Capítulo 3. Espaço vivido: percepções, experiências e ritmos
p. 237-365
Texte intégral
1Na demarcação da singularidade do ambiente social dos bairros populares de Lisboa é, com alguma frequência, mencionada a intensidade da vida de rua. A expressividade dessa imagem é de tal modo vincada que, por exemplo, uma descrição de finais da década de 20 do século XX poderia, circunstancialmente, ser tomada como um retrato nosso contemporâneo. Repare-se, nesta perspectiva, nas similitudes entre uma citação extraída de um texto de Gustavo de Sequeira com data de 1929, onde é comentada a “comédia movimentada” que tem lugar nos arruamentos dos bairros antigos da capital – tendo em consideração os eventuais efeitos ideológicos das metáforas utilizadas pelo autor, na medida que o texto é datado –, e um fragmento extraído de um trabalho de Antónia Lima, com data de 1992, sobre a vida de rua no bairro da Madragoa:
“Os bairros antigos onde o gentio pobre habita, população mais rica de côr e mais bizarra de costumes do que nenhuma outra, marcam na cidade uma nota de grande pitoresco. A criançada – porque a gente miserável é prolífica – vomitada para a rua pela estreiteza das casas, falhas de luz e de confôrto, invade as serventias e acogula-se nas portas com as mães fazendo terreiro de passeio a passeio. A rua é a sua varanda, o seu quintal e o seu terraço. Junte-se a isto o formigar dos vendilhões, o tráfego dos bairristas, a ingressia do mulherio, e ter-se-há a nota global do efeito da comparsaria e dos actores na comédia movimentada dos arruamentos velhos.” (Sequeira 1929: 19)
“[…] As ruas raramente estão vazias: são palco de brincadeira das crianças; local de passagem das mulheres nas suas lides e trabalhos diários, que param, quase de metro a metro, para conversar com vizinhos; local onde idosos e reformados ficam à conversa, à porta de casa, durante horas; local que serve de distracção àqueles que não saem de casa e que da janela mantêm contacto com a vida do bairro, observando simplesmente ou conversando com quem passa ou com quem está nalguma janela em frente.” (Lima 1992: 42)
2No bairro de Alfama nota-se que, conforme foi referido por Costa (1999: 81), o espaço público – sobretudo as ruas, becos, largos, esquinas ou os patamares das escadarias – é fundamental na consolidação e reconfiguração das redes sociais e dos planos de sociabilidade. Para o autor, certos espaços públicos e semipúblicos são essenciais na mediação dos processos de “construção e na sedimentação da relação identitária com o bairro” (Costa 1999: 324). Por seu lado, Lima (1992: 42) referiu que no bairro da Madragoa a rua é fundamental “na reafirmação e reprodução constante da comunidade”. E, no bairro da Bica, Cordeiro (1997: 320) observou que “a rua como contexto de interacção quotidiana, de práticas de sociabilidade entre pares, de memórias familiares partilhadas, revelou ser um lugar de eleição para a reformulação do ‘nós’ […]”, mesmo tendo em consideração a “heterogeneidade das chamadas classes populares”.
3Nestes bairros, verifica-se que na rua – e noutros espaços coletivos – as esferas pública e privada do espaço misturam-se e articulam-se, criando um espaço semipúblico, isto é, um pedaço de espaço onde o convívio próximo, as solidariedades e os laços pessoais e de vizinhança são particularmente favorecidos (Magnani 1998). Uma situação que é sensivelmente observável através da passagem do quotidiano da casa à rua que, assim, é transformada numa espécie de sala ou quintal dos moradores, o que permite insinuar que a rua de bairro transfigura-se numa espécie de casa (Santos e Vogel 1985). Dir-se-ia, assim, que o espaço público é significativo para o quotidiano dos moradores do bairro da Mouraria, entendendo que a reiteração quotidiana das dinâmicas de uso e apropriação desse espaço – em conjunto com outros aspectos socioculturais e espaciais – reflete-se através de um efeito de redobramento simbólico conduzido do exterior (Costa 1999), nas imagens que são produzidas sobre o bairro.
4Mas, em paralelo ao domínio semipúblico da rua, ela continua a ser um espaço público urbano no sentido genérico do termo, ou seja, é um espaço que também se constitui como um sistema de ligação com outros espaços do mesmo tipo no próprio bairro, bem como com as áreas que o circundam. Pelo que a rua também é um espaço de mediação entre o bairro e outros espaços públicos da cidade, sendo a sua dimensão semipública interceptada por uma esfera eminentemente pública e/ou coexistente com uma multiplicidade de apropriações e territorializações que complexificam a ideia de que somente é a sala ou o quintal dos seus moradores.
5No entanto, a par das formas e modos como o espaço público do bairro é experimentado no quotidiano, dá-se um processo de simbolização e de ritualização que ciclicamente inova e/ou reinventa a imagem do bairro como a nossa casa. Neste sentido, a partir da intermediação de diversos agentes sociais, o espaço público é fundamental no processo de construção dessa imagem. Alguns desses processos simbólicos e rituais permitem reforçar a imagem emblemática do bairro e da sua tipicidade, desse modo vinculando com particular expressividade e de maneira quase sagrada a rua à casa, a casa ao bairro e esse à cidade. Dir-se-ia, assim, que essas lógicas socio-espaciais e simbólicas, de certo modo, invertem e/ou renovam algumas das imagens que quotidianamente são construídas sobre o bairro.
6Aqui observa-se que o espaço público se desenvolve como um contexto de interação dos moradores, sendo um espaço de mediação para a construção e reformulação das relações identitárias com o bairro, como da relação com o outro. Mas também é um espaço onde se pode verificar a coexistência de uma multiplicidade de pedaços que, por sua vez, são ligados por trajetos e atravessados por circuitos (Magnani 2000a, 2000b). E para complexificar ainda mais, a Mouraria também se parece definir por aquilo a que Magnani denominou mancha, o que permite inferir que no espaço físico do bairro coexistem distintas Mourarias.
7Pelo ângulo das reflexões múltiplas, interessava ainda captar como é que a experiência fenomenológica do lugar participava do processo de consolidação e reconfiguração das imagens culturais e urbanas do bairro. Com esse intuito privilegiei a análise das práticas de uso e apropriação do espaço público do bairro. Neste âmbito, sugiro que a visibilidade dos indivíduos e das suas práticas de uso e apropriação do espaço, aliada à organização física e arquitetónica do território, é um dos principais elementos constituintes das imagens culturais e urbanas do bairro. Proponho, assim, que a rotina quotidiana de uso e apropriação do espaço público cria um indefinível número de atmosferas que estimulam a criação de metáforas urbanas que, projetadas como imagens, fazem parte do conhecimento que se tem do bairro como de uma determinada faceta da cidade.
8A demonstração aqui proposta não tem como objetivo repetir o que julgo ser uma constatação recorrentemente ressaltada: a de que o espaço público é essencial como espaço de interação dos moradores e de mediação das relações identitárias com o bairro. Numa outra perspectiva, ciente de que por detrás dos antagonismos entre tradicional e moderno se esconde uma convincente forma de disputa social e política pelo controlo do espaço, aqui não se pretendeu pormenorizar as contradições entre os indivíduos e as suas práticas no sentido de que o típico se repercutiria na domesticação do espaço público como sala ou quintal dos moradores, mostrando a faceta tradicional do bairro; enquanto, por outro lado, algumas das outras imagens metafóricas se refletiriam na substituição da dimensão doméstica e semipública do espaço por uma esfera mais pública, como se assim fosse mostrada a face da modernização e globalização do bairro. Neste sentido, interessou-me sobretudo discutir os processos que permitem a coexistência de diferentes modos e formas de usar, apropriar e representar o espaço – tendo em conta que estes podem ser paralelos ou estar em conflito –, para compreender a complexidade inerente ao sistema de classificações e manipulações dos significados atribuídos ao bairro. Trata-se, pois, de analisar como é que no processo de construção e produção social do espaço se dá a coexistência de imagens que tanto podem contribuir para a emblematização do bairro como para a sua segregação e estigmatização.
9Todavia, a análise das práticas de uso e apropriação do espaço público como pretexto para compreender alguns dos significados e imagens atribuídos ao bairro pode ser dificultada mediante a complexidade das dinâmicas locais e do processo de construção de imagens, na medida em que esse processo é simultaneamente atravessado por lógicas que pressupõem contradições, justaposições, articulações e complementaridades. Por outro lado, a heterogeneidade do espaço público do bairro poderia vir a comprometer a construção de um quadro analítico que viabilizasse a detecção e compreensão das dinâmicas de uso e apropriação do espaço. Pois a heterogeneidade do espaço público local tanto é reflexo da sua variedade física e arquitetónica – ruas pedonais, ruas de tráfego, ruas de trânsito condicionado, passeios, escadarias, pátios, vilas, becos, travessas, largos, praça, centros comerciais, estação de Metro, etc. – como da diversidade dos seus utentes e do desenvolvimento de diferentes práticas e atividades, como ainda da sobreposição de uma multiplicidade de usos, tempos e significados, tornando-o um espaço multidimensional (Cooper 1998; Edensor 1998; Low 2000a; Carr et al. 1995). Pelo que os objetivos deste capítulo foram operacionalizados de modo a levar em consideração algumas precauções.
10Relativizar a conceção de que o espaço público urbano é de acesso ilimitado e aberto aos indivíduos foi uma primeira precaução. Isto é, muito embora a irrestritibilidade dos seus acessos seja por excelência uma primeira condição que permite a definição do espaço como público, é pertinente ter em conta que esse pode ser privatizado por determinadas práticas ou o seu acesso ser condicionado por regras de conduta que, para além das imposições colocadas por quem oficialmente controla o espaço, também existem no interior da sua própria dinâmica (Billiard 1986; Cooper 1998; Low 2000a). Em outras palavras, o espaço público é um espaço cujo controlo social e político é assegurado por códigos e signos informais, bem como por regras e regulamentações formais que tanto podem proporcionar a exclusão como a inclusão (Madanipour 1998; Sibley 1997).
11Um segundo aspecto, foi ter constatado a importância de relativizar algumas das perspectivas que tomam o espaço público como um espaço que tende a homogeneizar-se em decorrência das regulações económicas; os pontos de vista que se referem a esses espaços como suportes de culturas híbridas, efémeras e passageiras; como ainda as perspectivas que anunciam a sua morte e retraimento a partir de um reforço da vida privada.1 Embora essa discussão seja retomada no final deste capítulo, reconheço que no início do trabalho de campo me senti imersa numa realidade quotidiana de tal modo complexa e heterogénea que transformava as tentativas de identificação de lógicas mais regulares num propósito de difícil realização. Explicar o que se passava no bairro a partir de noções como não-lugar, efémero, híbrido, desterritorialização, etc., parecia fazer todo o sentido. Mas, aos poucos, comecei a sentir-me numa espécie de beco sem saída, como se o trabalho de alguns meses apenas fosse constatar que a realidade da Mouraria é, de facto, complexa e multidimensional. Quase sem fôlego e um tanto desorientada pensava: como e o que descrever? Como captar a heterogeneidade, o movimento e a multidimensionalidade?
12A assiduidade, a insistência e a proximidade com o quotidiano local permitiram-me, então, recuperar o fôlego e a calma e, assim, reposicionar o olhar de forma a encontrar algumas rotinas e certas cadências. Isto é, permitiram-me encontrar ritmos quotidianos cujos extremos poderiam ser explicados pela ideia de moderado e ligeiro, havendo por conseguinte pontos intermediários e pausas que se refletiam nos momentos em que o movimento deixava de existir (com o esvaziamento do bairro) ou o movimento de certos elementos coexistia com a paragem de outros. Assim, apercebi-me de que o espaço continuava a ser uma referência significativa, onde determinados ritmos quotidianos de uso e apropriação desenhavam cenários comportamentais, percursos, pontos, paisagens e/ou microgeografias (Barker 1973; Wicker 1979; Rapoport 1980; Low 2000a, 2000b), o que dava a sensação de que essas configurações socio-espaciais poderiam ser captadas através da ideia de formas ritualizadas (Noschis 1984). De modo que não só encontrei sentidos e significados naquilo que diariamente via, ouvia e sentia, como redescobri a importância da análise antropológica ao nível do conhecimento sobre o espaço urbano.
13O que se segue é, porquanto, uma proposta de leitura do espaço público a partir da ideia de que as práticas sociais são quem – através de um conjunto de operações que coloca em relação o masculino e o feminino, a casa e a rua, o privado e o público, o local e o global, jovem e velho, nós e os outros, sagrado e profano, tempo e espaço, tempo quotidiano e situações extraordinárias, lazer e trabalho, etc. – configuram e reconfiguram os significados do espaço, desse modo participando do campo de significações imaginárias do bairro.
14A partir da observação, das conversas com os moradores e de alguns dos dados recolhidos pelo “Inquérito ao uso e apropriação do espaço público e exterior”, primeiramente discuto alguns dos aspectos mais característicos da relação casa / rua / bairro. De seguida, descrevo as microgeografias quotidianas de uso e apropriação do espaço público, recorrendo a esquemas que permitam assinalar os aspectos mais significativos dos movimentos e comportamentos. Por fim, descrevo e analiso as práticas de uso e apropriação do espaço público exterior nos momentos de simbolização e ritualização relacionados com a Procissão de Nossa Senhora da Saúde e os arraiais populares.
Da casa ao bairro
15No contexto dos bairros populares de Lisboa, comecei a notar que sempre que procedia a uma reflexão mais cuidada sobre a relação casa, rua e bairro, um aspecto em particular me incomodava: a ideia de passagem de algumas atividades inicialmente ligadas à casa para o domínio da rua ser, muitas vezes, explicada como o resultado da exiguidade do espaço doméstico. Não obstante considerasse que esse tipo de particularidade devesse ser assinalado, julgava limitado admitir que a intensa vida de rua fosse um mero resultado. Pois tal lógica faz pensar a casa como a principal referência e não o bairro, de onde se poderia pressupor que ao ser proporcionada uma casa coem melhores condições de habitabilidade seriam desencadeados pelo menos dois tipos de situações: caso fosse no bairro, os pares casa / rua e espaço privado / espaço público tenderiam a posicionar-se como oposições rígidas; caso fosse noutra área do espaço urbano, as pessoas mostrar-se-iam interessadas em sair do bairro sem nenhuma espécie de constrangimento.
16Embora tais situações emergissem como hipóteses com alguma possibilidade de se verificar, parecia-me que ainda assim era necessário pensar que a relação casa, rua e bairro não existia como reflexo de uma situação de causa-efeito.
Casa, rua e bairro
17Com o intuito de mostrar que a vivência de rua na Mouraria não é dependente necessariamente das condições da casa – embora essa condição influencie –, serão sumariamente examinados oito casos exemplares da relação entre a casa e a rua, sendo tais exemplos aqui tomados como representativos das outras várias situações que tive a oportunidade de conhecer. No exame de cada um desses casos, serão brevemente apresentadas as condições de habitabilidade da casa e seguidamente referido o tipo de relação que os indivíduos têm com a rua, isto é, se é um espaço utilizado como sala ou quintal, transformando-se num pedaço; ou se apenas é utilizada como eixo de atravessamento e circulação, ou seja, como trajeto.
Casos e casas
A casa do Sr. Paulino
18O Sr. Paulino vive na mesma casa desde que nasceu. A casa é um pequeno rés do chão com uma única janela. A sala está logo à entrada, seguindo-se um pequeno quarto interior e ao fundo a cozinha, onde ele instalou uma casa de banho. Quando a filha ainda ali vivia tinha que ir dormir a casa da avó (também no bairro), por falta de espaço. A casa nunca teve grandes obras de recuperação. Pontualmente, a manutenção vem sendo realizada pelo Sr. Paulino. Na sala não existem sofás, apenas uma cadeira mais confortável que está colocada atrás da única janela existente. No meio da sala há uma pequena mesa onde fazem as refeições e também assistem à televisão e vídeos, ambos aparelhos colocados numa estante de madeira encostada na parede por detrás da mesa. Do lado esquerdo da mesa, um pequeno balcão com gavetas serve de base para colocação de artefactos de decoração, como porta-retratos e alguns bibelôs. As paredes encontram-se decoradas com fotos do neto, filha e marido. Normalmente, quando o casal está em casa, a porta e a janela encontram-se entreabertas, sendo a privacidade da casa garantida por cortinas rendadas. Não existe local para se estender a roupa, sendo essa tarefa realizada nas traseiras da casa de uma vizinha. No verão, costumam colocar um braseiro à porta de casa para fazer os assados. Marido, mulher e filha foram criados a conviver com a vizinhança no espaço da rua, que funciona como um pedaço.
A casa do Sr. Virgílio
19O Sr. Virgílio, 30 anos, nascido no bairro, é filho de pais migrantes. Os pais mudaram-se há alguns anos para um bairro na periferia e ele resolveu continuar a viver na casa onde nasceu. Quando pequeno não brincou na rua com as outras crianças, pois os pais não deixavam. É contabilista num estabelecimento comercial situado fora do bairro. No período pós-laboral participa de um grupo de artes corporais. Conhece algumas pessoas do bairro e cumprimenta-as. Às vezes, aquando das Festas Populares, dá uma volta mais demorada pelo bairro, entretanto, referiu que não costuma estar nas ruas, cafés ou tascas locais – pois “não gosta de confusões”. Os seus amigos de fora do bairro costumam visitá-lo. A sua casa é um terceiro andar e tem um terraço com vista. A casa tem um quarto interior, sala com janela, cozinha e casa de banho. Como a casa está situada num prédio antigo e degradado, tem vários problemas, como humidade, infiltrações, fendas, etc. Para ele, a rua praticamente perfaz um trajeto.
A casa da D. Fátima
20D. Fátima, 60 anos, nasceu numa aldeia próxima de Coimbra, migrou com a mãe e os irmãos assim que o pai arranjou casa no bairro, tinha ela os seus 7 anos. Ela, como os dois irmãos, estudou até à 4.ª classe, abandonando depois os estudos para trabalhar. A mãe era analfabeta e o pai sabia ler e escrever. A casa dos pais ficava num primeiro andar de um edifício consideravelmente degradado. A casa tinha 6 assoalhadas pequenas, o que permitiu que ela tivesse o seu próprio quarto. Os pais tinham o seu próprio quarto, enquanto os seus dois irmãos dormiam em conjunto noutro quarto. A cozinha estava ao fundo e a casa de banho foi feita muito posteriormente, retirando parte do espaço da cozinha. A sala funcionava como local de lazer e de refeições. Existiam compartimentos interiores, onde chegaram a viver parentes que vieram da província. Depois de casada, D. Fátima mudou-se para a sua própria casa que fica próxima daquela onde foi criada. A sua casa atual possui três quartos pequenos. A família sempre esteve ligada às redes de relações locais, sendo a rua um pedaço fundamental para o desenvolvimento das relações de convívio e sociabilidade.
A casa da D. Joana
21D. Joana tem 77 anos, é analfabeta e duas vezes viúva. Veio de uma pequena aldeia no Minho com uma filha pequena devido às dificuldades económicas que enfrentou após a morte do primeiro marido. Em Lisboa trabalhou como empregada de limpezas, mas atualmente está reformada. Viveu em vários quartos com a filha até conhecer um senhor do bairro que lhe ofereceu um quarto na sua casa em troca de a D. Joana cuidar da mãe dele. Mais tarde casaram mas, alguns anos depois, o marido faleceu, assim como a sogra. A filha casou-se e foi viver fora do bairro, teve dois filhos que foram criados pela avó. A casa da D. Joana é um 1.º andar com 5 assoalhadas, encontrando-se situada num edifício em estado de ruína eminente. Não possui água canalizada na cozinha nem tão-pouco pia de lava-loiças. Somente tem água numa torneira que fica num pequeno compartimento interior, onde também tem uma pia de despejo. Não possui uma casa de banho com retrete e local para banho, utilizando uma vasilha metálica para se banhar. A casa tem poucos móveis e os que lá estavam pareciam rivalizar com o estado de degradação do edifício. Na sala há algumas cadeiras envelhecidas e dispersas, uma pequena mesa onde costuma fazer as refeições e uma estante com a televisão e um aparelho de rádio antigo. Praticamente não possui elementos de decoração e nas paredes não há nada suspenso, para além de um velho calendário com uma imagem de Jesus Cristo. A casa tem janelas na sala e num dos quartos. D. Joana não se dá com as pessoas do bairro, diz não gostar das confusões que ali se dão, apenas se relaciona com a vizinha do 2.º andar. Filha e netos não tiveram permissão para brincar na rua com as outras crianças. Vivendo num mundo consideravelmente fechado, a sensação que se tem é de que ao longo da sua vida no bairro D. Joana apenas saiu de casa por motivo de angariação de recursos para o seu sustento. Para ela, a rua apenas serve como trajeto.
A casa do Sr. Vasco
22A casa do Sr. Vasco encontra-se num edifício que teve obras de reabilitação, o que permitiu instalar uma casa de banho e melhorar as condições da cozinha, possibilitando a instalação de equipamentos domésticos como um lava-loiças, frigorífico, fogão e máquina de lavar roupa. A casa tem uma pequena sala, com uma mesa ao meio rodeada por cadeiras dispostas simetricamente, sendo esse espaço utilizado como local de refeições e de lazer. Ele e a esposa assistem à televisão sentados nas cadeiras, pois não existem sofás. A sala e o quarto têm janelas que normalmente se encontram entreabertas, sendo a privacidade garantida por cortinados brancos e rendados. A televisão está numa estante de madeira colocada atrás da mesa, onde também está colocado um vídeo e retratos de família. Um balcão serve de apoio e como base para colocação de toalhas rendadas e alguns poucos bibelôs. Retratos de familiares nas paredes decoram as paredes, para além de mostrarem que os netos estão mais bem situados na vida. À direita da sala existe um pequeno hall interior que dá acesso à casa de banho e ao quarto. A casa de banho, depois das obras de reabilitação, está equipada com banheira e sanita com autoclismo. O quarto é consideravelmente pequeno, sendo essa sensação ainda mais acentuada pela quantidade e dimensão dos móveis existentes – cama, guarda-fatos, mesas de cabeceira e cómoda –, tudo em madeira escura. O Sr. Vasco, bem como a esposa, filho e netos, foi criado a conviver no espaço da rua.
A casa da D. Rosa
23D. Rosa, 35 anos, vive no bairro há aproximadamente 13 anos. É fotógrafa, vivendo num quarto andar, numa pequena casa com hall de entrada (que usa como sala), cozinha, casa de banho e um quarto interior, equipada e decorada com móveis modernos, peças de artesanato e panos decoram as paredes. D. Rosa costuma receber amigos e familiares em casa, mas praticamente não convive com os seus vizinhos, à exceção das poucas idas à mercearia e ao café e praticamente utiliza a rua apenas como espaço de atravessamento.
A casa do Sr. Pedro
24O Sr. Pedro tem aproximadamente 50 anos, nascido e criado no bairro. A sua casa é num 1.º andar situado num prédio novo que substituiu um outro que derrocou. O hall de entrada no edifício é amplo e encontra-se decorado com vasos de plantas. A casa tem dois quartos, casa de banho e cozinha equipada e funcional. Na sala há sofás, mesa e cadeiras dispostas simetricamente, uma estante decorada com objetos diversos, televisão e vídeo. O Sr. Pedro vive com a mulher e o filho, mas aos fins de semana costuma alojar um familiar idoso que vive em um outro bairro de Lisboa. Tem mais familiares a viver no bairro e aqueles que já não vivem ali costumam vir à Mouraria com alguma frequência, sobretudo nos períodos da procissão e das festas populares. A família utiliza a rua como um pedaço do espaço fundamental para o convívio social.
A casa da D. Paula
25D. Paula é proprietária da casa onde sempre viveu. Com 9 assoalhadas, a sua casa encontra-se no 1.º andar de um edifício de 3 andares. Ela também é dona do 2.º andar, que está alugado. O edifício onde vive está em obras de reabilitação que já melhoraram as condições do telhado, resolvendo os problemas de humidade e infiltração. Toda a casa está mobilada com móveis antigos de madeira escura, que vêm dos tempos dos seus avós, antigos proprietários de estabelecimentos comerciais no bairro e envolvência. As paredes encontram-se decoradas com quadros. D. Paula e as suas duas irmãs frequentaram uma escola particular, não brincaram na rua nem se relacionaram mais intensivamente com a vizinhança, apenas contactando com dois ou três proprietários de mercearias locais, onde faziam as compras. Algumas colegas de escola viviam nas redondezas e costumavam vir a sua casa para brincar. Atualmente a casa é apenas habitada por D. Paula e o marido. Ambos trabalham, sendo que o marido costuma sair cedo e utiliza o automóvel. Ela sai mais tarde e faz a pé o trajeto até a estação de Metro do Martim Moniz. Nas horas de lazer não costuma ficar no bairro, que considera ter um “péssimo ambiente”.
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26Uma primeira constatação dos casos supracitados leva a pressupor que a relação que os indivíduos têm com a rua e o bairro se espelha no par opositivo formado por aqueles que se consideram como pertencentes ao pedaço do núcleo do bairro (os de dentro) e os que não são considerados pelos filhos do bairro como pertencentes ao pedaço (os de fora).2 Onde para os de dentro a referência é o bairro e para os de fora parece ser a casa. Muito embora, ainda que muito circunstancialmente, se observe o estabelecimento de relações de proximidade entre estes novos moradores e os outros moradores do bairro. Neste sentido, é importante a contratação de serviços junto dos moradores mais antigos, como por exemplo: o agenciamento de serviços de limpeza ou de cuidado de crianças junto das mulheres do bairro.
27Conforme observou Branco (1992: 78) ao estudar alguns casos de novos moradores – analisados sob a ótica do processo de gentrificação – da Rua Marquês de Ponte de Lima e da Costa do Castelo, apesar de esses se referirem à importância da vida de bairro na escolha do seu local de residência, não participam dessa vida. Pois durante a semana encontram-se mobilizados pelas suas atividades profissionais e aos fins de semana ficam em casa ou saem do bairro. No entanto, a autora sublinha que dois dos seus entrevistados viviam na parte baixa do bairro, ou seja, no núcleo popular, sendo que esses já tinham mais relação de vizinhança, participavam de conversas e dos sistemas de entreajuda chegando, inclusivamente, a deixar a chave de casa para que assim fosse possível serem feitas as leituras de gás, luz e água. Por fim, neste estudo conclui-se que a relação que os novos moradores tinham com o bairro passa sobretudo pela casa, considerada como o centro de tudo, uma espécie de símbolo do estilo de vida, sendo também um local privilegiado para o convívio social com parentes e amigos, salientando que mesmo aqueles que entrevistou e que foram viver para o bairro em sistema de arrendamento, apesar de manterem a traça arquitetónica, procederam a obras em casa de modo a ampliar algumas das suas divisões.
28Todavia, embora os novos residentes sejam, muitas vezes, considerados como sendo de fora, penso que aquilo que permite definir a pertença ao dentro não é ser necessariamente um antigo morador, pois existem indivíduos que vivem ali há muitos anos ou que nasceram ali e que tanto podem ser tidos como sendo de dentro como de fora. Precisamente porque é a pertença a uma determinada rede de relações que define quem é de dentro. Já que seriam estes quem transforma a rua num pedaço semipúblico do espaço. Essa situação também é, de certo modo, referida por Costa (1999: 103) para o caso de Alfama, onde foi observado que a reivindicação da identidade alfamista não está diretamente relacionada com o facto de se viver no bairro. Para o autor, a reinclusão de pessoas que na atualidade vivem fora do bairro desenvolve-se “em medida mais ou menos significativa, consoante os trajectos de vida e as circunstâncias relacionais, nas formas de categorização e nos modos de interacção correspondentes a tal pertença identitária”.
29Há de se reparar, entretanto, que na generalidade da área existem muitos casos em que o comércio é controlado por empresas familiares (normalmente marido, mulher, filhos e irmãos), sendo que algumas dessas famílias possuem filhos em idade escolar e, embora não residam no bairro e sejam localmente designados como de fora, têm filhos que frequentam as mesmas instituições escolares que os filhos do bairro e que também têm como pares de brincadeiras as crianças do bairro.3 Por exemplo, a brasileira Débora e a família vivem numa casa velha que teve obras de melhoramento, possuindo um espaço adequado às dimensões do agregado familiar.4 Aos poucos, os membros da família começam a participar de distintas atividades do bairro. De entre essas atividades destaca-se o facto de as duas filhas frequentarem as mesmas instituições escolares dos filhos do bairro, sendo que a filha mais velha costuma estar na rua a brincar ou a conversar com as outras crianças, e participa dos passeios realizados no verão às praias da Caparica juntamente com as outras crianças do bairro. A família de Débora tem ainda participado de forma ativa nos arraiais populares realizados no mês de junho.
