Capítulo 2. Fronteiras sociais e espaciais de um lugar
p. 153-236
Texte intégral
1Uma das dificuldades em lidar com as noções de limite e fronteira decorre, muitas vezes, da inflexibilidade com que essas noções são empregues ou da conotação que lhes é atribuída, como se apenas se tratasse de uma linha de demarcação física, política ou administrativa e que, como tal, fossem representáveis num mapa.1 De modo que a tentativa de explicar a inscrição do bairro da Mouraria no espaço da cidade, a partir de um perímetro constituído por limites e fronteiras visíveis, pode ser um problema de difícil resolução, bem como encontrar uma consciência coletiva e homogénea do que possam ser os limites do bairro, pode tornar-se uma busca sem fim. Como, então, descrever os seus limites e fronteiras sabendo, a priori, que a tentativa de demarcação do bairro pode ser defraudada pela insustentabilidade material dos seus limites ou pela heterogeneidade com que são percebidos?
2Ao tomar como referência a reflexão desenvolvida sobre a problemática dos limites nalguns dos bairros antigos de Lisboa, como a Bica, Madragoa e Alfama,2 é possível assinalar alguns aspectos para se compreender melhor a realidade social e urbana da Mouraria. Um desses aspectos é o reconhecimento dos limites e fronteiras como construções sociais que, como tal, são representados de forma dinâmica. Tal constatação permite evidenciar a maleabilidade dos contornos territoriais desses bairros e, ao mesmo tempo, considerá-los como “territórios geográficos e sociais aproximativos” (Olivier Brachet, em Cordeiro 1995: 202). Sendo que, a partir de uma perspectiva dinâmica e estrutural, é possível considerar que esses territórios aproximados se compõem muito mais por “núcleos de referência identitária” para o qual contribuem as referências sociais, culturais, físicas e espaciais, e por “demarcações face a outros bairros ou a outros elementos destacados da cidade”, do que por uma configuração rígida dos seus limites e fronteiras (Costa 1999: 108).
3Mas os problemas em lidar com as noções de limite e fronteira ainda tocam numa questão muito atual para a própria teoria antropológica: a reflexão sobre a noção de lugar.3 Sublinha-se, assim, que no decorrer da minha experiência confrontei-me com um conjunto de contrariedades acerca dos possíveis caminhos a seguir para identificar o bairro da Mouraria. Deveria, então, recorrer aos mapas da cidade e à história do bairro para tentar compreender alguns dos aspectos da sua inscrição no espaço urbano, ou somente acompanhar os indícios urbanos, sociais e culturais que informavam acerca da aproximação ao local, ou condicionar-me à ideia de delimitação do bairro como lugar de observação antropológica? Isto é, se a intenção é demarcar um território, isso significa situar o local onde as relações sociais são constituídas ou definir a localização dos fenómenos culturais a que – enquanto antropóloga – me refiro? Será a discussão sobre os lugares e os seus limites e fronteiras um problema de localização no espaço?
4Tendo em consideração a necessidade que os antropólogos e os indivíduos em geral têm de se situar para ver e sentir o espaço, julgo, entretanto, que a problemática dos limites e fronteiras como a do lugar não se reduzem a um problema de localização, como se o espaço demarcado apenas funcionasse como um contentor das práticas sociais, estratégias ou ideias (Rodman 1992; Appadurai 1988). Considero, assim, que os lugares não devem somente ser concebidos e compreendidos como construções antropológicas, como se apenas existissem antropologicamente ou etnograficamente.
5No entanto, o que define o lugar? Será a sua materialidade? Serão as narrativas e os discursos? Os seus limites? As conceptualizações? As representações? As relações sociais? Ou, quem sabe, as práticas? A probabilidade de manifestação de todas essas situações num mesmo tempo e espaço é muito plausível. Mas ainda existe um outro problema: se a materialidade de certos espaços pode ser tomada como um dado incontestável, o mesmo não se aplica aos discursos, representações, práticas, conceitos e memórias, já que esses não são estáticos nem se definem pela objetividade, nem tão-pouco são homogéneos e, muitas vezes, mostram-se de forma contraditória e polifónica ou, melhor dizendo, são constituídos por muitas e múltiplas vozes que, num mesmo lugar e tempo, tratam de vários outros locais e tempos.
6Observar e produzir conhecimento sobre as dinâmicas de demarcação socio-espacial no bairro da Mouraria foi como coser e descoser uma imensa manta de retalhos que, entretanto, se constitui a partir de uma lógica mais abrangente e que não se restringe aos retratos de caracterização ou à(s) peça(s) que visualizamos ou às opiniões elaboradas sobre o bairro, nem tão-pouco à preocupação de delimitação da unidade espacial de análise. Então, que agulha serviu para coser a manta?
7Com o intuito de prosseguir a reflexão sobre um bairro cuja singularidade espacial também denota pluralidade e multidimensionalidade, descontinuidade, fragmentação e segregação, um primeiro aspecto aqui considerado foi a necessidade de complexificar um pouco mais a reflexão sobre as noções de limite e lugar.
8Sabe-se que os limites servem como enunciação das ações prático-simbólicas que definem o espaço. Isto é, pode-se aqui entender o processo de delimitação do espaço, como essencial a constituição e representação dos sistemas espaciais das sociedades (Lévy e Segaud 1983). Como foi referido por Durkheim (1989), a ação de percepção do espaço significa uma operação de divisão, ou seja, de colocação de limites. Fronteiras e limites são lógicas simbólicas de apropriação e reconhecimento e, como tal, de diferenciação, organização e constituição do espaço. Fronteiras e limites são úteis para demarcar distinções e contrastes, podendo ser arbitrários e constituídos com base nas regras sociais de diferença e diferenciação (Low 2000a). De modo que captar as formas e os modos como os indivíduos e grupos constroem, destroem ou reforçam determinados limites foi um pressuposto essencial para conhecer as relações entre os espaços e as dinâmicas de inclusão e exclusão (Sibley 1997). O que me confrontou com a necessidade de pensar os limites e as fronteiras da Mouraria como marcos simbólicos que, entretanto, permitem relacionar de forma dinâmica a ordem social com a ordem espacial. Pelo que, a partir de uma lógica de mediação e comunicação, importava ter em consideração que os processos de demarcação social do espaço inferem ambiguidade e ambivalência, pois um limite também expressa simultaneidades e interstícios. Assim, a problemática ligada aos processos de construção dos limites permitiu-me abordar alguns aspectos das relações entre o que é e não é, entre próximo e distante, ou ainda entre nós, eles e os outros.
9Mas foi ainda imprescindível considerar o lugar como algo mais do que uma mera carência de localização. Repare-se que, no decurso da minha experiência no bairro, e no seguimento das ideias de Rodman (1992: 641), notei que os limites e fronteiras como o próprio lugar Mouraria eram politizados, culturalmente relativos, historicamente específicos, localizáveis e sujeitos a múltiplas construções (e também destruições). De modo que, em concordância com Agnew (1997: 263), o lugar é aqui considerado como uma área elástica e constituído por três elementos essenciais: localização – respeitante aos efeitos dos processos sociais e económicos sobre o local, sendo que esses processos operam a partir de diferentes escalas; local – cenário onde as relações sociais são constituídas; sentimento do lugar – a forma como os indivíduos se ligam geograficamente ou socialmente ao lugar. Nesta ótica, nem os lugares se limitam a ser meros suportes da ação social, nem tão-pouco suportes de desenvolvimento de reflexões sobre a sociedade. Como notou Rodman (1992: 652), para além desses aspectos, importa ver através desses lugares e analisar as suas relações com os outros. Já que os lugares são construídos socialmente e por isso são como são, representam pessoas e servem como pretexto para se começar a compreender como as pessoas se servem deles, apropriando-os e incorporando-os.
10O que me parece fundamental é que a problemática da definição do lugar Mouraria e a análise dos seus limites e fronteiras reporta-se muito mais à minha capacidade – enquanto antropóloga – de apreensão dos modos como o espaço social é percebido, do que propriamente à tentativa de explicação do seu perímetro ou de delimitação da unidade espacial de análise. Não obstante considerar que a minha experiência do lugar tenha tido localização e significado, considero, entretanto, essa experiência como mais uma voz que fala sobre o lugar.
11O objetivo central deste capítulo é analisar como o espaço social da Mouraria – um território de contornos socio-espaciais flexíveis e maleáveis – é percebido e demarcado pelos seus moradores, vizinhos e utilizadores. Para tal, interessou captar a percepção dos indivíduos relativamente à extensão do território do bairro, quais eram os elementos selecionados para demarcar o espaço e qual o imaginário associado aos limites e aos referenciais de orientação no território. Sendo, assim, demonstrado como as noções de lugar e de limite são mais dependentes das redes de relações sociais e dos valores que se encontram em causa do que de fatores físicos e urbanísticos.
Perceber o território que dá lugar à Mouraria
12A minha primeira abordagem ao terreno de pesquisa funcionou como uma espécie de ritual iniciático no espaço do bairro. De modo que, antes de formalizar a minha presença no local, senti a necessidade de dominar a topografia, a toponímia, a imagem urbana, a morfologia física da área e a forma como esta estabelecia relações com a envolvência. Intuitivamente, comecei por me aproximar do bairro a partir de longas e repetidas digressões silenciosas, quase sem contactos verbais com a população, apenas registando através de notas, desenhos, marcações cartográficas e fotografias as impressões visuais, olfactivas e auditivas que ia experimentando.
13No seguimento dessas digressões, iniciei uma pesquisa histórica e urbana cujas descobertas se foram sobrepondo e somando às primeiras impressões. Na verdade, comecei a dar-me conta de que as referências que acumulava, ao mesmo tempo que esclareciam certos aspectos da inscrição espacial do bairro na cidade, aumentavam as minhas dúvidas.
