamente com base nesse tipo de lógica que é possível captar como os de dentro percebem o tempo de antigamente e valorizam determinadas figuras e personagens ligadas ao lado marginal da cidade, e intimamente relacionadas com o mito da Severa.
27Sobre a figura da Severa recaem dois principais tipos de atributos: grande intérprete do fado e prostituta de reconhecida fama. Tais atributos não implicam oposição; pelo contrário, até foram complementares. E essa mudança não passou despercebida aos moradores. Por exemplo, quando perguntei ao Sr. Paulino se a Severa seria criticada caso fosse nossa contemporânea, ele respondeu:
“Olhe, não sei. Talvez criticada por um lado, porque diziam que ela era prostituta, que era uma mulher da vida […]. Pelo fado não, talvez não fosse criticada, talvez fosse criticada porque juntar as duas coisas, ser prostituta e ser cantadeira de fado, era […] talvez trouxesse má fama à coisa, talvez fosse criticada. Hoje as pessoas ligariam mais, porque as pessoas estão mais cultivadas. Porque naquele tempo, quando existia a Severa, as pessoas eram incultas e uma prostituta cantar o fado não se queixavam, aceitavam […], hoje tenho a impressão de que a sociedade não aceitaria.”
28Fado e prostituição deixam, assim, de ser percebidos como as duas faces de uma mesma moeda, passando a ser apreendidos como dois lados distintos da realidade, onde fado e intérprete se tornaram o polo positivo e a condição de prostituta o polo negativo. E observe-se que essa transformação funcionou como uma espécie de trampolim para a ampliação da importância do fado através da inversão do seu significado, que de uma experiência musical ligada ao lado boémio e marginal da cidade se tornou emblema de uma especificidade urbana, ícone de determinada face da cidade e até do país (Brito 1999: 24).
29Mas se a ligação entre o fado e a prostituição já não é bem vinda, como é que os indivíduos justificam a existência de prostitutas na Mouraria de antigamente e de antes?
30É precisamente a ambiguidade intrínseca ao mito da Severa que permite justificar tal situação, também modificando o seu sentido e invertendo o seu significado depreciativo que, passando a ser interpretado positivamente, serve como exemplo de que naquele tempo havia mais respeito, solidariedade, ordem e união, e também permite perpetuar a imagem de que a Mouraria é um bairro com tradições. Vejamos como.
31Existem duas perspectivas mais relevantes que servem para explicar a vida da Severa: o romance de Júlio Dantas (1901) que, tendo imortalizado o mito, é percebido localmente como um registo que funciona como validação histórica da existência dessa figura; a tradição oral que, ao perpetuar a memória dos antepassados, confere validação à existência da Severa. Como exemplo, veja-se como o Sr. Jorge se referiu:10
“Há uma história dela que há num livro do escritor Júlio Dantas, em que ele descreve bem o que era a vida dela. Eu posso dar os dados daquilo que ouvi nos meus tempos de garoto, não é? Ela era um símbolo do fado. É claro, evidente, que é o que toda a gente dizia, os nossos antepassados e creio que esse livro explica bem isso tudo.”
32Note-se que ambas as perspectivas permitem a validação e a perpetuação do mito. Contudo, a importância do livro advém do facto de ser um registo que não pode ser alterado e, por isso, serve como instrumento para corroboração da existência histórica da Severa. O conhecimento transmitido oralmente perpetua o mito precisamente porque permite a introdução de novos elementos, facultando desse modo a sua constante reinterpretação e reconfiguração. Este tipo de conhecimento é maleável e vai-se adequando à realidade dos indivíduos. Por exemplo, “ouvia-se dizer que ela [a Severa] era uma mulher da vida, não sei se era ou se não era, não sei […] ouvia-se dizer e pronto. Ela era uma mulher do fado […]” (D. Amélia).
33O depoimento anterior serve para mostrar que, apesar de não ser negada a relação entre a Severa e a prostituição, essa ligação é tomada como algo que se ouvia e (se ouve) falar, pelo que pode ser questionada. Mas a relação entre a Severa e o fado é tomada como uma certeza e é isso que importa lembrar e perpetuar. O que, por outras palavras, significa dizer que enquanto o lado positivo da vida da Severa, o fado, é simbolicamente validado, o lado marginal da sua existência nem é negado, nem é corroborado, ou seja, é ambíguo. Uma ambiguidade ainda maior quando se sabe que… “a vida dela também está envolvida com a alta sociedade, com o Conde de Marialva, ou seja, o Conde de Vimioso […]” (Sr. Julião).
34Esta ambiguidade permite duvidar da existência da prostituição no tempo de antigamente o que, de certo modo, permite ilibar a Severa, pois tais inferências foram ouvidas quando eram pequenos, são coisas de que os antepassados falavam, portanto, não são comprováveis. No entanto, para os mais velhos, a prostituição no tempo de antes é algo que foi vivido, experimentado e visualizado, sendo difícil de negar, até porque havia muitas casas de passe na Mouraria…
“Bem, naquele tempo [da Severa] não sei. Mas no meu tempo havia. Havia aqui na Rua João do Outeiro, eram duas casas, uma em frente da outra. Havia aqui na Rua da Guia, outra casa. Havia na Rua da Amendoeira, uma, duas, três casas […], havia aqui na Calçada dos Cavaleiros, havia na Rua do Terreirinho. Depois houve uma lei que saiu em que o Salazar acabou com a prostituição, essa lei saiu e, então, essas casas acabaram, mas a prostituição ainda foi pior, porque antigamente haviam essas casas e haviam inspecções médicas, essas mulheres tinham uma caderneta de saúde e toda a semana tinham de ir à Direção Geral de Saúde e ir à inspeção médica, e quando não apareciam lá eles vinham à procura delas. É claro, depois começou a correr no estrangeiro que Salazar vivia à sombra da prostituição […] não sei o quê, ele baniu a prostituição em Portugal. Ficou pior. Andou, então, a prostituição clandestinamente e ainda hoje há, hoje não está autorizada mas há e bastante!” (Sr. Paulino)
35Mas a ambiguidade é novamente resgatada para aliviar a carga negativa decorrente da constatação que de facto havia prostituição e, desse modo, há uma espécie de suspeita de que as prostitutas que havia no bairro eram de fora: “Olhe, aqui do bairro, pessoas, pessoas do bairro não me lembro assim de prostituição. Eram sempre mulheres que vinham para cá associadas a essas casas de passe […]” (Sr. Paulino).