30A partir da observação e de inferências locais também fiquei a saber que algumas famílias chinesas vivem no bairro ou nas suas imediações, vivendo em fogos arrendados e consideravelmente próximos dos seus locais de trabalho. Segundo comentários recolhidos entre os moradores mais antigos e junto de uma professora local, num mesmo fogo reside mais de uma família chinesa, distribuindo-se os núcleos familiares pelas diferentes assoalhadas de um mesmo alojamento. No bairro, foi possível verificar que os chineses normalmente alugam apartamentos na Rua Marquês de Ponte de Lima e nas escadinhas de mesmo nome, isto é, onde os fogos costumam ser mais amplos e possuem mais divisões, pois esses grupos chegam a ter mais de dez elementos – de ambos os sexos e com diferentes idades – a residir num mesmo fogo. Também existem fogos alugados por grupos de africanos, indianos e brasileiros:
“Os chineses, eles têm vindo para cá […], mais ali para a Rua Marquês de Ponte de Lima, mas é do género: eles alugam uma casa a pagar 100 contos de renda. Mas vêm para cá e dormem aos 10 e 12, depois acabam por ir embora porque as rendas são altas. Africanos também têm vindo e temos cá brasileiros. Brasileiros é que já temos muitos, aqui na Rua João do Outeiro e aqui em frente temos cá brasileiros, mesmo aqui no Largo da Severa, no 1.º andar temos lá brasileiros, mas agora devem estar a trabalhar, elas andam a trabalhar […], aqui só não temos timorenses!” (Sr. Paulino)
“[…] Os africanos, os chineses e tem muitos brasileiros. Oh! Jesus! […] eles também constroem as suas casas da malta.5 Há aqui na Rua João do Outeiro uma casa, agora já não há, graças a Deus […], que a mulherzinha morreu, ela era nossa comadre e o senhorio alugou aquilo, acho que eram chineses, então, eles não tinham mobílias assim como a gente. Tinham uma mesa no meio onde eles comiam todos, ao lado tinha uma mesinha com uma televisão onde eles ficavam lá todos a ver, mas também não faziam desacatos, à noite cada um ia buscar o seu colchão e dormiam ali no chão, na sala. Têm uma coisa boa, não se metem com ninguém, passam pela gente, convivem […]. Ontem eram os que vinham da província, hoje são os imigrantes, mas é igual, alugam em grandes grupos uma mesma casa e assim dá para pagar. Os aluguéis aqui já estão em 100 contos ou mais, mas como são muitos conseguem pagar. Os que têm mais dinheiro vão para parte de cima da Rua Marquês de Ponte de Lima, os que não podem vão viver na parte de baixo da mesma rua, mesmo sendo estrangeiros.” (Sr. Vasco)
31Existem também algumas famílias residentes de origem africana cujos filhos frequentam igualmente as mesmas instituições que as outras crianças do bairro e brincam nas suas ruas, pátios e vilas. Saliento ainda que, ao longo da minha estada no bairro, observei que, de ano para ano, aumentou o número de casos em que crianças do bairro voltavam da escola acompanhadas por crianças chinesas. Muito embora quando chegam ao bairro se separem: umas seguem para dentro do Centro Comercial da Mouraria, outras para o coração do bairro.
32A existência de crianças filhas de brasileiros, chineses, indianos e africanos – mesmo nos casos em que não são residentes no bairro, mas que praticamente passam ali todo o dia ou estudam nas mesmas instituições escolares que os de dentro – é um contributo importante para a criação de uma relação de proximidade entre os de dentro e os de fora, como complexifica a ideia de que somente são os filhos do bairro que estão nas ruas. Ciente que esses casos ainda são pontuais, julgo importante admitir a ideia de que tais dinâmicas são, pelo menos, um importante estímulo para uma possível reinvenção dos laços de vizinhança e da reconfiguração da relação que os indivíduos têm com a rua como sala. Conforme foi referido por Hannerz (1992: 434), é assinalável o facto de os fortes laços de vizinhança, como a própria vida de bairro, girar muitas vezes em torno das crianças.
33A lógica de causa-efeito é demasiado restritiva para explicar o significado e a significância do espaço público do bairro, pois existem muitas outras lógicas a interferir na relação que os indivíduos têm com a casa, a rua e o bairro. Neste sentido, julgo importante ter em conta que a ordem das pessoas e do bairro é construída culturalmente, portanto, é relativa e relativizável.
Percepções da casa e do bairro
34O afecto manifestado pelos de dentro em relação ao bairro é estrutural e estruturante ao nível das percepções que fazem da sua realidade habitacional, social e urbana. Observe-se, tendo por base as perguntas que procuravam saber o gosto pela casa e pelo bairro onde vivem, conforme consta no “Inquérito ao uso e apropriação dos espaços públicos e exteriores”,6 que a maioria dos respondentes declarou “gostar” ou “gostar muito” da casa e do bairro.7 Pode-se, assim, inferir que a relação casa / bairro é particularmente expressiva nas apreciações que os respondentes do inquérito fazem da casa (ver quadro 20).
35Como notou Costa (1999: 456) para o caso de Alfama, “o próprio gosto pela casa terá de interpretar-se no quadro da relação afectiva com o bairro enquanto território, tecido social e referente de identidade cultural”. Mas a ligação ao bairro não significa a inexistência de insatisfação com as deficiências das suas casas ou de descontentamento com determinados aspectos relacionados com a degradação física do bairro, ou ainda com um conjunto de dinâmicas e práticas sociais que ali se manifestam.
36Quando perguntados sobre quais eram os aspectos que mais e menos apreciavam nas suas casas, os respondentes do inquérito salientaram que aquilo que mais apreciam – em ordem decrescente – diz respeito: a determinados compartimentos, à casa toda ou ao facto de a casa estar situada num bairro familiar ao qual se sentem ligados afectivamente.8 Por seu lado, os aspectos menos apreciados são relativos às condições de habitabilidade da casa como, por exemplo, o estado de degradação e o facto de ser velha e pequena; às deficiências funcionais (com destaque para as casas de banho) como, por exemplo, os problemas de humidade e infiltração; e o ambiente do bairro (ver quadro 21). Saliente-se que entre os aspectos referidos, o ambiente social em conjunto com a ligação afectiva que têm pelo bairro são particularmente expressivos na apreciação que fazem das suas casas.
37Mas para alguns dos de dentro, o bairro do presente é incaracterístico, despertando um sentimento de descontentamento com algumas das dinâmicas sociais que ali têm lugar. Sob este prisma, poder-se-ia sugerir que há uma certa tendência para a diminuição do convívio na rua ou mesmo um desejo de mudança do local de residência. Embora sendo de admitir alguma plausibilidade nessas hipóteses, é recorrente o facto de que é o bairro que continua a ser referência – como um bom lugar ou mau lugar para se viver. Por exemplo, o Sr. Paulino estava sempre a comentar que, devido ao ambiente social do bairro, tende a passar cada vez mais tempo na sua casa de praia para os lados da Caparica considerada, inclusivamente, como tendo mais condições do que a sua casa no bairro. Simultaneamente, insinuava que não deixava o bairro por nada, só “depois de morto”. Opinião igualmente partilhada pela sua esposa, como relevante nos comentários expressos por outros moradores – quer fossem velhos ou mais novos.
38Muitos daqueles com quem contactei – mesmo indivíduos que já não residem no bairro – referiram que saíram do bairro ou que os mais novos tendem a sair dali devido à dificuldade de encontrar casa em condições e a preços acessíveis, mas não porque reneguem o bairro. As dificuldades financeiras condicionam o local de moradia dos jovens do bairro e muitos dos que ali continuam vivem com os pais ou avós, mesmo após terem constituído família. No entanto, a saída dos jovens e recém-casados parece ser algo que se verifica com alguma intensidade, indo esses normalmente residir em novas urbanizações, localmente consideradas como mais modernas, sendo essas muitas vezes localizadas na periferia de Lisboa.9 Veja-se como o Sr. Paulino, ali nascido e criado, comentou a saída da população jovem da Mouraria:
“Estes jovens agora têm uma vantagem que nós não tivemos […], eles pedem um crédito à habitação, estão a pagar durante 25, 30 anos e têm a sua casinha e não estão para se meterem em buracos como estes. […] Só o quarto do meu neto é quase que a minha casa. E, é claro, hoje essa juventude […], e acho bem, porque o que eu passei não quero que a minha filha e o meu neto hoje passem, porque eu passei muitas dificuldades para comer um bocadinho de pão com queijo e uma caneca com café. Hoje não, Deus me livre! Nem que eu tivesse sei lá o quê, para que o meu neto e a minha filha não passassem por isso.”
39É interessante, entretanto, notar que existem casos de antigos moradores que procuram demarcar-se daqueles que ali continuaram a viver através da manipulação da relação casa moderna / novo estatuto social. Muito embora, nesses casos, também se observe que essa demarcação somente é possível porque esses indivíduos voltam ao bairro para contar (construir) o seu novo estatuto socio-habitacional.
40Ouvi também comentários deste tipo: “Começa a telenovela das oito horas, as pessoas fecham-se em casa e dali só saem no outro dia. Antes era diferente, vinham todos para a rua […], mas agora não dá, é perigoso […]” (D. Júlia).10 Embora também aqui a definição do bairro como um lugar sossegado e familiar, onde todos se conhecem e se ajudam, sirva para contrabalançar as interpretações mais negativas.
41A recorrência a uma lógica dualista nas interpretações que os de dentro fazem do bairro é utilizada com alguma frequência. Caso se estabeleça um eixo central definido pelo bairro, notar-se-á que ele é regularmente inferido como: característico / típico / tradicional «--» descaracterístico; antigo / velho / histórico «--» degradado; familiar / sossegado / bom ambiente «--» mau ambiente. Solicitados a identificar de forma sintética quais os atributos que melhor permitiam caracterizar o bairro, a maioria dos respondentes do questionário referiu ser, por ordem decrescente, um bairro típico e tradicional, degradado e velho, como ainda um bairro com mau ambiente social (ver quadro 22).
42Embora os atributos típico e tradicional estejam relacionados com determinadas formas culturais como o fado, a marcha, a Severa, o bairrismo, a procissão, a vida de rua, o convívio e o conhecimento mútuo entre os moradores, etc., as avaliações depreciativas do bairro partem do princípio de que, no tempo de agora, tais práticas diminuíram de intensidade. Sendo o mau ambiente relacionado com o tráfico e consumo de droga, o roubo, a vadiagem e a insegurança. Repare-se como tais atributos se repercutem na forma como é percebido aquilo que se passa no espaço público do bairro.11
43Em várias situações verifiquei uma associação entre o aumento da insegurança e a diminuição do convívio nas ruas do bairro – sobretudo no período noturno e aos fins de semana –, sendo essa situação explicável por uma espécie de sentimento de invasão que os de dentro sentem relativamente à entrada ou ao aumento da frequência do local por parte daqueles que são considerados como de fora. No entanto, quando questionados sobre a diminuição do convívio no espaço da rua com o cair da noite, dando lugar a um sentimento de que a calma e o vazio das ruas significava perigo, as respostas fornecidas deram a entender que, de um lado, tal derivava da diminuição da população do bairro, do seu envelhecimento e da tendência para os jovens que constituem família irem viver para fora dali.12 Num outro plano, isso repercutia-se na forma como a relação espaço / tempo é percebida e apropriada, aparecendo insinuações de que no tempo de antes as pessoas ocupavam os seus tempos livres e de não-trabalho a conviver na rua,13 enquanto agora, quando chegam a casa, deixam-se lá estar a ver televisão.14 Nesta ótica, quando questionados sobre como ocupavam o tempo livre durante a semana, mais de metade dos respondentes do inquérito referiram que ficavam em casa – a ver televisão, a fazer os trabalhos domésticos, a cuidar dos filhos, etc. – e apenas uma minoria referiu que convive com os amigos do bairro.15 E relativamente à ocupação do tempo livre durante o fim de semana, mais de metade dos respondentes disseram que vão passear para fora do bairro. As restantes respostas referem o desenvolvimento de algumas atividades no bairro, essencialmente na parte da manhã (sobretudo ao sábado) – como ir à missa, às compras, conversar com os vizinhos –, indiciando que no resto do dia ficam em casa. De facto, durante a semana após as 20:00 horas e aos fins de semana a partir das 15:00 horas do sábado, o bairro fica praticamente deserto, com exceção do período de verão em que existe mais movimento durante a noite, do Centro Comercial da Mouraria (aberto ao sábado), ao movimento da Praça Martim Moniz e aos pontos de venda de droga. Pelo que aqui é expressiva a relação entre a diminuição do movimento nas ruas e o horário de fechamento do comércio nos principais eixos viários do bairro.
44A maioria dos indivíduos questionados – de um total de 101 respondentes – referiram que havia locais inseguros no bairro (78,2%). Contudo, é saliente observar que quando perguntados como era antes a segurança no bairro mais de metade deram a entender que era melhor (mais seguro, sossegado, convívio, etc.). É de observar que 80 inquiridos distinguiram quais eram os locais mais inseguros, sendo recorrente o facto de que, apesar de alguns terem referido ser todo o bairro, a maior parte dos respondentes (81,2%) terem identificado zonas específicas, nas quais se destacam aquelas onde decorre o tráfico e o consumo de droga e, em segundo lugar, as zonas onde ocorre a prostituição (em especial foi referida a zona do Intendente). Regra geral, tais zonas correspondem a determinadas ruas e largos, mas também havia uma certa incidência na citação das escadinhas como local inseguro, pois podem ser aí encontrados toxicodependentes a injetarem-se, sendo também um dos principais locais associados a roubos, usualmente designados como “roubo por esticão”. Contudo, apesar de muitos dos moradores com que falei se referirem à insegurança no bairro, nos casos de roubo procuravam assinalar que quem roubava não era do bairro, mas de fora. Mas, paralelamente, era comum ouvir casos de pais que foram aldrabados ou roubados pelos próprios filhos toxicodependentes, dando assim uma outra dimensão ao problema da insegurança de que muitos se dizem vítimas.
45Reparei, entretanto, que quando questionava os indivíduos mais novos sobre a existência de insegurança no bairro, era comum dizerem que não havia problemas e que o bairro era calmo, sossegado e que tinha um ambiente familiar. Um comerciante português que foi viver para ali há 15 anos para estar perto do seu trabalho, observou que “acorda com os pássaros a cantar”, referindo-se à tranquilidade do bairro. Por seu lado, Clarissa salientou que, apesar de voltar do trabalho já de noite, o bairro é tranquilo e não se passa nada, inferindo que a “mania da insegurança era coisa dos velhos”.
46Poder-se-ia ainda referir a existência de uma relação entre o sentimento de insegurança e a percepção da qualidade do espaço público. Por exemplo, ao ser solicitado aos respondentes do inquérito que fizessem uma avaliação do espaço público através de cinco critérios – muito bom, bom, razoável, mau e muito mau –, foi possível verificar que, dos 97 indivíduos que responderam a essa questão, a maioria considerou esse espaço como sendo mau ou muito mau. Sendo que alguns desses indivíduos ainda salientaram que o espaço público deveria ser melhorado, de modo a ser garantido o seu arranjo, a melhoria das suas acessibilidades, a criação de espaços verdes e a melhoria da segurança pública.16
47Quanto aos locais do bairro que os respondentes mais achavam bonitos ou feios, mais de metade dos que responderam a essa questão (de um total de 86) referem a Praça do Martim Moniz como o local mais bonito. Nas conversas que tive com distintos moradores, a praça também foi mencionada como tal, tendo ainda sido salientado que aquele espaço é o melhor exemplo daquilo que se fez no bairro nos últimos anos, à exceção dos quiosques metálicos que lá colocaram e que muitos referiram não gostar.17 Regra geral, pode-se considerar que tais opiniões estão relacionadas com o facto de que essa área esteve abandonada, desde os anos 40 até 1997, sem nenhuma espécie de intervenção urbanística que viabilizasse a sua qualificação. Mas é interessante observar que, apesar de ser por muitos considerado o local mais bonito do bairro, a praça praticamente é utilizada pelos de dentro como trajeto ou quando se dá a Procissão de Nossa Senhora da Saúde ou, mais pontualmente, por algumas crianças que durante o verão ali vão banhar-se nas fontes de água, mas voltarei a essa questão no decorrer deste capítulo.
48Os locais referidos como sendo os mais feios foram, para um total de 78 indivíduos que responderam a essa questão, os seguintes: a Rua do Capelão, o Intendente, o Centro Comercial da Mouraria e a esquina da Rua Marquês de Ponte de Lima com o Largo do Terreirinho e a Rua da Amendoeira – um ponto de venda de droga. Sobre a apreciação da Rua do Capelão como sendo uma rua feia, é pertinente notar que nos contactos que tive com os de dentro ela foi considerada como uma das ruas mais características e típicas do bairro. De modo que me parece que quando essa rua é mencionada como feia pretendem, sobretudo, salientar o descontentamento que sentem relativamente ao estado de degradação de um espaço pelo qual têm especial afeição, ressalve-se que na continuidade dessa rua está situada a casa da Severa e que ao longo desse eixo – que vai até à Rua da Guia – a vida de rua é particularmente intensa.
49Contudo, embora seja possível detectar uma conotação negativa na apreciação que os de dentro fazem do ambiente do bairro, também aqui há um contraponto na questão: o bairro continua a ser uma importante referência ao nível das relações de sociabilidade, sendo a rua o local privilegiado para o desenvolvimento dessas relações. A rua proporciona um ambiente que, para muitos daqueles com que falei, quer fossem de dentro quer de fora, evoca a ideia de que o bairro é como uma aldeia.
50Também verifiquei que enquanto para os de dentro a rua é um espaço que oferece segurança, familiaridade e companhia, viabilizando a proximidade e a reiteração quotidiana dos laços de amizade, vizinhança e parentesco, para os de fora esse tipo de situação é associada à falta de privacidade, sendo comum ouvir frases como: “Na Mouraria não há vida privada, na rua sabe-se tudo”, “a Mouraria é como uma aldeia, todos se conhecem e todos sabem da vida dos outros”. Uma brasileira que ali reside há aproximadamente 8 anos, referiu: “[…] lá em casa tenho uma vizinha que até vai ao meu caixote de lixo ver o que a gente come […], eu sei que isso é um bairro, mas as mulheres são muito bairristas, eu sempre morei em bairro, mas as pessoas não se metiam na vida uns dos outros, mas aqui não […].”
51Por outro lado, um engenheiro português que foi viver para a Costa do Castelo mostrou-se “farto” das confusões nas ruas do bairro:
52A tendência é fugir daqui. Só se conseguir estar numa casa onde haja o mínimo de privacidade em relação ao ambiente externo, porque senão acho que nestes bairros é muito difícil […], torna-se um bocado insuportável […], vizinhos em cima, vizinhos nas janelas, nas escadas, isto é quase uma aldeia […], toda a gente sabe a vida uns dos outros […], chateia um bocado. (em Branco 1992: 84)
53O fragmento acima é demonstrativo de como a exposição pública do quotidiano das pessoas é, para alguns dos novos residentes, incomodativa porque cria interferências na lógica do privado / público, confundindo-a. Aqui, o pedaço semipúblico do espaço é percebido como ambivalente e, nesse sentido, pouco convidativo. Para os de dentro, contudo, a intensificação da utilização do pedaço semipúblico do espaço somente como trajeto, ou como parte de um circuito para aqueles que vêm comprar droga ou que se encontram no circuito ligado à prostituição, parece ser percebida como indutora da criação de áreas ambíguas e liminares. Mas não só: a sobreposição de distintos pedaços – dos sem-abrigo, chineses, africanos, indianos, comerciantes, vendedores de droga, prostituição, etc. – transforma as áreas de intersecção entre esses diferentes pedaços, em zonas ambíguas e liminares, onde o contacto pode poluir e, nesse sentido, é alterada a relação que os de dentro têm com o espaço semipúblico da rua.
54Casa e rua interceptam-se e constituem-se mutuamente no tempo e no espaço, coexistindo num sistema de contrastes e complementaridades em que os espaços podem ser individuais, coletivos, permanentes, transitórios, problemáticos, liminares, intersticiais, etc.; e o tempo pode ser individual e biográfico, efémero, contínuo e histórico, cíclico, de lazer, de trabalho, etc. (DaMatta 1990). Todavia, num sistema de contrastes e de complementaridades o par casa / rua designa espaços físicos e localizáveis, bem como domínios culturais, valores, códigos, sentidos, significados e práticas, passando-se o mesmo com o bairro.
Núcleo do bairro: vivências e ritmos quotidianos
No pedaço dos moradores
55O núcleo do bairro da Mouraria é, por excelência, o próprio núcleo do pedaço. Aqui, odores, sons e conversas denunciam o que as pessoas vão almoçar, o que beberam, a música que ouvem e os programas televisivos a que assistiram, expondo redes de amizade, revelando quando os ânimos estão mais exaltados, um acontecimento da noite anterior ou ainda o plano de um passeio ou da compra de um qualquer artigo. Este é um contexto de encontro, convívio, de estada e pertença a uma determinada rede de relações. Onde se verifica a troca de impressões e as brincadeiras infantis, quem à janela dialoga com quem passa cá em baixo ou conversa com o vizinho da janela de frente, onde se questiona se a roupa que se traz vestida está adequada para um encontro com o namorado e ao mesmo tempo se dão risadas ao ouvir os comentários mais ousados.18 Embora o pedaço possa ser transportado para outras regiões urbanas,19 no núcleo do bairro o resto da cidade parece estar além das suas ruas, escadarias, soleira das portas, janelas, pátios e vilas, transformando o visitante num potencial intruso.
56Neste núcleo são minoritários os pontos instituídos de sociabilidade para além da rua, restringindo-se a algumas tascas, uma peixaria e um pequeno mercado de frutas e legumes. Aqui a casa não parece ser um ponto de referência para o desenvolvimento das relações de sociabilidade entre os de dentro.
57A clientela das tascas é predominantemente masculina, à exceção da hora do almoço, quando três servem refeições, assim atraindo homens e mulheres trabalhadores nas redondezas do bairro. No núcleo do bairro, umas das tascas mais frequentadas é conhecida por Tasca da Parreira. Outra tasca muito frequentada é a Travessa do Poço, que fica numa zona de fronteira, no Largo do Terreirinho. A maior parte dos snack-bares encontra-se na Rua dos Cavaleiros, onde também existem duas padarias e alguns restaurantes. A frequência desses snack-bares é generalizada, contudo, por parte dos moradores do núcleo do bairro são as mulheres e os jovens quem costuma ir mais vezes a esses locais, sobretudo ao fim da manhã e ao meio da tarde. Na parte norte da Rua Marquês de Ponte de Lima que ainda faz parte do núcleo do bairro, à exceção de uma mercearia que é frequentada pelas mulheres, os outros estabelecimentos ali existentes não pareceram ser pontos privilegiados para os de dentro (ver quadro 23).
58Os de dentro frequentam sobretudo os cafés que se encontram em zonas de fronteira entre o núcleo do bairro e a sua envolvência próxima. Um dos cafés mais utilizados situa-se na Rua da Mouraria, numa esquina com a Rua do Capelão. Esse café não possui cadeiras e os fregueses juntam-se em pé diante do balcão ou à volta de três pequenas mesas redondas e altas dispostas ao longo da montra do estabelecimento, que também funciona como padaria. Este é um ponto de encontro dos moradores, homens e mulheres – sobretudo quando vão para o trabalho e após o almoço para beber um café –, mas é também um local frequentado por diversos indivíduos, sendo a sua frequência consideravelmente heterogénea. Um outro café que serve como ponto de encontro aos moradores e outros é o Café Mourinha, situado logo à entrada da Rua do Capelão.20 Este café tem dois tipos de clientela: pela manhã cedo e na hora do almoço é utilizado por diferentes pessoas que moram e/ou trabalham na zona; nos períodos intercalares é predominante a presença de homens, muitos dos quais moradores no bairro.
59Os estabelecimentos de restauração existentes no Centro Comercial da Mouraria não são frequentados pelos habitantes do bairro. Também existem alguns estabelecimentos desse tipo nos edifícios da EPUL e do Palácio Aboim, situados ao longo da Rua do Marquês de Alegrete, mas apesar de tais locais serem frequentados por uma população generalizada, muitos dos quais são trabalhadores na envolvência alargada, não funcionam como pontos de encontro para os de dentro.
60Os pontos de estada dos homens são, contudo, mais generalizados do que os das mulheres. Eles podem-se encontrar parados numa esquina a observar ou a conversar, sentados no patamar das escadarias, nas tascas a jogar ou a beber um copo, ou sentados nos bancos da Rua da Mouraria,21 local onde a presença feminina é minoritária. Grande parte desses homens são reformados e idosos, com exceção dos sábados pela manhã, quando o pedaço é rejuvenescido.
61Os homens parecem ser aqueles que dão a face ao bairro, tendo uma presença mais exposta do que as mulheres. Elas parecem viver o lado mais privado do espaço, aparecendo subtilmente nos pontos de maior visibilidade – como é o caso das ruas da Mouraria ou dos Cavaleiros – e quase sempre porque estão de passagem. Pois muito embora a presença das mulheres seja notória em praticamente todo o pedaço, os seus pontos de estada situam-se, em geral, nas áreas intermediárias entre a casa e a rua, como por exemplo à janela ou à soleira da porta. A primeira impressão é que as mulheres se encontram associadas à esfera privada do espaço, enquanto os homens à pública. Na realidade, uma observação mais cuidada mostra que é redutor pensar que a relação homem / mulher se traduz no par público / privado, sendo mais certo pensar que as relações entre uns e outros se definem “pela partilha e negociação de acepções e concepções culturais, o que faz de todos eles actores de dramas comuns, num mesmo palco cultural”, como tão bem nos mostrou Cardeira da Silva (1999: 78). Com as suas roupas discretas, no interior do núcleo do bairro elas falam alto, controlam as crianças que brincam na rua – muitas vezes os netos – e quem entra e sai do bairro. É frequente também encontrá-las a olharem as vitrinas das lojas que circundam o bairro no decorrer da suas idas às compras matinais ou no retorno da missa, geralmente na Capela de Nossa Senhora da Saúde, como ainda no trajeto que liga o bairro à estação de Metro do Martim Moniz e que se desenvolve ao longo da ala norte da cave –1 do Centro Comercial da Mouraria. Mas as mulheres do bairro não costumam frequentar o CCM e praticamente só o percorrem durante o trajeto que as leva à estação do Metro. Uma das vezes que pude constatar de forma mais ostensiva a sua presença no CCM, foi na manhã seguinte ao incêndio que ali deflagrou em finais de maio de 2001. Com a roupa que costumam estar vestidas no interior do núcleo do bairro, em grupos de duas ou três, averiguavam o estado em que ficara o centro.
62As lojas, as mercearias e as peixarias são predominantemente espaços frequentados pelas mulheres. As poucas mercearias existentes encontram-se situadas ao longo das ruas Marquês de Ponte de Lima e dos Cavaleiros. Apesar de existir uma peixaria no Largo do Terreirinho, esta não é a mais frequentada pelas mulheres do núcleo do bairro. A peixaria situada à entrada da Rua do Capelão e o pequeno mercado em espaço aberto também ali situado são os principais locais que funcionam como ponto de encontro feminino.
63Até princípios de 1999, este mercado funcionou ao ar livre no Largo da Guia e era formado por três bancas ocupadas por quatro vendedores, três dos quais mulheres, das quais apenas uma não vivia no bairro. As bancas vendiam peixe, frutas, legumes e hortaliça. O mercado é essencialmente frequentado pelas mulheres do bairro que ali compram e trocam impressões variadas sobre tudo. Esse mercado nasceu no decurso dos anos 80, tendo por base uma intervenção do Gabinete Local da Mouraria (GLM) que pretendeu concentrar numa praça os vendedores ambulantes do bairro que, até esse momento, ainda vendiam pelas ruas do bairro. No princípio, essa praça teve mais vendedores. O depoimento da D. Maria, nascida no bairro e vendedora no mercado desde a sua criação, permite acompanhar a dinâmica dessa praça:
“Havia lá muitos vendedores e não era só peixe e fruta. Havia uma que vendia pastéis, chamava-se Liberdade; havia a Luísa que vendia batatas e feijão; havia a Odete que vendia roupas, o tio Janita vendia pão, a Careca […] vendia coisas que trazia de Espanha, havia outra que vendia bolos, torrão de Alicante e assim essas coisas, e que morava aqui na Rua dos Cavaleiros […], era para aí umas quinze ou dezasseis pessoas […], porque antes o mercado não era só ali naquele espaço […], era toda aquela parte do largo que nós chamamos Alto da Caganita, mas depois os vendedores começaram a desistir, uns porque não dava nada, outros porque já tinham uma certa idade.”