14Parecia-me claro que o território social e geográfico da Mouraria havia sido preciso e visivelmente demarcado no espaço da cidade. Essa precisão, entretanto, deixou de existir e o bairro alastrou pela envolvente, contrariando a sua lógica inicial para a concentração social e geográfica de somente um segmento da sociedade: os muçulmanos. Mas a expansão do território do arrabalde mouro nem foi ilimitada, nem tão-pouco induziu à criação de um novo perímetro geográfico a ser identificado pela sua materialidade e correspondência cartográfica. O território do bairro, aos poucos, passou a definir-se por uma certa elasticidade (Agnew 1997), adequando-se à ideia de “território geográfico e social aproximativo” (Cordeiro 1995). No entanto, essa elasticidade perderia um pouco da sua flexibilidade quando uma das zonas de expansão do arrabalde começou a assumir-se com alguma distintividade. Isto é, o arrabalde novo da Mouraria passou a ser identificado como bairro das Olarias. Embora, como se poderá verificar, essa distintividade não se defina por uma demarcação rígida ou dicotómica entre Mouraria e Olarias, apresentando-se como uma relação ambígua que, em determinadas circunstâncias pode, inclusivamente, tornar-se ambivalente. Numa outra perspectiva, a destruição da Baixa da Mouraria permitiu, entre outros aspectos, uma espécie de aproximação do território de todos – a cidade – ao bairro, tornando-se a Baixa da Mouraria algo como uma zona de transição entre bairro e cidade.
15Então: como conciliar a ideia de elasticidade com um território que, em decorrência das circunstâncias históricas, sociais e urbanas, parece identificar um movimento de retroatividade espacial? Poder-se-á dizer que a noção de bairro se opõe à de cidade? Será que os elementos de distinção entre bairro e cidade podem ser explicados a partir de uma relação dicotomizada?
16Na realidade, e como se poderá verificar, as respostas a tais questões são complexas e remetem para um conjunto de relações ambivalentes e ambíguas. Antes, contudo, importa primeiramente esclarecer alguns outros aspectos que permitem identificar o bairro no contexto da cidade.
Elementos de identificação do território: edificado, malha urbana e acessibilidades
17O bairro não foi muito afectado pelo terramoto de 1755 e somente pontualmente foi objeto da intervenção pombalina, o que permitiu a manutenção de parte da malha urbana medieval até aos nossos dias. A malha urbana de consolidação pré-pombalina desenvolve-se num traçado irregular de ruas, becos, travessas e escadinhas estreitas e longas que acompanham as curvas de nível e os talvegues. As construções desenvolveram-se espontaneamente de forma a adaptarem-se às condicionantes topográficas, não se verificando a preocupação de alinhamento, orientação e cércea. Pelo que as construções foram-se dispondo radialmente a partir de um edifício notável, sem nenhuma espécie de plano de conjunto. Os terrenos são pequenos e, apesar da profundidade dos lotes, os edifícios são de dimensão exígua, sobretudo no núcleo da Mouraria.
18O tecido edificado do bairro é consideravelmente antigo, encontrando-se degradado e, em muitos casos, não oferece as mínimas condições de conforto. É elevado o número de alojamentos cuja época de construção se reporta ao período anterior a 1919 (988 alojamentos do total da freguesia do Socorro) (ver figura 5).4 Assim, quando é referida uma época anterior a 1919 deve-se ter em conta que o período em questão pode ir até ao século XVI. Os edifícios mais modernos da freguesia e do bairro reportam-se ao período de 1919-1945, sendo pouco representativos na globalidade da freguesia os edifícios posteriores a esse período.
19Devido às sucessivas ampliações e alterações, muitos edifícios possuem uma cércea elevada que, por sua vez, particularizaram as fachadas com águas-furtadas e andares recuados, havendo paredes exteriores em frontal com as ruas. São muitos os casos em que as fachadas se apresentam em ressalto, sendo normalmente rebocadas a cal e com cores claras, à exceção dos edifícios mais recentes, onde pontualmente aparecem revestimentos em azulejaria (sobretudo nas ruas do Benformoso e dos Cavaleiros, e na zona das Olarias). Na generalidade, o acesso aos andares dos edifícios populares desenvolve-se através de uma escada de um tiro, enquanto nos edifícios nobres se desenvolve através de um amplo átrio com escada lateral e compartimentação do espaço interior, quase sempre sem recurso a um corredor de distribuição.
20De um total de 454 edifícios na freguesia do Socorro, existem 1995 alojamentos familiares dos quais 1713 são alojamentos clássicos. Destes, 1635 encontram-se em edifícios principalmente residenciais e 78 em edifícios não residenciais. A maioria dos edifícios principalmente residenciais possuem 3 ou mais alojamentos. Na generalidade, os fogos são pequenos, rondando as 2-3 divisões. Relativamente ao número de pavimentos, verifica-se que dos 454 edifícios existentes na freguesia do Socorro, a maioria possui 3 ou 4 pavimentos. Não obstante, verifica-se a existência de um considerável número de edifícios com apenas 1 ou 2 pavimentos, sobretudo no núcleo do bairro.
21A malha urbana que caracteriza os períodos setecentista e oitocentista está implantada sobre um tecido medieval e, pontualmente, desenvolve-se com um traçado mais claro e geométrico por contraste com a malha pré-pombalina.
22A densidade construtiva condicionou a existência de espaços verdes e esses normalmente encontram-se localizados no interior dos quarteirões, e são terrenos privados. À exceção das ruas e escadarias, são consideravelmente poucos os espaços públicos livres e, geralmente, estes resultaram da derrocada de edifícios ou, mais raramente, são espaços que ainda não foram edificados. O bairro da Mouraria praticamente não possui espaços públicos não lineares, havendo apenas alguns poucos largos que normalmente se desenvolvem em forma triangular ou trapezoidal, sendo o resultado da confluência de ruas ou do derrube de edifícios, não existindo nenhum espaço antecipadamente organizado para o efeito de praça ou largo, à exceção da Praça do Martim Moniz que fica na envolvência do núcleo do bairro. Os largos que se destacam na vivência do núcleo central do bairro são os seguintes: Guia, Severa e João do Outeiro.
23A envolvente urbana do bairro é constituída por uma rede rodoviária fundamental para a cidade e que atravessa a periferia da Mouraria, desenvolvendo-se no sentido norte-sul. Tais eixos principais são a Avenida Almirante Reis e as ruas da Palma, do Arco do Marquês de Alegrete, do Poço do Borratém e da Madalena. Seguidamente, os eixos de importância secundária para a cidade encontram-se posicionados a meia encosta, sendo estes: o Largo de S. Cristóvão e as ruas das Farinhas e Marquês de Ponte de Lima.
24Por muito tempo, o desenvolvimento urbano da área como da rede de acessibilidades foi condicionado pela Cerca Fernandina, sobretudo ao ter em consideração que a abertura da Rua Marquês de Ponte de Lima somente se deu em finais do século XIX. O grau de acessibilidade rodoviária do bairro é fraco.
25Os eixos rodoviários que estruturam o núcleo do bairro desenvolveram-se nos talvegues constituídos pelas ruas da Mouraria, do Benformoso e Cavaleiros / Calçada de Santo André. O primeiro corresponde a uma via de saída da cidade, e o segundo eixo a uma via de ligação com a parte alta da cidade. Entretanto, a Rua da Mouraria é um eixo estrutural, mas o seu trânsito automóvel encontra-se condicionado, somente autorizado para carga e descarga de mercadorias; desde a abertura da Av. Almirante Reis, a Rua do Benformoso tem uma importância meramente local.
26Os eixos de importância secundária no núcleo do bairro desenvolveram-se acompanhando as curvas de nível da Colina do Castelo e da Graça, e convergem para a Calçada de Santo André e Largo do Terreirinho. A Rua Marquês de Ponte de Lima constitui o principal eixo de atravessamento viário do bairro da Mouraria. As ligações transversais normalmente são feitas por longas escadarias, muitas vezes em forma de becos. O interior do núcleo da Mouraria tem uma vocação pedonal e nele são importantes os eixos transversais formados pelas ruas da Amendoeira, Guia, Capelão e João do Outeiro. No interior do núcleo do bairro, o acesso automóvel somente é possível no eixo Rua da Guia / Largo da Severa, entretanto, aí a circulação dos automóveis é muito condicionada e praticamente encontra-se restrita a uma utilização como área de estacionamento. Na Mouraria ampliada são importantes os eixos das ruas do Terreirinho e Lagares mais a Calçada Agostinho de Carvalho. A zona das Olarias possui ruas mais largas, de modo que a circulação automóvel é mais facilitada.
27É escasso o número de lugares de estacionamento em toda a zona. Muito embora se tenha construído um parque subterrâneo na Praça do Martim Moniz, este praticamente não é utilizado pela população local. As acessibilidades são deficitárias, situação ainda mais agravada pelo intenso trânsito desencadeado pelo transporte de mercadorias.
28O único transporte público que atravessa o bairro é a carreira número 12 do elétrico, que passa na Rua dos Cavaleiros / Calçada de Santo André nos dois sentidos. Os restantes transportes públicos locais estão situados no vale do Martim Moniz, sendo de destacar a rede do metropolitano. Repare-se que a Mouraria é dos poucos bairros típicos da cidade que, em contraste com o fraco grau de abertura urbanística e os deficientes acessos viários, possui uma ligação à rede do metropolitano da cidade.5
Indícios do bairro na paisagem
29Num plano administrativo não existe referência a um bairro ou local de nome Mouraria.6 No entanto, o bairro pode estender-se pela freguesia do Socorro e irregularmente ocupar parte das freguesias da Graça, São Cristóvão / São Lourenço e Santa Justa. Num plano geográfico, o bairro alastra pelas colinas do Castelo (ocupando as vertentes norte e poente) e da Graça, e ainda desenvolve-se em direção ao vale do Martim Moniz.
30A distância do bairro da Mouraria ao rio Tejo é óbvia quando nos encontramos posicionados no Castelo de São Jorge. Do seu lado norte, adivinha-se a localização do bairro nas traseiras das muralhas que cercaram a cidade sem, contudo, se encontrar um perímetro que nos esclareça a localização exata do bairro, apenas indiciado no meio de um confuso tecido edificado que se dispõe entre o Coleginho, a Praça do Martim Moniz e o Centro Comercial da Mouraria.