36De fora ou de dentro, as prostitutas existiam e muitas praticavam a sua atividade dentro do bairro. Assim, queira-se ou não, ao bairro era, e de certo modo ainda é, imputada má fama por essa situação e as outras associadas a ela – fadistas, alcoólicos, brigas e facadas, mortes, malandragem, marginalidade, etc. E aqui, uma vez mais, essa carga negativa é aliviada através da inferência de que elas eram solidárias, ajudavam as pessoas, pagavam bem às crianças para fazerem recados, não diziam as asneiras que agora se ouve por aí, respeitavam as pessoas, estavam a ganhar a sua vida e não se metiam com ninguém, quando chegava um cliente elas fechavam as portas e dali para dentro não se sabia de nada, cantavam o fado e assim são recordadas. As prostitutas são lembradas nas suas meias-portas, isto é, uma porta com vidros de janela na metade superior, onde elas ficavam à espera de clientes. D. Eulália referiu que quando ainda era bebé, lembrando-se do que a mãe contava, a mãe a levava ao colo e elas pegavam-na e davam-lhe rebuçados, mas havia mais respeito, não era como agora. Também D. Amélia conta que a sua mãe fez recados para as prostitutas, pois elas pagavam muito bem e todos gostavam muito delas, mas agora é diferente, pois “já não há aquele respeito de antigamente”.
37Em vez de analisar a veracidade ou não de tais situações, parece-me mais promissor admitir a existência de uma capacidade subtil de manipular a ordem e a desordem, o símbolo e o seu contraste, o mito e a realidade. Pois julgo que aí reside a possibilidade de valorização das tradições do bairro, ao ponto de ser um dos temas que servem para representar uma determinada imagem do bairro e da cidade.
38De um ponto de vista sociológico, o mito da Severa serve para interpretar uma determinada faceta do presente a partir de categorias e relações anteriormente concebidas. É precisamente essa sua característica que contribui, entre outros aspectos, para a instalação de uma espécie de vazio, de nada, quando os de dentro são confrontados com as outras facetas do agora. Embora esse mito apresente um efeito ordenador e justificativo do lado marginal do bairro, inclusivamente extrapolado para o contexto da cidade, permitindo a sua idealização e emblematização, e aliviando a má fama incidente sobre o bairro desde os tempos de antigamente, ele não dialoga com a liminaridade existente no tempo presente.
Os tempos de antigamente, antes e agora
“À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo.” (Bosi 1994: 452)
39Algumas das lembranças mais evocadas assentam nos longínquos anos 30-40, quando foram aos piqueniques organizados pelo Grupo Desportivo da Mouraria (GDM) na Mata de São Domingos de Benfica, ou que a miudagem ia, a pé ou de boleia na carroça do padeiro, até ao Poço do Bispo, Xabregas, Margueira, Cais do Tabaco, ou ainda ao lodo do Terreiro do Paço, onde se deliciavam em banhos intercalados com corridas apressadas em que, com a roupa na mão, fugiam da polícia que não consentia tais liberdades. Tempos em que, ainda muito novos e sem idade para andarem na escola, iam para as ruas de…
“[…] pés descalços e os calções com os fundilhos eternamente remendados, brincavam e jogavam à bola e a outros jogos como a barra, o eixo, o berlinde, as uvas, o rei coxo, à estrelinha cai-cai, às corridas dos arcos, com as ganchetas de arame, à bilharda, etc., e também fugindo aos cercos que a Polícia fazia nos largos do Capelão ou da Guia, aonde os jogos renhidos de futebol com bola trapeira, ultrapassavam a paciência dos moradores mais rabugentos […]. Os dedos dos pés entrapados, pelos pontapés nas pedras ou rasgados pelos bocados de vidro, então nesses já longínquos anos trinta, a vida tinha um sabor, que só quem passou por esses tempos pode compreender e recordar.” (A.A.V.V. 1995)
40Jogar à batota e ao jogo da laranjinha eram atividades de entretenimento e convívio, mas que agora somente acontecem raramente no bairro:
“Porque antigamente se jogava muito à batota também, aqui nesses cantinhos […], a laranjinha ainda se joga aqui no Centro Escolar Republicano Almirante Reis. Havia outra também ao pé das Escadinhas do Jogo da Pela, que era uma taberna chamada o Belo, que era na Rua Horta da Graça, mas esse ‘tá fechado. Agora, o jogo da laranjinha era aqui e lá em cima na Rua das Olarias, que eu não sei se ainda funciona lá na Rua das Olarias […], e mais abaixo havia uma tabernazita que tinha ai o jogo, mas não sei se ainda está em atividade.” (Sr. Paulino)
41Quando se juntava uns tostões, a ida ao cinema conhecido pelos lisboetas como o “Piolho” era um bilhete garantido para outros mundos…
“[…] Havia lugares marcados e havia, então, os bancos corridos, que eram chamados os bancos dos piolhos que era onde a gente pagava mais barato e assentava. Se algum dava gorjeta ao arrumador ele deixava a gente assentar ali, se não dava assentávamos no chão, mesmo que o banco corrido já estivesse cheio, se a gente desse qualquer coisa ao arrumador ele entalava e tinha que ficar lá assentado, então veio esse nome o piolho. Isto quando nós éramos miúdos, é como digo, a miséria era muita e, então, com respeito aos piolhos era a ver as mães aqui à porta com os filhos a catar aqui a gente e comigo a minha mãe a catar aqui na porta, a catar os piolhos. É claro, tudo isso deu origem ali ao piolho. Era o cinema cá do bairro […].” (Sr. Paulino)11
42Como referiu Bosi (1994: 415), o tempo de infância é largo e “quase sem margens”, sendo assim recordado com uma tal pujança que faz pensar na possibilidade de a infância ter sido longa. Mas cedo veio a vida de trabalho, sendo esse um momento recordado com precisão, marcando a interrupção precoce da infância. Varinas, estivadores, costureiras, vendedoras de figos, maçãs e fava-rica, limpa-chaminés, sapateiros e operários são algumas das profissões que mais marcaram a vida dos indivíduos, dos seus pais e avós.