64Em abril de 1999, esse pequeno mercado mudou de local, passando a situar-se à entrada da Rua do Capelão. Em princípio, essa transferência está relacionada com os projetos de reabilitação e edificação promovidos pelo GLM para o Largo da Guia. O mercado ficou desde então separado: a vendedora de peixe tem agora um estabelecimento num dos edifícios situados logo à entrada da Rua do Capelão, enquanto os vendedores de frutas e hortaliça têm as suas bancas mais adiante, num espaço oriundo da derrocada de um edifício. Esse mercado é, contudo, uma das principais atividades comerciais que se realizam no núcleo do bairro, encontrando-se os restantes estabelecimentos afectos a atividades de restauração e similares, com exceção de uma mercearia de produtos indianos que havia sido instalada na Rua do Capelão, vizinha da tasca Amigos do Fado.22
65Apesar de as crianças se encontrarem em todo o núcleo do bairro, normalmente têm a sua presença condicionada aos horários escolares e não costumam estar nas ruas que funcionam como fronteira – as ruas da Mouraria, Cavaleiros, Calçada de Santo André e Costa Castelo –, nem tão-pouco vão ao Centro Comercial da Mouraria, como não costumam brincar no pátio do Coleginho, porque segundo João, que tem 12 anos, os mais velhos implicam com eles.23 No caso dos adolescentes, os rapazes expõe-se mais do que as raparigas, se bem que sejam vistos com mais frequência no interior do núcleo e, às vezes, no Largo das Olarias onde costumam ir a uma loja que alugava vídeos. Elas normalmente estavam de passagem para outro lugar ou sentadas à soleira da porta, enquanto eles estavam nas ruas, sobretudo no Largo da Guia, junto ao Projeto Ambijovem.
66Pontualmente, apareciam no bairro alguns turistas que, desorientados ou apenas movidos pela curiosidade, deambulavam pelas ruas à procura de uma forma de chegar ao Castelo de São Jorge. O principal ponto de referência turística no núcleo do bairro é a casa da Severa, ainda que seja pouco procurada. Usualmente, os trajetos mais percorridos pelos turistas desenvolvem-se nos eixos viários e pedonais que circundam o núcleo do bairro, ou seja, numa zona fronteiriça. Do que foi possível constatar, os dois principais percursos são: (1) Praça do Martim Moniz / Centro Comercial da Mouraria / Rua da Mouraria / Escadinhas da Saúde / Escadinhas do Marquês de Ponte de Lima / Escadinhas do Castelo; (2) Rua da Mouraria / Rua dos Cavaleiros / Calçada de Santo André / Largo de Santo André / Largo Rodrigo de Freitas.
Um dia no pedaço
67Logo no início da manhã saem os homens e mulheres que trabalham, mas antes entram num dos dois pequenos cafés situados à saída da Rua do Capelão. Também os chineses moradores no bairro saem de suas casas em direção ao Centro Comercial da Mouraria, seguindo em regra como percurso as Escadinhas e Rua Marquês de Ponte de Lima / Rua João do Outeiro / Rua da Mouraria / CCM / Praça do M. Moniz / Centro Comercial do Martim Moniz. Os estabelecimentos comerciais situados na envolvência do núcleo do bairro abrem as suas portas e os sem-abrigo, ainda sonolentos, deslocam as suas caixas de papelão e os poucos pertences para outro canto qualquer mais resguardado.
68Às 9:00 horas abrem o mercado e a peixaria, dando início a um movimento que ocupa toda a manhã. Chegam as primeiras clientes que, normalmente, ali ficam por mais tempo do que o necessário para a realização das compras. Entretidas com a escolha dos alimentos, tecem comentários sobre os que saem atrasados para o trabalho e aproveitam para pôr a conversa em dia. Algumas mulheres que trabalham fora passam na peixaria para encomendar o peixe que será servido ao jantar e que irão buscar ao fim do dia no regresso a casa.
69Também cedo, abre a banca de revistas da Rua da Mouraria, um local onde se vendem revistas e jornais, tabaco, gelado e rebuçados, fazem-se embrulhos para prendas, fotocópias, favores de distribuição de correio, também funcionando como um ponto de encontro dos moradores já fora do núcleo interior do pedaço, uma espécie de lugar onde se atualiza a conversa e se acalentam as tristezas da vida. Mas com o passar do tempo, começam a chegar os diversificados clientes que frequentam o bairro e, por entre o atendimento aos vizinhos e as trocas de impressões mais personalizadas, a dona vai despachando com desenvoltura as outras solicitações, sentindo-se apenas incomodada porque “gostava de falar outras línguas […]” para comunicar com aqueles que ali aparecem e não falam português.
70Entre as 10:00 e as 11:00 horas, o movimento no mercado aumenta. No pequeno espaço da peixaria, onde trabalham duas mulheres, às vezes estão mais 5 ou 6, algumas com os filhos ou netos ao colo ou como acompanhantes. Cá fora, os que passam, param e trocam impressões com quem está dentro. À frente da peixaria, o aglomerado de pessoas faz-se e desfaz-se várias vezes até por volta da uma hora. Enquanto isso, nas ruas intensifica-se o movimento das mulheres nas voltas das compras. Os seus sacos pesados anunciam as refeições do dia e, para aliviar a tarefa, fazem pausas à medida que se encontram com conhecidos com quem ficam a falar mais demoradamente. Da janela alguém pergunta: “Ohhh! Vizinha! Hoje tem favas na praça?”, “As favas estão boas? E o preço?” E a vizinha cá em baixo logo responde: “Tem e estão boas, quer que compre? Então guarde o meu saco […]!” No entretanto, aquelas que já compraram as favas começam a descascá-las na soleira da porta ou no peitoril da janela do rés do chão sendo ajudadas pelas vizinhas que param para conversar por alguns minutos até à hora de voltar para casa.
71Das janelas caem os lençóis brancos e a roupa lavada, estendida por mãos femininas e olhos que controlam se o céu está propício para a secagem, enquanto veem quem passa cá em baixo. Nas ruas, as crianças que não estão na escola percorrem o bairro à procura de um amigo para jogar à bola, brincar de boneca ou aos polícias e ladrões.
72Intensifica-se, então, a presença dos homens, a maioria reformados. Prontos para um passeio para além do bairro, saem de casa a cumprimentar quem encontram, parando numa esquina ou outra e, por fim, mais demoradamente na Tasca da Parreira ou na da Travessa do Poço até à hora do almoço. Podem dar um passeio à Baixa, mas o mais certo é deixarem-se estar num dos bancos da Rua da Mouraria – localmente conhecidos como “bancos dos reformados”. Sentam-se dois ou três e logo começam a aglutinar-se outros homens, alguns vindos das Olarias que ali também ficam a passar o tempo e a observar o colorido e agitado movimento da rua. Dos 11 bancos existentes, aqueles que estavam mais a sul costumavam estar ocupados pelos sem-abrigo, muitos dos quais embriagados e que ali dormiam sem se aperceber do que se passa na rua. Os de dentro, costumavam ficar nos bancos que se encontravam na outra direção, procurando afastar-se dos sem-abrigo e sempre que algum se aproximava era mandado embora. Mas nem sempre essas situações eram pacíficas, podendo ser necessária a intervenção de algum polícia que procurava acalmar os ânimos mais exaltados e, eventualmente, levava os indivíduos em acentuado grau de alcoolismo para a esquadra situada na mesma rua. Neste sentido, aconteceu, certa vez em que estava sentada num dos bancos da Rua da Mouraria, um indivíduo alcoolizado propor-me a venda de uma tesoura pelo valor de 10 000 escudos. Disse-lhe que não estava interessada, mas ele insistiu e baixou o preço para 2000 e logo depois disse-me para oferecer um preço. Voltei a dizer que não estava interessada, mas o indivíduo não desistia do negócio e começou a mostrar-se agressivo. Dois moradores do bairro que acompanhavam o que se passava, e constatando que aquele indivíduo me incomodava, intervieram e disseram-lhe para se ir embora senão chamavam a polícia.
73De vez em quando, ocorrem pequenos conflitos entre os de dentro e os motoristas das carrinhas (normalmente ciganos ou indianos) que ali estacionam sem muito respeito por quem está sentado ou de pé a conversar. Como referiu Magnani (1998: 116), “pessoas de ‘pedaços’ diferentes, ou alguém em trânsito por um ‘pedaço’ que não o seu, são muito cautelosas: o conflito, a hostilidade estão sempre latentes, pois todo lugar fora do ‘pedaço’ é aquela parte desconhecida do mapa e, portanto, do perigo”.
74Apesar de os bancos da Rua da Mouraria fazerem parte do pedaço dos moradores do bairro, eles também são usados pelos diferentes indivíduos que frequentam o bairro. É possível encontrar clientes do comércio ali sentados, como alguns comerciantes. Em geral, quem mais vezes ali vi sentados, para além dos de dentro e dos sem-abrigo, foram chineses e ciganos – homens, mulheres e crianças. Caso um banco tenha uma pessoa de fora sentada, os de dentro sentam-se na outra ponta e, à medida que chegam outros conhecidos seus, estes ficam em pé em volta daqueles que já estão sentados, não se misturando com os outros.
75Nos bancos da Rua da Mouraria, as conversas giram em torno dos mais variados assuntos, prendendo-se num ou noutro acontecimento jornalístico ou político, numa novidade local ou da cidade, nas recordações passadas contadas por entre risos e galhofas, ou num caso com alguma representatividade local. Como o dia em que o filho de um vizinho foi levado preso por estar envolvido com a droga e teve a mota apreendida, sobre uma rusga policial que ocorreu no CCM e resultou na apreensão de indivíduos ligados ao tráfico de droga ou em situação de ilegalidade (falta de documentos), ou ainda a respeito da morte de um amigo na noite anterior, momento em que se mostram tristes e logo alguém comenta que “hoje aqui não fica ninguém, vai a Mouraria toda ao enterro. Os velhos, a velharia toda está tudo a morrer e os novos já não querem viver cá […]”, etc. Aparecem, então, algumas mulheres que vão ao café, compram pão para o almoço e acabam por encontrar alguém conhecido, deixando-se estar por alguns momentos junto dos bancos. A esta hora, o café costuma estar cheio e para se chegar ao balcão tropeça-se nos tantos e variados clientes portugueses, africanos, chineses, brasileiros, indianos, ciganos, etc.
76Com o aproximar da hora do almoço, recomeça a agitação no bairro. Os homens voltam para casa, o mercado vende os seus últimos produtos, enquanto na peixaria se tenta escolher um peixe apressadamente e, aos gritos, as mães e avós mandam filhos e netos aprontarem-se para irem para a escola. Algumas tascas têm os braseiros cá fora a funcionar e o ar fica a cheirar a grelhados. Chegam, então, aqueles que procuram um lugar para almoçar e entre as mulheres atrasadas com as compras, crianças a correr, maridos esfomeados, turistas que parecem perdidos, toxicodependentes que se dirigem ao ponto de venda de droga depois de lavarem os seus utensílios na bica do Largo da Guia, chineses que descem apressadamente a Rua do João do Outeiro e velhotes que a sobem num passo lento, o bairro ganha vida, enquanto as ruas comerciais vão, aos poucos, ficando vazias. Inicia-se, então, a limpeza da peixaria que é todos os dias lavada com vários baldes de água, enquanto o peixe é devidamente colocado no frigorífico, fechando o estabelecimento por volta das 14:00 horas.
77Após o almoço, gradualmente o bairro esvazia-se. Os que foram almoçar em casa vão ao café tomar uma bica. Alguns homens jogam às cartas ou ao dominó nas tascas, uma ou outra criança entretém-se a brincar. O bairro fica, então, calmo e tranquilo, até por volta das 16:00 horas, quando se intensifica o movimento nas ruas comerciais e os bancos da Rua da Mouraria voltam a ser ocupados pelos de dentro, sendo que agora alguns homens vêm acompanhados das esposas. O mercado, limpo e esvaziado, torna-se um espaço de brincadeiras infantis.
78Ao fim da tarde, a peixaria reabre para entregar o peixe encomendado pela manhã. Recomeça a agitação no núcleo do bairro, com as crianças a voltarem da escola, e enquanto alguns trabalhadores regressam a casa, outros seguem em direção ao trabalho. Aumentam as deslocações daqueles que se dedicam aos circuitos da droga ou da prostituição e as ruas são atravessadas num ritmo frenético por indianos, africanos e chineses. Inicia-se o fecho do comércio e as ruas enchem-se com o passo apressado daqueles que seguem para as paragens dos transportes públicos, enquanto os sem-abrigo permanecem a postos para retornarem aos bancos da Rua da Mouraria e às arcadas do CCM, onde durante o dia o controlo existente os impossibilitou de estar.
79A partir das 19:30 instala-se a calmaria no núcleo do bairro. Na Rua da Mouraria houve uma espécie de mudança de turno dos seus utentes que passaram a ser quase exclusivamente alguns indivíduos alcoolizados e sem-abrigo, na maioria do sexo masculino. À noite avista-se uma ou outra criança a brincar, um ou outro transeunte, alguns vendedores de droga, mas o bairro parece outro. Na verdade, fica tudo tão calmo e sossegado que é intrigante pensar que durante a noite o bairro se possa tornar muito perigoso, mas segundo um morador “o perigo mora na calma e, às vezes, a calma engana […]”. A partir das 20:30, o núcleo do bairro fica silencioso como se, por um toque de magia, todos desaparecessem, voltando a reaparecer no dia seguinte, quando tudo recomeça.
80Os momentos do dia em que se verifica uma maior intensidade na forma como o pedaço é vivido e experimentado coincidem com os períodos marcados pela transição das diferentes etapas do dia: início da manhã / fim da manhã; início da tarde / fim da tarde / início da noite. Esses momentos são igualmente marcados pela intensificação dos atos de saída e entrada no bairro, como pelo mais simples de se deixar estar num dos pontos do pedaço a conviver. Na verdade, tais momentos de transição quebram a rotina e repõem o movimento, permitem a união, o encontro, o confronto e, às vezes, o conflito (ver figura 7).24
81No entanto, com o aproximar do verão, o movimento noturno intensifica-se no núcleo do bairro. Mais gente vem para a rua após o jantar e as crianças costumam brincar até por volta das 23:00 horas. No cimo das Escadinhas da Saúde, ao fim da tarde, concentram-se alguns brasileiros – sobretudo homens – que vivem nas redondezas, para conversar, tocar percussão e violão e cantar, introduzindo desse modo diferentes mecanismos de dinamização social nalgumas áreas do bairro (ver figura 8).
82O período de maior vivência do espaço público tem início em meados de maio, atingindo o seu clímax em meados de junho, coincidindo com a data da Procissão de Nossa Senhora da Saúde e das Festas Populares. No mês de agosto, são muitos aqueles que saem de férias, uns vão para a província, outros para a praia, ficando o bairro calmo e tranquilo até setembro, quando se reinicia o ciclo quotidiano.
83Aos sábados, até às 13:00 horas, o comércio local está aberto e o movimento no núcleo do bairro é semelhante aos outros dias da semana. A peixaria e o mercado também funcionam até esse horário. Após a hora do almoço, o bairro esvazia-se até segunda-feira, sendo a Rua da Mouraria apenas ocupada por alguns transeuntes ocasionais, por frequentadores do CCM ou pelos sem-abrigo. Tudo é calmo e tranquilo, à exceção dos pontos de venda de droga, do CCM e da Praça Martim Moniz que continuam a ter movimento. O sábado é um dia com dois tempos e dois espaços: antes e depois das 15:00 horas.
84O silêncio e o vazio marcam as rotinas domingueiras, deixando o bairro tão sossegado que parece que ficaram todos em casa ou saíram para qualquer lugar. O mercado não funciona e, fora do núcleo, o movimento restringe-se a alguns transeuntes, aos vendedores de droga e ao movimento na Praça do Martim Moniz, que se tornou um espaço de lazer por excelência para diversos indivíduos, como turistas, africanos, indianos e chineses. Na realidade, é certo dizer que o movimento do bairro está intimamente relacionado com o horário em que se desenvolve a atividade comercial.
Nas ruas envolventes ao núcleo do bairro: vivências e ritmos quotidianos
A presença da atividade comercial
85A estrutura funcional da Área de Intervenção do Gabinete Local da Mouraria encontra-se distribuída pelas seguintes atividades: 35% na área dos serviços, 31% no ramo do comércio, 25% em armazéns (maioritariamente ligados à atividade comercial) e apenas 9% na atividade industrial.25 Esses dados permitem detectar o peso do comércio no âmbito das atividades económicas locais, e comprovar a vocação comercial da área, salientando-se o pendor para a terciarização de algumas zonas do bairro.
86No que respeita ao padrão de distribuição espacial dos diferentes bens e serviços existentes nesta mesma área, observa-se que as principais atividades se encontram concentradas em determinados eixos viários, do qual se destaca o eixo constituído pela Rua do Poço do Borratém / Rua da Mouraria / Rua do Benformoso / Calçada dos Cavaleiros / Calçada de Santo André.
87De acordo com o levantamento / inquérito realizado junto dos comerciantes locais, verificou-se que o comércio que se desenvolve no eixo Calçada de Santo André / Largo do Terreirinho é do tipo diário e ocasional, atendendo uma clientela local e oriunda da envolvente urbana alargada, sobretudo no caso dos estabelecimentos de restauração e similares.26 Nesse eixo, o desenvolvimento dos negócios é fundamentalmente por venda direta e os proprietários são portugueses cuja maioria ali está há mais de 15-20 anos. Alguns desses proprietários vivem no próprio bairro ou na envolvente urbana próxima, sendo que o restante vive na envolvente urbana alargada (por exemplo: Sant’Ana, Arroios ou Areeiro) ou mais raramente fora de Lisboa.
88No eixo constituído pela Rua dos Cavaleiros, observa-se uma mudança radical no tipo de comércio desenvolvido, sendo esse essencialmente vocacionado para a revenda. Nesse eixo, é notória a presença de indianos. A maior parte desses comerciantes está há mais de 15 anos no local, havendo alguns com mais de 20-25 anos na área. Os indianos que ali estão há mais tempo geralmente vieram de Moçambique aquando da independência. No levantamento efetuado, verificou-se que aproximadamente 30 estabelecimentos estão vocacionados para a revenda, entre os quais predomina o comércio de quinquilharias, brindes e brinquedos.
89Na Rua dos Cavaleiros, alguns dos portugueses que atualmente estão no ramo da revenda já tinham comércio no mesmo sítio antes de entrarem nesse ramo, mas essa atividade anterior seguia a antiga vocação dessa rua – sapatarias, roupas, cabeleireiros, máquinas, móveis. Mas, com a vinda dos indianos e o tipo de comércio que ali passaram a desenvolver, a zona tornou-se cada vez mais conhecida pelo comércio grossista, de modo que alguns portugueses se adaptaram à nova vaga comercial e entraram no ramo da venda por grosso. De modo que, apesar de já estarem na zona há muitos anos, estão no ramo da revenda há menos tempo que os indianos e são em menor número.27 O comércio e os serviços que não estão ligados à revenda são controlados por portugueses e, geralmente, são estabelecimentos ligados à restauração e similares, alimentação ou lojas de reparações de máquinas.
90Relativamente ao eixo constituído pelas ruas do Benformoso / Mouraria (lado oriental), o comércio é maioritariamente de revenda (em torno dos 60) e controlado por indianos (com mais de 45 estabelecimentos contabilizados), destacando-se o comércio de quinquilharias, brindes, bijutarias e brinquedos. A maioria desses comerciantes, indianos e portugueses, está há mais de 15-20 anos na zona.
91Muitos dos comerciantes indianos possuem mais de um estabelecimento na área, e alguns ainda têm lojas em outros pontos da cidade ou mesmo fora de Lisboa. Para além dos estabelecimentos de venda, praticamente todos os comerciantes possuem armazéns que se espalham pelas áreas residenciais do bairro e envolvente urbana próxima.
92O quadro 24 permite observar o número de estabelecimentos comerciais existentes no eixo da Calçada de Santo André / Rua dos Cavaleiros / Rua do Benformoso / Rua da Mouraria, comprovando que mais de metade desse comércio está vocacionado para revenda, da qual se destaca o comércio de quinquilharias, bijutarias e brinquedos.
93Relativamente aos indivíduos contratados como empregados do comércio de revenda, verificou-se que apenas uma minoria reside no bairro ou na envolvente urbana próxima ou mesmo alargada.28 Um antigo comerciante local referiu que, regra geral, não é costume contratar trabalhadores que vivam no bairro para evitar “cobranças e inimizades futuras, pois se dava emprego a um e não se dava a outro isso depois gerava muitas confusões com as pessoas do bairro”.
94A maior parte dos comerciantes indianos entrevistados reside fora de Lisboa (geralmente na Portela, em Odivelas ou em Santo António dos Cavaleiros), à exceção de alguns poucos que vivem em Arroios / Praça do Chile e Benfica. Pelo que é interessante, desde já, detectar um trajeto casa / trabalho bastante comum para a maioria dos comerciantes indianos, sobretudo ao ter em conta que o comércio é controlado por extensas redes familiares, e que esses grupos familiares muitas vezes passam o dia inteiro na Mouraria.
95Relativamente aos serviços existentes na área, estes estão sobretudo distribuídos pelos eixos onde se desenvolve o comércio ocasional e excepcional. Como era de prever, os vários serviços existentes na zona são maioritariamente controlados por portugueses, à exceção de alguns poucos estabelecimentos, quase sempre cabeleireiros ou da área da restauração e similares, localizados no Centro Comercial da Mouraria ou no Centro Comercial do Martim Moniz e que são essencialmente controlados por indianos, chineses e africanos.
96Entre os serviços existentes na Área de Intervenção do GLM destacam-se: os escritórios e as empresas – maioritariamente localizados na Rua da Madalena, já fora do bairro da Mouraria –, seguidos das empresas de importação e exportação, essas sim localizadas no bairro, encontrando-se diretamente ligadas ao comércio de revenda de bijutarias e quinquilharias. Com menor relevância temos os serviços pessoais, dos quais sobressaem os cabeleireiros, modistas, alfaiates e costureiras (PUNHM 1996).
97No que respeita aos serviços de hotelaria e similares (ver quadro 25), verificou-se que são os do tipo restaurante, taberna e casa de pasto aqueles que têm maior representatividade na área, servindo uma clientela local e uma população proveniente da envolvente urbana. Num segundo plano, temos os cafés e pastelarias que, juntamente com os restaurantes, se dispersam por toda a malha urbana local. Existem ainda algumas pensões, hotéis, bares, pubs e discotecas, muitos dos quais localizados na Rua do Benformoso no sentido do Intendente, encontrando-se alguns desses estabelecimentos, afectos à atividade da prostituição.
98No núcleo do bairro existem cinco pequenas tascas / restaurantes, mas que somente funcionam durante o dia. Os poucos estabelecimentos do tipo café, snack-bar e casa de pasto encontram-se nas áreas que circundam o bairro.
99As indústrias encontram-se localizadas na área habitacional, mas são em pequeno número e normalmente de âmbito local. As que mais se destacam são as tipografias e as carpintarias / serralheiras, seguidas das oficinas de reparações, de material elétrico, relojoeiro e de reparação de automóveis.
100É particularmente significativo o número de armazéns em toda a área. Em 1989 foi contabilizado um total de 149 armazéns e arrecadações, número que de acordo com o relatório consultado teria a tendência para aumentar (PUNHM 1996). Esses armazéns dão apoio ao comércio da Mouraria e também ao comércio que se desenvolve na Baixa Pombalina. A maior parte desses armazéns ocupam espaços, a priori, destinados a habitação. Tal tem sido problemático, essencialmente por três motivos: terciarização de zonas residenciais, ameaça das estruturas dos edifícios e armazenamento de produtos inflamáveis.
101Observe-se ainda que a proximidade com a Baixa de Lisboa condiciona uma variedade de outras dinâmicas estruturais: para além de alguns comerciantes da Baixa terem armazéns de mercadorias no bairro, alguns dos vendedores ambulantes da Baixa (com destaque para aqueles que se encontram na Praça da Figueira) vivem no bairro, alguns chineses que fazem a venda ambulante no Rossio e nos Restauradores estão ligados ao Centro Comercial da Mouraria ou ao Centro Comercial do Martim Moniz. Como se a geografia situacional (Goffman 1971) e do corpo amplificassem, de certo modo, o território que, a priori, é reconhecido como Mouraria.
102Na generalidade da área comercial, à exceção dos produtos alimentares vendidos por africanos, chineses e indianos, e de um ou outro artefacto, grande parte dos produtos comercializados encontram-se identificados com uma procura de interesse geral sendo, portanto, indistintos do ponto de vista geográfico-cultural. Provavelmente por isso, o grosso dos produtos comercializados nessa zona da cidade tem uma procura generalizada, à exceção, como já referido, de algumas mercadorias mais específicas, atraindo grupos de indivíduos mais singulares.
Quando o vizinho é comerciante
103A atividade comercial predomina no eixo formado pelas ruas da Mouraria / Benformoso / Cavaleiros / Largo do Terreirinho / Calçada de Santo André. Esse eixo – à exceção da Rua da Mouraria, cujo trânsito automóvel é condicionado – possui um intenso movimento de peões e tráfego automóvel durante os dias úteis e no período diurno, destacando-se o transporte de carga e descarga de mercadorias.
104Este eixo funciona como uma região de fronteira entre o núcleo do bairro e a Mouraria ampliada, sendo que a Rua da Mouraria é aquela que funciona como frente do bairro. Constituindo-se como um pedaço semipúblico do espaço usado e apropriado pelos de dentro, como um espaço público frequentado e atravessado por diferenciados indivíduos, como ainda um espaço onde (co)existem outros pedaços semipúblicos do espaço como são o dos sem-abrigo, dos polícias (em frente da esquadra) e o dos comerciantes. As restantes ruas são usadas pelos moradores do núcleo do bairro praticamente como espaço de passagem. Contudo, a Rua da Mouraria é diferentemente apropriada nas suas duas metades. Próximo da Capela de Nossa Senhora da Saúde, a apropriação do espaço é demarcada pelos diferentes trajetos, sendo aqui que se encontram diferentes indivíduos de passagem para outro lugar. Na outra parte da rua, a apropriação é mais diversificada, sendo configurada por distintos trajetos, circuitos e pedaços (ver quadro 26).
105Na Calçada de Santo André, o comércio é maioritariamente do tipo de venda direta e controlado por portugueses que vivem no bairro ou na sua proximidade. Descendo esta calçada e penetrando na Rua dos Cavaleiros, é notória a presença de indianos que ali desenvolvem um comércio de revenda, estendendo-se essa situação às ruas da Mouraria e do Benformoso.
106Os estabelecimentos comerciais controlados por portugueses, como algumas bancas de revistas, os talhos, as mercearias e farmácias, são os locais onde se encontram moradores do núcleo do bairro, sobretudo as mulheres idosas que ali se deslocam para comprar algum produto e acabam por ficar a conversar mais demoradamente. Alguns dos snack-bares e cafés existentes neste eixo, para além de utilizados pelos moradores do bairro, também são frequentados pelos comerciantes. Em especial, os indianos frequentam o café existente na Rua da Mouraria e um outro na Rua do Benformoso.
107Os estabelecimentos ligados à revenda são frequentados por uma clientela muito heterogénea e oriunda de toda a parte da cidade e do país. Normalmente é composta por homens e mulheres que se dedicam à venda direta ao público, sendo que alguns possuem estabelecimentos comerciais e outros são vendedores ambulantes nas ruas ou em feiras, como por exemplo é o caso dos ciganos ou de alguns indivíduos de origem andina. Mas este comércio também atrai clientes que não estão diretamente envolvidos com o negócio de revenda de mercadorias. Estes clientes indiretos são os principais utentes dos espaços de restauração, das esplanadas, das mercearias de produtos chineses, africanos e indianos, dos vários cabeleireiros e lojas luso-africanas de produtos para cabelos. Os dois tipos de clientes são utentes do espaço público mas, curiosamente, são estes clientes indiretos, juntamente com os comerciantes, os moradores do bairro e os sem-abrigo, quem faz uma utilização mais constante do espaço público e com mais visibilidade (ver quadro 27).