31Dos miradouros da Graça e da Senhora do Monte, situados a norte da colina do Castelo, fica-se a imaginar qual seria o contorno do bairro no meio de uma profusão de edifícios, empenas e telhados, de vez em quando entrecortados por artérias viárias, fazendo crer que toda aquela área é um único espaço, e levando os mais céticos a duvidar da existência da Mouraria após a destruição de toda a sua Baixa. Pois a antiga Baixa da Mouraria, agora ocupada pela Praça do Martim Moniz e pelo Centro Comercial da Mouraria, é vista do cimo de todas as colinas que se dispõem em redor do vale, mas a zona alta da Mouraria é difícil de distinguir no meio da confusão de edifícios que descem desordenadamente as colinas. Mas, aos poucos, um olhar mais atento identifica a Rua Marquês de Ponte de Lima, que atravessa a encosta do Castelo, onde se destaca o edifício da Igreja do Socorro (Coleginho). Do alto, imaginamos o troço da Cerca Fernandina que nessa rua separava a Mouraria da cidade intramuros. Seguidamente, consegue-se visualizar o eixo constituído pela Calçada de Santo André / Rua dos Cavaleiros, observando-se que, de certo modo, esse eixo funciona como uma discreta fronteira entre a Mouraria e as Olarias. Assim, e aos poucos, começa a desenhar-se aos nossos olhos o que restou do arrabalde mouro e que aparece de forma encravada e escondida na colina, aludindo uma imagem triangular. À medida que se conquista alguma intimidade com o território do bairro começa-se, então, a perceber que tal imagem é muito próxima daquilo que é percebido pelos habitantes como o centro do bairro.
32Na colina de Sant’Ana, já no lado ocidental, o Hospital de São José destaca-se sobre o vale do Martim Moniz,7 apenas ofuscado pelo edifício de um centro comercial que também recebeu o nome do heroico e lendário soldado cristão. Dessa colina constata-se, uma outra vez, a posição estratégica do Castelo de São Jorge e tenta-se adivinhar algum marco territorial que permita distinguir a Mouraria no meio de uma intricada malha urbana. Mas com evidência, apenas se visualizam alguns edifícios de destaque e que, a priori, sabíamos ligados ao bairro como, por exemplo, a Capela da Nossa Senhora da Saúde, os edifícios do Centro Comercial da Mouraria e o Edifício Amparo.
33Para encontrar a Mouraria também é prático utilizar algumas referências que existem a partir da rede do metropolitano. O bairro está logo à vista de uma das saídas da estação do Martim Moniz. A indicação da proximidade com o Centro Comercial da Mouraria ou com a Rua da Palma também são referências úteis. Existem ainda alguns outros indícios que permitem assinalar o bairro no território da cidade: a toponímia local (salientando-se a existência de uma rua e uma calçada de nome Mouraria), uma esplanada de nome Mouraria ou a referência ao bairro em certos guias turísticos da cidade. Para quem consulte os mapas turísticos de Lisboa, também é usual a inscrição do nome Mouraria sobre a área situada entre o Castelo e a Rua da Palma / Praça do Martim Moniz, mas tal inferência não demarca o perímetro do bairro.8 Entretanto, a forma como as ruas são vividas, o contacto com certas práticas corporais e rituais, a existência de um comércio de revenda controlado por indianos e chineses, etc., também são, entre outros aspectos, indícios importantes para encontrar a Mouraria.
34Contudo, o que até aqui foi assinalado apenas serve como indício ou sinal da localização da Mouraria, não correspondendo a um perímetro de definição do bairro. Tal poderia ser tomado como uma imprecisão na demarcação do território, mas de facto o perímetro administrativo ou geográfico do bairro é inexistente e impreciso, pois as fronteiras do bairro não têm correspondência administrativa, nem sempre se definem pela materialidade, nem tão-pouco pela precisão. Assim, rapidamente se constata que a irregularidade da extensão e a indeterminação dos limites do bairro indicam, acima de tudo, que é mais fácil perceber o seu território recorrendo a uma geografia social e simbólica.
A extensão do território do bairro
35Na continuidade das minhas andanças pelo bairro e envolvência, comecei a abordar informalmente as pessoas que encontrava no sentido de perceber quais eram as possíveis configurações do território do bairro, procurando captar as referências espaciais e sociais com as quais opinavam.
36Estimulada pelas ideias de de Certeau (1990), a princípio acreditei que o processo de percepção espacial, ao ser particularizado pelos indivíduos, lhes permitia evadirem-se dos constrangimentos colocados pelo espaço construído. Até porque, conforme penetrava no mundo da Mouraria, encontrava mundos paralelos que refletiam uma variedade de maneiras de pensar e perceber o território do bairro.
37Mas logo fui levada a pensar que, face às várias formas do bairro ser percebido, acabaria por entrar numa espécie de roleta russa que me transportaria a lugar nenhum. Sobretudo porque me era impossível captar a multidimensionalidade das formas como os indivíduos percebiam o território do bairro, sobretudo estando ciente de que seria impossível desenvolver uma pesquisa que contemplasse todas as opiniões. Porém, a diretividade subjacente ao intuito de captar a percepção dos indivíduos e que se constituiu como um dos objetivos da pesquisa assentava em pressupostos de partida que acredito serem corretos, muito embora não pressupusesse a dificuldade em lidar com a singularidade de um espaço numa linguagem plural.
38Já um tanto ou quanto desmotivada acerca da eficácia dos resultados da pesquisa dei, contudo, andamento aos intuitos de partida. Logo depois, confirmei que a extensão do território do bairro variava, sendo mais ou menos prolongado em função de um conjunto diversificado de situações e referências sociais e espaciais. É que, apesar da diversidade na percepção da extensão do território do bairro, havia um número finito de ruas que eram vulgarmente aceites como pertencentes à Mouraria. Isto é, tais ruas não forneciam dúvidas acerca da sua pertença ao bairro e correspondiam ao que mais tarde identifiquei como sendo percebido como o núcleo do bairro.
39Dei-me, assim, conta de que o modelo físico de organização do tecido edificado, as relações entre as atividades desenvolvidas em espaços abertos e fechados, exteriores e interiores, núcleo e envolvência, e as suas formas de reciprocidade e diferenciação, não podiam passar despercebidos. Tais aspectos repercutem-se nas configurações socio-espaciais porque, como referiu Valle (1999: 35), colocam em jogo critérios de classe social, género, grupo étnico, etc. De modo que, sem refutar as ideias de de Certeau (1990), como observou Edensor (1998), passei a considerar que não existe um pedestre heroico. Isto porque, ao caminhar, o indivíduo pode sentir-se afectado pelo meio social que atravessa mas também lida com a sua própria visão do mundo.
40A perseverança revelou-me que para conseguir atravessar as portas dos diferentes mundos paralelos existentes na Mouraria (pelo menos de alguns deles) tinha de ajustar a minha própria percepção e, antropologicamente, encontrar sentido num conjunto confuso de outras percepções. A partir do ajuste do meu próprio olhar notei que certas lógicas se repetiam no interior de um conjunto de múltiplas relações que se constituíam por referência aos indivíduos e os seus locais de residência ou de presença (onde eram abordados), às memórias, às práticas, espaços, acontecimentos e tempo (quotidiano e fora do quotidiano), às freguesias ou à área de intervenção do Gabinete Local da Mouraria (GLM), ao sentimento de vinculação ao local e a uma determinada rede de relações sociais, e ainda a critérios de categoria social, etários, de género e étnicos.
Quando a Mouraria é “isso tudo”
41O bairro percebido como um território que se prolonga de forma irregular, mostrou-me que a Mouraria é primeiramente revelada como sendo “grande”:
“É grande, é isso tudo, vai até ali ao Castelo de São Jorge e depois para baixo, e mais para o pé do rio, acho que ali é Alfama. A Mouraria ainda é grandinha […], ainda é um bairro grande, o Benformoso, a Rua do Capelão, onde morou aquela fadista famosa, a Severa e não sei o quê […], isso é tudo o coração mesmo da Mouraria […].” ( D. Paula)9
“A Mouraria é isso tudo (faz um gesto com os braços abrangendo uma área circundante, apontando a Rua da Mouraria e o Largo do Martim Moniz). A Rua do Benformoso também é, e vai até lá acima, antes do Castelo.” (Sr. Karim)10”
“O bairro da Mouraria atinge aquela rua de cima, vai até às arcadas, vai até ao Largo do Terreirinho, dá a volta pela Olaria, desce aqui na Rua Agostinho de Carvalho e vai até à Nossa Senhora da Saúde e já segue para lá, depois já começa Santa Justa. A Rua do Benformoso é Mouraria até assim, vá lá, até à saída do Terreirinho e para lá já é outra Junta, o Intendente.” (Sr. Fernandes)11
42A área adstrita à freguesia do Socorro normalmente é reconhecida como sendo bairro mas, para muitos, o território do bairro é considerado como maior do que a área da freguesia:
“Até onde é a Mouraria […], isto é um bocado complicado! A Mouraria é isso tudo, isto aqui também é Mouraria (estávamos na Rua Marquês de Ponte de Lima). Do lado da Rua da Palma, onde fizeram aqueles jardins (referência à Praça do Martim Moniz), também é Mouraria, não é freguesia que aquilo é Santa Justa. A Mouraria vai até o fim da Rua do Benformoso, Mouraria bairro, não freguesia. Na Rua da Madalena, e isso eu não concordo e estou farto de dizer isso, nessa rua há freguesia da Madalena, Santa Justa e Restauradores, ali uma coisa tão pertinho, é como aqui […]. O Poço do Borratém é Mouraria. As Olarias também é, tanto dum lado como do outro é Mouraria, mas já não é freguesia, já não é Socorro, do lado esquerdo é Socorro e do lado direito é Graça. Porque a gente era até lá ao Socorro onde estava a igreja e tiraram-nos e fizeram Santa Justa, há coisas que não concordo […], e o Socorro vai até à Costa do Castelo, a encosta também é Mouraria, até ao Largo dos Meninos de Deus […], mas aquilo devia ser da freguesia do Castelo, porque aquilo ‘tá mesmo encostado ao Castelo […]. O largo onde passa o elétrico, no Largo de Santo André, aquilo ali é Socorro […]. Desde que seja freguesia do Socorro é Mouraria.” (Sr. Vasco)
43O acentuar do prolongamento do bairro pelas áreas circundantes, às vezes já em outras freguesias que não a do Socorro, permite reforçar a ideia de uma grande Mouraria.12 Note-se, entretanto, que essa Mouraria ampliada é como uma mancha de extensão variável e sem limites definidos.