43O trabalho ocupou (e ocupa) grande parte da vida de muitos dos filhos do bairro, sendo relembrado através de detalhes como o movimento das mãos calejadas, a rigidez do patrão, as muitas horas passadas a trabalhar, as poucas horas de folga, a falta de direitos dos trabalhadores e que para muitos só foram adquiridos com o fim do regime salazarista e a instauração da democracia. Alguns, com orgulho, enfatizam que agora já descontam para a Caixa de Previdência Social, que têm direito a reforma, que possuem a carta de condução (sobretudo os homens), conta bancária, passe social, etc. Documentos retirados da gaveta ou do bolso mesmo no meio da rua e mostrados com orgulho como se simbolizassem uma conquista, um reconhecimento.
44Também se recordam das prostitutas, dos vadios e dos tantos fadistas que existiam, e ainda das inúmeras figuras populares e engraçadas que transformavam as ruas num verdadeiro palco público. Carmo (1943) registou que na Mouraria, precisamente na Rua da Palma, havia um tipo conhecido pela alcunha “o Cai pela pia abaixo” que era o “dono de um pequeno estabelecimento e oficina de chapéus de chuva” que ficava muito violento com os rapazes cada vez que era assim chamado.12 Na Rua do Benformoso, havia uma “vendedeira de hortaliça, com um burro, que atirava com as balanças, os pesos ou o que estivesse à mão, aos garotos quando estes a mandavam ir levar o chouriço ao homem […]” (Carmo 1943). Tipos populares, tipos das ruas e que, segundo D. Aurora, desapareceram “porque agora tipos, assim tipos, só se forem os toxicodependentes, os sem-abrigo, indianos, chineses, africanos […]”, parecendo que as figuras características da Mouraria de agora são como que o espelho daqueles que são tidos como de fora. Ainda assim, há um sem-abrigo aleijado que anda numa motorizada e, quando há briga, levanta as muletas e acaba por sair vencedor, sendo conhecido pela alcunha de “avião”. Há ainda uma sem-abrigo conhecida pela alcunha de “maluca” e que costuma despir-se no meio das ruas e correr atrás das crianças…
45A memória também traz de volta a imagem da miséria que imperava nas casas e ruas do bairro, porque…
“Isto era uma miséria declarada. Eu tive o meu primeiro par de sapatos já era homem. Eu tinha umas botas que levava umas cardas em ferro por baixo para não gastar, para ir para escola, passava descalço, eu andava descalço. […] Nós, ao domingo, para vestir um fatinho, umas calcinhas de ganga, um fatinho, já não era: ‘olhe aquele gajo vive bem, ele tem um casaco de vestir ao domingo!’ Usava-se, as pessoas mais antigas, os homens, usavam um chinelo de trança que existia que era o mais barato, depois é que começou a aparecer os ténis. Isto estava aliado à pobreza […], não só aqui do bairro e a província então […], felizmente isso tem dado uma volta.” (Sr. Paulino)
46Para comer, muitos tiveram que recorrer à sopa dos pobres, também conhecida pela Sopa do Sidónio:13
“Até havia no largo ali em cima a cozinha económica que era chamada a Sopa do Sidónio. Essa Sopa do Sidónio foi na I República. O Presidente da República. que foi o Sidónio Pais, criou essas sopas em diversos bairros e havia uma aqui no largo de cima aqui na Rua da Guia e que a gente chama de alto da caganita, em frente ao mercado. Naquela rampa existia ai uma cozinha económica, onde eram confecionados caldeirões de comida. Então, as pessoas pobres iam lá com a sua marmitazinha, tinha lá a sopinha, tinha lá um quarto de pão e assim se passou muita gente.” (Sr. Cândido)14
47Uma miséria que marcou a vida de muitos e que dali também os fez sair à procura de uma casa melhor, de uma vida mais moderna, como referiam alguns que viram os filhos irem embora para periferia da cidade. Mas ainda assim o “bairro piorou” na questão…
“Daqueles agregados familiares que havia, porque nós no verão assentávamos aqui às portas, depois íamos uns para as portas uns dos outros, estávamos aqui a conversar, estávamos aqui neste largo, era uma padaria, levávamos uns cobertores, ali estávamos, às vezes até ficávamos lá a dormir a noite inteira. Hoje não se faz isso. Hoje se a senhora passar aqui às 9 horas da noite, está tudo fechado, está tudo metido em casa. As pessoas estão com medo de sair à rua. […] Estávamos aqui e convivíamos com a vizinhança toda, como eu expliquei, “Ó Fulana, olha está a chover”, havia uma que estava doente, “Ó Fulana, olha que está doente”, lá ia uma ou outra. Mas hoje já não se vê isso. Estamos desumanizados, o próprio bairro está desumanizado.” (Sr. Paulino)
48No entanto, se é que aquela miséria de antigamente já não existe, a pobreza não deixou de existir, segundo alguns depoimentos, tal reflete-se nos jovens drogados que andam como “esqueletos vivos”, nos sem-abrigo, naqueles agregados familiares que mal têm para comer ou naqueles que, de acordo com o Sr. Manuel, têm “casas de arrepiar” – e que para o Sr. Tavares continua a ser “miséria na mesma, só é mais encoberta” que a de antigamente.15
49Contudo, apesar de tantas mudanças, certas “tradições da terra” parecem continuar, como ajudar alguém que precisa ou enterrar um sem-abrigo encontrado morto numa esquina. Porém, os sem-abrigo de agora são muitos e desconhecidos, dificultando o apoio:
“Nem era bem pobreza, porque as pessoas vinham até cá, se chegassem cá não tivessem […] alguém que precisasse, se tivesse assim, ou desempregado ou assim, as vizinhas tiravam um […] dava-se, portanto, era tudo mais, com mais amor que agora é difícil haver amor. […] Mas a gente vai tentando ainda as tradições da terra, ainda se continua na mesma, ainda hoje aquela senhora da praça, fez há pouco tempo um enterro, enterrou um sem-abrigo que apareceu ali morto e ela andou a pedir e a gente fez um funeral, ajuda-se a contribuir, às vezes, para essas coisas. Mas naquela altura […], aparecia assim sem-abrigo, eram poucos, ficavam dormindo nas nossas escadas do prédio e a gente deixava. A gente conhecia, começava para aí a falar, vinham da terra, não arranjavam trabalho e davam em alcoólicos e a gente depois deixava ali a dormir, não faziam nada, não faziam xixi, não faziam nada que a gente pudesse falar. Aqui vinha muita gente das províncias e a gente, então, apoiava-os assim. Agora não pode, não é? Porque são tantos, isso não há assim hipótese de fazer nada.” (D. Júlia)
50A relação entre os sem-abrigo de agora e o Centro Comercial da Mouraria é, entretanto, estabelecida de imediato:
“Não sei onde é que eles estavam todos, donde eles vieram eu não sei, sei que começou o Centro Comercial a ter espaço para eles estarem lá do outro lado, começaram por ali, a gente não sabe, só temos dois que é cá da freguesia e esses mesmos tinham casa que a Santa Casa já deu, duas casas e cadeira de rodas. Mas ele continua caído no chão a dizer que não tem nada, ele veio do Ultramar. […] A outra era, morava ali para a Rua Marquês de Ponte de Lima, e portanto, os outros todos sem-abrigo não são nossos.” (D. Júlia)
O antes também foi uma época de repressão devido ao Estado Novo, pois agora…
“A polícia confraterniza connosco, estamos ali a conversar, se for preciso a gente vai ao café e bebe uma bica com eles. Antigamente não, a gente via um polícia e tinha medo, era o tempo do Salazar. Aqui na esquadra a gente passava e até ouvia gritos cá fora, homens, mulheres, miúdos e tudo, e as orelhas, até quase arrancavam as orelhas da gente. Isto foi uma ditadura que a gente viveu […], havia rusgas aqui na taberna, aparecia logo aqui dez polícias, entravam lá dentro e arrastavam as pessoas, e tudo que tinham nos bolsos tinham que pôr em cima das mesas, canivetes que houvesse levavam tudo. […] Isso acabou, graças a Deus! Mas na questão da segurança piorou, quer ver com esses que agora andam por aí […].” (Sr. Paulino)
51Nesse tempo, os adultos tinham de se contentar com “futebol, taberna e a procissão, porque também não podiam mais por causa da ditadura”, uma espécie de “triângulo do lazer”, conforme referiu o Sr. Paulino, fazendo um esquema que faz lembrar as relações antropológicas onde, segundo ele, a procissão ocupava o topo do triângulo, o futebol e a taberna a base.
52O futebol, muitas vezes, era organizado pelo Grupo Desportivo da Mouraria (GDM), onde também iam jogar às cartas, ouvir a telefonia e somente muito mais tarde ver televisão. Mas depois do 25 de Abril, esse triângulo do lazer deixou de fazer sentido. Inicialmente, o GDM atraía por causa da televisão e posteriormente por causa do vídeo, mas depois começaram a ter esses equipamentos em casa e o GDM foi perdendo a sua influência no bairro, sobretudo quando a sede foi transferida para longe do núcleo da Mouraria. O convívio de agora é na rua e nas poucas tascas que ainda fazem a alegria dos homens. Mas essa vida de rua é só durante o dia, já não é como antes quando todos se juntavam depois do trabalho nas ruas, à soleira das portas e ficavam até altas horas a conversar, a comer e a brincar. Agora, durante a noite ainda se veem algumas crianças a jogar à bola, mas ainda assim são poucos e, segundo algumas das assistentes sociais com que falei, esta é uma situação de risco para elas porque são muitas as vezes que são assediadas pelos traficantes e consumidores de droga.
53No presente, entretanto, também existem instituições – como as Juntas de Freguesia, o projeto Ambijovem, a Santa Casa da Misericórdia, a Associação Pró-Infância da Mouraria, etc. – que procuram organizar passeios e visitas a lugares fora do bairro, levando idosos ou crianças em excursões à praia, Fátima, Parque das Nações, etc. E a proximidade de uma rede de transportes coletivos, com destaque para o metropolitano, amplia as possibilidades de tempos e espaços de lazer.
54O mundo do trabalho duro, pesado e humilde tomou conta das suas vidas, constituindo uma compensação fundamental para o parco orçamento familiar, onde a pobreza material era recompensada pelo apoio dos familiares e vizinhos. Entreajuda, solidariedade, cumplicidade, amizade, discussões profícuas e sacrifícios quotidianos cimentaram a união em torno de uma pertença comum: o bairro. Mas, antes, as pessoas “brigavam mais pelo bairro”, ai daqueles que vinham de Alfama e se deixavam estar ali na Rua da Mouraria, era logo “zaragata”! Momentos como esses são recordados pelos mais velhos com grande ênfase mas, curiosamente também pelos mais novos, alguns com apenas 12 anos! E enquanto para alguns o bairro de agora está descaracterizado, também existem aqueles que acham que no tempo presente a Mouraria está mais civilizada, pois já não tem aquelas confusões e discussões de antigamente, “era cada discussão, com elas todas a pegarem-se!” (D. Salomé).16
55As dificuldades de antes são, muitas vezes, dissimuladas pela ideia de que havia mais união, de que a vida era mais saudável e divertida do que agora.17
“Era uma vida humilde. Mas dizia-se que se passava mal e eu acho que não se passava mal, vivia-se muito à vontade, porque havia assim […], fazia-se o comer e era mais puro, bem mas isso já depende da noção da vida, não é? A gente queria assar peixe e íamos ao forno do padeiro. […] Havia uma facilidade imensa, havia uma pequena que trazia os figos, era um luxo! […] Depois vinha logo de manhã a senhora da fava-rica […], era tudo mais saudável, não era nada sintético. Pronto tudo assim, como se fosse uma aldeia. […] Brincávamos na rua e os meus filhos também, eu queria arrumar a casa e mandava-os para a rua. Agora não podem. Queria que voltasse a ser assim.” (D. Júlia)
“Aqui na Mouraria, nós éramos uma família […]. Hoje, tudo isso desapareceu […], porque as pessoas deixaram de se interessar umas pelas outras. Eu lembro-me, era miúdo e nós íamos na rua e se havia alguém deitado na rua, nós acudíamos, ‘está a se sentir mal? Tem qualquer coisa?’. E tivemos essa humanidade que, depois do 25 de Abril, a gente vê alguém estendido na rua e dá a volta.” (Sr. Paulino)
56Contudo, confirmei a inferência que a descaracterização da Mouraria de agora acabava por funcionar por comparação com os outros bairros típicos da cidade, pois era usual ouvir comentários como o seguinte:
“Não entendo porquê a Mouraria está desse jeito, quem ainda mantém algum bairrismo são os mais velhos, mas eles estão morrendo e os mais novos não querem saber de nada, só da droga, põem-se lá a vender e não querem saber de mais nada. Isso é diferente de outros bairros como Alfama, Bica e Madragoa. Em Alfama vê-se as pessoas a conversarem sentadas à porta, mas aqui […], passou a época dos Santos Populares não se vê ninguém, estão todos em casa fechados e trancados, mas para a rua não vêm. Mas aqui também falta equipamento de lazer […]. […] Aqui não há nada que atraia as pessoas, nos roteiros da Mouraria só aparece a Casa da Severa, ás vezes a do Fernando Maurício e mais nada, nem há uma casa de fado, nem um bom restaurante, nada […], as pessoas aqui são todas muito pobres, [para se instalar um bom restaurante] tinha que ser alguém de fora, mas de fora não vem ninguém […], pode morrer pessoas, mas aqui não entra gente nova, é tudo primo, sobrinho, família que ocupa a casa que fica, não entra ninguém novo para puxar pelas tradições. Nos outros bairros eu vejo que não é assim, aqui nem uma esplanada […]. Antes o bairrismo era maior, havia muitas zaragatas com os dos outros bairros, mas agora já não há nada. Naquela época quando eram os arraiais, nem a polícia entrava!” (Sr. Tavares)