108Também aqui se observa que a rua é um pedaço semipúblico do espaço, sendo a soleira das lojas e as esquinas os espaços onde é comum encontrar pequenos grupos de indianos a conversar. As mulheres permanecem no interior das lojas, sendo muito difícil encontrá-las paradas a conversar na rua ou mesmo num café. Alguns dos comerciantes indianos são muçulmanos e, nesse caso, as suas mulheres raramente trabalham nas lojas. Circunstancialmente, é possível vê-las de passagem na rua, geralmente acompanhadas por outras mulheres e filhos. A sua identificação é facilitada pelo vestuário, normalmente envoltas num manto negro e, muitas vezes, com a face coberta. No caso dos indianos católicos, as mulheres estão vestidas à maneira ocidental, contudo, também para elas a rua funciona como local de passagem. Relativamente aos hindus, é frequente encontrar parentes do sexo feminino a trabalhar nas lojas, muitas das quais, vestidas de maneira tradicional, mas também nesses casos a rua apenas é usada como trajeto.
109A Rua do Benformoso foi onde se deu primeiro a concentração de comerciantes indianos ligados à revenda. Somente depois começaram a alargar a sua atividade comercial para a Rua dos Cavaleiros e mais posteriormente para a Rua da Mouraria. Como foi anteriormente referido, o comércio grossista na área teve início em meados da década de 70 do século XX e, nesse período, a Rua do Benformoso ainda era, em toda a sua extensão, identificada com as atividades ligadas à prostituição, com tascas, bares e algumas sapatarias. Aos poucos, os indianos compraram ou alugaram lojas e edifícios degradados, modificando a dinâmica da rua, pelo menos na parte mais a sul, porque na sua outra metade a prostituição e as atividades associadas a esse tipo de prática ainda são consideravelmente expressivas e visíveis.
110A princípio, o comércio grossista desenvolvido na Rua do Benformoso, desenvolveu-se em locais que serviam como local de armazenamento e de revenda. Posteriormente, deu-se a separação entre o local de armazenamento das mercadorias e o local de venda. Segundo um comerciante português ligado aos dois tipos de comércio – revenda e venda direta ao público –, agora existe mais preocupação com a “exposição do artigo, já que antes se queria dar mais a ideia de fartura, com prateleiras cheias de mercadoria, mas agora se preza mais pela qualidade e apresentação do artigo” e, assim, o comércio de revenda passou a ter montras para exposição dos artigos.
111Se bem que muitos dos comerciantes indianos contactados tenham referido que não têm nenhuma relação especial com o bairro – sendo comum ouvir comentários do tipo: “Chegamos aqui, abrimos a loja, está-se cá, fecha-se e vamos embora”, “viemos para aqui somente porque cá estavam os patrícios”, “viemos para aqui porque o comércio que se desenvolve na Mouraria é conhecido em todo o país, a zona é conhecida”; é, contudo, consequente o facto de que a permanência no local por mais de vinte anos proporcionou algumas relações com os de dentro. É comum ver alguns dos comerciantes indianos a cumprimentarem moradores e, mais irregularmente, é possível encontrá-los nos arraiais populares (nesses casos somente vi indivíduos do sexo masculino). Alguns costumam dar apoio financeiro para a organização dos arraiais e marchas ou alguma outra atividade recreativa (por exemplo, apoio para aquisição de uniformes para as equipas de desporto infantil), e participam nas campanhas de caridade, também servindo como referência de prestígio para os moradores, para além da influência que têm em algumas das decisões de carácter urbano.
112Em conformidade com Hannerz (1992), dir-se-ia que a Mouraria é um bairro de composição mista, pois é um contexto habitacional e também é um contexto de trabalho. Assim, existindo uma relação entre vizinhança por trabalho e vizinhança por residência, deve-se considerar que os atuais laços de vizinhança são mais complexos do que aqueles a que os moradores estavam, até então, acostumados. No caso da Mouraria, os laços de vizinhança por trabalho, ás vezes, parecem opor-se, noutras sobrepor e noutras ainda articular-se com os laços de vizinhança por residência e, utilizando as mesmas categorias explicativas, isto é reforçado pela importância dos laços de vizinhança através da escola – tendo em conta que os residentes bem como alguns dos trabalhadores no comércio local (destaque para os chineses, seguidos dos africanos e indianos) têm os seus filhos a frequentar as mesmas instituições escolares. Não obstante as distintas relações de vizinhança serem complexas e multidimensionais, não deixa de ser interessante observar que o espaço privilegiado para o desenvolvimento dessas relações é a rua. Pois se os moradores costumam conviver à soleira da porta de casa, não deixa de ser curioso o facto de os comerciantes, quando não têm clientes, costumarem estar à soleira da porta da loja.
113Todavia, com a intensificação do comércio desenvolvido pelos chineses – essencialmente no Centro Comercial da Mouraria e, mais recentemente, no Centro Comercial do Martim Moniz –, o negócio dos indianos tem vindo a retrair-se devido à concorrência. Segundo consta, os preços praticados pelos chineses são mais baixos, dificultando aos indianos a manutenção do volume de negócios até então praticado. Neste sentido, observa-se que a expansão do comércio controlado pelos chineses tem levado a que alguns comerciantes indianos deixem a zona. A criação da Associação Comercial China Town, que havia alugado 44 lojas nas duas caves do Centro Comercial do Martim Moniz, era um dos motivos dessa situação.29
114Apesar de o comércio de revenda praticado pelos indianos se ressentir dos efeitos da concorrência, observa-se uma mudança no tipo de estratégia até então adotada. Por um lado, nota-se que os indianos têm começado a investir num comércio de venda direta e na promoção de artigos de melhor qualidade em substituição dos artigos do tipo quinquilharias. O número de lojas com essas características aumentou no Centro Comercial do Martim Moniz, essencialmente no rés do chão e pisos superiores. Logo à entrada desse centro comercial, no passeio que atravessa as suas galerias, um pequeno placard publicitário de fabrico artesanal anuncia a venda de saris e panjabis. No interior do centro, as montras estão decoradas com artesanato indiano ou com manequins vestidos com trajes indianos tradicionais. Não obstante a Associação Comercial China Town se encontrar nas caves desse centro comercial, só era possível ter acesso às lojas por ela controladas pelas escadarias exteriores ao edifício, na medida que foi vedado o acesso pelas escadarias internas, bem como através dos elevadores que não descem até às caves. Isto demarcava um limite físico, social e comercial. Por outro lado, é expressivo o aumento do comércio controlado pelos indianos nos principais eixos rodoviários da zona, em especial na Avenida Almirante Reis e nas suas transversais, onde proliferam as lojas de móveis cujos donos e funcionários são indianos.
A cadência do comércio define o ritmo do bairro
115O horário do comércio é, de segunda a sexta, das 9:00 às 13:00 horas e das 15:00 às 19:00 horas, e aos sábados das 9:00 às 13:00 horas. Tais horários condicionam a existência de maior ou menor movimento nas ruas, bem como a presença dos de dentro nos bancos (na medida em que somente ali estão quando o comércio está aberto). Dir-se-ia que as tríades casa / rua / bairro e rua / comércio / bairro são dois triângulos que se interpenetram na construção das imagens do bairro.
116Com o aproximar das 10:00 horas, tem início o movimento relacionado com o transporte de carga e descarga de mercadorias, interrompendo o fluxo normal do tráfego automóvel e dificultando a passagem de pedestres (ver figura 5). Começam a chegar os clientes que, antes de iniciarem as suas compras costumam efetuar um circuito de reconhecimento da qualidade dos produtos e dos preços. Enquanto os clientes não aparecem, os donos da loja dão um pulo ao café ou deixam-se estar na soleira da loja, trocando impressões com os seus congéneres. Próximo das 12:00 horas, o movimento de peões e a carga e descarga de imensas caixas de papelão transforma tudo numa grande confusão. Às 13:00 horas, a maioria das lojas fecha para almoço, enquanto no núcleo do bairro recomeça a agitação. Esplanadas e restaurantes começam a encher, atraindo a clientela do comércio de revenda, trabalhadores na zona e muitos indivíduos de origem africana. Enquanto isso, a Praça do Martim Moniz vai sendo ocupada por distintos indivíduos, sobretudo as esplanadas e os bancos protegidos do sol.
117Com a entrada do período vespertino, as atividades reiniciam-se progressivamente, sendo que somente ao meio da tarde as lojas e ruas voltam a ficar cheias e movimentadas. Com o fim da tarde, praticamente já não são efetuados negócios e o movimento das ruas, apesar de intenso, é um movimento de regresso a casa. Ao fechar das lojas, o bairro esvazia-se, como que a recuperar energia para recomeçar na manhã seguinte (ver figura 9).
118Aos sábados, embora as lojas funcionem até ao início da tarde, efetuam-se poucas transações pela falta de tempo para os clientes completarem o circuito de reconhecimento dos produtos, sobretudo quando vêm de fora de Lisboa. Contudo, pela manhã as ruas estão movimentadas com trânsito de mercadorias, turistas, moradores, comerciantes e os habituais frequentadores da área. Com o fechar das lojas, as ruas ficam vazias até apenas se encontrar um ou outro transeunte.
119No decurso do ano, os períodos que mais atraem clientes ao comércio de revenda são aqueles que antecedem a Páscoa (a partir de março até ao feriado) e o Natal (a partir de meados de outubro até ao fim do ano). Nesses períodos, o movimento das ruas torna-se eufórico. No mês de agosto é quando o movimento é menor.
120O colorido da massa humana que atravessa o eixo comercial do bairro só se torna homogéneo por um motivo: muitos que efetuaram compras carregam com grandes sacos de plástico preto com os artigos comprados. Estes sacos pretos são lisos como os utilizados para efeito de recolha do lixo, não tendo nenhuma espécie de publicidade. A visibilidade desses sacos torna-os um sinal ambulante que relaciona aqueles que os carregam com esta área determinada da cidade.
121A Mouraria é uma mancha representativa da cidade contemporânea, um lugar onde passa um bocado do mundo e outros se demoram: ricos, pobres, saudáveis, doentes, toxicodependentes, sem-abrigo, ocidentais, orientais, turistas, ciganos, cristãos, hindus, budistas, islâmicos, moradores, brancos, negros, etc.
Quando o vizinho se pode tornar incómodo
Vendedores de droga e toxicodependentes
122Um dos principais pontos de venda de droga localiza-se no cruzamento entre o Largo do Terreirinho e as ruas Marquês de Ponte de Lima e Amendoeira. Este ponto é manifestamente visível para qualquer transeunte que ali passe. É frequente encontrar pequenos grupos de homens encostados às paredes ou na esquina, sendo intenso o controlo social. Por excelência, este ponto também se constitui como um pedaço semipúblico do espaço apropriado por uma determinada rede de relações. Os períodos do dia em que se verifica um maior movimento no pedaço dizem respeito ao fim da manhã e da tarde, aumentando conforme se dá a aproximação com o fim de semana. Aos fins de semana, apesar de o pedaço se manter visível, o seu movimento é menor.
123De acordo com alguns moradores do bairro, a intensificação do tráfico de droga deu-se em meados dos anos 80. Inicialmente, o tráfico era sobretudo realizado na Rua da Mouraria, próximo das escadarias que dão acesso ao CCM. Com o aumento do comércio no CCM, em finais da década, o principal ponto de venda de droga passou a ser no cruzamento de ruas acima referido. Segundo D. Aurora, a droga já existe no bairro há muito tempo, mas antes não era tão visível e exposta. Nesse sentido, essa senhora considera que a única vantagem que se pode tirar da exposição dessa prática é que agora quando “uma família tem um filho drogado, as pessoas compreendem melhor a situação, pois antes toda a família era marginalizada com uma etiqueta”. Já para o Sr. Tavares:30
“A droga está tomando conta de tudo e se quiser falar com alguém abaixo dos 40 anos é melhor ir ao Largo do Terreirinho, pois os jovens estão todos metidos no negócio da droga […]. Vê-se alguém hoje e daqui a 15 dias estão mais e mais decadentes, sendo que agora são cada vez mais novos. Rapazes e raparigas dos seus 14, 15 anos, estes agora metem-se cada vez mais na droga.”
124Na proporção que se deu o aumento da venda de droga no bairro, intensificou-se a frequência pelos toxicodependentes, normalmente vistos em vários pontos do núcleo do bairro e fora. Alguns são filhos do bairro, mas a maioria vem do resto da cidade, cumprindo um circuito que lhes é conhecido. Observando ainda que, entre os toxicodependentes vistos no bairro é maior o número de indivíduos do sexo masculino.
125Nas principais ruas do núcleo do bairro, os toxicodependentes estão normalmente de passagem. Os locais mais escondidos, como é o caso das escadinhas ou de edifícios cuja porta esteja aberta, às vezes são utilizados como espaço para se injetarem. Fora do núcleo do bairro, durante o período diurno é frequente encontrar alguns a arrumar carros, sobretudo nas áreas envolventes à Rua da Palma e Avenida Almirante Reis. Segundo um levantamento dos arrumadores não credenciados da cidade de Lisboa (Pereira e Silva 1996), nas freguesias por onde se estende a Mouraria ampliada foi contabilizado um total de 21 arrumadores, designadamente: 12 em Santa Justa, 1 no Socorro, 2 em São Cristóvão / São Lourenço e 6 na Graça. Ainda de acordo com esse estudo, os períodos de maior atividade concentravam-se na manhã e na tarde dos dias úteis da semana.
126Alguns toxicodependentes do sexo masculino, em geral jovens, costumam ser contratados pelos chineses do Centro Comercial da Mouraria para efetuarem a carga / descarga de mercadorias, sendo possível encontrá-los a percorrerem os corredores e as escadarias desse centro com grandes caixas de papelão ou de madeira às costas.
127Existem toxicodependentes em situação de sem-abrigo que costumavam dormir nas arcadas do CCM. No entanto existia uma separação entre o seu local e o dos outros sem-abrigo. Os toxicodependentes costumavam dormir na entrada do estacionamento do centro, enquanto os restantes sem-abrigo se encontravam ao longo das arcadas. Os toxicodependentes em situação de sem-abrigo costumam ir ao balneário público situado na Rua dos Cavaleiros.
Sem-abrigo
128A Rua da Mouraria e as arcadas do CCM constituíam os espaços privilegiados dos sem-abrigo. Isto é, esses espaços eram pedaços apropriados por uma determinada rede de relações. Contudo, se durante o dia os sem-abrigo costumam estar na rua, no período noturno procuram locais mais protegidos, como era o caso das arcadas. Desde o ano 2000, entretanto, diminuiu consideravelmente o número dos sem-abrigo nas arcadas do Centro Comercial da Mouraria (CCM), até então um ponto privilegiado para a sua estada, muito embora ainda existam indivíduos nessa condição naquela zona da cidade.31 Tal situação é reflexo da intensificação do controlo policial, da limpeza urbana, do aumento do número de centros de acolhimento na cidade, como das próprias características dessa população flutuante.
129Quando iniciei o trabalho de campo, em 1997, a presença dos sem-abrigo nas arcadas do CCM era maior e manifestamente visível. A maioria chegava por volta das 17:00 horas, arrumava o seu local de dormida, normalmente constituído por caixas de papelão, jornais e plásticos, e ficavam em pequenos grupos a beber e a conversar. Grande parte desses indivíduos eram do sexo masculino, apesar de que também se viam algumas mulheres. Passavam ali a noite e alguns deles permaneciam nas arcadas durante o dia seguinte. Os que dali saíam no período diurno deixavam os seus poucos pertences nas arcadas. Quem ali passasse durante o dia identificava o pedaço ainda que não houvesse nenhum sem-abrigo, pois o lixo, as garrafas vazias e o mau cheiro eram sinais evidentes da sua existência. No seguimento das obras que deram lugar à Praça do Martim Moniz, a sua visibilidade ficou ainda mais evidente, desencadeando o aumento do controlo policial e a intensificação da limpeza por parte dos serviços camarários.
130Em concordância com um ex-administrador do CCM, em princípios de 1999 a administração do centro, com o apoio das freguesias do Socorro e de Santa Justa, e com os serviços de limpeza urbana da CML, fez um acordo com a Polícia de Segurança Pública de modo a que somente fosse permitida a presença dos sem-abrigo nas arcadas após as 18:00 horas. Face a tal acordo, logo pela manhã cedo, por volta das 7:30-8:00 horas, as arcadas eram lavadas e os caixotes de papelão amontoados e seguidamente levados como lixo. Após a limpeza das arcadas, passou a ser constante a presença de um polícia no local durante todo o dia. Aos sem-abrigo foi disponibilizado uma espécie de contentor vazado que servia para guardar os seus pertences e ficava encostado à Capela de Nossa Senhora da Saúde, no lado da Rua da Mouraria. Durante o dia era comum haver pelo menos um indivíduo sem-abrigo nas proximidades desse contentor, a vigiá-lo.
131Com o amanhecer, muitos deslocavam-se para a Rua da Mouraria, onde alguns voltavam a dormir deitados nos peitoris das montras das lojas do CCM ou nos bancos da rua. Proporcionalmente ao aumento do controlo nas arcadas, aumentou o número dos sem-abrigo na Rua da Mouraria durante o período diurno.
132Mais recentemente, observa-se que durante o dia muitos desaparecem das redondezas do bairro e outros saem por alguns instantes mas acabam por retornar à Rua da Mouraria. Ao fim da tarde, aumenta a concentração dos sem-abrigo, a maioria do sexo masculino, ficando primeiro na Rua da Mouraria e só mais tarde se deslocavam para as arcadas. O contentor desapareceu e, a partir de meados do ano 2000, diminuiu a sua presença nas arcadas quer durante o dia, quer no período noturno. No entanto, continua a ser considerável o número de sem-abrigo a dormir naquela área da cidade (em torno de 45, cf. Pereira, Barreto e Fernandes 2001), agora mais espalhados pelas áreas limítrofes ao CCM.
133Os sem-abrigo toxicodependentes, como já foi referido, têm locais de dormida separados, não havendo misturas entre um e outro grupo de indivíduos. Curiosamente, alguns indivíduos que trabalham no CCM demonstraram ter mais compaixão por aqueles que são toxicodependentes, considerados como “pobres coitados”, ao contrário dos outros sem-abrigo que despertam um sentimento de desprezo; como referiu um senhor que ali trabalha, “estão naquela situação porque querem”. Ao contrário, alguns moradores do bairro, apesar de considerarem que todos os sem-abrigo dão mau aspecto ao bairro, demonstraram ter menos compaixão pelos toxicodependentes, havendo quem ajude os outros com o fornecimento de roupas, alimentos e sabão para se lavarem. Contudo, não percebem por que razão andam tão sujos e com as roupas a rasgar-se, já que para além de lhes darem roupa existe um balneário na esquina da Rua dos Cavaleiros com a Rua da Mouraria criado com o objetivo de lhes dar apoio, com máquinas de lavar roupa e duches. D. Rosa, moradora no bairro, ao referir-se a uma sem-abrigo local, comentou que “ela usa a roupa até acabar, nunca a lava, quando já não serve deita fora”. Mas relativamente aos sem-abrigo que são toxicodependentes, existe mais desprezo e incómodo, considerados por muitos moradores como “marginais” e “vagabundos”.
134Veem-se toxicodependentes a atravessar o núcleo do bairro no decorrer do dia, com alguma constância. Mas o mesmo não se passa com os sem-abrigo.32 Os poucos que ali vão parecem ser os mais conhecidos dos moradores. No interior do núcleo do bairro, o local onde são mais vistos é no Largo da Guia, onde costumam ir beber água na bica que ali existe. No entanto, na época dos arraiais populares é possível encontrar um maior número dos sem-abrigo no interior do bairro, sobretudo no período noturno, quando aparecem em grupo e alguns bem-dispostos começam a dançar no meio dos outros dançarinos.
135Durante o dia, aqueles que pernoitam no bairro deslocam-se com alguma constância para determinados locais, como a Baixa – onde os encontrei a pedir esmolas – ou a Associação de Apoio Social da Santa Casa da Misericórdia, nos Anjos, onde são servidas refeições à população carenciada da cidade, deslocando-se até ali de metro. Assim, dir-se-ia que os sem-abrigo também têm circuitos próprios. Conforme observou Daly (1998), a orientação dos sem-abrigo no espaço urbano da cidade desenvolve-se normalmente em função de alguns locais que servem como pontos de referência, por exemplo, os centros de acolhimento ou albergues, missões, locais de apoio e alimentação.33
136Relativamente aos movimentos dos sem-abrigo, observou-se que são indiferenciados no que respeita aos dias da semana, não havendo distinção entre os dias úteis e o fim de semana. No que respeita aos diferentes períodos do ano, segundo Pereira e Silva (1997, 1999), foram contabilizados mais indivíduos no período de inverno do que de verão. Contudo, não é possível avançar com a ideia de que exista uma tendência para o aumento dessa população na cidade em decorrência da estação do ano. Face ao seu aumento na cidade de Lisboa (Pereira, Barreto e Fernandes 2001), é mais certo admitir que tal fenómeno é reflexo de um conjunto de aspectos relacionados com o aumento da desigualdade social e da exclusão, sendo os sem-abrigo uma das facetas mais visíveis desses processos.
Prostitutas
137Os locais onde as prostitutas são mais visíveis, apesar de protegidos (nas arcadas, numa esquina), encontram-se próximos das vias de acesso rodoviário. O principal ponto afecto às atividades ligadas à prostituição está situado na Mouraria ampliada e refere-se ao Largo do Intendente Pina Manique. Face às características comportamentais, relacionais e aos ritmos que caracterizam esse ponto, é possível considerar que ele se define como um pedaço semipúblico do espaço. No entanto, mais próximo do núcleo do bairro existem alguns outros pontos onde se encontram prostitutas com alguma frequência, designadamente: nas arcadas do Edifício da EPUL e do Palácio Aboim, ao longo da Rua do Poço do Borratém, e mais circunstancialmente no cruzamento das ruas da Mouraria e Cavaleiros. Na verdade, os principais pontos relacionados com a prostituição encontram-se nas extremidades da Mouraria ampliada, o que viabiliza uma maior tolerância por parte dos de dentro, contrariamente ao que se passa com a venda de droga, os toxicodependentes, os sem-abrigo e os outros pedaços, trajetos e circuitos que também passaram a fazer parte do campo de significações imaginárias da Mouraria.
138Por volta das 17:00 horas é comum verem-se algumas mulheres jovens a atravessar o bairro, percorrendo o trajeto que as leva ao Intendente. Geralmente vestem-se de forma provocante – saias muito curtas e justas, blusas decotadas descobrindo os seios, sapatos de salto alto e grandes brincos, às vezes com os cabelos pintados em tom claro. Percorrem o trajeto até o Intendente, normalmente acompanhadas por alguém do sexo masculino ou por uma colega. Na zona do Intendente, o movimento intensifica-se com o fim da tarde, atingindo o clímax a meio da noite. Entretanto, durante todo o dia o Intendente apresenta características associada a este tipo de prática: mulheres com roupas provocantes nas esquinas ou na soleira da porta dos estabelecimentos – muitas das quais são raparigas jovens de origem africana –, com homens em redor. No lado sul da Rua do Benformoso existem algumas pensões que insinuam este tipo de prática, e por vezes as prostitutas permanecem à porta do edifício. Aconteceu quando desenvolvia o inquérito aos comerciantes da Rua do Benformoso, alguns senhores mais velhos chamaram-me a atenção para não entrar em determinado edifício ou ir a certo lugar, por não ser conveniente para a minha pessoa. Em geral, tais chamadas de atenção deram-se quando estava próxima de pensões subliminarmente identificadas por pequenos letreiros a anunciar “casa de hóspedes”. Outra vez, deparei-me com um local que funcionava como posto de atendimento de chamadas telefónicas eróticas. Ai, Mouraria!
139Nas arcadas do Edifício da EPUL e do Palácio Aboim, como nas esquinas da Rua do Poço do Borratém, é frequente encontrar mulheres encostadas em frente de algumas lojas, durante o dia e durante a noite. Parecem ser mais velhas e normalmente encontram-se relativamente distanciadas umas das outras, pelo menos a um metro e meio de distância. Contudo, a partir das 20:00 horas, com o comércio já fechado, as prostitutas são mais percetíveis devido à diminuição do movimento de transeuntes que ao longo do dia atravessam as arcadas. Agora, as meninas de programa tornam-se as montras mais vistosas da área.
140Durante o dia é possível encontrar mulheres ligadas à prostituição na Rua da Mouraria ou mesmo sentadas nos bancos que ali existem. Contudo, neste local não se comportam como se estivessem a trabalhar, e a sua identificação apenas se tornava possível devido à forma como são abordadas pelos homens. Relativamente ao Centro Comercial da Mouraria, era mais frequente encontrar-se prostitutas nas caves. Atualmente, parece que ali apenas fazem trajetos, confundindo-se por vezes com os diferentes utentes do centro, sendo possível identificá-las pela maneira de vestir e pelo comportamento mais expressivo.
No Centro Comercial da Mouraria
As particularidades de um centro comercial
141O Centro Comercial da Mouraria (CCM) possui seis pisos acima do solo e quatro caves inferiores. No 3.º, 4.º e 5.º andar existem escritórios (um total de 28), nos pisos 0, 1.º e 2.º e nas caves -1 e -2 encontram-se as lojas (aproximadamente 160 lojas interiores e 6 viradas para a rua).34 Nas caves -3 e -4 existem 76 lugares de estacionamento. As lojas estão viradas para corredores de distribuição, formando uma galeria interior com acesso através de uma escadaria central protegida por um gradeamento com um metro de altura. Os elevadores encontram-se a meio da ala norte do edifício. A fachada do centro, para o lado da Rua do Martim Moniz, desenvolve-se em arcadas onde com o anoitecer costumavam dormir os sem-abrigo. O edifício foi pintado em tons claros, entretanto escurecidos devido à poluição. O interior foi pintado de cinzento, um tom que adicionado à pouca iluminação natural acentua o aspecto sombrio daquele espaço. O centro possui cinco acessos: um pela Rua do Martim Moniz (entrada principal), dois pela Rua da Mouraria, um pela Praça do Martim Moniz que liga com o Metro e com a Rua da Mouraria, e um último acesso através do Metro na esquina da Rua Fernandes da Fonseca e Rua da Palma. Na ala sul e externa do edifício existe ainda uma passagem coberta que liga a Rua do Martim Moniz com a Rua da Mouraria.35
142Inaugurado na segunda metade da década de 80 do século XX, o CCM foi estruturado para a realização de um comércio de venda direta ao público, como qualquer outro centro comercial. Contudo, nos seus primeiros anos de existência poucos foram aqueles que se instalaram no CCM para desenvolver a venda a retalho, pois o comércio de revenda que se desenvolvia no eixo formado pelas ruas dos Cavaleiros / Benformoso oferecia preços imbatíveis. No início dos anos 90, comerciantes portugueses começaram a ocupar os escritórios do 3.º, 4.º e 5.º andar. Muitos desses escritórios servem até hoje como locais de exposição de artigos de revenda. Nas caves instalaram-se restaurantes, cafés e uma loja de jogos eletrónicos, que atraia os adolescentes do bairro. Nessa época, parecia haver alguns pontos de prostituição nas caves. No primeiro andar havia poucas lojas e o segundo andar estava vazio.
143Em meados dos anos 90, o centro começou a ser procurado pelos comerciantes ligados à revenda, coincidindo com um dos períodos de maior desenvolvimento dessa atividade nos principais eixos viários do bairro. A partir de finais de 1996 aumentou o número de comerciantes chineses e, atualmente, são estes que dominam o comércio efetuado no CCM, utilizando as lojas como local de venda e armazenamento. Segundo Marcos, “com os chineses vieram também os ciganos”. Também data de meados dos anos 90 a instalação de cabeleireiros, lojas especializadas em produtos capilares, restaurantes e mercearias africanas. Desde então, o CCM deixou de ser frequentado pela população do bairro, que vai ali circunstancialmente, quase sempre em dias de chuva e apenas os indivíduos adultos e do sexo masculino. Para o administrador do CCM, são dois os motivos pelo qual a população não frequenta esse local: o comércio de revenda atrai uma clientela muito específica, não correspondendo aos interesses dos habitantes do bairro; os habitantes têm uma relação de “amor e ódio” com o CCM.