44A sobreposição ou a correspondência entre bairro e freguesia do Socorro é notória em praticamente todos os relatos recolhidos. Quando perguntados se a Costa do Castelo era Mouraria, era comum ouvir respostas do género: “Sim, é freguesia do Socorro, o Largo das Freitas, isso tudo é Mouraria.” Subentenda-se aqui que, para muitos, viver na freguesia do Socorro é o mesmo que viver na Mouraria. Por exemplo, D. Manuela vive na Costa do Castelo sob a alçada da freguesia do Socorro e comentou o seguinte:13 “Vivo na Mouraria e se não for Mouraria onde vivo, sei que Socorro é, pois somente a partir de certo número é que já não é.”
45Observei ainda que alguns indivíduos que não desejavam estar associados ao bairro da Mouraria apenas insinuavam que onde viviam já não era Socorro. Mas nem sempre aqueles que vivem na freguesia do Socorro consideram o seu local de residência como Mouraria. Por exemplo, uma senhora residente na Calçada de Santo André considerou: “[…] aqui não é Mouraria. A Mouraria é lá para baixo, aqui é Graça”.14
46Mas apesar das noções de freguesia (do Socorro) e bairro muitas vezes aparecerem sobrepostas, as diferenças também existem e costumam ser salientadas:15
“Socorro é a freguesia, é o nome da freguesia. E o bairro da Mouraria é a mesma freguesia que também é Mouraria. Por exemplo, todas as pessoas, todas as freguesias têm uma junta e esta foi sempre Socorro, freguesia do Socorro, porque tivemos uma igreja que era aqui, muito grande, que a gente tinha muita coisa para o turismo, deitaram muito abaixo […]. Dizem que a Mouraria é toda a freguesia e que o bairro das Olarias é do lado direito e do lado esquerdo é Mouraria, porque do outro lado das Olarias já é freguesia da Graça.” (D. Júlia)16
“A Mouraria não é o mesmo que a freguesia do Socorro, que tem limites administrativos. A Mouraria é como uma zona, indo para além desses limites. A Mouraria vem de toda a encosta que desce do Castelo pegando a freguesia de São Cristóvão / São Lourenço, mas apenas parte. Depois, parte do Benformoso, porque o sentimento diz que parte já não é bem Mouraria, talvez seja mais zona do Intendente; e parte de São Lourenço / São Cristóvão e passa para a zona da Madalena. É mais difícil determinar os limites sul e norte.” (Sr. Augusto)17
47Na verdade, a associação ou dissociação feita entre freguesia e bairro tem muito mais que ver com uma questão de constituição, pois ambos são percebidos como possuindo essências distintas, mas não necessariamente excludentes.18
48Note-se, nos exemplos que se seguem, como se dá a passagem de uma operação de separação entre freguesias e freguesia / bairro para uma que confunde e seguidamente engloba:
“Aqui é Mouraria, mas há aqui uma grande complicação. Porque, este lado (números pares da Rua do Benformoso) pertencia aos Anjos […], quando a minha filha nasceu […], no bilhete de identidade dela está como Anjos […]. Agora deste lado é Socorro e daquele é Santa Justa. A Mouraria vai, eles dizem que só vai até a Capela de Nossa Senhora da Saúde. Porque há aí uma grande confusão […], a Junta de Freguesia do Socorro e a Junta de Freguesia de Santa Justa […].” (D. Elisabete)19
“Aquela rua (das Olarias) também é Mouraria, mas aqui há uns anos pertencia aos Anjos, mas foi sempre Mouraria, dum lado é a Graça e do outro é Socorro, do lado que estou é Socorro.” (D. Júlia)
“A Mouraria vai até a Capela de Nossa Senhora da Saúde. Depois para baixo também é, mas agora chamam Martim Moniz, mesmo aqui esta parte ainda é, a Rua Fernandes da Fonseca. A Mouraria vai até onde era o Arco do Marquês de Alegrete […]. Aqui é Calçada da Mouraria, mas essa parte toda é tudo Mouraria, até ao Largo de Santo André, Largo do Terreirinho, Largo das Olarias é tudo Mouraria, tudo pertence ao bairro, pertence aqui ao Socorro, porque a Junta não era agora aqui como é […].” (D. Laura)20
“Onde vivo já não é Mouraria (lado com números pares da Rua dos Lagares), mas Graça. Mas do outro lado da rua é Mouraria (o lado da rua com números ímpares pertence à freguesia do Socorro). Mouraria e Socorro são duas coisas diferentes, porque a Mouraria engloba várias freguesias e o Martim Moniz faz parte da Mouraria, mas já é Santa Justa.” (Sr. Francisco)21
49As informações aqui referidas sugerem a vigência de uma complexa lógica que permite separar, agrupar, mesclar e confundir o espaço do bairro com o da freguesia (ver quadro 9). No fundo, sugerem que estamos a tratar um problema de interstícios e simultaneidades ou, como referido por DaMatta (1981, 1990, 1991, 1994), de relações.
50Num outro plano, as transformações urbanas ocorridas nos últimos anos revelam que a Mouraria ampliada é presentemente e socialmente construída mediante um conjunto variado de circunstâncias, intervenções e referências – históricas, políticas, administrativas, urbanas, sociais e culturais – que reconfiguram ou consolidam o processo de percepção do espaço.
51Na realidade, tais transformações mostram ainda que, de um espaço visto como grande, passa-se para um espaço percebido como cada vez mais ambíguo. Isto porque, por um lado, a destruição da Baixa da Mouraria, nos anos 40 do século XX, e a redefinição dos limites administrativos das freguesias, em 1959, foram acontecimentos que influenciaram a percepção da extensão do bairro. Observe-se, assim, que a área destruída e antes pertencente à freguesia do Socorro passou a pertencer à freguesia de Santa Justa. O que de certo modo justifica que, para muitos moradores nascidos antes da destruição da parte baixa do bairro, a atual zona do Martim Moniz seja Mouraria sem ser muito bem, mas com certeza já foi mais Mouraria. Por outro lado, a presença no bairro de um gabinete técnico de reabilitação urbana e a existência de uma área de intervenção afecta às atividades desse gabinete também têm repercussões na forma como o bairro é visto, consolidando ou alterando as percepções do espaço.
52A Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística da Mouraria foi criada pelo Decreto Regulamentar n.º 61/86, de 3 de novembro. Inicialmente, essa área abrangeu parte das freguesias de São Cristóvão / São Lourenço e Socorro. Seguidamente, em 1992, através do Decreto Regulamentar 6/92, de 18 de abril, foi acordado o alargamento dessa área crítica que passou a englobar o restante das freguesias de São Cristóvão / São Lourenço e Socorro, e parte das freguesias da Graça, Anjos e Santa Justa. Portanto, a área afecta à ação do Gabinete Local da Mouraria (GLM) excede as conceções mais otimistas de uma Mouraria que ocupa “isso tudo”, constituindo uma espécie de Mouraria superampliada.
53Repare-se ainda que a dinâmica de reabilitação urbana implementada pelo GLM pressupõe um reconhecimento da área sob a sua alçada a partir da definição de determinadas prioridades de intervenção. Isto é, sendo essa área complexa e muito heterogénea, dir-se-ia que, antes da instauração das obras, ela é hierarquizada em função de um conjunto de critérios técnicos (data / período de construção dos edifícios / zona, estilo arquitetónico, estado de conservação do edificado, etc.). De modo que a área de intervenção é, então, subdividida e, face a tais critérios, numa mesma subárea são agrupadas as zonas que identificam algumas homogeneidades:22
“Estes mapas, dão uma ideia do carácter da urgência de intervir […]. Onde as pessoas têm maiores carências, onde por sua vez há laços de vizinhança maiores, por outro lado, há casas mais pobres e sem condições de salubridade e de conforto, […] e há pouca especulação e pressão fundiária porque os lotes são muito pequenos, e é isso que define as nossas prioridades de intervenção e é isso que define as diferentes zonas.” (Técnico do GLM)
54Considerando tais subdivisões técnicas, verifica-se que existe uma subárea que é reconhecida como núcleo histórico da Mouraria, podendo esse núcleo expandir-se para o interior da freguesia de São Cristóvão / São Lourenço. Mas, pelo que me foi possível constatar, tanto os moradores da Mouraria como aqueles que vivem no interior da freguesia de São Cristóvão / São Lourenço não enfatizam a ligação dessa última área com a Mouraria. Veja-se, a título de exemplo, os fragmentos de uma troca de impressões que tive com dois homens, com aproximadamente 65 anos, que se encontravam sentados à frente da Igreja de São Cristóvão, isto é, já fora da freguesia do Socorro e do núcleo da Mouraria:23
“Aqui é o bairro da Mouraria?
1.º Senhor: Não, não. Aqui é o bairro de São Cristóvão, a Mouraria é mais para lá.
Mas aqui é o bairro de São Cristóvão ou freguesia de São Cristóvão?
1.º Senhor: Freguesia.
2.º Senhor: Bairro.
E onde fica São Lourenço?
1.º Senhor: São Lourenço é mais acima, é a rua acima. Vem São Cristóvão e depois São Lourenço, mas há anos está tudo junto.
E o Largo da Achada é na Mouraria?
1.º Senhor: Não, a Mouraria é para lá, aqui é São Cristóvão.