57Mas se o que estava em causa eram áreas indiferenciadas da cidade, logo era enfatizada a união, a familiaridade e a solidariedade:
“Aqui é um bairro onde todos se conhecem, é tudo como uma família. Aqui é como uma aldeia, não é como esses bairros novos, com esses edifícios modernos, onde as pessoas não foram criadas juntas como nós aqui nesses bairros da Madragoa, Alfama, Castelo, Mouraria, fomos criados assim desde pequeninos.” (D. Aurora)
58Os problemas, entretanto, começam quando os de dentro se sentem confrontados com os outros, com os de fora; enfim, com a alteridade: “Há uma série de cumplicidades, uma certa amizade uns pelos outros que com as pessoas que vêm […], já não há aquela cumplicidade, aquela amizade” (Sr. Cândido).
59Pois apesar de se relacionarem com alguns que vêm de fora…
“já não é aquele relacionamento que vem de criança. A gente em criança brincámos, brigámos, sei lá o que a gente fez […], hoje a gente estamos reformados, juntamos ali, vamos dar um passeiozinho, vamos até ali, mas as novas pessoas não alinham nesse sistema porquê têm a vida deles, têm outro sistema de vida, não foi o nosso. […] Fomos criados assim desde pequeninos, e há uma série de cumplicidades, uma certa amizade de uns pelos outros e que com as pessoas que vêm […] já não há aquela cumplicidade, aquela amizade.” (Sr. Paulino)
“Agora tem muita gente de fora e que não quer saber do bairro para nada, é só da própria casa que querem saber […]. Tem muitos brasileiros, africanos e gente do Norte por aí e estes não ligam para o bairro, quando começam a ter filhos é que vão ligando mais. Mas o bairro já não é o mesmo, antes brigava-se mais pelas coisas e era logo briga mesmo, mas agora […]. Mesmo assim, ainda há bairrismo é só ver pelas marchas.” (Sr. Manuel)
60No entanto, ao longo do tempo de realização do trabalho de campo observei que, de ano para ano, nos arraiais populares tem aumentado a participação daqueles que quotidianamente são designados como sendo de fora. Nessas manifestações festivas são, cada vez mais, convidados músicos e cantores brasileiros para interpretar música popular, samba ou pagode; nos arraiais de 2000 e 2001, a barraquinha de brasileiros moradores no bairro servia coxinha de galinha, bolinho de mandioca e caipirinha, para além de bifanas e frango assado! E ainda em 2000, na Rua do Capelão, mesmo no coração do bairro, abriu uma tasca cujo dono era indiano, frequentada por indianos e filhos do bairro. Este espaço ficou aberto durante todo o período das festas populares e esteve sempre cheio, salientando-se que como música ambiente se ouvia desde música indiana e portuguesa a vários outros tipos.18
61Porém, “as lembranças se apoiam nas pedras da cidade” (Bosi 1994: 459) e o desconsolo dos de dentro aumenta quando se apercebem da impossibilidade de terem turismo como sucede em Alfama, o bairro rival:
“A gente tinha muita coisa para o turismo, deitaram muito abaixo. […] A igreja do Socorro que era linda! Porque tem… Olhe, por trás tinha o Socorro, que era a Rua do Socorro, tinha um chafariz lindíssimo onde iam beber os cavalos. Depois tinha do lado aqui, que é a Rua da Palma, em frente agora aqui a este Centro Comercial, que eu não sei se aquilo é Centro não sei o que é, uma coisa que fizeram ali e tiraram a beleza ao bairro. Mas isso já foi do tempo da outra senhora […], quer dizer, do outro regime […]. Prédios com o terceiro e quarto andar! […] E, então, destruíram isso tudo e a gente acabou sem ter turismo. Deitaram tudo abaixo, então, o turismo vai agora mais para Alfama. Porque Alfama não foi tão destruída como a Mouraria.” (D. Júlia)
“A Câmara liga muito a Alfama por causa do turismo, mas a história da Mouraria é muito mais bonita, mas é que na Mouraria destruíram muita coisa e o Martim Moniz que era Mouraria agora não é bem. É que depois a Câmara dividiu tudo em freguesias e o Martim Moniz agora parte é da Freguesia da Pena e parte é de Santa Justa.” (D. Teresa)
“A Mouraria caracterizou-se, mas noutro tempo, era com a mania do fado. Porque hoje o fado está em Alfama, há lá o Museu do Fado. Mas não era nada lá, a Mouraria é que era […] e isso é que caracterizava mais aqui o bairro. Alfama já tem uma outra característica, como a Madragoa tem outra característica e a nossa característica aqui era aquele relacionamento do fado. É, qualquer um aqui tinha a mania que cantava o fado: “Eu sou da Mouraria eu canto o fado.” Portanto, aqui em frente foi onde a Severa morou, tem ali uma janela aonde o Conde de Marialva amarrava o seu cavalo e tudo isso é que caracterizou a Mouraria. Mas a Mouraria é hoje caracterizada por ser o bairro da Mouraria, mais nada. Não vejo aqui mais nada que caracterize, que atraia qualquer coisa à Mouraria, lá vêm aqui alguns turistas, ver aqui essa guitarra que está aqui no chão,19 mas de resto mais nada, já não há assim aquela característica […], foi demolida. Depois isso esteve assim em terrenos muitos anos, depois lá se fez esse Centro Comercial, que é uma vergonha terem feito isso! […] Está descaracterizada daquilo que era seu coiso familiar […].” (Sr. Paulino)
62Mas para além do fado e dos fadistas, a Mouraria ainda teve aquela “característica” que vem do tempo dos mouros…
“Porque se não fosse o fado, a Mouraria não tinha características, ou por outra, a Mouraria talvez tivesse características quando veio da conquista de Lisboa aos mouros, que começaram a fazer a concentração dos mouros aqui na Mouraria, que isto da Mouraria vem do nome de mouro. E, então, essa concentração talvez todos nós aqui, que nossos pais, que nossos avós que nasceram aqui, talvez todos nós, temos essa descendência de mouro. Não sei se será isso, não sei, já me ultrapassa, porque eu não conheço assim a história toda […].” (Sr. Francisco)
63Perguntados qual era, então, a tradição que mais caracterizava o bairro na atualidade, a maioria dos de dentro com que falei responderam que agora é a Procissão de Nossa Senhora da Saúde. Observe-se que, independentemente de essa procissão existir desde o século XVI, o que me pareceu curioso é que ela parece ter assumido uma espécie de primeiro lugar, até há pouco tempo também ocupado ou unicamente ocupado pelos arraiais e a marcha popular.