144O pequeno espaço das lojas é totalmente ocupado pelos artigos, dispostos entre caixas e mais caixas de papelão e madeira que ocupam o espaço central das lojas e as prateleiras que cobrem as paredes de cima a baixo, obstruindo as janelas e agravando ainda mais o aspecto cinzento de um contexto com pouca iluminação natural e artificial. A falta de luminosidade é tão expressiva que, o Sr. Paulino ao referir que “podia contar nos dedos as vezes que foi ao CCM”, de seguida observou que o espaço “é muito escuro, não é como os outros centros comerciais que são mais bonitos […], o Centro do Martim Moniz é muito mais bonito, porque tem mais luz”. Mas, curiosamente a percepção de que o centro é pouco iluminado do ponto de vista físico parece ser ainda mais acentuada pela percepção que é feita do seu ambiente social. A título de exemplo, observe-se um fragmento de um artigo sobre o CCM da autoria de Fernanda Câncio:
“Alguém achou por bem forrar aquilo a preto e usar poucas janelas. Para quem vem do sol da Baixa, cego de tanto calcário polido, é como entrar numa gruta. É preciso esperar um bocado até que os olhos vejam outra vez. E quando vêem, leva um outro bocado até se perceber porque é que há uma sensação diferente. Se se for muito distraído pode levar até bastante tempo mas lá há-de se reparar que ao contrário do que acontece na maior parte das ruas de Portugal a razão é de vinte pessoas de etnia não branca para cada pessoa branca.” (JN, Notícias Magazine, 14.09.1997)
145Intrigante é também o facto de que, num local escuro e com pouca ventilação, as esplanadas que ocupam os corredores centrais encontram-se protegidas com guarda-sóis. E isto tem único motivo: desviar o lixo que muitos atiram dos andares de cima.
146O comércio que predomina no CCM é o de roupas, seguido do comércio de quinquilharias e alimentar (mercearias indianas, chinesas e africanas) (ver quadro 28).36
147Relativamente aos serviços existentes no Centro Comercial da Mouraria, verifica-se que ali predominam os de restauração e similares (ver quadro 29). Os restaurantes, entretanto, tinham a particularidade de possuir uma culinária de características chinesa ou africana. Os donos dos cabeleireiros e das lojas especializadas em produtos capilares são africanos, bem como a maior parte da clientela. Os cabeleireiros, contudo, costumam ser designados como luso-africanos e são especializados na colocação de tranças postiças, desfrisagem, cortes estilizados e tinturas.
148Pati Kati, Bombay Looks, Xin Ge, Palop, Morabeza, Tabanka são algumas das designações dos estabelecimentos ali existentes. Nomes esquisitos, odores estranhos, sons africanos e chineses, cânticos hindus, sabores de além-mar, uma profusão de línguas e dialetos compõem a ambiência do CCM. Na verdade, o CCM constitui um contexto sui generis em vários sentidos: o tom sombrio do espaço é contrariado pelo colorido das lojas e utentes; o cheiro de fritos e suor é contrariado pelo odor das especiarias chinesas, africanas e indianas; a indisciplina – por exemplo, na utilização dos elevadores (usados para o transporte de grandes quantidades de mercadorias, levando a que constantemente deixem de funcionar), na utilização de botijas de gás (proibidas em centros comerciais), na utilização dos corredores de acesso público como uma espécie de quintal e como extensão do local de venda de mercadorias, etc. – é contrariada pela invenção de um lugar singular no seio da cidade.
149Os corredores são um pouco de tudo: local de passagem, de negociações (legais e ilegais), de encontro, de estada, de esplanada, de venda de produtos, de refeição e de entretenimento. Os chineses ocupam os corredores, a princípio de uso público, para vender frutas e legumes utilizados na cozinha chinesa e com caixas onde apoiam a louça de que se servem para comer ou as revistas que leem antes de se deixarem adormecer nas espreguiçadeiras dispostas à frente da loja. Enquanto os clientes não chegam, toda a família de chineses esperam sentados ou deitados em cima de toalhas e tapetes colocados à frente da loja. Assim, muitas das atividades a priori associadas ao espaço doméstico, como por exemplo comer, dormir e descansar, são ali desenvolvidas no espaço da loja ou no corredor.
150Os africanos, por seu lado, colocam cadeiras defronte das lojas, formando pequenos grupos de conversa, enquanto dentro das lojas de produtos capilares as raparigas atendem os clientes embaladas ao som de música africana. Mais discretos, os indianos esperam à frente das lojas, formando pequenos grupos de conversa, essencialmente formados por homens.
151Segundo o administrador do centro, inicialmente procurou-se proibir e controlar a colocação de espreguiçadeiras nos corredores, pois tal impede a fluidez do acesso e não respeita as normas de segurança. Entretanto, a administração acabou por desistir de controlar tais práticas, pois verificaram que as regras que procuraram impor não foram respeitadas. Neste sentido, o administrador contou-me que um dia foi com um segurança falar com um chinês que dormia numa dessas cadeiras. Tiveram de acordar o indivíduo e quando começaram a dizer que ele não podia ali estar, verificaram que somente falava chinês. Tiveram de chamar outro chinês que traduziu: “Chinês tem sono, chinês dolme.”
152Também é comum os corredores estarem completamente atrofiados com grandes caixotes, gerando conflitos na relação entre a administração do centro e os comerciantes. Outro motivo de constantes conflitos com a administração, mas também com os utentes do centro, é que os chineses costumam embrulhar as mercadorias (em geral, roupas) em grandes sacos que atiram pela escada abaixo para não terem de os carregar. Os acidentes acabam por resultar em confrontos que chegam a ser violentos. Contudo, também se verificam conflitos relacionados com desentendimentos pessoais e, possivelmente, relativos a negócios não esclarecidos. Tais situações, por vezes, desencadeiam confrontos diretos, exigindo a intervenção dos seguranças. “Cadeiras, mesas e garrafas pelo ar são o pão nosso de cada dia no centro comercial”, “barril de pólvora”, “missão impossível” (Jornal de Notícias, 13.03.1998) são algumas das formas que os meios de comunicação social utilizam para noticiar (e simplificar) aquilo que se passa no CCM.37
153Nos diferentes tipos de estabelecimentos chineses, trabalham homens e mulheres de distintas idades, muitos deles familiares. Nos estabelecimentos africanos, também existem trabalhadores com relações de parentesco e de ambos os sexos – exceção feita às lojas de produtos capilares onde predominam as do sexo feminino. Relativamente aos indianos, é predominante o número de homens e as mulheres quando existem são quase sempre familiares.
154A cave -2 é aquela que mais se define como ponto de lazer e de encontro dos distintos indivíduos que frequentam o centro, encontrando-se aí a maioria das mercearias indianas, chinesas e africanas, mas também dos cafés, bares e restaurantes. Muito embora indianos, africanos e chineses frequentem os diferentes estabelecimentos de restauração ali existentes e se encontrem nos corredores, quer sejam comerciantes ou apenas utentes do CCM, não parecem existir relações de convívio entre os diferentes grupos, pois cada um desses grupos parece interagir dentro do seu próprio pedaço. Existem, contudo, relações em decorrência dos diferentes negócios que ali são efetuados e ainda no âmbito do controlo social, excedendo a ideia de que este somente é feito pelos seguranças. Por exemplo, ao longo do período que frequentei o contexto com mais assiduidade no âmbito de uma tentativa de caracterizar as atividades do Centro fui, muitas vezes, abordada – algumas vezes de forma pouco simpática – no sentido de explicar o que ali fazia, tendo até de mostrar os papéis em que tomava notas para comprovar que não era fiscal nem polícia. Normalmente, quem fazia tais abordagens de controlo eram os africanos, mas descobri que eram os chineses ou indianos com dificuldades de se expressar em português que lhes solicitavam que me identificassem. Certa vez, comentei com um brasileiro que frequentava o CCM que enfrentava algumas dificuldades para desenvolver o meu trabalho naquele local, pois era frequentemente interrompida e, às vezes, de forma agressiva, ao que ele prontamente comentou: “Quem teme tem coisa a esconder e aqui no Centro todos têm, porque tudo é ilegal”, referindo de seguida que caso voltasse a ter problemas procurasse outro brasileiro, conhecido por “Carioca”, que conhecia muitos frequentadores do CCM. Mais tarde, uma portuguesa ex-trabalhadora daquele local comentou: “OCCM funciona como um bairro, pois estão todos unidos e todos controlam o que se passa contra as ameaças externas.” E um segurança do CCM referiria que “o CCM é um espaço muito delicado por causa da mistura de culturas […]”.
155Assim, alguns comerciantes de origem indiana não falam português e têm mesmo dificuldade em comunicar em inglês. No caso dos chineses, são muitos os que não falam português. Alguns esboçavam frases em francês ou espanhol, pois antes de vir para Portugal estiveram em França ou em Espanha. Os comerciantes chineses que encontram muita dificuldade para comunicar contratam raparigas que falem português, em geral africanas. Contudo, nas portas das lojas é normal encontrar anúncios escritos com caracteres chineses solicitando trabalhadores ou, mais raramente, divulgando algum estabelecimento comercial ligado ao dono ou à sua família, em geral, mercearias e restaurantes. Este facto comprova que os chineses costumam contratar trabalhadores no seio da sua própria comunidade. Entretanto, as crianças chinesas que andam nas escolas da área aprendem a falar português e, em muitos casos, eram elas quem serviam como intermediários das transações comerciais.
156Os ciganos são os principais clientes dos produtos de revenda, seguidos dos pequenos comerciantes portugueses e de outros vendedores ambulantes. As compras são normalmente feitas a dinheiro, sobretudo nos estabelecimentos chineses, não existindo recibos nem faturas, sendo este um dos motivos pelos quais os produtos são ali mais baratos, pois segundo os administradores do centro os comerciantes chineses não pagam os impostos.
157A clientela cigana é formada por grupos familiares que chegam de carrinha, geralmente, com mais de cinco pessoas. Os maridos ficam à porta das lojas ou sentados numa esplanada ou café, enquanto as mulheres com os filhos nos colos escolhem os artigos e fazem a negociação, entrando depois os homens para concretizar o negócio. Para esse efeito, retiram maços de notas dos bolsos. Os produtos comprados, normalmente roupas, são colocados em grandes sacos pretos de plástico, sem tempo para vistoriar a qualidade dos artigos. Certas vezes, tal situação provoca conflitos, pois quando os ciganos abrem os sacos e constatam que há roupas estragadas, retornam ao CCM em grupo para reclamar. Como não têm recibos nem meios de comprovar a compra, os chineses recusam-se a devolver o dinheiro ou a trocar a mercadoria estragada iniciando uma discussão acirrada que, às vezes, resulta em briga, exigindo a intervenção dos seguranças do CCM ou da polícia.
158Os estabelecimentos de restauração costumam ser frequentados pelos diversos clientes do comércio de revenda. Nesses locais, tais indivíduos fazem uma pausa no circuito de reconhecimento dos produtos e preços. Brasileiros que vivem no bairro também frequentam o CCM, sobretudo indivíduos do sexo masculino, indo ali para comprar mandioca, comer nos restaurantes chineses ou apenas para tomar uma cervejinha após o trabalho. Existem bares e cafés de indianos, portugueses, chineses e africanos, sendo estes estabelecimentos frequentados por todos os utentes do centro comercial. Entretanto, os estabelecimentos que negoceiam produtos mais especializados, como as mercearias,38 as lojas de roupas tradicionais e os cabeleireiros, possuem clientelas mais específicas. As mercearias indianas são, por exemplo e segundo um comerciante, mais procuradas por pessoas do Gujarat, Bengala, Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka e indianos oriundos de Moçambique; já os cabeleireiros são mais procurados pelos indivíduos de origem africana. Os restaurantes chineses atraem diferenciados indivíduos, enquanto os de comida africana têm uma clientela mais ligada às diversas comunidades africanas que frequentam o CCM. Em geral, os chineses só vão aos restaurantes chineses, os indianos procuram os estabelecimentos que servem comida vegetariana – pelo que costumam ir aos chineses, mas não vão aos africanos –, e estes últimos, por seu lado, deliciam-se com todos os sabores e, de vez em quando, matam a saudade dos requintes culinários da sua terra indo aos restaurantes especializados em comida guineense, que predominam no CCM. Os restaurantes encontram-se decorados com elementos alusivos às culturas de origem dos proprietários. Onde se abastecem? Na China, Índia e nos países africanos (com destaque para a Guiné), mas também em Londres, Paris, Madrid…
159Sintomática da frequência do CCM era, por exemplo, a montra da loja de fotografias que, apesar de pertencer a uma comerciante portuguesa, se encontrava decorada com retratos emoldurados de crianças cujo tipo étnico era chinês, indiano e negro. Ou, por exemplo, uma loja de artigos religiosos, cuja montra estava decorada com imagens de Nossa Senhora de Fátima, Santo António, Ganesh, Shiva e Buda, etc., dispostas no meio de amuletos africanos, bibelôs de loiça, incensos chineses e indianos.
160O tipo de frequência que se verifica no CCM reproduz-se na estação de Metro do Martim Moniz, que se encontra ligado à cave –1. Também o ritmo dos movimentos na estação é reflexo daquilo que se passa ao longo do dia e da semana no espaço do CCM e das ruas comerciais, para além de essa estação também ser utilizada por outros utentes.
Ritmos e comportamentos
161O horário de funcionamento do CCM era, até meados de 1999, todos os dias das 9:00 às 22:00 horas. Mas esse horário tem sido alterado e de momento durante a semana fecha às 20:00 horas, tendo deixado de funcionar aos domingos e feriados.
162Ao longo do ano, os períodos que antecedem a Páscoa e o Natal são aqueles em que se verifica uma maior procura das lojas de revenda, sendo agosto o período de menor frequência. Períodos esses coincidentes com o que se passa nos eixos comerciais do bairro. Contudo, à exceção do movimento causado pelo negócio de revenda, a frequência do centro da parte dos outros tipos de utentes é constante no decorrer do ano, apenas variando ao longo do dia e aos fins de semana.
163Assim que o CCM abre, o movimento resume-se às atividades de carga e descarga de mercadorias. Com o aproximar das 11:00 horas, começam a chegar os clientes que se misturam com o amontoado de caixas colocadas nos corredores. O período que se situa entre as 11:00 e as 13:00 horas é o de maior intensidade nos negócios e na movimentação daquele espaço. As escadarias passam a ter um intenso e confuso trânsito de pessoas que sobem e descem carregadas de compras, ao mesmo tempo que os chineses atiram os sacos com mercadorias pela escada abaixo. Lojas e corredores ficam repletos de gente, mães chinesas correm atrás dos filhos, crianças ciganas brincam nos corredores, no meio de gente vestida à maneira ocidental, com saris e panjabis, túnicas coloridas, roupas negras e turbantes (ver figura 10).
164Depois, até ao fim da tarde, o hall de entrada fica repleto de homens, a maioria de origem indiana e africana. Com o aproximar da hora do almoço, enquanto as ruas comerciais esvaziam, o CCM e o núcleo do bairro ficam agitados, sendo este o momento de maior frequência do Centro no decorrer de todo o dia.
165Após o almoço, o CCM retoma o seu ritmo, contudo mais moderado, intensificando-se um pouco mais com o fim da tarde, quando chegam novas levas de ciganos que dali saem com enormes sacos de mercadorias. Com o cair da noite, diminui o fluxo de clientes do comércio de revenda, sendo o Centro apropriado pelos comerciantes e utentes habituais, que ficam a conversar e a beber um copo nos corredores, cafés e esplanadas.
166Ao longo do dia é possível encontrar alguns poucos turistas a passear e, de vez em quando, jovens (não moradores do bairro) que percorrem o CCM movidos pela curiosidade ou interessados na compra de algum artigo mais barato ou mais exótico. Em regra estes indivíduos não se demoram, limitando-se a passar e mais circunstancialmente a comprar algum artigo.
167Aos sábados o comércio é fraco, coincidindo com o ritmo do comércio que se desenvolve nos eixos viários. Nesses dias, a frequência é essencialmente relacionada com o lazer, o saborear da comida da terra ou por aqueles que se deixaram encantar com a publicidade dos cabeleireiros: “cabelos ao vento”, “melhore o seu visual”, “fabricamos beleza”… O corte de cabelo pode, inclusivamente, ser feito numa das esplanadas enquanto o cliente bebe uma cerveja! Ai, Mouraria!
168No fim da tarde de sábado, o Centro fica mais calmo e tranquilo, fechando às 20:00 horas. As portas que ligam à estação de Metro são fechadas e somente é possível aceder ao metropolitano através das suas outras entradas.
169O CCM é um espaço onde a sensação de que se está fora da cidade e mesmo do país é constante, fazendo lembrar a confusão dos mercados orientais, dos souks árabes ou das ruas africanas sem, contudo, ser nenhum deles. Quando ali entramos é marcante a sensação de que se atravessou uma fronteira. Mas o CCM é um espaço que, a par dos seus hibridismos, tem ritmos próprios, frequências específicas, relações mais ou menos consolidadas, dinâmicas e regras características que, de vez em quando, transbordam para o resto do bairro da Mouraria. O CCM é um espaço configurado por pedaços, trajetos e circuitos que o identificam e singularizam, transformando-o num contexto único na mancha da Mouraria e no mapa social da cidade de Lisboa.
Na Praça do Martim Moniz
As particularidades de uma praça
170A Praça do Martim Moniz foi inaugurada em finais de 1997. Um acontecimento que viabilizou a requalificação urbana da área depois de quase meio século em situação expectante. A praça localiza-se no centro do largo de igual nome, a praça desenvolve-se linearmente no sentido norte-sul, com uma ligeira inclinação resolvida com escadarias de acesso nas extremidades. Circundada por intenso tráfego viário, a praça é envolvida por um passeio de peões, seguido de jardins pontualmente entrecortados com passagens que permitem aceder à faixa central.39 A água é um elemento de destaque da decoração e ambiência. Na extremidade sul, diante do Hotel Mundial, os repuxos de água são circundados por bancos. Essa extremidade é separada da faixa central da praça através de um muro alusivo à Cerca Moura. O muro é estilizado, com torres e figuras (os guerreiros) que evocam o cerco cristão da cidade, sendo central a simbologia relacionada com a lenda de Martim Moniz, mártir da conquista de Lisboa. O muro é atravessado por duas pontes levadiças de betão e cercado por um fosso com água. De cada um dos lados da faixa central da praça existem bancos metálicos, árvores e sanitários públicos. Separando-a da extremidade norte, um segundo lanço de escadas dá acesso a uma plataforma superior onde uma fonte de água em forma de estrela permite refrescar o ambiente.
171A inauguração da praça tornou-a tema número um das conversas e visitas, desencadeando um interesse generalizado por aquele novo espaço. Era comum encontrar os moradores do bairro a apreciarem a praça, crianças a correrem entre os repuxos de água, grupos a conversarem e a trocarem impressões sobre os equipamentos. Mas a efusividade inicial durou pouco tempo.
172Os grupos de indivíduos do sexo masculino de origem africana e indiana que paravam na esquina das ruas da Mouraria e Cavaleiros, aos poucos, transferiram-se para a extremidade norte da praça. Esta parte da praça passou a ser um ponto de aglutinação sobretudo a partir do fim da manhã, estendendo-se essa situação por toda a tarde, sendo o fim da tarde o período de maior concentração, aquando do fecho do comércio. Não obstante a presença desses indivíduos se verificar num espaço físico comum, os grupos de indianos não se misturavam (e não se misturam) com os grupos de africanos, encontrando-se cada grupo associado ao seu próprio pedaço. De seguida, também passou a haver pequenas concentrações de chineses que também se juntavam no seu próprio pedaço. Essa situação desencadeou um processo de desapropriação da praça por parte dos de dentro que, desde então, apesar de considerarem o Martim Moniz o espaço mais bonito do bairro, começaram a identificá-lo como um espaço dos outros onde “não dá para se estar”, “só tem pretos, apesar de que não sou racista”. Apesar de utilizarem a praça para efeito de trajeto, esta impressão, associada à visibilidade dos sem-abrigo nas arcadas do CCM, aumentou ainda mais o desconsolo que os de dentro sentiam com o cartão-postal que se havia tornado o Martim Moniz.
173A Câmara Municipal de Lisboa, em princípios de 1998, resolveu instalar 44 quiosques de aço inoxidável distribuídos pelos dois lados da faixa central da praça, com o objetivo de revitalizar economicamente o local a partir do desenvolvimento de um comércio de retalho especializado em artigos regionais, antiguidades e artesanato. A praça ficou obstruída, propiciando algumas apropriações que insinuavam ambiguidade. Os sanitários públicos começaram a ser utilizados como local para os toxicodependentes se injetarem e os espaços situados entre os quiosques, sobretudo a partir da hora do almoço, tornaram-se propícios para o desenvolvimento de atividades ilegais, como a venda de droga e a concentração de grupos de indivíduos indianos e africanos que desenvolviam um negócio de chamadas telefónicas fraudulentas. Essa situação agravou-se com a demora na ocupação dos quiosques que, passado quase um ano da sua instalação, continuavam na sua maioria fechados. A praça começou a ser percebida pelos de dentro e por comerciantes de origem portuguesa como um espaço onde havia perigo, e os quiosques ganharam a alcunha de “gaiolas”.
174O jornal Público, em meados de junho, abriu o seu caderno local com a seguinte manchete: “Martim Moniz invadido – Junta de Freguesia acha que os mais de 40 quiosques prejudicam o largo” (Público, 23.06.1998). Continuando essa situação no decorrer de setembro do mesmo ano, o mesmo jornal iniciou de novo o seu caderno local com a seguinte manchete: “Quiosques custaram 130 mil contos”, ainda insinuando numa legenda: “EPUL investiu em… quiosques que parecem estar a mais” (Público, 08.09.1998).
175Dois quiosques foram, entretanto, ocupados pelos Amigos de Lisboa e pelo Turismo de Lisboa, desencadeando um tímido processo de atração de turistas. Passando entre os africanos e indianos que desenvolviam os seus negócios ou estavam sentados nos bancos ou nos relvados, via-se um ou outro turista a atravessar a praça, tirando fotografias ou refrescando-se nos repuxos de água, e mais provavelmente num dos três quiosques que funcionam como snack-bar e esplanada – sobretudo no quiosque situado no lado sudoeste da praça, diante do Hotel Mundial.
176Em finais de 1998, verificou-se a abertura de alguns quiosques que comercializavam artesanato e antiguidades. Mas a praça ainda era pouco frequentada e o comércio desenvolvido nos quiosques praticamente não tinha clientela, ao contrário do negócio das chamadas telefónicas que prosperava numa velocidade estonteante. A extremidade norte da praça passou a ter um número maior de grupos de indivíduos africanos e indianos que desenvolviam um negócio de chamadas internacionais por um preço abaixo do custo oficial. Estes grupos ficaram conhecidos por “gangs dos telemóveis”. Em volta desses grupos juntavam-se os clientes, na sua maioria de característica africana, indiana e chinesa, encontrando-se todos muito atentos a qualquer movimento suspeito que pudesse pôr em causa a sua segurança. Mesmo atravessar a praça tornou-se constrangedor, o controlo era demasiado e quando permanecia sentada num banco a tomar notas sentia que cada um dos meus gestos era controlado.
177A par do fluente negócio dos telemóveis, tornaram-se frequentes as discussões, sobretudo motivadas pelos valores cobrados que alguns dos clientes se recusavam a pagar. Tais situações começaram a desencadear rusgas policiais que levavam presos alguns indivíduos, alguns dos quais sem documentos. Com o agravar dessa situação, o comércio desenvolvido nos quiosques entrou em bancarrota, para além dos comerciantes começarem a sentir-se inseguros. Organizados, os comerciantes escreveram uma carta ao Ministério da Administração Interna, reclamando do “clima de insegurança” em que viviam. Em 14.06.1999, a manchete do Jornal da Região era “Martim Moniz: Praça morta por falta de gente”. Veja-se, então, alguns fragmentos da notícia:
“[…] A intenção de devolver o Martim Moniz à população saiu gorada. Por ali apenas circulam os mais corajosos. Os outros, a maioria, afastam-se com medo dos grupos de africanos e indianos que se juntam ao cimo da Praça, onde já se verificaram acesas discussões.
O resultado é que a população evita aquele local, grande parte dos quiosques estão fechados e os donos dos que permanecem abertos queixam-se do negócio ser fraco. ‘As pessoas vêem estes agrupamentos e afastam-se daqui’, diz João Santiago. ‘Há dias em que não faço (negócio) sequer para o almoço.’”
178Como esta situação continuava, os comerciantes descontentes, em conjunto com o gerente do Hotel Mundial, subscreveram um abaixo-assinado entregue à Câmara Municipal de Lisboa (CML) onde era explicado o “clima de insegurança” vivido na praça, considerado como hostil e agressivo. De acordo com o jornal Público de 19.06.1999, no referido documento entregue à CML a situação vinha descrita da seguinte forma:
“No passado dia 8 de Maio, um grupo de africanos resolveu, por motivo que ignoramos, não pagar as chamadas que fizeram em telemóveis controlados por asiáticos. O que se seguiu foi algo que há muito esperávamos e temíamos. O conflito que se gerou entre os dois grupos étnicos (entre 50 e 60 indivíduos, no seu todo) estendeu-se por toda a praça, tendo-se verificado a invasão de dois quiosques para deles serem retirados ferros.”
179Com o agravar da situação, foi desencadeada uma rusga policial designada como “Operação Caril”. Na data de 17.06.1999, essa operação deteve 14 estrangeiros e confiscou 92 telemóveis. Desde então, a praça passou a ser controlada por um segurança uniformizado e por um sistema de videovigilância da empresa PROSEGUR – Sistema de Segurança Lda. –, que também possui um posto de controlo num dos quiosques. Em alguns postes de iluminação pública foram colocadas pequenas placas metálicas avisando: “Para a sua protecção, este local encontra-se sob a vigilância de um circuito fechado de televisão.” Tais sistemas de controlo afectaram o negócio dos gangs dos telemóveis que deixaram de existir, pelo menos de uma forma manifestamente expressiva, como também outras práticas marginais.40
180É recorrente o facto de que a partir do momento em que se verificou o aumento de atividades marginais, definíveis como uma espécie de lado invisível do espaço público – porque indesejáveis –, foi prontamente desencadeado um processo de controlo e transformação das atividades da praça numa fachada visível que permitiu expor práticas, atividades e indivíduos (Low 2000a: 152). Os comportamentos considerados aceitáveis passaram a ser incrementados por aqueles que pagam o sistema de segurança e vigilância, refletindo-se essa situação numa domesticação do espaço através da eliminação da desordem, dos conflitos e da violência, como se assim o espaço fosse purificado (Fyfe e Bannister 1998).
181No entanto, o comércio que se pretendeu instalar nos quiosques não vingou e, em pleno ano 2000, a maioria desses espaços continuava fechado. De modo que a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) avançou com uma outra estratégia com o intuito de vitalizar o uso desses quiosques. A partir de um acordo entre a EPUL / CML e a recém-constituída Associação Comercial China Town decidiu-se a substituição da ideia inicial de desenvolver ali um comércio de antiguidades e artesanatos, por um comércio relacionado com quinquilharias, artigos eletrónicos, imitações de objetos de marca e roupas. Dos 44 quiosques ali existentes, 30 seriam ocupados pelos comerciantes chineses, ficando marcada a data simbólica de 10 de Junho para a reinauguração da praça.41 Mas passados poucos meses, a situação do comércio continuava desoladora.
182A falta de clientes, os problemas com roubos de mercadorias e a falta de conforto nos quiosques (muito quentes no verão e frios no inverno) dificultavam a exploração comercial, causando muitos prejuízos aos comerciantes chineses. No Jornal da Região de 02.10.2000 um artigo intitulado “Martim Moniz continua às moscas - Comerciantes chineses podem deixar quiosques” anunciava a insatisfação dos chineses que, logo de seguida, abandonaram os quiosques. Nesse mesmo período também deixou de funcionar o posto de Turismo de Lisboa por alegada falta de clientela.42
183O fracasso dos quiosques era um facto. De modo que, em dezembro de 2000, a Câmara Municipal de Lisboa os retirou da praça, doando a maior parte às paróquias da cidade,43 apenas tendo ficado com alguns tantos nos seus armazéns, sendo que uma dezena restaram na Praça do Martim Moniz, ali ocupados com artesanato, numismática, jornais e revistas, e o posto de segurança da praça.
Ritmos e comportamentos
184Após os atropelos na apropriação da Praça do Martim Moniz, pouco a pouco, ela tornou-se um importante espaço na dinamização da área. Desde a retirada dos quiosques, a praça ficou desafogada, aumentando a intensidade da sua apropriação, sobretudo da parte daqueles que já a frequentavam, como os indianos, africanos e chineses, como aumentou a frequência por parte dos turistas e dos clientes do comércio de revenda, costumando esses últimos atravessar a praça no percurso que os leva às caves do Centro Comercial do Martim Moniz, ou ficar nos bancos ou num dos snack-bares ali existentes. A praça tornou-se um local simpático para o desenvolvimento de sociabilidades, um passeio ou estada num dos bancos protegidos pela sombra das pequenas árvores que começam a mostrar um ar da sua graça.