2.º Senhor: […] o Largo da Achada é São Cristóvão. O Largo da Achada e a Rua da Achada é tudo São Cristóvão e a Mouraria é depois de São Lourenço.”
55Deve-se aqui relembrar o facto de que grande parte da área afecta à freguesia de São Cristóvão / São Lourenço esteve no interior da cidade intramuros até finais do século XIX, ou seja, resguardada pela Cerca Fernandina. Não obstante o facto de nem todos os moradores terem consciência de que um troço dessa cerca passava na área e foi destruído, foi possível constatar que o seu local de atravessamento funciona ainda hoje como um marco simbólico de separação entre a Mouraria e a freguesia de São Cristóvão / São Lourenço. Este marco de separação simbólica adquire, entretanto, materialidade no que se refere às Escadinhas da Saúde – margeada por edifícios e um muro – que, ao funcionar como uma linha de demarcação, parece aludir ao que outrora foi um troço da muralha.
56No entanto, não se deve aqui concluir que a percepção espacial se tenha mantido inalterada após a instalação de um processo de reabilitação urbana. Neste sentido, o que se observa é que, apesar de as pessoas terem uma noção do território em que vivem a partir das suas próprias vivências, começam a ficar confusas ou a utilizar também divisões territoriais que são criadas pelos técnicos de intervenção ou pelos administradores do território urbano.
57A presença local do gabinete técnico ao longo dos anos tem contribuído para algumas alterações na forma como o espaço é percebido ou, como mais genericamente constatei, para a instauração de uma certa ambiguidade nesta percepção e que, muitas vezes, é expressa em comentários do género: “Aqui não é bem Mouraria. A Mouraria é mais para baixo. Mas agora, por causa do gabinete, parece que já é considerado Mouraria.” Sendo essa ambiguidade particularmente sensível nas áreas que se expressam como zonas intermediárias entre o bairro e outras zonas, e também entre a freguesia do Socorro e outras freguesias, como são os casos de parte da Rua Marquês de Ponte de Lima e da Costa do Castelo.24 Vejam-se os seguintes exemplos:
“(Com um senhor morador na Rua Marquês de Ponte de Lima, já na parte pertencente à freguesia de São Cristóvão / São Lourenço)
‘Ah! Agora com a área do gabinete não sei bem como é […], mudou tudo, assim como mudou com as freguesias, que antes era diferente […].’
(Com uma senhora moradora na Rua da Costa do Castelo)
‘Aqui não, a Mouraria é ali para baixo, aqui é a Costa do Castelo […], mas a menina bata aí (na porta do Teatro Taborda) que eles podem responder, porque eles estão aí com coisas (havia técnicos do gabinete no interior do teatro) e vai ver aqui também já é Mouraria. […] Mas acho que aí desse lado já é Mouraria, aí o Teatro já faz parte da Mouraria.’”
58Do anteriormente referido, pode-se dizer que a constituição de uma área crítica de intervenção contribuiu para o aumento da ambiguidade na percepção do espaço, corroborando ou debilitando as configurações socio-espaciais, e nesse senso, as identidades locais. A esse propósito, Costa (1999), ao discutir a importância dos gabinetes de reabilitação urbana como instituição supralocal (adotando a teorização desenvolvida por Anthony Leeds), relatou um acontecimento muito interessante acerca da influência das ações desses gabinetes na percepção da extensão do bairro. Em síntese, o caso referido pelo autor reporta-se ao período de discussão camarária sobre o alargamento das áreas de intervenção dos gabinetes quando foi colocada a hipótese de a freguesia da Sé ser incluída na área de intervenção do gabinete da Mouraria. Tendo esse rumor chegado aos ouvidos das populações, nesse ano a marcha da Mouraria saiu com um arco alusivo à Sé, o que prontamente foi incompreendido pela população de Alfama que associa a zona da Sé a esse bairro e, por isso, a representava na sua própria marcha. Posteriormente, ficou decidido que a freguesia da Sé não seria abrangida na área de intervenção do gabinete da Mouraria, mas sim na de Alfama e, assim, a marcha da Mouraria não voltou a representar a Sé na sua marcha. Conforme o autor, o sucedido sugere:
“[…] como os mecanismos culturais do ritual podem, na rivalidade interbairrista, ser estrategicamente utilizados na disputa pela apropriação de símbolos e de espaços relevantes. E mostram como a intervenção de instâncias institucionais supralocais […] pode reforçar ou fragilizar construções identitárias locais, induzir processos de reconfiguração de identidades de bairro ou ser usada neles.” (Costa 1999: 330)
Quando a Mouraria é só “esse bocadinho”
59A ideia de que o bairro é “grande” ou “isso tudo” costuma, entretanto, ser mediada por frases como “apesar de que, a Mouraria mesmo […], agora é só esse bocadinho”, “tudo isso é, mas o centro é aqui, é só isso”. Como se o território fosse imaginariamente organizado a partir de um centro:
“É, aqui é Mouraria, isso tudo é Mouraria. Socorro e bairro da Mouraria. As Olarias […], é tudo Mouraria; mas quer dizer, o centro é aqui (estávamos na Rua João do Outeiro), é esta parte, aqui é que é o centro da Mouraria. Mas isso tudo é histórico e as Olarias também. Ali no Martim Moniz também é Mouraria, até tem um centro com o nome do bairro, […] o Martim Moniz e tudo aqui é Mouraria e o centro até tem o nome Martim Moniz […].” (Sr. Pereira)25
60A percepção do bairro a partir de um centro e zonas que o envolvem, permite considerar a hipótese de um imaginário que organiza hierarquicamente o espaço. Essa hierarquização alude à construção local de uma espécie de escala na qual as áreas mais afastadas ocupam uma posição periférica relativamente à Mouraria-Mouraria: “Bem, as Olarias apesar de ser Mouraria, assim como o Poço do Borratém, que não é bem Mouraria, mas é Mouraria” (Sr. Sebastião).26
61Neste sentido, o ponto mais alto dessa escala seria o centro do bairro. Centro esse vital para a definição da ideia de bairro, sendo inclusivamente designado como o seu coração. No sentido contrário, dir-se-ia que o ponto mais baixo dessa escala é percebido como sendo os arredores do bairro. Veja-se o depoimento abaixo:
“As demolições levaram as pessoas para estes bairros que fizeram, para Chelas, e outros lados assim, e depois isso começou a dispersar e ficou aqui então […]. A Mouraria de hoje, que está reduzida aqui há um bocadinho. Bem, a Mouraria é grande mas o centro, o coração da Mouraria é só esse bocadinho. Porque a Mouraria vai da Rua da Amendoeira, vai até ao Intendente, vai até ao Poço do Borratém. Mas tudo isso já é […], como é que eu hei de explicar […], a gente já começa a chamar arredores a isso. Porque a Mouraria, hoje, estamos concentrados só neste bocadinho da Rua do Capelão, Rua João do Outeiro, Rua da Guia, Rua da Amendoeira, este bocadinho daqui da Rua do Benformoso, é onde é chamado o coração da Mouraria. Porque aquela que se chamava a Rua dos Canos, Rua dos Álamos, havia ali a Igreja do Socorro, onde eu fui batizado, era ali onde há aquele Centro Comercial novo, o da Mouraria, ali havia uma igreja […]. É Mouraria também, e pertence à Junta da Freguesia do Socorro. Mas […], como é que hei de dizer, já é arredores do coração da Mouraria.” (Sr. Paulino)
62De um espaço visto como grande (“isso tudo”) transita-se para um espaço percebido como pequeno (“esse bocadinho”) onde o centro é valorizado simbolicamente. Essa transformação parece ser estrutural na forma como o bairro é concebido. Se no passado o centro do bairro era percebido como grande, no presente é somente a sua periferia que parece deter essa aptidão. Na explicação dessa espécie de retração espacial do bairro, os indivíduos mais velhos, sobretudo, referiram-se à destruição da Baixa da Mouraria nos anos 40-50 do século XX. O que permite considerar uma outra hipótese também bastante plausível: a de que antes a Baixa da Mouraria era simbolicamente valorizada como centro do bairro. O que, num outro plano, ajuda a compreender melhor por que razão, para alguns indivíduos, a zona do Martim Moniz passou a ser percebida, entre outros aspectos, como periférica.
63A continuidade histórica de um centro que, por sua vez, é consideravelmente próximo do território que outrora definiu o núcleo do arrabalde mouro também contribui para a consolidação da sua valorização simbólica. Essa permanência reflete-se no território físico da Mouraria, na singularidade da sua malha urbana como, curiosamente, na própria continuidade da designação nominal do bairro.27 Para além de conferirem uma importância patrimonial ao bairro, essas evidências permitem distingui-lo das áreas envolventes como sendo um espaço mais histórico e como o espaço de fundação do bairro. Neste sentido, muitas vezes, é utilizada a expressão “núcleo primitivo”: “A Mouraria é desde quando se entra na Rua do Capelão até lá acima, vamos lá ver, a Marquês de Ponte de Lima, o Largo das Olarias. Aqui o Benformoso é menos antigo, nota-se pela construção, que é diferente. A Mouraria é aqui este núcleo primitivo” (Sr. Constantino).28
64O reconhecimento da importância patrimonial e histórica da Mouraria reflete-se na própria valorização municipal do seu património urbano. Essa consideração é, por exemplo, constatável na utilização do nome do bairro na designação do gabinete de reabilitação urbana e da sua área de intervenção, como no reconhecimento da Mouraria como bairro histórico da cidade.29 Mas, sobretudo, é interessante notar que os técnicos do gabinete da Mouraria, apesar de evitarem utilizar a noção centro,30 consideravam que o núcleo histórico da Mouraria possui um núcleo primitivo. Na verdade, porém, esse núcleo primitivo corresponde àquilo que mais normalmente é reconhecido como sendo o próprio centro do bairro, a par da sua equivalência como o espaço de fundação da Mouraria. Entretanto, para os moradores a relação centro / espaço de fundação respeita à invenção do bairro como um espaço tradicional e típico que, por sua vez, se repercute no processo de emblematização da Mouraria; nas representações técnicas, a relação núcleo primitivo / espaço de fundação respeita à sua invenção como bairro histórico, repercutindo-se no processo de valorização do património urbano.