64Observe-se aqui que os arraiais de antes eram referidos como tendo sido mais expressivos, havia bailes onde todos dançavam com música ao vivo; e na procissão até cobriam as ruas com folhas que todos pisavam descalços e das janelas caíam as colchas de seda e de renda… Contudo, quem for aos arraiais de agora observa um intenso movimento e todos vibram e dançam ao som da música ao vivo. E quando a procissão sai, são muitos aqueles que ainda hoje seguem descalços e as janelas continuam a ser decoradas com colchas rendadas e de seda. Ai, Mouraria!
Típico e descaracterizado: as duas faces de uma determinada visão do bairro
65Particularmente relevantes nas transformações por que passou a Mouraria foram as décadas de 40 e 50 do século XX, marcando profundamente o bairro e os seus habitantes com a destruição da sua Baixa, uma política urbana que possivelmente só teve a mesma intensidade e repercussão no caso da destruição da Alta de Coimbra. Relativamente às décadas de 70 e 80, a par de todas as transformações por que passou Lisboa e o país, é considerável o peso que teve a entrada de indianos no âmbito do comércio grossista e que se intensificou ainda mais com os chineses, já em meados da década de 90.
66“Todos os inícios contêm um elemento de recordação” (Connerton 1993: 7), e o ponto de partida que parece ser tomado pelos de dentro como uma espécie de novo início da Mouraria está relacionado com os períodos acima referidos. Pois antes, desde a Rua da Amendoeira até a Baixa da Mouraria, “isso tudo” fazia parte do bairro, era “tudo como uma família”, a vida de rua era mais intensa e as festas eram melhores. A destruição urbanística ali efetuada mutilou muitas amizades, vidas e percursos, como alguns dos recantos mais nobres do bairro, dando lugar a um sentimento de vazio, mais tarde substituído pela indignação e o desconforto causado pela construção do Centro Comercial da Mouraria e o aparecimento de tanta gente de fora. Contudo, não foi inaugurado um novo calendário, dado que muitas das práticas e formas culturais dos tempos de antes e de antigamente ainda continuam, predispondo a mente dos indivíduos “com uma estrutura de contornos, de formas conhecidas, de objectos já experimentados” (Connerton 1993: 7).20 Parafraseando Connerton, temos a sensação de que tais ruturas na dinâmica urbana e social do bairro assumiram uma espécie de estatuto de mito moderno, tendo o resultado histórico sido alterado e transformado num movimento circular que permite assinalar o novo início, ou o estado de crise permanente por que passa o bairro e, nesse sentido, a visão que os de dentro têm da Mouraria.
67Mas a par das transformações sociais, demográficas, culturais e urbanas por que passa e passou a Mouraria e que servem como suporte para a construção de uma imagem de que o bairro está descaracterizado, o seu perfil popular ainda pode ser considerado expressivo, assim como sucede em bairros como Alfama, Bica e Madragoa. Uma condição que, somada a outras características e dinâmicas específicas, permite que a Mouraria mantenha o seu estatuto de bairro típico com força para, em conjunto com os outros bairros, representar a cidade a partir de um conjunto de personagens característicos, referenciais temáticos, culturais e sociais.
68Neste perspectiva, as cerimónias e as práticas corporais parecem ser fundamentais para a continuidade da Mouraria como um bairro típico da cidade (Connerton 1993; Fentress e Wickman 1994). Porém, não deixa de ser sugestivo observar que, nos últimos dez anos, tem havido algumas tentativas de alteração do tema da marcha, tradicionalmente identificado com a Severa e o fado.21 Em 1995, por exemplo, a marcha da Mouraria representou a sua “outra origem” como bairro através do tema: “Os mouros na origem e na garra da Mouraria.” Nessa marcha, eles compareceram no palco da cidade vestidos como aladinos de lâmpadas mágicas e elas de princesas de um oásis perdido no deserto.
69Outros temas mais modernos da marcha também me foram referidos como importantes por estarem ligados às tradições de antigamente. Por exemplo, em 1996, o tema foi “Santo António da Mouraria”. Nessa coreografia procurou-se mostrar que Santo António também passou pelo bairro. “Que Deus proteja o nosso bairro” (1997), foi um tema onde a Mouraria se autorrepresentou como “cansada” de tantas destruições, construções descabidas e da imputação da má fama; e mais recentemente os temas abordados foram a “Severa em flor” (1999) ou a “Severa e as fogueiras de Santo António” (2000). Explicaram-me que o tema da flor foi devido à tradição dos jardins em Lisboa. Um tema curioso sobretudo num bairro que não tem árvores, nem possui um único jardim público, mas que poderá estar relacionado com o concurso camarário que premeia a freguesia com o jardim mais florido, podendo observar-se que um beco na Mouraria ampliada já obteve esse prémio, mas eventualmente o tema também poderá fazer alusão à aspiração dos moradores do bairro: ter um jardim. O tema das fogueiras foi-me explicado como sendo uma tradição relacionada com a comemoração do Santo António, sendo mais difícil entender a sua ligação com a Severa, mas não consegui obter mais justificações, tendo constatado que alguns moradores não apreciaram o traje.