185No período diurno dos dias úteis da semana, os momentos em que se verifica uma maior intensidade na frequência e apropriação da Praça do Martim Moniz são coincidentes com os ritmos do comércio local. Isto é, fim da manhã, hora do almoço e fim da tarde (ver figura 11 e quadro 30).
186Durante o período noturno encontravam-se abertos dois dos três quiosques que funcionam como snack-bares e esplanadas, atraindo clientela, sobretudo nas noites mais quentes. Aos fins de semana, ao contrário das ruas comerciais da zona, a Praça do Martim Moniz continua a ser frequentada, sobretudo após a hora do almoço. O mês de agosto é quando existe menos movimento na praça, assim como em toda a zona.
187Embora os três quiosques que funcionam como snack-bares e esplanadas sejam utilizados pelos diferenciados indivíduos que frequentam a praça, identificam algumas especificidades na sua apropriação, definindo limites e fronteiras socio-simbólicas que aqui importa explorar (ver figura 12).
188Um destes snack-bares chama-se Fava Rica e é explorado por portugueses.44 O quiosque está situado do lado oeste da extremidade sul da praça, à frente do Hotel Mundial, funcionando durante todos os dias, fins de semana e feriados, até por volta das 23:00-24:00 horas, verificando-se uma maior intensidade na sua apropriação a partir do fim da manhã / hora do almoço. Contudo, apesar de esse quiosque ser frequentado por diferentes indivíduos, é predominante a presença de turistas. Salienta-se ainda que esse quiosque se encontra próximo dos dois hotéis existentes na zona: Hotel Mundial e Hotel Lisboa-Tejo (situado na Rua do Poço do Borratém).
189Os outros dois snack-bares encontram-se situados em ambos os lados da extremidade norte da praça. Um deles está à frente do Centro Comercial da Mouraria, sendo explorado por chineses. Até à data de redação deste trabalho, o estabelecimento não possuía nenhum nome que permitisse designá-lo. A sua frequência reproduz, de certo modo, a ambiência nos estabelecimentos deste tipo do CCM, ou seja, é frequentado por chineses, indianos, africanos, brasileiros e ciganos, sempre em grupos separados. Embora também tenha verificado que esse local atrai mais chineses e indianos do que os outros dois snack-bares.
190Saliente-se ainda que, apesar de ser possível ali encontrar mulheres, é predominante o número de indivíduos adultos e do sexo masculino. Esse quiosque não funciona no período noturno, fechando por volta das 19:00 horas e funcionando aos fins de semana. Os momentos de maior frequentação relacionam-se com os períodos acima descritos: fim da manhã / hora do almoço / fim da tarde.
191O terceiro quiosque está situado em frente do Centro Comercial do Martim Moniz. Numa folha comum de papel A4 está impresso em letras coloridas o nome do estabelecimento: Quiosque Criola do Martim Moniz. Funciona todos os dias da semana até por volta das 23:00-24:00 horas. Também aqui era predominante o número de indivíduos do sexo masculino, sendo expressivo a presença de indivíduos de origem africana.
192A circundar a fonte existente na extremidade norte da praça, é comum encontrar grupos de chineses, indianos ou africanos – e mais recentemente de indivíduos dos países do Leste europeu – sentados no murete de proteção da fonte ou de pé, em geral de frente para a faixa central da praça. Esta situação é particularmente intensa ao fim da manhã e ao fim da tarde. Durante a noite, também se verifica esse tipo de apropriação, contudo, nesse período vários indivíduos, sobretudo chineses, apresentam-se com roupa mais descontraída, como calções e sandálias. Por um lado, tais situações coincidem com o horário pós-laboral; por outro lado, é saliente o facto de que alguns desses indivíduos residem na proximidade, mais normalmente na Mouraria ou na colina de Sant’Ana – onde, cada vez mais, verifica-se o aluguer de casas a indivíduos de características indiana e chinesa, bem como é saliente o aumento de número de estabelecimentos comerciais explorados por esses indivíduos – o que transforma a praça numa espécie de quintal.
193Os bancos dispostos de cada um dos lados da faixa central da praça são mais frequentados no fim da manhã, após a hora do almoço e ao fim da tarde e, em específico, são os indivíduos do sexo masculino e de origem africana quem mais os utiliza. Também os pequenos muros que demarcam os canteiros e os relvados revelam a complexidade cultural da praça, encontrando-se ali chineses, indianos, africanos e turistas. As muitas diferenças parecem apenas ser ligadas por um único aspecto comum: são muitos aqueles que trazem consigo de forma evidenciada o telemóvel.
194Por excelência, o meio da praça é um espaço de trajeto, sendo difícil encontrar-se indivíduos ali parados. Também os passeios que circundam a praça são utilizados como trajeto e o mesmo sucede com os passeios de frente dos dois centros comerciais ali existentes,45 verificando-se um intenso trânsito de peões em direção às paragens de autocarros e, sobretudo, em direção da Praça da Figueira e do Rossio / Largo de São Domingos, locais onde se verificam concentrações de indivíduos de origem africana e indiana.
As circunstâncias de protesto civil e de resistência
195Embora as situações acima descritas tenham sido consideradas como quotidianas, é recorrente o facto de que no momento de manifestações, carnaval e procissões tudo se transforma. Nessas circunstâncias, pedaços, circuitos e trajetos deixam de existir, transformando a praça num único espaço: o da festa ou do protesto.
196Observe-se que, desde a inauguração da praça, tem havido manifestações em prol dos direitos dos trabalhadores e dos imigrantes, assinaladas tanto nos meios de comunicação social como nas paredes que envolvem o largo, onde são colocados cartazes. Aos poucos, estas ocorrências vão contribuindo para o processo de construção das imagens da praça, sensibilizando as distintas percepções urbanas para o problema da desigualdade social e de legalização dos imigrantes. E, curiosamente, costumam atrair moradores do bairro, em especial quando são manifestações relacionadas com reivindicações dos trabalhadores.
197Também desde que a praça existe, as Associações Pró-Infância que existem na envolvência alargada têm organizado um desfile de fantasias infantis para comemorar o Carnaval. Essa atividade transformou-se num atrativo local, pais e familiares das crianças afluem à praça e muitos daqueles que se encontravam no seu pedaço colocam-se em volta do desfile para assistir. Em fevereiro de 2001, o desfile teve como tema para as fantasias das crianças as “etnias que vieram viver para o bairro” e que, segundo a coordenadora da Associação Pró-Infância da Mouraria, são respectivamente “africanos, hindus e chineses”. Diferenciadas por grupos etários, as distintas crianças estavam vestidas de forma a representar tais etnias, havendo crianças negras vestidas de indianas, chinesas de africanas e indianas de chineses e vice-versa. Contudo, no meio de dezenas de crianças uma distinguia-se das outras: a filha de uma brasileira e de um cabo-verdiano que apareceu fantasiada de Carmen Miranda! Um ex-libris do que se pode chamar de hibridismo entre a chamada cultura brasileira e portuguesa, com leves toques de influência norte-americana.46
198Por outro lado, no tempo quotidiano o Martim Moniz costuma ser evocado pelos de dentro como fazendo parte dos arredores do bairro, uma espécie de Mouraria que não é bem Mouraria, colocando o Martim Moniz numa situação ambígua. Também se observa que, desde a inauguração da praça, essa demarcação é salientada em alguns meios de comunicação social através da distinção entre bairro da Mouraria e zona do Martim Moniz. Contudo, quando chega o tempo da procissão, o espaço da praça, para além de ser apropriado pelo sagrado, é simbolicamente associado ao bairro da Mouraria. Mas voltarei a essa questão mais adiante.
199Como referiu Low (2000a), a par do controlo por parte do poder, existe uma geografia da resistência que se apropria da praça como um local de expressão civil e de oposição ao controlo estatal. Em síntese, relativamente às situações de protesto que decorrem na Praça do Martim Moniz, parece-me pertinente recuperar as conceções de protesto manifesto, protesto latente e protesto ritual, conforme avançadas pela autora (Low 2000a: 183-186).47
200As situações de protesto manifesto são consideradas pela autora como aquelas em que se verifica uma apropriação do espaço por parte de grupos marginais ou excluídos. Encontram-se nessas situações as greves, manifestações, demonstrações ou outros tipos de reuniões organizadas com o objetivo de expressar descontentamento ou desacordo. A apropriação do espaço por grupos ou atividades marginais também é considerada uma forma de protesto manifesto, muito embora não seja tão visível como as demonstrações de desacordo. No que respeita às demonstrações, quando estas têm impacto verifica-se o encerramento do espaço por parte do controlo policial; e relativamente à apropriação do espaço por grupos marginais e excluídos, caso seja bem-sucedida, verifica-se uma breve reconfiguração social do espaço, que logo é desencorajada através do controlo. No caso da Praça do Martim Moniz, parece-me que este tipo de situação se enquadra nos casos relativos às manifestações que ali têm ocorrido pela reivindicação de direitos para os imigrantes e melhoria das condições de trabalho. Por outro lado, parece-me também recorrente o facto de a praça ter inicialmente sido apropriada por indivíduos / atividades marginais que foram desencorajados e passaram a ser controlados através da intensificação do sistema de segurança.
201O protesto latente refere-se às situações em que o desenho e o planeamento do espaço construído são contestados. Caso esse tipo de protesto tenha sucesso, o espaço público torna-se uma arena de contestação dos significados definidos pelo planeamento do espaço, sendo tais situações objeto de notícia nos meios de comunicação social e, eventualmente, em panfletos. Nesse tipo de protesto pode, inclusivamente, dar-se o caso de haver uma reconfiguração do espaço físico. No caso aqui analisado, essa situação é particularmente expressiva no caso da divulgação pública do descontentamento que os comerciantes, as juntas de freguesias e os moradores tinham relativamente aos quiosques e à concentração do gangue dos telemóveis e que, recorrentemente, deixaram de existir, tornando-se a praça um espaço aberto e pouco propício ao desenvolvimento de práticas marginais.48
202No que concerne ao protesto ritual, Low (2000a) relaciona as situações extraordinárias, como festas, Carnaval, paradas e procissões. Essas situações são consideradas como formas de resistência às conceções hegemónicas do espaço, desenvolvendo-se como atos manifestamente visíveis, apesar de limitados a um determinado tempo e espaço. Nesses casos, verifica-se a inversão temporária dos significados do espaço público. Contudo, essas manifestações não necessariamente redesenham ou alteram a organização física do espaço, muito embora deem expressão às irresolúveis relações sociais. O sucesso desses tipos de protesto reflete-se na mudança temporária do controlo do espaço que, assim, deixa de pertencer às forças hegemónicas, voltando seguidamente à situação de normalidade quotidiana. Na Praça do Martim Moniz, esse tipo de protesto refere-se aos desfiles de fantasias infantis na época de Carnaval e à Procissão de Nossa Senhora da Saúde, quando a praça é ocupada como espaço para realização da missa campal,49 tornando-se a sua envolvência caminho de devoção.
Procissão: uma situação fora do quotidiano
“Há festa na Mouraria. É dia de procissão de Nossa Senhora da Saúde”
203A origem da Procissão de Nossa Senhora da Saúde está, em Lisboa, relacionada com a peste que assolou a cidade no decorrer do século XVI. A ermida foi erigida em 1506, mas nessa altura era dedicada a São Sebastião, venerado pelos artilheiros (então chamados bombardeiros) da guarnição da cidade. Continuando a epidemia a assolar a cidade, e face um forte surto de peste ocorrido no ano de 1569, a 14 de agosto saiu uma procissão do Convento de Xabregas que invocava a proteção de São Sebastião. Quando, em 1570, a cidade voltou a ser ameaçada pela peste, o Senado dirigiu uma petição ao rei D. Sebastião solicitando uma solenidade mostrando reconhecimento a Nossa Senhora da Saúde e, a 20 de abril, realizou-se a primeira procissão com a sua imagem que ocupava o oratório do Colégio dos Meninos Órfãos, na Mouraria. Formou-se, então, a Irmandade da Senhora da Saúde. Em 1661, colocou-se a hipótese de a irmandade construir a sua própria capela, pelo que os artilheiros devotos de São Sebastião ofereceram a sua ermida para guardar a imagem de Nossa Senhora da Saúde, oferta aceite sob duas condições: a ermida teria que passar a ser designada com o nome de Nossa Senhora da Saúde e a sua imagem deveria estar no altar principal. Acordadas as condições, as duas irmandades uniram-se, passando a chamar-se Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e de São Sebastião. Desde 1662, a imagem da Virgem está guardada na referida ermida (Ribeiro 1907; Costa 1991; Cortez 1994b).
204A procissão realizou-se sem nenhuma interrupção durante 338 anos e, normalmente, ocorria na terceira quinta-feira de abril (quando não coincidia com a Semana Santa). Inicialmente, o percurso era do Colégio dos Meninos Órfãos ao Convento de São Domingos, Sé e regresso à Mouraria. Entre 1570 e 1662, a procissão foi realizada com muita pompa, sendo acompanhada por membros da nobreza, irmandades e ordens religiosas da capital, clero, prelado, cabido, Senado da Câmara, pessoal da Sé, anjinhos e populares (Costa 1991). A partir de 1662, os marinheiros e os artilheiros a pé e a cavalo passaram a integrar o cortejo processional, sendo os andores, insígnias e lanternas transportados por oficiais superiores; e a partir de 1800, os militares das várias armas começaram a incorporar-se no cortejo, trazendo as suas respectivas bandas de música e bandeiras. O cortejo adquiriu e manteve, até aos dias de hoje, uma característica religiosa-militar, para além de integrar a hierarquia do poder municipal e central. Com a proclamação da República, a procissão deixou de se efetuar, uma situação que perdurou por 32 anos até aos anos 40 do século XX, quando foi retomada. Em 1974, com a Revolução de Abril, a procissão foi novamente interrompida,50 voltando a ocorrer em 1981. Desde 1984, o programa das festividades em louvor da Senhora da Saúde ocorre durante uma semana no final de abril ou nas duas primeiras semanas de maio, saindo a principal procissão num domingo à tarde. Organizada em seis secções, as imagens incorporadas na procissão respeitam a seguinte ordem: São Jorge, Santa Bárbara, Santo António Olisiponense, São Sebastião e Senhora da Saúde; seguida do “pálio sob o qual o Prelado presidente transporta o Santo Lenho, com que abençoa por fim, a multidão e a cidade” (Costa 1991: 28). A procissão percorre os principais eixos viários da Mouraria, passando no Intendente e na Praça da Figueira.
205Para além dos artilheiros e militares das várias armas e serviços (como os bombeiros), atualmente também participam as forças militarizadas da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP), cada uma com as suas bandeiras e bandas, envergando farda de honra. A GNR homenageia o seu santo padroeiro – São Jorge – cuja imagem, com aproximadamente 1,60 m de altura, tem as pernas articuladas e acompanha o cortejo processional montada num cavalo branco levado pela rédea por um guarda a pé. A imagem é trazida da Igreja de Santa Cruz do Castelo e, após a procissão, regressa ao seu altar.
O percurso da devoção
206A Mouraria começa a transformar-se aproximadamente três semanas antes das festividades. Aqueles que são membros da irmandade percorrem as ruas do bairro aflitos com os detalhes da organização das comemorações. Alguns mais empenhados recolhem um conjunto de cartazes de divulgação e prospetos com o programa e distribuindo-os entre as lojas e juntas de freguesias. O espaço começa a ser ocupado pelo sagrado. Nas portas da capela, um cartaz com a imagem de Nossa Senhora da Saúde anuncia o programa (ver quadro 31), enquanto nas montras de algumas lojas o mesmo cartaz é colocado entre rosários e santinhos que, entretanto, são promovidos a artigo da semana.
207Em geral, a programação das festividades dura uma semana. Desde que iniciei este trabalho foi notório o aumento do número de atividades relacionadas com as comemorações: mais missas, realização de um Auto Mariano na Igreja de Santa Cruz do Castelo (em 2000), noite de fados na Rua da Mouraria e Concerto da Banda da GNR na Praça do Martim Moniz (em 2001). Contudo, a essência das programações rituais é igual, decorrendo ao longo de uma semana.
208A primeira atividade ocorre na segunda ou terça-feira quando, às 16:30 horas, a esposa do Chefe de Estado procede à investidura e colocação da coroa na imagem de Nossa Senhora da Saúde, seguindo-se a eucaristia. Alguns moradores do bairro e de fora, sobretudo mulheres, são atraídos pelo acontecimento, embora o ritual se desenvolva com alguma discrição, não alterando o ritmo das ruas do bairro. Durante o resto da semana, eventualmente, realizam-se outras missas em homenagem dos santos que incorporam a procissão, muitos dos quais padroeiros de distintas forças militares.
209No sábado à noite realiza-se a Procissão das Velas em louvor de Nossa Senhora da Saúde, despertando o interesse de um número considerável de pessoas que levam consigo no cortejo velas acesas e ramos de rosmaninho. Antes do anoitecer, a imagem da Virgem decorada com flores é colocada no átrio da capela que tem as portas internas abertas, permitindo ver as outras imagens que no domingo seguirão no cortejo principal, suscitando assim a atenção dos devotos. Espreitando as imagens através do gradeamento que cerca o átrio da capela e se encontra fechado, os fiéis rezam o terço, suplicam, fazem promessas, choram emocionados e dão esmolas a alguns poucos sem-abrigo que desde cedo se colocaram em frente do portão que dá acesso ao átrio da capela. No sábado e no domingo, o acesso à capela só é autorizado aos eclesiásticos, representantes institucionais e aos membros da irmandade, todos identificados com um autocolante colocado no peito ou um cartão que trazem suspenso ao pescoço.
210Pouco a pouco, o bairro da Mouraria transfigura-se. As ruas por onde passa a procissão são fechadas ao trânsito e vigiadas por polícias. Vendedores ambulantes – na sua maioria mulheres – de velas, santinhos, terços e rosas colocam os artigos em cima de pequenos bancos ou caixotes e apregoam o bento produto, repartindo os lucros entre si próprios e os serviços eclesiásticos. Crianças correm enquanto os seus pais chamam a atenção para não sujarem a roupa branca e nova, grupos conversam, conhecidos de há muito tempo reencontram-se, enquanto os sem-abrigo parecem ter ficado reduzidos a um ou outro a mendigar uma esmola. Às 21:00 horas, abrem-se os portões e é levantado o andor com a imagem de Nossa Senhora da Saúde, dando início ao cortejo processional.
211A Procissão das Velas atravessa os principais eixos viários do bairro, sendo que parte do seu percurso varia de ano para ano. Por vezes segue em direção às Olarias, noutras percorre o núcleo do bairro da Mouraria, podendo também privilegiar algumas ruas da freguesia de São Cristóvão / São Lourenço. Como se assim fosse dado início ao esboço dos limites simbólicos de uma Mouraria que, ciclicamente, volta a ser grande.
212Durante o cortejo, do peitoril das janelas caem colchas de seda ou de renda, enquanto os que assistem ao percurso atiram pétalas de rosa e pequenos pedaços de papel sobre os que seguem a marcha ritual. A procissão é silenciosa, os crentes caminham concentrados e a rezar, sobretudo as mulheres, que são a maioria. Algumas estão vestidas de negro e com xailes rendados a cobrir a cabeça. No ano 2000, a noite estava chuvosa e foi no dia em que os clubes de futebol do Benfica e do Sporting se defrontaram, explicando a pouca afluência, mas pelo menos umas 200 pessoas seguiram na procissão com guarda-chuvas e as velas protegidas por copos. No entanto, a chuva foi tanta que o percurso foi encurtado. De volta à capela, pelas 23:00 horas, antes de a imagem ser recolhida, realiza-se uma missa no exterior. O trânsito de veículos volta à sua normalidade, os polícias regressam à esquadra e a população começa a dispersar.
213O dia culminante das festividades é o domingo, havendo missa campal no Largo do Martim Moniz pela manhã, e a Procissão de Nossa Senhora da Saúde efetua-se na parte da tarde desse dia. Antes de os rituais terem início, as ruas são percorridas pelo séquito de funcionários da limpeza urbana, ao som de cânticos litúrgicos que desde cedo tocam nos altifalantes colocados em frente da capela e na Praça do Martim Moniz. Com as ruas limpas, a sonorização e o palanque de realização da missa campal montados, a Mouraria torna-se um só espaço: de devoção ao sagrado. Com o aproximar das 10:00 horas, começam a chegar os vendedores de artigos religiosos, ocupando as esquinas e pontos estratégicos da praça que, entretanto, é invadida pelos fiéis que irão assistir à missa, enquanto indianos, africanos e chineses, uns budistas, outros sikhs, muçulmanos, hindus, ou com outra crença ou sem nenhuma, observam o movimento. Os que são católicos misturam-se com os restantes devotos que se concentram no meio da praça.
214O palanque está montado no cimo da extremidade norte e encontra-se decorado com flores e os artefactos utilizados no ritual litúrgico, tendo ao centro a imagem de Nossa Senhora da Saúde. As ruas começam a ser cortadas ao trânsito e polícias garantem a manutenção temporária da nova ordem. Em volta do palanque, começa a formar-se um cordão de polícias e militares de distintas forças, todos vestidos com farda de honra. Pouco antes das 11:00 horas, os eclesiásticos saem da capela e atravessam a faixa central da praça protegidos por um cordão de militares, como que purificando um espaço que no quotidiano apenas é utilizado como trajeto, dando logo a seguir início à missa. O número de assistentes tem variado ao longo dos anos. Contudo, o centro da praça costuma estar consideravelmente ocupado por fiéis civis e militares. Em torno do meio-dia, termina o ritual e os eclesiásticos fazem o mesmo caminho de volta à capela. Enquanto isso, a população dispersa-se, antes pedindo a bênção aos santos que permanecem no átrio. As ruas continuam com algum movimento de peões, já que parte do trânsito permanecerá cortado.
215A saída da procissão está marcada para as 16:00 horas, mas a partir das 14:00 horas começa a afluir gente de toda a parte. O trânsito é cortado até aos Anjos. Militares, crentes vestidos com a roupa domingueira, outros de forma vulgar mas segurando crucifixos e ramos de rosmaninho, tomam o seu lugar no cortejo. Ao longo da Rua da Palma, da Avenida Almirante Reis e da Praça do Martim Moniz, os passeios são ocupados pelos devotos que não seguem no cortejo e querem garantir um lugar com boa visibilidade da procissão. As janelas abertas enfeitam-se agora com belas colchas de seda e renda que ocultam com o seu colorido a fachada deslavada dos velhos edifícios e as ruas mais sombrias.
216Às 15:00 horas, ocorre a saída da imagem de São Jorge que vem sentada na sela de um cavalo e escoltada pela cavalaria da GNR, passando pela Sé, Rua da Madalena, parte oriental da Praça da Figueira e, por fim, a Rua do Martim Moniz, onde soa uma salva de foguetes largados da praça para anunciar a saída do cortejo. Os militares em trajes de cerimónia, com bandeiras e bandas, já ocuparam o seu lugar no cortejo, obedecendo à ordem preestabelecida. Também se colocam em fila, vestidos cerimonialmente com os respectivos mantos de cor vermelha, azul e branco, carregando estandartes bordados, os membros das irmandades religiosas que incorporam a procissão, seguidos de crianças vestidas de anjinhos. Seguem-se as autoridades governamentais e municipais, e os andores com as imagens religiosas que são incorporadas na procissão.
Colchas ricas nas janelas,
Pétalas soltas no chão,
Almas crentes, povo rude
Andam a pé nas vielas
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde.
Naquele bairro fadista
Calaram-se as guitarradas,
Não se canta nesse dia,
Velha tradição bairrista,
Vibram no ar badaladas
Há festa na Mouraria.
(Garcez 1963: 61-62)
217Agora, as dezenas de pessoas que estavam no bairro transformaram-se numa multidão, parecendo que Lisboa inteira está na Mouraria. Ecoam os sinos da capela, anunciando a procissão com os seus santos, representantes governamentais e municipais, soldados, anjos, irmandades e devotos, devidamente posicionados de forma a respeitar uma hierarquia pré-definida, dramatizada e manifesta (DaMatta 1990). Uma verdadeira mistura de peregrinação religiosa com parada militar. Pétalas de rosas são atiradas à medida que a procissão atravessa as ruas com a sua morosa marcha. Ao som das bandas, alguns seguem silenciosos, outros entoam cânticos religiosos. Algumas mulheres seguem descalças e, na procissão do ano 2000, uma trazia consigo um crucifixo com 2 metros de altura e articulado para facilitar a viagem nos transportes públicos.
218O percurso da marcha desenha os limites do sagrado ao mesmo tempo que recupera o território da grande Mouraria. A sensação é de que as fronteiras entre o sagrado e o profano, os de dentro, de fora e os vizinhos incómodos deixam de existir, sendo tudo englobado no cortejo litúrgico. O sagrado apropria-se do espaço público e entra no espaço privado, purificando os espaços mais marginais do bairro.51
219Na esteira do cortejo, o séquito de funcionários da limpeza devidamente uniformizados varre as ruas, parecendo realizar outra procissão. Por volta das 18:00 horas, o cortejo termina com uma bênção da cidade de Lisboa com o Santo Lenho, podendo o ritual acontecer em frente da capela ou no palanque existente na Praça do Martim Moniz. “A Mouraria é um bairro que está no coração de todos”, referiu o padre que abençoou Lisboa no ano 2000. Lisboa e Mouraria são, assim, simbolicamente integradas.
220No fim da bênção, a população começa a dispersar. As ruas ficaram limpas e o tráfego automóvel volta a fluir normalmente. Os que moram nas redondezas permanecem mais algum tempo, comentando o acontecimento. Na semana seguinte à procissão do ano de 1999, encontrei-me com o Sr. Vasco, um membro ativo da Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e de São Sebastião, que comentou emocionado: “Tinha tanta gente que nem dava para acreditar!”, ao que o Sr. Paulino, aproximando-se de nós, acrescentou: “Mas a procissão já não é o que era […], antigamente as ruas eram enfeitadas com bandeiras e as ruas cobertas com areia e rosmaninho, iam todos descalços […].”
Quando a festa toma conta dos pedaços quotidianos
Arraial e festa popular
221Regra geral, os arraiais são realizados no núcleo do bairro, sendo o troço englobado pelas ruas do Capelão e da Guia o ponto forte da festa. Contudo, na primeira metade dos anos 90 os arraiais passaram a realizar-se no largo em frente à Capela de Nossa Senhora da Saúde. Segundo consta, essa mudança de local foi devida às obras em curso no interior do núcleo do bairro e que dificultavam a realização das festas. Mas, na segunda metade dos anos 90, os arraiais voltaram a acontecer no interior do núcleo do bairro. No âmbito deste trabalho, acompanhei os preparativos dos arraiais e das festas que se seguiram no decorrer dos anos de 1998, 1999 e 2000, sendo que no ano de 1999 assisti a alguns ensaios da marcha e acompanhei as festividades de forma mais intensa.
222De modo que o mês de maio não é só um tempo dedicado ao sagrado. Muitos são aqueles que já se movimentam em prol da organização da marcha e do arraial. Os ensaios da marcha iniciam-se no mês de abril, mas maio é um mês intenso para os jovens marchantes que quase todas as noites se deslocam ao Grupo Desportivo da Mouraria para aprender a coreografia e a letra da música do desfile, reanimando o pedaço da coletividade local, quase sem vida durante os outros meses do ano. No ano de 1999, as vezes em que fui assistir ao ensaio da marcha no Palácio dos Távoras, onde fica a sede do GDM, espantei-me com a transfiguração daquele espaço: jovens a conversar e a jogar, crianças a correr pelos corredores, mulheres preocupadas com os pormenores da marcha, homens a carregar os materiais utilizados na confeção dos arcos e artefactos que seguem na marcha. Uma animação única, parecendo que as noites da Mouraria já não eram somente passadas em casa. Os ensaios costumavam acontecer às 22:00 horas e a afluência ao GDM iniciava-se uma hora antes. Curiosamente, muitos dos marchantes já não vivem no bairro ou nem sequer ali nasceram, mas muitos deles são filhos ou netos de gente da Mouraria. Nesse ano, o tema da marcha foi Severa em Flor e muitos estavam preocupados com a alteração de algumas normas que regulamentam os desfiles da marcha no Pavilhão Carlos Lopes e na Avenida da Liberdade. Para o Sr. Francisco, tais mudanças pré-anunciavam “zaragatas”, sobretudo se a marcha de Alfama saísse vencedora, o que afinal acabou por acontecer, reavivando os conflitos interbairristas.