65Observe-se ainda que a antiguidade do núcleo do bairro se reflete nas situações de degradação do tecido edificado e na falta de recursos socioeconómicos por parte da sua população. O que, sob uma ótica política, administrativa ou intervencionista, transforma esse núcleo numa das áreas mais carenciadas da freguesia do Socorro e da área de intervenção do GLM: “Eu entendo por centro a Rua do Capelão, Largo da Severa, Rua da Guia, Beco dos Três Engenhos, Beco do Jasmim e Rua João do Outeiro. É toda essa zona o centro, que é o aglomerado de gente de muitas carências” (Presidente da Junta de Freguesia do Socorro em 1998).
66A valorização do núcleo do bairro também é, em parte, reforçada por ele se constituir como o próprio centro simbólico da freguesia do Socorro, encontrando-se aí localizada a sua sede (Rua da Mouraria). A íntima ligação entre freguesia e bairro é manifestamente expressiva, por exemplo, numa placa colocada na via pública (retirada em meados de 1999 por motivo de obras) onde estava assinalado o nome da freguesia e, logo abaixo e em letras destacadas “Bem-vindos à Mouraria”; ou ainda na publicação comemorativa dos 400 anos da freguesia e cujo título é “Socorro – freguesia mourisca, berço do fado” (Mendes 1996).
67Acerca da forma como o espaço era percebido, foi elucidativo ter constatado junto das crianças que ali residem a existência de uma área que podiam percorrer e brincar livremente sem o acompanhamento de indivíduos mais velhos, e que tal área tinha correspondências com o que era percebido como o centro do bairro. É claro que essa área estava implicitamente acordada entre tais crianças e os seus pais ou responsáveis, bem como correspondia à área onde “aqui todos se conhecem” sendo, assim, uma zona de intenso controlo social, pois caso as crianças ultrapassem os limites territoriais dessa área são prontamente identificadas pelos vizinhos e possivelmente repreendidas, excetuando-se aqui as vezes em que seguem o caminho da escola, já fora do perímetro da freguesia do Socorro, para onde costumam ir em grupo. É claro, ainda, que as crianças percebem o espaço de forma distinta dos adultos, e enquanto os adultos definiam o espaço a partir de um centro, para as crianças tal, na verdade, correspondia à área onde lhes era permitido ir desacompanhadas.
68Procurei, então, observar os locais de brincadeira destas crianças para compreender até onde lhes era permitido ir. Verifiquei que às crianças mais novas não era permitido ir sozinhas ao Centro Comercial da Mouraria nem tão-pouco ao Metro. Aquelas que observei andarem sem o acompanhamento de adultos, sobretudo na estação de Metro do Martim Moniz ou mesmo em outras estações do metropolitano, foram as mais velhas, possivelmente acima dos 14 anos. Para clarificar até onde ia esse território de brincadeira, resolvi perguntar quais eram os limites dessa área. Estávamos no Largo da Guia, quando o João (12 anos) e o Nuno (11 anos) me esclareceram que a zona onde as crianças dali costumavam brincar correspondia à área que circundava o ponto onde estávamos. Solicitei-lhes, então, que percorrêssemos esse território de brincadeiras e constatei que os seus extremos eram definidos pelos seguintes eixos de atravessamento viário e pedonal: largo em frente da Capela de Nossa Senhora da Saúde, Rua da Mouraria, Rua dos Cavaleiros até o Largo do Terreirinho, Rua da Amendoeira, Rua Marquês de Ponte de Lima até às Escadinhas da Saúde e daí novamente ao largo em frente à capela. Como resultado desse percurso, dei-me conta de como era incrível a correspondência entre o território de brincadeiras infantis e aquilo que muitos indivíduos haviam definido como sendo o centro do bairro, onde as Escadinhas da Saúde funcionam como um discreto marco de separação entre Mouraria e São Cristóvão / São Lourenço, a Calçada de Santo André / Rua dos Cavaleiros funciona como uma fronteira entre Mouraria e Olarias, e a Rua Marquês de Ponte de Lima (ás vezes também a parte inferior da Costa do Castelo) também é um marco de separação entre o bairro e a zona da Costa do Castelo.31
69Assinale-se que frases como “eu sou da Mouraria”, “eu nasci na Mouraria”, “nasci no hospital, mas fui criado aqui”, “os meus pais já eram daqui”, “toda a minha família é daqui”, “nós crescemos aqui”, “isso aqui é como uma aldeia, é tudo família”, “aqui é a minha terra” são exemplos manifestos da valorização simbólica do centro do bairro. Observando-se ainda que quem assim se expressava eram aqueles que estabeleciam uma vinculação social, espacial e territorial com esse centro. Aqui, nota-se que o núcleo do bairro desperta nos seus moradores um sentimento de pertença ao lugar. Como referiu o Sr. Paulino: “Eu de hoje para amanhã se me tiver de ir embora daqui, para mim vai ser uma deceção, vai ser uma morte, para mim vai ser uma morte adiada eu ter que ir-me embora daqui!”
70No entanto, junto daqueles que vivem nos arredores do núcleo do bairro, o sentimento de pertença territorial não existe necessariamente ou não se define com a mesma intensidade. Nestes casos, a identidade territorial é mais difícil de ser determinada, sobretudo porque é mais ambígua. Verifiquei ainda que o reconhecimento de uma dada área como centro do bairro é mais generalizada do que a identificação dos seus arredores, cuja percepção é mais fluida e maleável. Como também observei que os moradores do núcleo do bairro são quem reconhece a circunvizinhança como arredores, mas quem aí vive não se reconhece necessariamente nessa designação (ver quadro 10).
71Constatei ainda que, embora haja alguma generalização no reconhecimento do centro da Mouraria, tal não significa dizer que a sua valorização seja um dado pacífico: à medida que contactava com os moradores das áreas circundantes, o centro também era conotado de forma depreciativa devido à sua má fama. A título de exemplo, veja-se como a D. Carolina – aproximadamente 60 anos, secretária, casada e com dois filhos adultos, nascida no bairro da Lapa e residente há 36 anos nas Olarias, com representatividade nas instituições e associações locais –, após ter confessado que foi “pela primeira vez às ruas mais castiças da Mouraria não faz ainda cinco anos”, abrangeu toda a freguesia do Socorro, e por sua vez também as Olarias, na ideia de Mouraria, para seguidamente, a partir de uma valorização da situação dos oleiros em detrimento do personagem mouro expulso, relacionar as ruas mais castiças do bairro com a imagem de gueto, como se assim fosse indiciada uma espécie de inversão simbólica na percepção do centro:
“As Olarias é Mouraria, porque está englobada na freguesia do Socorro e é Mouraria, e eles, os moradores lá de baixo é que estão convencidos que só é a rua do Capelão e aquelas que estão mais próximas que é Mouraria […], porque as Olarias também tem uma origem histórica bonita, pois enquanto a Mouraria é para onde foram os mouros expulsos, as Olarias era um lugar onde viviam os oleiros. Mas eu até acho aquela parte lá de baixo mais castiça, aqui é parte alta e lá em baixo […], como hei de dizer […], aquilo é um gueto por causa do negócio da droga, não em todo lado, nem toda a gente, mas as pessoas aqui de cima tem medo de ir lá em baixo, ali na Rua da Amendoeira, que horror!” (D. Carolina)
72O livro Notícia Histórica do Bairro das Olarias, da autoria de António L. Farinha (1932), é uma referência para alguns dos moradores das Olarias e, como tal, também foi lido pela D. Carolina, que susteve a sua opinião junto de um exemplar e assim me mostrou como as “Olarias também tem uma origem histórica bonita”. Nesse livro, as Olarias é referido como um bairro situado entre as “ruas da Bombarda e Senhora do Monte, Calçada de Santo André e dos Cavaleiros e a Rua do Benformoso” (Farinha 1932: 10). Observe-se, entretanto, como o autor diferencia as Olarias da Mouraria, depreciando essa última devido à sua condição de antigo arrabalde mouro da cidade:
“[…] não fazia parte do Bairro das Olarias a visinha Mouraria, simples arrabalde da cidade no tempo em que foi concedido aos mouros por D. Afonso Henriques […] Os limites mouriscos confinavam com a actual rua do Terreirinho, Calçada de Santo André, Coleginho, Escadinhas da Saúde, Rua e Calçada da Mouraria, concentrando-se o casario musulmano especialmente nas actuais ruas da Amendoeira e do Capelão, fora das muralhas levantadas por D. Fernando.” (Farinha 1932: 11)
73A zona das Olarias é, do ponto de vista da morfologia urbana e da própria topografia, relativamente distinta do núcleo da Mouraria, até porque entre uma área e outra existe uma espécie de área intermédia que é constituída pelas travessas do Jordão e do Terreirinho (situadas entre a zona das Olarias e o Largo do Terreirinho / Rua dos Cavaleiros / Calçada da Mouraria, correspondendo à antiga zona dos lagares). A par da maior proximidade geográfica com o centro da Mouraria, essas travessas ainda têm muitas similaridades morfológicas e construtivas com o centro do bairro, ao contrário do resto das Olarias. Verifiquei, assim, que muitos daqueles que vivem nessas travessas reivindicavam mais facilmente a sua pertença ao bairro da Mouraria. Realmente, existe uma maior ambiguidade ou diluição da ligação à Mouraria conforme a proximidade com as Olarias, que é, inclusivamente, reconhecido por alguns moradores como um bairro distinto.