70Captar como os de dentro definiam e representavam o bairro, e como se posicionavam frente a ele, quais eram as suas opiniões e referências básicas por relação à percepção do passado, foi o propósito deste capítulo. Na prossecução desse objetivo constatei que muito embora existam diferenças entre os indivíduos há, por assim dizer, determinadas experiências comuns que influenciam as suas representações e imagens do bairro. Isto permitiu-me considerar que essas experiências podem fundamentar e sustentar uma determinada visão do bairro, observando, entretanto, que tal é flexível e admite a mutabilidade. Daí essa espécie de flutuação entre a ideia de que o bairro é como uma aldeia, característico, típico e tradicional ou que está descaracterizado.
71Seguidamente, procurarei evidenciar alguns dos elementos mais significativos das visões que os de fora têm do bairro. Salientando, desde já, que enquanto os de dentro acentuam uma imagem do bairro que transita entre a sua tipicidade e descaracterização, para os de fora o bairro é imaginado como típico, mas também como multicultural / multiétnico ou ainda como um espaço contraditório fazendo, por sua vez, alusão à ideia de um espaço liminar e, recorrentemente, é sobre as dinâmicas que sustentam as metáforas que dão lugar a essas duas últimas imagens que os de dentro consideram que o bairro está descaracterizado.
Notes de bas de page
1 Alguns autores têm mostrado como certos aspectos percepcionados como positivos relativamente ao tempo de antes ou de antigamente servem para realçar os aspectos negativos do agora. Neste sentido, consultar Bosi (1994); Pina Cabral (1989); Lins de Barros (1999).
2 Costa (1999: 112), apesar de se referir ao bairro de Alfama, salientou alguns aspectos que me parecem importantes para compreender o processo de construção das imagens identitárias da Mouraria. Para o autor, o cunho histórico atribuído ao bairro deriva essencialmente de processos exógenos de construção simbólica da identidade cultural; a dimensão popular está relacionada com processos endógenos e bairro é “uma caracterização identitária que, presente nestes dois tipos de processos – remetendo eventualmente, aliás, para significados algo diferenciados, de registo prevalecente técnico-urbanístico, no primeiro caso, e sociocultural, no segundo –, tem propensão a gerar-se de forma muito especial, em processos não propriamente de dominante exógena ou endógena, mas no que se poderia chamar de processos de relação interlocal”.
3 Chamo a atenção, conforme sugerido por Pina Cabral (1989: 267-289), que interessando estudar uma determinada visão do mundo na sua dinâmica de transformação, a polarização entre o antes e o agora serve sobretudo como dispositivo heurístico de análise, pois as diferenças entre os dois polos são relativas e ténues.
4 Com esta noção, os autores pretendem explicar como é que a interceção parcial de dois modos diferentes de identidade cultural podem desfocar as imagens identitárias (Cordeiro e Costa 1999: 65-66).
5 Fantin (2000) desenvolveu um estudo sobre Florianópolis (Santa Catarina / Brasil) onde demonstra como os dilemas e as disputas simbólicas relacionados com a definição dessa capital estadual como cidade média ou metrópole se refletem na polarização entre os nós e os outros, respectivamente designados pela autora como os de dentro e os de fora.
6 Intelectual é uma expressão local para designar aqueles que se interessam pelo bairro num sentido mais teórico, ou seja, se interessam pela história do bairro e escrevem para jornais ou dão entrevistas sobre temas relacionados com o bairro. Como se poderá observar, os intelectuais são sempre do sexo masculino e, normalmente, têm uma idade superior a 60 anos. Saliente-se ainda que alguns dos intelectuais locais são membros de um grupo de amigos do bairro que se autointitulam como Os Carneiros. Portanto, os Carneiros, uma vez por ano, reúnem-se para lembrar os seus tempos de juventude no bairro. A formalização do grupo deu-se quando os membros fizeram 50 anos de idade, em 1984, existindo desde então como uma referência das tradições do bairro. Nessa data, o grupo original era formado pelos chamados “Sete magníficos”, todos nascidos em 1934. Posteriormente juntaram-se mais cinco, respectivamente designados como “borregos de adoção”. Nem todos eles são nascidos no bairro, mas foram todos criados na Mouraria, sendo que alguns já não vivem ali (um deles vive nos Estados Unidos), mas sempre que possível vêm às reuniões do grupo. Alguns dos carneiros já desempenharam papéis de liderança em instituições locais. A designação carneiro é uma expressão que vem do tempo em que eram crianças e costumavam chamar-se uns aos outros por esse termo. Costureira, Baguinho, Trombone, Bucha, Tartu, Morre ao Sol, Marocas, Babinhas, Calmeirão, Abas, Pinardo, Feijão e Grão de Bico são as alcunhas pelas quais são conhecidos. No livro que escreveram para registar a história do grupo, apresentam-se do seguinte modo: “Carneiro (substantivo masculino) – Mamífero ruminante artiodáctilo, da família dos bovídeos, lanígero (das Enciclopédias).” O criador do grupo é designado como o Carneiro-Mor (o poeta Baguinho) e, segundo ele, os carneiros são “irrequietos e buliçosos, gozões e mordazes, pacíficos e modestos, casmurros e teimosos, irreverentes mas respeitosos, todos unidos como num grande rebanho, chocando em marradas aparatosas, principalmente quando entrava o Benfica e o Sporting ou a vida do G. D. da Mouraria, mas tudo depressa voltava à paz e ao remanso de ruminarem, o que se pode traduzir pelo labor duro e diário”. Em 1970, houve uma primeira formação do grupo, chamada Grupo Excursionista Os Carneiros que durou cerca de dois anos, mas acabaram, por causa de algumas desavenças, a constituir um novo grupo e a recuperar a designação original alguns anos depois (em A.A.V.V. 1995).