223Com o aproximar do mês de junho, as montras das lojas substituem as bijutarias e quinquilharias por elementos alusivos às festas populares. Imagens de Santo António, manjericos, bandeiras e fitas coloridas ganham destaque, em especial nas lojas da Rua da Mouraria. Aproximadamente uma semana antes do arraial, as noites tornam-se mais animadas. O núcleo do bairro e as ruas da sua envolvência próxima começam a ser ornamentados com bandeiras coloridas. Também se inicia a montagem da eletrificação e a sonorização das ruas do centro do bairro, dos palcos e das barraquinhas de comes e bebes que servirão ao arraial. As conversas deixam de abordar os acontecimentos quotidianos e passam a tratar do tema escolhido para a marcha do ano, do traje dos marchantes, das lembranças dos arraiais passados, etc. O ambiente do bairro torna-se alegre e simpático.
224Palcos para a realização de espetáculos de música ao vivo, mesas e cadeiras ocupam as ruas do núcleo do bairro e da sua envolvência mais próxima. Estabelecer comunicação e contacto torna-se algo tão facilitado que as dificuldades sentidas nos outros períodos do ano são esquecidas. O ritmo do bairro e da sua envolvência alteram-se, sendo o espaço invadido por um ambiente festivo. Muito embora, na organização do arraial, se verifique uma espécie de concorrência entre grupo de vizinhos e/ou familiares que através do seu envolvimento na decoração e montagem da sua barraquinha vão delimitando territórios e demarcando hierarquias no interior do próprio bairro. A Mouraria, de uma hora para a outra, transforma-se numa grande casa em que todos são convidados a entrar, sem nenhuma espécie de distinção, parecendo que deixam de existir os sem-abrigo, toxicodependentes, prostitutas, gente de fora…, sendo todos englobados num único espaço: o da festa. O lema é a diversão.
225Com o aproximar da noite, o bairro fica iluminado e colorido. Fica-se com a sensação de que se está num espaço marcadamente diferenciado daquele que constitui e é constituído no quotidiano. Como que por um toque de magia, a Mouraria ganha brilho e beleza, enquanto fritos, pipocas, sardinhas assadas, febras, bifanas, cerveja e vinho, restaurantes em tendas improvisadas e muita gente tomam conta das ruas.
226No dia 1 de junho iniciam-se os festejos que se intensificam na noite do dia 12, quando se verifica o desfile das marchas na Avenida da Liberdade, o que ocorre após uma primeira apresentação no Pavilhão Carlos Lopes. Dois momentos de grande ansiedade e emoção para os mais bairristas e que atraem muitos dos filhos do bairro: “Hoje cá não fica ninguém […]”, “em dia que sai a marcha do bairro, a Mouraria fica vazia […]”, eram alguns dos comentários que mais se ouviam.
227No primeiro dia de junho de 1999, por volta das 16:00 horas, os marchantes atravessavam o bairro de um lado para o outro, aflitos com os últimos preparativos das suas indumentárias. Aqueles que vinham assistir à marcha começaram, aos poucos, a aparecer vaidosamente arranjados como nunca os havia visto. Por volta das 18:00 horas, retiraram os automóveis estacionados no Largo da Severa, libertando o espaço para os festejos, enquanto os marchantes seguiram em pequenos grupos para a coletividade que fica nas Olarias. Às 20:00 horas, encabeçados pela banda de música que acompanha a marcha, os marchantes saíram do GDM e atravessaram a zona das Olarias, depois as ruas Marquês de Ponte de Lima, Guia, Capelão e Mouraria. Nesse percurso de apresentação, os marchantes foram recebidos por entre aplausos, choros emocionados e foguetes: “Viva a Mouraria, viva a marcha da Mouraria!” Numa espécie de peregrinação, os moradores do bairro juntaram-se ao percurso que seguia em direção ao Largo do Martim Moniz, onde estava o autocarro que levaria os marchantes até ao Pavilhão Carlos Lopes. Contrastando com a animação que se vivia no núcleo do bairro, a Rua da Mouraria estava praticamente deserta, apenas se destacavam alguns sem-abrigo a dormitar nos bancos. Mas quando a peregrinação de marchantes e bairristas penetrou na rua, tudo se transformou num espaço de festa e emoção. Afinal a Mouraria é um grande bairro! Até ao regresso dos marchantes, o arraial continuou um pouco menos animado do que havia sido no decorrer do dia, mas quando estes voltaram, juntamente com aqueles que haviam ido assistir, a animação tomou conta das ruas, virando a noite.
228Na noite de 12 de junho, as marchas desfilam na Avenida da Liberdade. Durante todo o dia, o bairro fica agitado. Homens, mulheres, adolescentes e crianças embalados pela música que soa dos vários altifalantes movimentam-se agitados e preocupados com os retoques finais do principal dia dos festejos. Enquanto isso, os familiares que vivem fora do bairro começam a chegar para passar a noite de Santo António junto dos seus. A meio da tarde, muitos preparam-se para a noite de festa e também os marchantes começam a arranjar-se para o desfile e cada novo adereço que colocam é mostrado ao bairro como que se exibindo, sobretudo as mulheres. Por volta das 18:00 horas, os marchantes seguem em direção ao GDM e seguidamente cumprem a passagem pelo bairro, repetindo o mesmo percurso do dia da apresentação da marcha no Pavilhão Carlos Lopes.
229Em 1999, o desfile realizou-se num sábado e, apesar de o comércio já estar fechado, o bairro estava particularmente animado. Na Rua da Mouraria havia um grupo de brasileiros a cantar ao som de um violão, enquanto distribuíam prospetos de divulgação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), sem atrair muitos interessados. Alguns velhotes olhavam desconfiados, outros riam, indianos e africanos passavam sem dar muita atenção, enquanto os sem-abrigo mal reparavam. Mais tarde, saíram da Rua do Capelão o grupo de marchantes e os populares que iam desfilar na Avenida da Liberdade, abafando os cânticos da IURD, como que voltando a apropriar-se do território da Rua da Mouraria.
230São muitos aqueles que desistiram de ir ao desfile desde que as marchas passaram a ser transmitidas pela televisão, explicando a comparecência do adereço que faz parte da sala de cada casa: o aparelho de televisão. A peixaria transforma-se numa sala coletiva: no meio da loja é colocada uma mesa e cadeiras, em cima do balcão de vendas é posta a televisão, enquanto cá fora as duas peixeiras assam peixes e avisam a vizinha do 1.º andar que os carapaus já estão prontos.
231Em torno das 23:00 horas, o núcleo do bairro e as ruas que o circundam, como a Praça do Martim Moniz, estão animados e repletos de diversos indivíduos. Na verdade, não só o bairro mas também a cidade transformaram-se num grande arraial. No núcleo do bairro, os sem-abrigo misturam-se com os outros dançarinos enquanto as ruas ficaram cada vez mais movimentadas. Como clientes dos comes e bebes, havia indianos, africanos e chineses.52 A partir da uma da manhã, os marchantes começaram a voltar ao bairro, algumas televisões foram desligadas e as atenções voltaram-se para os que foram representar o bairro na passarela da cidade, quando ao longe se ouviu alguém comentar: “Agora é que vai sair sardinha!”
232Mas o que não esperava era que, sendo estas festas reconhecidas como tradicionais – onde possivelmente pensava ouvir música popular portuguesa e fado –, a música que mais tocou nas festividades a que assisti era brasileira (com destaque para a Banda Mel, Daniela Mercury, Chico César e Martinho da Vila),53 sobretudo durante o dia. Inicialmente não compreendia como é que no dia de desfile da marcha, um acontecimento marcadamente lisboeta, se ouvia na Mouraria a Banda Mel a cantar uma música que falava do Carnaval em Salvador. Tais músicas eram escolhidas pelos jovens, sobretudo do sexo masculino, e tocadas a partir de cassetes e CD num volume altíssimo. As reclamações dos mais velhos sobre a música não surgiram por ser brasileira ou reproduzidas no máximo volume, mas quando os jovens resolviam colocar músicas de estilo tecno-pop.
233Em 1999, também fiquei intrigada quando encontrei com a filha mais velha da brasileira Débora – na época com 13-14 anos e vivendo no bairro há aproximadamente dois anos –, e lhe perguntei se estava a gostar do arraial, ela prontamente respondeu que “não”, observando que isso acontecia porque “só tocam música pimba”. Um tanto perplexa, apercebi-me de que embora a música que tocava fosse brasileira, eu própria não me sentia no Brasil, nem tão-pouco fora da Mouraria ou de Lisboa, e tal dava-se por uma explicação muito simples: a força expressiva de um lugar. Em certo sentido, o que se passava com a adolescente é que ela ainda não se sentia como parte integrante do pedaço.54
234Todavia, achando que tinha encontrado a resposta para os meus questionamentos, no ano que se seguiu, em 2000, verifiquei que não só a tal família de brasileiros se havia envolvido na contratação de músicos brasileiros para tocarem nas noites do arraial, como também haviam montado uma barraquinha de comes e bebes, onde tanto eram servidas especialidades portuguesas como brasileiras. No ano de 2001, repetiram a proeza, conseguindo um local mais central para a instalação da barraquinha, e associaram-se a outros moradores do bairro, brasileiros e portugueses, desse modo participando ativamente nos festejos e no pedaço. No ano 2000, eram muitos os que ao verem-me logo comentavam “tem ali uma barraca de brasileiros”, “os nordestinos são animados”, “ontem tocou um conjunto brasileiro”, indicando educadamente um possível pedaço para que a antropóloga, um tanto ou quanto descontextualizada, também se pudesse sentir em casa.
235As festividades decorrem durante todo o mês de junho, apesar de o clímax ser na noite de 12 para 13; a partir daí a efusividade dos festejos diminui de dia para a dia. Quando se inicia o mês de julho, alguns partem de férias, assim como se intensificam as excursões à praia com as crianças. Curiosamente, foi no mês de julho que vi mais crianças e adolescentes na Rua da Mouraria e nos bancos. Em agosto, o bairro parece deserto e a tranquilidade toma conta das ruas pois são muitos os que saem de férias. Nas ruas da Mouraria, Benformoso, Cavaleiros, no Centro Comercial da Mouraria e na Praça do Martim Moniz, embora diminua a intensidade com que esses espaços são vividos em outras épocas do ano, o movimento mantém um ritmo moderado, intensificando-se ao fim da manhã e ao fim da tarde. Em setembro, tudo volta à normalidade quotidiana.
Festa e marcha popular: um mecanismo simbólico de inversão e afirmação social
236No que respeita ao desfile das marchas na Avenida da Liberdade, Costa (1999) salientou:
“A apropriação lúdica do centro da cidade pelos bairros populares, através de um deslocamento ritual dos espaços e dos tempos, em que a marcha é ela própria um fim em si e não uma mera ligação funcional entre origens e destinos que organizam a vida quotidiana (por exemplo, casa e emprego), constitui um dos mecanismos de inversão simbólica presentes nas marchas.” (Costa 1999: 169)
237Destaca-se ainda o facto de que, em concordância com Costa (1999), através das performances dos participantes da marcha cujos resultados não são controlados à partida, verifica-se uma inversão simbólica das hierarquias urbanas estabelecidas no quotidiano. Muito embora essa situação não invalide os mecanismos de consagração simbólica de relações de poder, pois no desfile que se realiza na Avenida da Liberdade encontram-se presentes as autoridades camarárias e estatais. Para o autor (1999: 170), quando os marchantes desfilam para as autoridades, verifica-se um “redobramento simbólico específico de relações instituídas entre posições sociais, ao mesmo tempo que se produz um efeito de amplificação recíproca da visibilidade pública do ritual festivo como dos vários tipos de entidades participantes na celebração cerimonial”. Ao citar Eric Hobsbawm e Terence Ranger, Costa considerou ainda que as marchas se constituíram a partir de um sistema de elementos formais, o que permite compreendê-las através da ideia de um processo continuado de invenção das tradições. Paralelamente ao confronto simbólico entre os bairros populares através das marchas, verifica-se ainda o estabelecimento de “um quadro de referência comum: a própria cidade de Lisboa”, significando com isso que esse processo ritual e de simbolização não só permite que as identidades dos bairros se articulem com a identidade lisboeta como “resultam num poderoso mecanismo de produção de identidades colectivas” (Costa 1999: 171).
238Mas, como observou Cordeiro (1995, 1997), se as marchas constituem um importante mecanismo simbólico de afirmação e conquista de prestígio dos bairros no contexto da cidade de Lisboa, os arraiais, por seu lado, emergem como um importante mecanismo de afirmação e protagonismo de determinados grupos de vizinhos ou familiares no contexto do bairro.
239Observe-se ainda que os processos de ritualização e simbolização a partir da intermediação de diversos agentes sociais permitem recuperar o bairro como a nossa casa, desse modo contribuindo para a sua emblematização. Embora os ritos de batismo, aniversário, casamento e morte, por exemplo, permitam ciclicamente reintegrar a rua à casa e essa ao bairro, o ápice desse processo de simbolização e ritualização é, contudo, marcado com os festejos que se desenvolvem no mês de junho. Aqui o movimento de rua aumenta e a “visibilidade do protagonismo festivo” (Costa 1999) ligado às comemorações dos Santos Populares parece tornar a união da casa e rua num único espaço: o bairro. Na invenção dessa imagem, é de assinalar o papel da associação ou coletividade local na “representação do bairro como unidade coerente, homogénea, intermediária entre a cidade e as ruas”, sendo a associação local um agente social “fundamental na definição destas identidades locais” (Cordeiro 1994a: 76).
240A repetição cíclica desse acontecimento permite não só inovar ou reinventar a casa de todos – o bairro – como também torna a rua um espaço de mediação dos conflitos e rivalidades locais. Desse modo, também servindo como espaço de mediação para receber alguns dos vários indivíduos em condições intersticiais, muitos dos quais habitam e frequentam de diversas formas e modos o bairro, mas que são tidos como elementos estranhos à comunidade. De certo modo, o novo e/ou ambíguo são convidados a comer, beber, conversar e dançar na grande sala ao ar livre que se tornou a rua, temporariamente permitindo integrar algumas das contradições e ambiguidades que têm lugar no tempo quotidiano.
241Apesar de a organização e de o sucesso da festa dependerem do protagonismo da associação local, é interessante observar que os ritos comemorativos que se desenrolam durante todo o mês de junho tanto permitem (re)conectar o par opositivo casa / rua – tornando o bairro a nossa casa – como (re)conectar o bairro com a cidade. Como referiu Cordeiro (1997: 24), “nesse mês, estes bairros tornam-se as vedetas, o centro de todas as atenções, e Lisboa inteira procura-os e junta-se a eles, em festa”. Dir-se-ia que aqui existe uma dupla metáfora: a nossa casa torna-se os bairros populares e esses tornam-se a cidade de Lisboa, isto é, os bairros e a cidade são tomados pela metáfora da casa, ao mesmo tempo que o mundo público e urbano de Lisboa penetra nesses bairros e nas suas casas.55
A visibilidade de uma Mouraria multifacetada
“Uma rua é um universo de múltiplos eventos e relações. A expressão ‘alma da rua’ significa um conjunto de veículos, transeuntes, encontros, trabalhos, jogos, festas e devoções. Ruas têm carácter e podem ser agitadas, tranquilas, sedes de turmas, pontos e territórios […]. A par de caminhos, são locais onde a vida social acontece ao ritmo do fluxo constante que mistura tudo. Um ‘microcosmos social’ de espaços e relações […] que tem a ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por diante. Que serve para referenciar bons e maus lugares.” (Santos e Vogel 1985: 24)
242Um dos aspectos que sobressaem da análise empreendida é a necessidade de relativizar algumas das atuais perspectivas que refletem sobre as dinâmicas sociais que têm lugar nos espaços públicos urbanos. Essencialmente, aqueles pontos de vista que inferem a tendência para a sua homogeneização, hibridização e efemeridade, bem como a sua morte a partir do reforço da vida privada.
243Julgo que de entre as perspectivas mais apocalípticas, Davis (1993) e Sennet (1993) podem ser considerados dois dos seus principais expoentes. Nas suas análises, a “morte” do espaço público é tomada como uma espécie de facto consumado o que, a meu ver, é um ponto de vista que deve ser relativizado. Embora essas análises sejam interessantes e particularmente recorrentes, acredito que é fundamental não generalizar nem absolutizar determinadas situações e deduções, para assim tentar evitar a construção de um ser público demasiado idealizado e, como tal, da conceção de que existiriam espaços públicos urbanos ideais. Por exemplo, Holston (1993), na análise que fez da cidade modernista, também referiu a morte do espaço público urbano tradicional no projeto levado a cabo com a construção de Brasília. Contudo, embora o autor se refira à influência do poder político na definição, organização e controlo do espaço, e também desenvolva uma crítica severa da conceção modernista de planeamento urbano, na medida em que o projeto de Brasília ampliou ainda mais alguns dos efeitos de uma sociedade desigualitária como é a brasileira; também se referiu ao facto de as intenções originais do projeto implementado nessa cidade terem sido invertidas nas formas e modos como os espaços públicos foram apropriados.56
244Um artigo de Fortuna, Ferreira e Abreu (1999) que trata da relação entre o espaço público urbano e a cultura também aborda alguns aspectos interessantes que importa discutir aqui. Neste texto, os autores partem da análise de um conjunto de estudos sobre as práticas culturais dominantes e mais convencionais da sociedade portuguesa, para refletirem sobre o retraimento dos espaços públicos devido à tendência para o consumo massificado se restringir, de um lado, aos espaços domésticos e familiares; enquanto, por outro lado, as produções culturais se tornam mais restritivas ao serem privilegiados os jovens, os homens, os escolarizados, os urbanos e os membros das classes médias. Uma das hipóteses defendida pelos autores é de que através da cultura se poderá dar o caso de os espaços públicos serem redinamizados. Pois consideram que as práticas e os espaços públicos de cultura e de lazer detêm um potencial identitário cuja expressividade, circunstancialmente, se constitui como valor emancipatório que coexiste “ao lado das dinâmicas de ordenação, normalização e controlo decorrentes dos processos de mercantilização e privatização” (Fortuna, Ferreira e Abreu 1999: 94). Como cultura, os autores entendem um recurso social que viabiliza a potenciação, em maior ou menor grau, da participação e envolvimento dos cidadãos na vida pública, sendo ainda observado que os diferentes graus de envolvimento dos cidadãos com o espaço público se desenvolvem através das formas com que se dá a sujeição à lógica da mercantilização. Para discutir as hipóteses de trabalho, os autores tomam como referência “quatro conjuntos de espaços públicos urbanos”, designadamente: os espaços marcadamente comerciais, os históricos monumentais, os grandes equipamentos e os espaços da realização de eventos culturais efémeros. Salientam também que existem outros contextos espaciais, práticas e interações que no âmbito da reflexão desenvolvida não foram contemplados como, por exemplo, os bairros populares, os contextos onde se manifesta a pobreza, a exclusão social e a etnicidade ou ainda aqueles espaços que se organizam a partir de práticas e culturas marginais.
245No entanto, apesar de interessante e estimulante, o texto acima referido (Fortuna, Ferreira e Abreu 1999) coloca algumas inferências que julgo ter interesse comentar.57 Uma primeira é que a forma como é utilizado o termo cultura nem sempre é clara e, a meu ver, cria algumas confusões, sobretudo quando diretamente associada à lógica de mercantilização e à ideia de participação e envolvimento dos cidadãos na vida pública. Será que cultura é algo restrito à participação dos indivíduos na vida pública? E como tratar as outras práticas que existem nos espaços públicos e que não necessariamente implicam consumo de produtos? Muito embora, admitindo que a paisagem urbana se tenha tornado um objeto de consumo visual, como refere Zukin (1995), creio que as formas como a paisagem é percebida e apropriada continuam a ser diversificadas e múltiplas, inferindo heterogeneidade – heteroglossia, como diria Edensor (1998) – e não homogeneidade.
246Uma segunda questão que detecto no referido texto (Fortuna, Ferreira e Abreu 1999) decorre da forma como foi classificado o espaço público urbano e, nesse sentido, observado que a análise focou determinados espaços em detrimento de outros.58 Isto é, os critérios utilizados para a identificação dos espaços públicos também podem levar a alguma confusão ao serem privilegiadas certas demarcações que, a meu ver, não são necessariamente rígidas. Assim, julgo que se deve ter em conta que entre os espaços selecionados pelos autores e os não selecionados poderão existir inter-relações ou justaposições, dificultando uma demarcação rígida, mesmo quando se tem em consideração o que os autores chamam de “práticas dominantes”. Por exemplo, como dissociar os espaços históricos monumentais daqueles bairros populares e típicos que, por sua vez, também são históricos e tomados como património urbano? Será que as práticas e culturas marginais, os fenómenos de etnicidade e a exclusão social não se manifestam nos espaços marcadamente comerciais? Como explicar, então, a afluência ao Centro Comercial Colombo da parte de jovens de etnias variadas e oriundos de zonas habitacionais segregadas? Como explicar o que se passa no Centro Comercial da Mouraria e do Martim Moniz? Como explicar que algumas das ruas comerciais sirvam como espaço de dormida para os sem-abrigo, como é por exemplo o caso da Rua Augusta, em Lisboa, ou da Rua da Mouraria? Na verdade, a par do interesse do texto, falta-lhe o ponto de vista dos utentes como também se torna necessária uma análise mais aprofundada daquilo que os autores designaram como “práticas culturais” ou, melhor dizendo, uma análise contextualizada que provavelmente faria emergir outro tipo de informações que permitiriam relativizar as chamadas tendências dominantes.59
247Repare-se que, no âmbito de um estudo alargado à região metropolitana de Lisboa, Ferreira e Castro (2000) desenvolveram uma interessante reflexão sobre a relação entre a percepção da qualidade dos espaços públicos e as formas como estes são usados e apropriados. Este estudo chega a algumas conclusões particularmente interessantes, pois apesar de os autores trabalharem com um enfoque analítico macrossociológico, concluem que a análise efetuada fez emergir a importância de considerar as especificidades socio-espaciais dos contextos. Assim, contrariam ou pelo menos relativizam algumas posições que tendem a generalizar e homogeneizar determinadas características de uso e apropriação dos espaços públicos através da ideia de práticas dominantes.
248Um outro texto que julgo merecer algumas observações, tendo por referência o contexto da Mouraria, refere-se ao trabalho de Arantes (2000), onde é desenvolvida uma reflexão sobre as transformações do espaço público urbano na cidade de São Paulo – entendida através de um processo de dupla privatização: de um lado, com os espaços fechados que são utilizados pelas classes médias; de outro lado, com a apropriação do espaço público urbano exterior pelos segmentos pobres e os excluídos da sociedade. Para captar tais transformações que, de acordo com o autor, são híbridas, disjuntivas e efémeras, é defendida a necessidade de uma nova colocação do olhar antropológico, embora seja considerado que o espaço continua a ser uma referência significativa a par das tantas desterritorializações. O autor desenvolve uma interessante reflexão sobre o tema da cidadania e dos direitos humanos num país que, sob a positivação política e ideológica dos hibridismos, esconde uma lógica social assente na desigualdade. Segundo Arantes, os símbolos híbridos não devem ser pensados como uma mera dissolução das diferenças, precisamente porque amplificam e politizam a heterogeneidade, posição que me parece ser bastante recorrente para compreender um pouco melhor o que se passa com a construção da imagem de uma Mouraria multicultural. O autor também chama a atenção para a necessidade de compreender a cidade pós-moderna através das suas múltiplas vozes e práticas e da flexibilidade das fronteiras sociais, ponto de vista com o qual concordo.
249A perspectiva de análise adotada por Arantes (2000) é, entretanto, consideravelmente macro, ficando por ouvir as outras vozes de que fala o autor. Isto é, fica-se sem saber o que pensam e fazem os utentes do espaço.60 Ao visar captar as heterogeneidades, a perspectiva de abordagem adotada por Arantes (2000) parece, conforme também foi observado por Magnani (2001), amplificar ainda mais aquela situação em lugar de nos ajudar a encontrar um caminho que viabilize a compreensão do espaço urbano contemporâneo.
250Todavia, tais perspectivas são recorrentes ao nível da análise e interpretação de determinados fenómenos e dinâmicas urbanas. Mas é preciso também ter em consideração, como observou Low (2000a), que apesar das interpretações estéticas e macropolíticas – diria ainda macroeconómicas – serem utilizadas com alguma frequência na compreensão do significado do espaço público e das dinâmicas sociais e urbanas, elas são insuficientes por excluírem os utentes do espaço, o passado e a etno-história, as memórias e as conversas que no quotidiano geram os mitos e os próprios significados da vida no espaço público. Isto é, as perspectivas macro não permitem compreender qual é a importância do espaço público urbano para o quotidiano dos seus utentes.
251Daí que, com o intuito de captar os modos como a vivência do espaço público urbano interfere no campo das significações imaginárias do bairro, procurei descrever as diferenciadas formas de uso e apropriação do espaço, recorrendo às categorias pedaço, mancha, trajeto e circuito (Magnani 1998, 2000a, 2000b) (ver figura 13). Sendo que tais categorias foram ainda descritas e analisadas a partir da ideia de que as microgeografias quotidianas de uso e apropriação do espaço se definem por uma relação entre indivíduos, práticas, espaço e tempo. Isto é, aqui também interessou compreender o ritmo de determinadas atividades humanas e a sua respectiva distribuição no tempo (Barker 1973; Wicker 1979; Rapoport 1980; Low 2000a, 2000b). Neste sentido, foi possível observar que o ritmo quotidiano do bairro e de toda aquela zona está intimamente associado às cadências ditadas pelo horário de funcionamento do comércio. E que, nas situações extraordinárias, tal situação é temporariamente invertida e apropriada pela relação casa, rua e bairro, tendo por contexto englobador a cidade.
252A “policromia exuberante e agitadora” (Sequeira 1929) do espaço público da Mouraria é uma das facetas mais visíveis do seu quotidiano, estimulando a criação de metáforas urbanas que contribuem para a invenção de determinadas imagens do bairro que podem evocá-lo como contexto característico, tradicional, típico, popular ou como sendo uma aldeia, ou ainda como histórico.61-62 Mas também podem denotar o espaço como sendo multiétnico ou multicultural, que está descaracterizado ou que é um espaço repleto de liminaridades, desse modo reforçando os processos de estigmatização e segregação territorial.
253Na verdade, os distintos pedaços, trajetos e circuitos que configuram a paisagem social e urbana local permitem inferir que a Mouraria é uma mancha inscrita no mapa social da cidade onde, paralelamente e/ou conflituosamente, coexistem distintas Mourarias.
254Nos dois capítulos que se seguem, procurarei aprofundar um pouco mais o conhecimento dos processos de percepção social do espaço, demonstrando como determinadas imagens e visões da Mouraria são como que a projeção de tais metáforas.
Notes de bas de page
1 Conforme Davis (1993); Sennet (1993); Zukin (1996, 2000a, 2000b); Arantes (2000); Pais (1995); Fortuna, Ferreira e Abreu (1999).
2 Aqui, os de “dentro” são aqueles que localmente se autointitulam como sendo “filhos do bairro”, observando que essa noção não está somente relacionada com os que nasceram no bairro, mas também com aqueles que ali foram criados ou que lá vivam há muitos anos ou ainda com certos indivíduos que ali já não vivem mas que se assumem como sendo dali, inclusivamente inferindo que o “bairro é a sua terra”, sendo igualmente reconhecidos pelos outros moradores como filhos da Mouraria.
3 A par de um comércio controlado por empresas familiares – aspecto particularmente observado no caso dos indianos e chineses –, um aspecto que me pareceu interessante foi ter observado casos em que mesmo os empregados desse comércio têm alguma afinidade parental ou conhecimento – já constituído no local de origem – com os seus patrões. Essas redes de interconhecimento facilitam o encontro de moradia, emprego e o estabelecimento de relações de clientelismo. A título de exemplo, é interessante um caso referido por D. Manuela e que se reporta ao período em que trabalhou num restaurante chinês do Centro Comercial da Mouraria (CCM). Segundo ela, o seu ex-patrão chinês valeu-se de um visto de turista para entrar em Portugal e, assim, estabeleceu-se em Lisboa com um restaurante de comida chinesa localizado nas redondezas da Mouraria. Seguidamente, abriu um segundo restaurante no CCM quando chegaram as filhas que se encontravam na China. Elas fizeram o seguinte trajeto até Portugal: Moscovo, França e Espanha. As filhas legalizaram-se logo, obtendo vistos de estudante. Posteriormente, ele contratou um empregado chinês que entrou ilegalmente no país vindo de Espanha, através de uma pequena cidade do sul de Portugal, onde foi trabalhar para um restaurante de chineses seus conhecidos e, somente depois, é que veio para Lisboa. Esse empregado casou-se com uma das filhas do patrão e, como trabalhava no restaurante, comprovou ter meios de sustento junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, conseguindo autorização de residência em Portugal.