74Verifiquei ainda que, no que concerne a área da freguesia de São Cristóvão / São Lourenço, o sentimento de pertença à Mouraria também se manifestava de forma ambígua. A título de exemplo, observe-se que um representante dessa Junta de Freguesia definia essa zona da freguesia de São Cristóvão / São Lourenço como bairro da Mouraria sempre que estava em causa a degradação do tecido edificado, o envelhecimento da população, as dificuldades económicas, a morfologia urbana, a história, a marcha e as festas populares. No entanto, esse mesmo interlocutor quando se referia a problemas sociais cuja imagem lhe sugeria uma possível depreciação da área – como a toxicodependência, a prostituição ou os sem-abrigo –,demarcava-se da freguesia do Socorro e não da Mouraria, para seguidamente estabelecer ligações com a Baixa.32
75Apesar de alguns dos problemas sociais supracitados serem manifestamente visíveis na freguesia do Socorro, é de considerar que eles não são exclusivos dessa área, alastrando por toda aquela zona da cidade. Porém, não foi tanto a existência ou não de problemas sociais ou de relações lúdicas entre essas áreas aquilo que mais chamou a minha atenção, mas sim a dualidade na percepção do espaço. Recorde-se que a elasticidade do lugar (Agnew 1997) confere aos seus limites uma maleabilidade que é constantemente manipulada, concorrida, ativada, acionada, utilizada estrategicamente e contextualmente (Costa 1999).
76Embora alguns indivíduos procurassem distanciar-se do núcleo do bairro, não estabeleciam uma dissociação radical, desse modo garantido a possibilidade de tirar proveito simbólico do reconhecimento de ser da Mouraria, sempre que essa situação fosse conveniente. Essas situações de conveniência simbólica repercutem-se, por exemplo, na validação da importância histórica e patrimonial, na Procissão de Nossa Senhora da Saúde, nas festas e marchas populares. Mas também no que respeita aos conflitos relativos à validação dos próprios símbolos do bairro. Por exemplo, a D. Carolina insinuou que as pessoas “lá de baixo”, referindo-se ao núcleo da Mouraria, somente viam a “origem do bairro no fado e na Severa”, salientando que também havia mais coisas como é o caso dos oleiros, desse modo validando a importância da história das Olarias, mas sem se desvincular da Mouraria. Interessante ainda é o comentário da D. Guilhermina33 em que, ao enfatizar o seu gosto pelos arraiais populares e a sua “paixão” pela marcha da Mouraria, onde o seu sonho máximo era ver a filha desfilar, comentou que os arraiais normalmente são feitos “lá em baixo” e por “causa disso juntavam muitos sem-abrigo”, pelo que “não há aquele ambiente que vimos noutros sítios”, salientando em seguida que não via razão para não se realizarem os arraiais no Largo das Olarias já que, afinal, esse era “um bom lugar”.
77Tanto as Olarias como São Cristóvão / São Lourenço não têm rituais de destaque, marcha nem arraiais populares, de modo que aqui as situações de conveniência simbólica são particularmente expressivas nos conflitos ou na rivalidade interbairrista, onde é sobretudo viva a rivalidade face ao bairro de Alfama e Castelo, ou seja, com as “marchas de territórios limítrofes” (Costa 1999: 157). Contudo, observe-se ainda que esses conflitos estruturam um complexo processo de singularização e demarcação, mediante uma lógica mais abrangente no que respeita ao resto da cidade. Na verdade, o que se torna interessante aqui é a existência de dualismos irredutíveis e de conflitos estruturais, como tão bem referiu DaMatta (1994).
78Questionados sobre o que diferenciava o centro do bairro dos seus arredores, moradores do núcleo do bairro, tiveram respostas similares que permitiram verificar que é sobretudo ao nível das relações sociais que as diferenças são percebidas. Veja-se como se referiu o Sr. Paulino:
“Como lhe disse, o coração da Mouraria é aqui, e o resto… não sei se a senhora conhece o Intendente… aquilo está! Então, também faz parte da Mouraria, mas a gente nunca considerou aquilo parte da Mouraria, derivado à má fama sempre que aquilo para ali teve. Então, Mouraria sim, consideramos aqui Olarias, Terreirinho, aqui a Calçada Agostinho de Carvalho, Rua do Benformoso, mas já é, como hei de dizer […], já não havia aquela amizade como havia aqui, a gente estava sentado à porta uns dos outros, estávamos ali sentados no largo com os cobertores, uns a cantar, depois contavam-se anedotas […]. Naquele tempo, quando eu era miúdo, também isso hoje está tudo mudado, até o tempo está mudado, então, a gente dormíamos ali e para passar o tempo […].”
79O sublinhar da má fama do Intendente – intimamente relacionada com a prostituição – visa sobretudo enfatizar a familiaridade ou a domesticidade do núcleo do bairro. Isto é, ao Intendente é imputado uma série de atributos de pendor negativo que, ao permitirem a sua desfamiliarilização, o colocam sob suspeição, despertando temor, reservas e distanciamento social. De modo que ao Intendente é associada a ideia de mundanidade, o que em outras palavras significa dizer que esse é um espaço a evitar, sendo um território segregado e estigmatizado.
80Mas má fama é um atributo que também é imputado ao núcleo do bairro da Mouraria. De modo que, com o intuito de se distanciarem dos sinais que contribuem para a sua estigmatização, os moradores procuram ancorar-se numa lógica social e simbólica que permite a invenção da permanência desse núcleo como espaço residencial e domesticado. Sob esse prisma, pareceu-me que aquilo que é ressaltado se refere à união, emoção e ao próprio sentimento de pertença territorial. E aqui o mito da Severa detém um contributo fundamental. Isto porque, ao facultar a transformação dos personagens mundanos de outrora em personalidades heroicas, viabilizando a integração e a idealização deles a partir da retórica da naturalização, renovação e repetição, é acionada uma lógica simbólica que permite a distinção entre os espaços mundanos de outrora e os do presente e que, por seu lado, se encontram nas imediações do núcleo do bairro. Nessa ótica, o que aparentou ser ressaltado é a dissociação, a condenação e a exclusão, como se assim fosse possível a invenção de um espaço transitório que, sendo problemático, é percebido como liminar, conflituoso, contraditório e perigoso.
81Repare-se ainda que, apesar de a Mouraria ter sido um dos espaços preferenciais da Lisboa boémia, e mesmo encontrando-se essa imagem presente em muitas das representações do bairro, tal é percebido pelos moradores como algo que faz parte do passado. Observe-se aqui que esse passado é idealizado, como se a prostituição de outrora fosse, de certo modo, mitificada ao contrário do que se passa com o tempo presente, em que parece ser desfamiliarizada, excluída e percebida como fazendo parte das regiões liminares. Tais operações socio-simbólicas revelam ainda um aspecto fundamental a respeito do espaço percebido: quem tem culpa da má fama da Mouraria são os outros e esses, normalmente, encontram-se em regiões periféricas, de passagem ou resguardadas.34 Mas, como nos mostrou DaMatta (1991: 51), “esses espaços eternos e essas zonas problemáticas fazem parte de uma estrutura social que necessariamente inclui espaços e temporalidades permanentes, a operar em todos os níveis da sociedade”.
82Mas devido à proximidade geográfica do núcleo do bairro com o Intendente, verificou-se que essa zona é considerada como território da Mouraria – no seu sentido ampliado. Observe-se, aqui, que essa admissão territorial advém sobretudo da proximidade física que existe entre esses dois territórios. Neste sentido, é recorrente afirmar que essa construção sofre interferências de uma rede de relações sociais constituídas com base nas regras sociais de diferença e diferenciação. O que significa dizer que, estando em causa os atributos de caracterização social e espacial, são criadas categorias socio-espaciais que servem para sustentar distinções e contrastes (Low 2000).
83Contudo, apesar de os moradores do núcleo do bairro imputarem má fama ao Intendente, não necessariamente consideram o restante da envolvência do núcleo como mundana. Mas as distinções sociais também existem e são salientadas. Essas distinções são sobretudo expressas em termos de uma maior ou menor relação social entre vizinhos e que, numa outra perspectiva, permite identificar o núcleo do bairro como um contexto mais bairrista do que os seus arredores. Veja-se como a D. Guilhermina se referiu:
“Apesar de que onde eu vivi não tinha muito a ver com a zona da Mouraria, portanto, a chamada Rua do Capelão, aquela zona ali de baixo. Mesmo aqui a Calçada [Agostinho de Carvalho], nunca tivemos muito a ver […], há assim um género, como é que eu hei de explicar […], acho que a zona está separada mesmo, porque as pessoas da Mouraria são as pessoas bairristas, são aquelas pessoas que vendem, apregoam as coisas, enquanto aqui esta zona já não. Nós aqui já não temos nada disso, é um meio mais calmo, apesar de ser Mouraria mas é diferente, porque eu achei sempre, […] nunca achei muito bem, por exemplo, eu conheço muito bem Alfama e eu acho que Alfama é Alfama, as pessoas são muito unidas em Alfama, enquanto que aqui é diferente, portanto, esta zona não se junta com a zona lá de baixo, é muito engraçado […].”
84Os dois depoimentos supracitados servem para demonstrar que o espaço percebido se confunde com a própria ordem social. Portanto, para a D. Guilhermina o núcleo da Mouraria, embora fazendo parte do bairro, é onde as pessoas são mais bairristas e próximas umas das outras. Mas, nas entrelinhas do seu depoimento, mostra-nos que nesse núcleo existem mais confusões e conflitos por contraste com a calma das Olarias e, mesmo concebendo as Olarias como Mouraria, enfatiza as diferenças entre essas duas áreas recorrendo à imagem do que lhe parece ser o bairro que simboliza a união social e espacial: Alfama. O Sr. Paulino, por seu lado, ao dissimular as confusões e os conflitos entre vizinhos, enfatiza a amizade e a união social por contraste com as Olarias. No entanto, repare-se que ao enfatizar tais atributos não só distingue entre a ambiência do núcleo do bairro e dos seus arredores como também demarca o passado do presente, indiciando que os próprios atributos que singularizam o centro do bairro se encontram em constante processo de reconfiguração.