7 Muitos dos que vieram desta aldeia e zonas próximas instalaram-se entre a Rua do Capelão e a Rua João do Outeiro. Curiosamente, esses indivíduos eram sapateiros ou limpa-chaminés e passaram a profissão de pais para filhos.
8 Regra geral, os de dentro têm poucos recursos económicos e formação escolar o que, de certo modo, explica a dificuldade para aceder a outras publicações que abordam temas relacionados com a Mouraria e onde também é privilegiado o documento fotográfico, como os livros Lisboa Desaparecida (em especial os volumes 1 e 4) e Photografias de Lisboa 1900, todos de Marina Tavares Dias (1987, 1994, 1989) ou Retrato da Lisboa Popular – 1900 de António Barreto e Maria Filomena Mónica (1983). Estes livros, para além de caros têm uma divulgação bastante restrita, em livrarias e bibliotecas que são pouco frequentadas pelos habitantes do bairro. Já o livro de Vera Mendes (1996) é distribuído gratuitamente pela Junta de Freguesia do Socorro, o que facilitou a divulgação do mesmo e a sua respectiva popularidade local. Certamente alguns dos moradores do bairro têm conhecimento de outras publicações, no entanto, elas não funcionam como referência local, não possuindo a mesma popularidade. Observo que, durante o trabalho de campo, fui frequentemente interpelada com perguntas que visavam saber se já tinha o livro que “falava do bairro” e tal interesse assentava em duas prerrogativas: que tivesse mais informação sobre o bairro e que o interpelador fosse o protagonista da oferta. Portanto, como já tinha um exemplar, agradecia o interesse e discretamente recusava a oferta, mas verifiquei que tal provocava desconsolo e uma profunda curiosidade sobre quem afinal havia sido o protagonista da oferenda. Um outro livro com considerável repercussão no bairro é intitulado Sentimento Bairrista e é da autoria do poeta Baguinho, se bem que a divulgação desse livro seja mais pontual, na medida que é uma edição do autor e igualmente divulgada por ele. Saliento ainda que muitos daqueles que estão ou estiveram envolvidos com as instituições locais (freguesia ou coletividade) referiam-se constantemente ao trabalho de José Ramalho (s/d), conhecido ensaiador e estudioso das tradições das marchas populares. Essas publicações, sobretudo a de Mendes (1996) e Baguinho (1999), são, inclusivamente, enviadas aos parentes ou amigos que atualmente vivam fora de Lisboa.
9 Conforme a interpretação dada por Pina Cabral (1989: 276).
10 Sr. Jorge, nascido e criado no bairro, aproximadamente 45 anos, é assistente de enfermagem num hospital situado na envolvência alargada, é casado e tem um filho.
11 O cinema que funcionou no Salão Lisboa também era conhecido pela alcunha de “Tivolixo”. Este cinema iniciou a sua atividade em 1916 como um animatógrafo, seguidamente restaurado como sala vocacionada para a pequena-burguesia, sendo mais tarde apropriado pelos segmentos populares da população, vindo daí as suas alcunhas. Por volta de 1973, foi transformado em armazém de revenda. Em finais dos anos 90, foi novamente alterado, tornando-se uma loja de cortinados e tapetes.
12 Para José P. Carmo (1943), se bem que muitos considerem os tipos populares de Lisboa como uma imagem que se reflete nos fadistas, varinas e saloios (etc.), esquecem-se que na verdade eles são uma “legião interminável de autênticas raridades humanas, que provocaram o interêsse e por vezes o gaudio das gerações que nos antecederam”, constituindo desse modo “uma galeria interessante a recordar aquele passado em que a rua tinha grande interferência no espírito do povo”.
13 A respeito da pobreza urbana em Lisboa e do papel da sopa dos pobres como uma forma privilegiada de assistência social na cidade, consultar Pinto (1996, 1999: 92-97).
14 Sr. Cândido, viúvo, 68 anos de idade, nascido em Campo de Ourique, em Lisboa, reside no bairro desde que casou, há aproximadamente 50 anos. A filha nasceu no bairro, mas depois de casada foi viver para a Linha de Sintra.
15 Muitas vezes, também utilizavam as expressões “pobreza visível” e “pobreza invisível” para explicarem as duas faces da miséria de agora. Uma senhora explicou-me que a face visível da pobreza é aquela que caracteriza os sem-abrigo, e a face invisível é aquela que mais afecta as pessoas do bairro, ou seja, é aquela que se “esconde por detrás da porta de casa”.
16 Observo que a ideia de “civilizado” e/ou o seu contrário é, muitas vezes, utilizada para descrever a Mouraria de antes ou de agora. Mas também é utilizada para diferenciar o coração do bairro da sua envolvência. Por exemplo, uma senhora que vive na Rua do Benformoso disse-me que ali sempre foi mais “civilizado do que ali para dentro, na Rua do Capelão”. Mas a tal senhora depois comentou, recompondo a sua observação, que afinal “tudo hoje está mais civilizado, até a Rua do Capelão”, contrariamente à opinião de muitos dos de dentro. Repare-se ainda, que até meados dos anos 70, a Rua Benformoso esteve muito identificada com a prostituição e ainda hoje parte da rua continua relacionada com essa prática, entretanto, quando se trata de imputar má fama esta logo recai sobre o núcleo central da Mouraria.
17 Como referiu Pina Cabral (1989: 284) para o caso dos camponeses do Alto do Minho, na distinção entre o antes e o agora os indivíduos constatam um certo fracasso da comunidade em validar as suas regras, valorizando e idealizando o tempo passado como uma situação mais positiva para a comunidade.
18 Esta tasca deixou de existir em finais do ano 2000, reabrindo em 2001 como uma mercearia de produtos indianos.
19 O Largo da Severa é em calçada portuguesa com uma guitarra de fado estilizada como motivo no meio da calçada.
20 Segundo Connerton (1993: 4), “as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens do passado servem normalmente a ordem social”.
21 Nestas tentativas deve-se ter em conta muitos aspectos como, por exemplo, a conjuntura dos próprios concursos que envolvem o desfile da marcha, a criatividade do ensaiador ou coreógrafo, a influência de outras festas e vestuários (por exemplo, o Carnaval), a moda vigente, o objetivo de obter o primeiro lugar do concurso, que as modificações no tema tradicional da Severa e do fado não são unanimemente aceites pelos moradores, etc.
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