4 A família de Débora é um caso exemplar por revelar uma curiosa rede migratória familiar. Assim, de um grupo de três irmãs filhas de um tenente do exército, a mais velha (Débora) veio para Lisboa há aproximadamente 12 anos. Débora deverá ter aproximadamente 40 anos de idade e é separada do seu primeiro marido, também brasileiro. Quando veio para Lisboa deixou, com os seus pais, a sua filha mais velha. Em Lisboa, trabalhou em vários locais (restaurantes, comércio, cafés, etc.), até conhecer o seu atual marido, um angolano que é segurança. Juntos tiveram uma filha e, logo a seguir, Débora trouxe a sua outra filha que ainda estava no Brasil e passou a dedicar-se às tarefas do lar. Posteriormente, o ex-marido de Débora e uma irmã vieram para Portugal, indo viver para fora de Lisboa. Numa terceira fase, outra irmã de Débora casou-se com um alemão, indo viver para a Alemanha, mas depois veio para Lisboa Clarissa – de 26 anos – que viveu com Débora até encontrar trabalho. Clarissa tem trabalhado em cafés e restaurantes e alugou a sua própria casa, também no bairro. Um ano depois de Clarissa chegar, veio uma prima de Recife, também com 26 anos, de modo que Clarissa mudou-se pela segunda vez para uma casa maior, continuando no bairro. A prima tem tido mais dificuldades para encontrar trabalho, fazendo serviços de limpeza e cuidando de crianças, por vezes filhas de outras famílias brasileiras que vivem no bairro ou na proximidade.
5 As casas da malta eram locais onde os migrantes pernoitavam por baixo custo, formando verdadeiras camaratas.
6 Este inquérito por questionários foi realizado em 1998 junto a 105 moradores residentes no núcleo do bairro e na sua proximidade imediata. O questionário era constituído por seis indicadores (percurso residencial, casa, uso e apropriação dos espaços públicos e exteriores, representações do bairro, redes de sociabilidade e caracterização do entrevistado), desenvolvidos num conjunto de 65 itens constituídos por questões abertas e fechadas. Uma breve caracterização dos seus respondentes, apenas mostrando as principais tendências, revela que: 52,4% viveram sempre no bairro, 47,6% em outros sítios antes de ali viverem e desses mais de metade estão na Mouraria há mais de 20 anos; 77,1% dos inquiridos são do sexo feminino; mais de metade está acima dos 50 anos (62,8%); 51,4% são casados e 22,9% viúvos; 46,7% reformados e/ou pensionistas e 27,6% exercem uma profissão; 26,7% são ou foram trabalhadores não qualificados, 18,1% trabalhadores na área dos serviços / vendedores, 15,2% operários / artesãos; 10,5% são analfabetos, 51,4% frequentaram o ensino primário; 83,8% vivem em casa alugada; 43,8% dos agregados são compostos por duas pessoas, 23,8% por uma, 17,1% por três, e 15,3% por mais de três pessoas.
7 Os dados referidos no documento da CML, Caracterização Sociológica e do Edificado: Alfama e Mouraria (1989), e que abrangeu um leque bastante representativo do universo populacional do bairro e área de intervenção do gabinete, permitem corroborar com esse tipo de conclusão.
8 Procedi a uma análise de conteúdo das questões abertas do inquérito para captar as expressões mais referidas. Essas expressões permitiram-me construir um quadro de frequências onde foi apenas privilegiada a intensidade com que eram referidos determinados atributos sem, contudo, desenvolver uma análise estatística.
9 Uma senhora nascida e criada na Mouraria referiu-me que assim que casou foi viver para o Cacém porque já lá vivia uma tia sua, comentando em seguida que “lá já é uma segunda Mouraria”. Perguntada sobre o motivo pelo qual tantas pessoas vão viver para esse local, referiu-me que tal é porque “primeiro foi um, depois outro, e depois um foi informando o outro […]”. O Presidente da Junta de Freguesia do Socorro disse ter conhecimento de que pelo menos 40 casais originários da Mouraria residem em Queluz/Cacém.
10 Muitos daqueles com que falei associavam a hora a que o bairro fica vazio com o horário nobre da televisão.
11 Aqui é interessante referir o trabalho de Pinto e Gonçalves (2000), onde ao analisarem os processos de construção endógena da imagem pública de cinco bairros de habitação social, constatam que a percepção das relações de conflito, de insegurança e de diferença social e cultural (relativamente aos outros) estrutura a construção de uma imagem pública negativa do local de residência.
12 De acordo com o que me foi contado, o esvaziamento das ruas do bairro no período noturno é um facto relativamente recente, aproximadamente desde fins dos anos 80. Entre os mais velhos, foram muitos aqueles que referiram que, até então, as ruas eram mais usadas como espaço de convívio, sobretudo no regresso do emprego e após o jantar.
13 Este tipo de situação também foi relacionado com o facto de que antes havia uma maior proximidade entre a casa e o trabalho, proporcionando assim mais tempo livre para se estar no bairro a conviver. Portanto, o facto de os locais de trabalho tenderem a ser mais longe do local de residência é percebido como um fator que alterou as dinâmicas locais.
14 Relativamente à influência da televisão e do vídeo na alteração das dinâmicas do bairro de Alfama, consultar Costa (1999: 396-399).
15 Embora seja interessante observar que mais de metade dos respondentes do inquérito (68,6%) referiram que os amigos são do bairro. É de notar que, apesar dos moradores do bairro nem sempre assumirem a rua como local de convívio e estada, a rua é de facto o principal espaço de sociabilidade no bairro. Repare-se ainda que, de 86 respostas acerca dos locais onde as crianças costumam brincar, 87,2% dos respondentes referiram ser a rua, aspecto esse comprovado com a observação do contexto.
16 Num texto sobre a relação entre a percepção da qualidade de vida e a percepção da qualidade dos espaços públicos urbanos e verdes na região metropolitana de Lisboa, Ferreira e Castro (2000) observa que, na zona da Avenida Almirante Reis, os indivíduos inquiridos pelo estudo qualificaram a sua área de residência como medíocre relativamente à oferta de espaços públicos verdes.
17 Tais quiosques foram retirados no ano 2000.
18 Um aspecto que chamou a minha atenção é a naturalidade com que o tema do sexo e da violência doméstica são abordados nas conversas, sobretudo quando é motivo de risos e gestos de imitação por parte das crianças. Por exemplo, certo dia estava sentada num banco situado no Largo João do Outeiro a tomar algumas notas quando um grupo de crianças entre os 5 e 7 anos de idade se aproximou com a seguinte pergunta: “Você sabe o que um homem faz com uma mulher?” Um tanto quanto sem jeito respondi qualquer coisa como “passeiam juntos”. O grupo, indignado com a minha resposta, esclareceu-me que aquilo que faziam era “zinga-zinga” e começaram a falar daquilo que viam e ouviam em suas casas. Envergonhada, procurei mudar de conversa. Num outro dia, presenciei a cena de um pai indignado com o facto de o seu filho de 6 anos ter levado uma estalada de uma adolescente porque havia “apalpado” a rapariga, afinal o miúdo apenas “fez o que os outros rapazes fazem”. Existem ainda situações de crianças que ficam na rua até tarde de noite para, assim, proporcionar o convívio íntimo de um casal numa casa onde a falta de espaço impossibilita determinadas privacidades. Também presenciei o caso de duas crianças que falavam sobre uma terceira cuja mãe tinha sido violentamente agredida pelo marido, levando a que os vizinhos chamassem a polícia.
19 Conheci alguns moradores que tinham casa ou roulotte em parques de campismo na Caparica, onde costumavam passar as férias e feriados, sobretudo no verão. Tal situação proporciona o encontro entre vizinhos, fora do bairro. Em alguns casos, aqueles que não têm casa nem roulotte vão passar as férias com os vizinhos do bairro. Uma situação verificada sobretudo no caso das crianças e jovens. Também é frequente muitos dos homens reformados ou de alguns jovens organizarem-se em grupo para irem dar um passeio pela cidade. As excursões e as idas à praia organizadas pela Junta de Freguesia ou alguma associação também são exemplos das situações em que o pedaço é transportado para um outro local.
20 Embora este estabelecimento estivesse ali provisoriamente, por motivo de obras no edifício onde sempre esteve situado na Rua da Mouraria, é de salientar que na sua localização de origem ele também funciona como um ponto de encontro dos moradores do bairro.
21 Segundo vários moradores de ambos os sexos, a parte norte da Rua da Mouraria sempre foi um ponto de estada dos homens do bairro, quer nos anos 40 antes da destruição da Baixa da Mouraria, quer durante as demolições ou no período da construção da rede do metropolitano, quer nos dias de hoje.
22 Frequentada pelos homens, esta tasca funciona muito irregularmente, abrindo às vezes ao fim da tarde.
23 O Pátio do Coleginho e a Vila Almeida situam-se no núcleo do bairro, ambos com usos diferenciados do espaço exterior. O primeiro é bem maior do que a Vila Almeida, com mais edifícios e moradores, dos quais a maioria são idosos, mas o espaço exterior é raramente utilizado como espaço de convívio e estada, quase se restringindo às situações em que é utilizado como espaço para estender roupa ou como zona de passagem. Não obstante, o controlo social é intenso pois quando os moradores detetam um estranho vêm logo saber quem é e o que quer, revelando uma abordagem nem sempre simpática. Na Vila Almeida, por seu lado, o controlo também é intenso, mas essa vila ocupa um espaço consideravelmente reduzido para a quantidade de casas que ali se amontoam, algumas com dois andares. Ali, o espaço exterior encontra-se ocupado por tanques de lavar e armários, vasos de plantas, estendais de roupa, pessoas sentadas na soleira da porta e crianças a brincar.
24 As figuras 8 a 11 apenas têm o objetivo de representar os ritmos quotidianos de determinados espaços do bairro, sendo meramente ilustrações da realidade observada.
25 Conforme: Inquérito Socio-Habitacional do Gabinete Local da Mouraria – GLM de 1989 e Giro de Compras de 1992, em PUNHM (1996: 30-45).
26 Neste levantamento apenas considerei os estabelecimentos comerciais com relação direta com a rua e que, no período de realização desta tarefa, se encontravam abertos, tendo sido contabilizados um total de 180 estabelecimentos. No âmbito dessa tarefa também foi aplicado um inquérito do qual participaram 122 comerciantes, pois alguns recusaram-se a responder, sendo que nesses casos apenas foi identificado o tipo de comércio realizado e o tipo étnico dos proprietários. Não foi objetivo proceder a uma caracterização exaustiva dos estabelecimentos existentes. A caracterização da atividade comercial e a aplicação do inquérito realizaram-se na área onde mais se desenvolve o comércio: Calçada de Santo André, Largo do Terreirinho, Rua e Beco dos Cavaleiros, Rua do Terreirinho, Calçada da Mouraria, Beco da Barbadela, Rua Fernandes da Fonseca, Rua do Benformoso (até ao meio da rua) e Rua da Mouraria (lado oriental, porque do lado ocidental encontra-se o Centro Comercial da Mouraria que foi objeto de um outro tipo de caracterização). Esse trabalho foi efetuado no período de julho a novembro de 1999. Saliente-se ainda que quando aqui é feita referência ao comércio diário (aquele cuja utilização é frequente e normalmente se refere ao comércio alimentar), ocasional (aquele cuja utilização é menos frequente) e excepcional (aquele cuja utilização é esporádica ou rara), toma-se por base a conceptualização adotada no documento PUNHM (1996: 31).
27 Neste sentido, é curioso um facto ocorrido quando da aplicação do inquérito aos proprietários – marido e mulher, residentes no bairro – de uma drogaria onde, numa pequena montra interior estavam expostos artigos de bijutaria e quinquilharias. Entretanto, tais objetos eram pouco representativos no meio das outras mercadorias que ali estavam e que se identificavam com os produtos que normalmente são vendidos numa drogaria. Portanto, enquanto realizava algumas perguntas e ia preenchendo alguns elementos de caracterização do estabelecimento, o proprietário veio esclarecer que a sua loja era do ramo “bijutaria / quinquilharia”, como que para se enquadrar melhor na imagem do comércio que se desenvolve em toda aquela zona.
28 Repare-se, que acordo com os Censos de 1991, no total da população ativa da freguesia do Socorro (1055 indivíduos), menos de 250 trabalhavam nesta freguesia.
29 No decurso do ano 2000 abriu uma escola no Centro Comercial do Martim Moniz onde se ministravam aulas de português e chinês (para os filhos de emigrantes nascidos em Portugal). Em paralelo à escola funcionava também um espaço de convívio da comunidade chinesa chamado “Centro”, como a sede de um jornal escrito em cantonês.
30 Sr. Tavares, aproximadamente 50 anos, nascido e criado no bairro no seio de uma família de 10 irmãos, muitos dos quais ainda vivem no bairro com os filhos. Atualmente não vive no bairro, mas trabalha nas redondezas, sendo comum encontrá-lo no bairro durante a semana e, sobretudo, no período das festas populares, quando costuma montar bancas para venda de sardinhas assadas e bebidas.
31 Num estudo sobre os sem-abrigo na cidade de Lisboa (Pereira e Silva 1999) foi contabilizado 856 indivíduos nesta situação. Este estudo constata que aquela zona da cidade é uma daquelas onde mais se encontravam indivíduos nesta situação. Portanto, foram detectados 56 sem-abrigo na freguesia de Santa Justa (que engloba a área do Centro Comercial da Mouraria) e 10 na do Socorro. Um estudo posterior e cujos dados se reportam ao ano 2000 (Pereira, Barreto e Fernandes 2001) detectou 1366 indivíduos sem-abrigo na cidade de Lisboa, entre os quais 42 na freguesia de Santa Justa e 3 na do Socorro.
32 Embora os sem-abrigo dormissem nas arcadas do CCM, não frequentavam o seu interior e tal, provavelmente, está relacionado com o controlo que era desenvolvido pelos seguranças do centro.
33 A respeito da lógica de apropriação e orientação no espaço urbano pelos sem-abrigo e a relação entre as noções de escala geográfica e limite, consultar a interessante análise de Smith (2000) sobre as potencialidades dos carros-moradia projetados por Krzystof Wodiczko.
34 A dificuldade em definir o número exato de lojas é devido à constante mutabilidade das dinâmicas do centro comercial, pois tanto existem lojas que se ligaram entre si, como situações de lojas unidas que se voltaram a separar.
35 Esta passagem coberta juntamente com uma outra situada na ala norte do Edifício EPUL – ligando as arcadas desse edifício com a Rua São Pedro Mártir – são locais predominantemente utilizados como trajeto, servindo como espaço para os toxicodependentes se injetarem, como depósito de lixo, e onde diferenciados indivíduos fazem as suas necessidades fisiológicas. A apropriação dessas passagens apenas como trajeto confere-lhes o estatuto de espaços liminares por excelência.
36 Para o reconhecimento do comércio e serviços existentes no Centro Comercial da Mouraria efetuei um levantamento do tipo de comércio / atividade e tipo étnico daqueles que controlavam o negócio, tendo por base uma ficha de caracterização. Existem escritórios ligados ao comércio grossista (nos 3.º, 4.º e 5.º andares), mas o contacto com os seus responsáveis foi difícil, para não dizer impossível. Pelo que o levantamento somente foi realizado nos 1.º e 2.º andares e nas duas caves, isto é, nas áreas onde o comércio é mais visível, até porque são essas áreas que mais têm interferência nos processos de construção da imagem do bairro. No total de lojas existentes, foram caracterizadas 145, pois algumas estavam vazias à época da realização desse levantamento, enquanto outras se encontravam ligadas, pertencendo a um mesmo comerciante. Essa caracterização foi efetuada no período de setembro / outubro de 1999, ressalvando-se que desde esse período houve muitas alterações no comércio do CCM.
37 Consultar um artigo de Oliver e Myers (1999) sobre como as práticas e as manifestações sociais – por exemplo, os protestos – ocorridos no espaço público urbano são tratados pelos meios de comunicação social e influenciam a opinião pública, participando desse modo da esfera pública do espaço. De outro lado, Sampson e Raudenbush (1999), a partir da utilização do método de observação social sistemática (SSO), mostram como a interpretação dos sinais visuais de desordem no espaço público urbano – podendo a desordem ser social (prostituição, venda de droga, toxicodependência, violência juvenil, etc.) e/ou física (vandalismo, deterioração do espaço, grafites, janelas partidas, etc.) – está intimamente associada ao encorajamento ou não do uso e apropriação do espaço.
38 Muitos dos produtos vendidos nas mercearias do CCM somente se podem encontrar aqui, não havendo outros locais com a sua oferta em outros pontos da cidade, daí terem uma clientela garantida. As mercearias chinesas também vendem especialidades vietnamitas e tailandesas. Salienta-se ainda que, desde 1999, tem vindo a aumentar o número de mercearias e minimercados chineses nos principais eixos viários da zona.
39 A praça possui um parque de estacionamento subterrâneo.
40 Contudo, o negócio dos telefones continuava a proliferar na zona. De um lado, as lojas de telefones públicos que operavam no Centro Comercial da Mouraria garantiam chamadas telefónicas por preços abaixo daqueles fixados pela Portugal Telecom. Tais lojas tinham avisos afixados nas montras com o custo das chamadas para locais como Paquistão, Índia, Bangladesh, Senegal, Guiné, etc. Segundo consta, era possível tais lojas cobrarem menos pelas chamadas porque utilizavam um sistema via Internet que lhes permitia operar com tabelas diferenciadas dos custos da Telecom. Por outro lado, em toda aquela zona é possível encontrar-se chips falsificados para telemóveis que, apesar de não receberem chamadas, permitem efetuar chamadas por preços abaixo da tabela oficial.
41 O presidente da Associação Comercial China Town pretendia transformar a praça numa verdadeira China Town, assim como existe em outras grandes cidades, sugerindo inclusivamente alterações no próprio desenho arquitetónico da praça como, por exemplo, a colocação de uma cobertura. No entanto, embora a Câmara Municipal de Lisboa (CML) através do seu Presidente tenha apoiado algumas das iniciativas dessa associação, reteve o ímpeto da mesma no sentido de toda aquela área ser condicionada a um comércio essencialmente controlado por chineses. Repare-se, nesse sentido, que a CML sustentou o seu discurso enfatizando a importância em manter a pluralidade e a diversidade do sentido multicultural da Mouraria e da própria Praça do Martim Moniz.
42 O quiosque dos Amigos de Lisboa funcionava diariamente, mas a partir do segundo semestre do ano 2000 passou a estar a maior parte do tempo fechado.
43 No passeio defronte da Igreja São João de Deus, na Praça de Londres, encontram-se dois quiosques doados pela CML.
44 Os proprietários do quiosque Fava Rica fazem parte da Direção da Associação dos Amigos de Lisboa, sendo também eles quem controla o quiosque da associação instalado na praça. Segundo o Sr. Manolo Correia, fava rica é o nome de uma sopa que era vendida pelas ruas da cidade.
45 Salienta-se que as arcadas do Centro Comercial do Martim Moniz são ocupadas por esplanadas que funcionam até à hora de fecho desse centro, por volta das 22:00 horas. Tais esplanadas são predominantemente ocupadas por indivíduos do sexo masculino e em especial por indianos e africanos, sendo também utilizadas por famílias de ciganos que ali passam depois de completarem o circuito das compras.
46 Carmen Miranda nasceu em Portugal, em Marco de Canavezes, migrou para o Brasil nos anos 1940 e adotou o traje das baianas de Salvador da Bahia, estilizando-o. Fez sucesso nos Estados Unidos da América como cantora popular da música brasileira.
47 A respeito das dinâmicas de controlo e resistência no espaço público, consultar também Herbert (1998); Lees (1998); Cresswell (1998); Jackson (1998); Syblley (1997); Davis (1993); Sennet (1993); Santino (1999).
48 Um outro exemplo desta situação e que também está relacionada com a Mouraria refere-se à polémica criada em torno da construção de um elevador na Rua do Poço do Borratém que pretendia ligar a Baixa ao Castelo de São Jorge.
49 As festas populares e os arraiais também podem ser concebidos como protesto ritual, mas tais manifestações não decorrem na praça.
50 Durante este período, as festas tradicionais da cidade viram diminuídas a sua intensidade comemorativa e também as marchas foram interrompidas na sequência do 25 de Abril.
51 Um artigo de Heatherington (1999) sobre as táticas de apropriação das ruas pelos rituais católicos em Orgosolo, na Sardenha, mostra como a história é contestada e manipulada no processo de controlo dos espaços pela comunidade que, assim, liga o passado com o presente e se apropria do controlo dos espaços de representação, transformando-os num fórum de representação da identidade da cidade. Assim, a comunidade participa da construção da história local e através de diferentes e persuasivas táticas modifica a produção da memória, protegendo a sua própria interpretação da história e identidade local das interferências do controlo estatal e das práticas juvenis. Segundo o autor, tais táticas apesar de efémeras são consideravelmente persuasivas.
52 De ano para ano, tenho reparado no aumento da afluência de chineses.
53 Pelo menos quando pesquisei algumas dinâmicas socio-espaciais relacionadas com o bairro da Madragoa, foram as músicas que mais ouvi. Costa (1999), por seu lado, referiu-se ao facto de nos momentos festivos do bairro de Alfama se ouvir também música brasileira.
54 Talvez um dos aspectos a ser considerado se relacione com o poder da indústria cultural, pois certos materiais são mais veiculados em detrimento de outros. A este nível, o facto de se ouvir música brasileira no arraial popular da Mouraria diz respeito a um fenómeno de âmbito global, a priori, alusivo ao processo de desterritorialização. Penso ainda que a explicação também se aproxima daquilo que se passa com a telenovela (Viegas 1987). Isto é, essa música, para além de cantada numa língua comum, possui letras que se reportam às condições socioeconómicas, aos projetos e aspirações dos seus ouvintes, etc. Neste sentido, poder-se-ia considerar que os receptores dessas músicas reelaboram aquilo que ouvem, desse modo interagindo com as suas condições e contextos de vivência e, nesse sentido, alteram as suas práticas e representações, tal como acontece com as telenovelas. Por outro lado, há de se considerar a importância do ritmo das músicas que são ouvidas e que aqui chamarei, por falta de uma expressão mais adequada, animado. Entretanto, quer a minha sensação de proximidade algo distante, quer a da adolescente pernambucana que, apesar de ouvir música brasileira não a sentia como tal, deve-se à especificidade do contexto. Isto é, ouvia-se música brasileira mas num contexto marcadamente distinto de qualquer outra cidade ou bairro brasileiro.
55 A este propósito, consultar DaMatta (1990: 82).
56 A propósito da relação entre o desenho físico do espaço e a sua respectiva apropriação social, consultar um texto de Conan (1992) onde é defendida a importância de pensar o espaço público como um espaço de negociação e não pelo projetista como algo imposto ou pelo poder estatal. Ghorra-Gobin (2000, 2001), por seu lado, defende a ideia de que os espaços públicos urbanos são símbolos de mediação e como tal permitem a reinvenção do sentido da cidade. Perspectiva semelhante é defendida por Pascal Sanson (1999) ao referir-se à redescoberta do sentido da cidade a partir dos novos projetos de intervenção no espaço público urbano de Paris e que, para o autor, proporcionaram uma ressemantização do espaço urbano. Mas repare-se que enquanto esse autor avalia positivamente a colocação de esculturas públicas para a valorização da vida pública, Zukin (1995, 1996, 2000a, 2000b) aborda tais objetos urbanos como mais uma das estratégias do poder económico para regulamentar e interferir no espaço e paisagem urbana, transformando-a em objeto de consumo visual.
57 Os autores (Fortuna, Ferreira e Abreu 1999) assumem que é necessário ampliar e diversificar alguns dos seus pontos de vista, observando que apenas procuraram desenvolver uma reflexão que, ao relacionar o espaço público e a cultura, lhes permitiu construir um conjunto de hipóteses a serem verificadas mais pormenorizadamente.
58 A meu ver, na classificação dos diferentes espaços públicos urbanos – excetuando-se aqui os transportes públicos e a Internet – é primeiramente necessário definir a sua especificidade física e urbanística, antes de proceder a uma classificação definida por determinados tipos de práticas como, por exemplo, eventos culturais ou práticas comerciais. Creio ser adequada a tipologia de classificação conforme adotada por Carr et al. (1995: 79-84) e que sinteticamente se refere aos: (1) parques públicos – parques centrais, parques verdes, espaços comuns com áreas verdes, parques em zonas residenciais, miniparques (envolvidos por edifícios); (2) praças – praças centrais e praças incorporadas (como parte de edifícios comerciais ou públicos); (3) memorial – espaços memorializados pelos indivíduos ou eventos com importância local ou nacional; (4) mercados – feiras realizadas em espaços abertos; (5) ruas – passeios; ruas fechadas ao trânsito; acessos viários amplos e condicionados; trilhas urbanas; (6) áreas de recreio – áreas localizadas em contextos residenciais com equipamentos de lazer e diversão; (7) pátios escolares; (8) espaços abertos comunitários – espaços de vizinhança desenhados ou desenvolvidos pelos residentes, podendo ter vistas, jardins, áreas de diversão, não sendo oficialmente parte do sistema de espaços abertos da cidade; (9) caminhos e parques verdes – zonas de interconexão com áreas de recreação e espaços verdes; (10) átrios – espaços interiores e privados desenvolvidos como recintos de entrada em praças fechadas, ruas pedonais ou edifícios comerciais; (11) centros comerciais e áreas de mercado fechado – podendo incluir espaços interiores e/ou exteriores; (12) espaços abertos em contexto de bairros ou áreas residenciais – esquinas, áreas entre edifícios, áreas sem construção; (13) linhas de água – espaços abertos ao longo de lagos, rios, pontes, praias.
59 De entre os trabalhos que de alguma forma têm refletido sobre os espaços públicos em Lisboa, parece-me importante destacar um texto de Machado Pais (1995) sobre a privatização da vida pública na cidade. Numa perspectiva histórica, é interessante o trabalho de Araújo (1990) sobre a utilização do espaço público urbano em Lisboa na época dos Descobrimentos, como ainda os trabalhos de Silva (1990, 1994b) e de Medeiros (1995) sobre o antigo Passeio Público da cidade. De um ponto de vista etno-histórico, é fundamental consultar o trabalho de Cordeiro (1995, 1997) sobre a apropriação do espaço público da cidade pelos segmentos populares da população, sobretudo nos períodos das festas e arraiais. De um ponto de vista histórico-arquitetónico, consultar Seixas et al. (1997).
60 Embora Arantes (2000) tome a metrópole de São Paulo como referencial empírico de sua análise e reflita sobre um contexto específico – a Praça da Sé –, como ainda recorra a um conjunto de desenhos de crianças (que vivem na cidade) e a distintas fotos históricas para assim dar a ideia de multivocalidade, o ponto de vista privilegiado é o seu próprio e, pontualmente, dos seus respectivos colaboradores. Creio que tal poderá ter sido uma opção do autor. Mas, caso assim seja, julgo que, de um lado, teria sido interessante as fotos e desenhos apresentados virem com alguma legenda ou comentário, para além de esclarecer sobre o percurso profissional dos seus colaboradores e da metodologia adotada na recolha de desenhos junto das crianças de rua. Pois tais imagens permitem detectar a heterogeneidade do espaço público urbano bem como de algumas representações (como é o caso dos desenhos infantis), mas ficamos por saber quais são as especificidades antropológicas, históricas e geográficas subjacentes às imagens selecionadas: porquê tais imagens e não outras?
61 Segundo Cordeiro (1994a: 76), “a criação explícita dos bairros e a tipificação de alguns deles, permitindo pensar uma grande cidade como um conjunto de pequenas aldeias, constitui uma imagem de tal forma eficaz do ponto de vista simbólico que ainda hoje é frequentemente reproduzida”.
62 Bourdin (1984: 30-31), ao refletir sobre a ligação entre as palavras e as imagens utilizadas no âmbito da intervenção e da reflexão sobre o património urbano, considerou que aos conjuntos históricos e antigos que são os velhos bairros se encontram associados três adjetivos que conotam de forma diferenciada esses locais, onde: velho remete para a ideia de degradação, inadaptação e insalubridade, mas também evoca a ideia de um passado a respeitar; histórico possui um maior valor semântico, sendo o bairro visto como um quadro de vida harmoniosa e referência do passado, como um símbolo da própria história; antigo é um adjetivo mais neutro, contudo, é mais positivo do que velho, subentendendo a existência de um possível valor histórico. Para o autor, esses adjetivos estão associados a duas dimensões da historicidade: os símbolos sociais e a história pessoal.
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