85A percepção de um território através das noções de centro e arredores, inicialmente leva-nos a pressupor que tal se define como uma relação de oposição. No entanto, o que constatei é que o centro como os arredores são paradoxalmente complementares, inclusivos e diferentes. Importa aqui realçar essa constatação para demonstrar como o investimento simbólico no bairro da Mouraria se encontra fundado numa lógica relacional onde todas as mediações são possíveis, existindo desse modo diferenciação e reciprocidade, simultaneidade e intersticialidade. Daí poder-se aqui também considerar que a relação entre centro e arredores se encontra marcada pela ambiguidade e por uma certa ambivalência.35 O que, em outras palavras, significa dizer que a Mouraria tanto é percebida como um território complementar e inclusivo como é concebida a partir de um conjunto de atributos que permitem a sua diferenciação.36
86O que sobretudo constatei é que as demarcações espaciais se apoiam em lógicas complementares e de diferenciação. E mais: essas lógicas são mais dependentes das relações sociais e dos valores em causa do que de fatores de ordem geográfica e urbanística.
Quando o “bocadinho” é um espaço de ambiguidades e ambivalências
87Importa aqui referir que o núcleo do bairro é percebido como um espaço que se expressa a partir de múltiplas valências e não somente como um contexto marcado pela atividade residencial. Observo que aqui não faço referência a uma percepção técnica e urbanística do espaço,37 mas à forma como esse é percebido pelos seus moradores.
88O espaço parecia ser entendido de forma segmentada, como se o núcleo do bairro se desmultiplicasse em vários outros, sem propriamente identificar uma separação. Isto é, defrontei-me com um lugar que é percebido a partir de um centro que engloba outros pequenos centros a que chamei pontos nodais, inspirando-me na ideia de focal point conforme sugerida por Hunter (1974).38 Alguns desses pontos têm maior visibilidade, para além de parecerem ter um papel mais importante nos processos de consolidação e reconfiguração da imagem simbólica do bairro, de modo que aqui apenas refiro esses pontos que me pareceram mais representativos, salientando ainda a íntima ligação entre eles e a atividade comercial, que tanto pode ser legal como ilegal.
89Um dos pontos nodais situa-se entre a Rua da Amendoeira, a Rua Marquês de Ponte de Lima e o Largo do Terreirinho. O que caracteriza esse ponto são, essencialmente, as atividades associadas ao tráfico e ao consumo de droga. Essa atividade alastra ainda irregularmente pela Mouraria ampliada, onde existem pelo menos dois outros locais de venda que, apesar de menos visíveis, têm algum destaque: o Largo das Olarias e o Largo de Santo André. Repare-se, entretanto, que o ponto nodal aqui referido é aquele que contribui para a depreciação do bairro. O incómodo causado pela presença dessa atividade é, por exemplo, patente no depoimento do Sr. Paulino:
“Temos o mercado da droga. Estamos aqui num local, que é ali em cima, na esquina da Rua da Amendoeira, que é um mercado […], embora a polícia faça constantemente rusgas e tudo, mas é difícil de acabar […]. Até nem gosto de ver, sei porque às vezes tenho que lá ir e vejo-os todos lá em cima, e os carros, e ás vezes, até têm entradas nuns buracos […]. Numa ocasião, eu ainda estava a trabalhar, há coisa de dois anos, eu levantei-me e fui ao padeiro que era na Rua dos Cavaleiros, e foi assim que me assustei, andava aí um helicóptero que era policial e que andou aí a tirar a topografia da região e depois andavam aí os polícias armados e com cães. Arrombaram as portas onde vendiam a droga, levaram balanças, droga e tudo, então lá foram os vendedores, tinham tudo cercado […] e eu quando cheguei ali dei meia-volta e vim me embora porque não gosto de confusões.”
90Um outro ponto nodal localiza-se na zona de confluência dos eixos viários constituídos pelas ruas da Mouraria, Cavaleiros e Benformoso, existindo aí uma convergência de comerciantes – indianos, chineses, portugueses e africanos –, clientes do comércio, moradores, sem-abrigo e meros transeuntes. A princípio, esse ponto encontra-se intimamente associado ao comércio grossista, sendo de salientar que ao longo da história da Mouraria esse ponto sempre esteve associado à atividade comercial.
91As atividades relacionadas com o comércio grossista desenvolvem-se na continuidade dos eixos viários referenciados e alastram ainda pela Mouraria ampliada. Muito embora se confirme a confluência de indivíduos afectos ao comércio grossista neste ponto nodal, ele também se manifesta como um ponto de encontro e de desenvolvimento de sociabilidades por parte dos moradores do bairro, transeuntes e frequentadores assíduos da Mouraria como, por exemplo, é o caso dos sem-abrigo. De modo que as relações aí são inclusivas, simultâneas e consideravelmente intersticiais.
92Contudo, o que dizer da noção centro quando no bairro ela também remete para o sentido literal da expressão centro comercial? Na verdade, a especificidade das práticas sociais e dos indivíduos que frequentam o Centro Comercial da Mouraria (CCM), bem como a singularidade do seu edifício, permite que esse seja aqui concebido como um outro ponto nodal que também está relacionado com a atividade de revenda.
93Se no passado o sítio onde está o CCM era percebido como fazendo parte do centro do bairro, presentemente é entendido como um espaço específico e distinto, isto porque ao CCM é atribuído um estatuto de liminaridade que pode comprometer a imagem do bairro. Mas sob esse prisma, poder-se-ia considerar que os outros pontos nodais antes referidos também detém um estatuto de liminaridade. Porquê, então, a evidenciação desse estatuto relativamente ao Centro Comercial da Mouraria?
94Embora nos dois primeiros pontos nodais anteriormente referidos existam situações de liminaridade, relações intersticiais e simultâneas, é de considerar que ambos são atravessados e constituídos por indivíduos que não vivem no bairro, mas também por moradores, ao contrário do CCM.39 Dir-se-ia aqui que, a par das relações de ambiguidade, também existem relações de ambivalência na definição do estatuto do bairro, entretanto, não se pode dizer o mesmo do CCM, já que a sua liminaridade parece simbolizar o início de um novo estatuto (Gennep 1996; Leach 1978).
95Um aspecto que me pareceu fundamental é que, embora ao longo da história da Mouraria lhe tenha sido atribuído um estatuto de liminaridade que, sobretudo, se manifesta através da elaboração de um complexo processo de estigmatização territorial como anteriormente foi referido, simultaneamente existe um processo de emblematização que, para os moradores (os de “dentro”), pode ser comprometido pelas atividades, práticas e indivíduos ligados ao CCM. Pelo que a condição de liminaridade atribuída ao CCM parece, sobretudo, ameaçar o estatuto da Mouraria como um dos bairros emblemáticos da cidade, a par de ameaçar um estatuto residencial onde todos, a priori, se conhecem (ver quadro 11).
96A ideia de que o CCM pode comprometer a imagem do bairro é expressiva na maioria dos depoimentos recolhidos junto dos moradores. O relato do Sr. Paulino, por exemplo, é oportuno por estabelecer uma relação entre espaço problemático e desordem quando faz referência ao CCM:
“Aquela miséria toda ali em baixo, que nem são de cá do bairro e nós é que estamos a pagar as favas […], mas se vierem cá averiguar, não há ninguém cá do bairro. E o que nós consideramos aqui no bairro que desgraçou mais o bairro foi esse centro comercial […], é que trouxe para aqui muitos indianos, chineses, pretos, paquistaneses. Isso tem sido para aqui […], de vez em quando há ali desordens e coisas, que aqui na Mouraria falava-se da liga, faca na liga e tal, mas não havia desordens, nós éramos uma família aqui […]. Aquilo faz-me lembrar aquelas cadeias americanas, onde os presos andam ali assim […] Mas os problemas do CCM não saem dali. Porque há ali o posto policial (na Rua da Mouraria) e eles pela rádio chamam logo, e assim que há qualquer coisa eles chamam logo. Aquilo ali dentro do centro é […], outro dia fizeram um cerco ao centro e levaram cento e cinquenta e duas pessoas presas, apanharam droga, diamantes, armas e, então, levaram essa gente toda presa e depois é os não identificados, os imigrantes que não têm documentação, os africanos, os indianos, os chineses, aquilo é a concentração de todos eles ali, aquilo há lá zaragata e vem a polícia […]. Nunca foge para aqui.”
97Quando a voz era feminina, notei que o CCM era percepcionado como um espaço que desencadeava um sentimento de medo e, como tal, era perigoso:
“Outro dia veio uma senhora dizer que tinha medo de entrar na Mouraria, e eu lhe disse para ter medo é das pessoas cá fora [referia-se à Rua da Mouraria] e lá do centro [referia-se ao CCM], porque lá dentro [o centro do bairro] ninguém lhe faz nada.” (D. Aurora)40
“O Centro Comercial da Mouraria causa medo às pessoas porque quando lá chegam somente veem chineses, africanos e indianos, e o espaço ainda por cima é muito escuro, é um ambiente pesado […]. As pessoas são racistas, eu não sou e também não tenho medo, porque afinal não acontece nada. Ás vezes, os indianos e africanos brigam, mas é nos braços, pois estão nas esplanadas e de repente começam a discutir na língua deles, não se entende nada, e de repente começam a brigar, mas só os chineses é que usam facas. E, ás vezes, também há discussões com os ciganos.” (D. Manuela)
“É muito raro ir ao Centro Comercial da Mouraria, só mesmo na passagem para o Metro. Porque é assim, já não é a primeira, nem a segunda, nem a quarta vez que pais de crianças chegam aqui e ‘há uma ameaça de bomba no Centro Comercial da Mouraria’, quer dizer, uma pessoa fica com um certo receio não é?! Até de passar por perto, porque há muitas vezes que aquilo é fechado, que é cercado pela polícia, porque se julga que há muitas coisas ilegais lá dentro e é natural que haja, não sei, não estamos a ver […], mas depois é mentira, não há bomba nenhuma […], e já tenho lido em revistas e em jornais que o centro vai acabar, o que eu concordo, para já não gosto do monumento que está ali feito que isso veio tirar a beleza toda, porque realmente aquilo podia ser um espaço verde, que enquadrava muito mais do que com o monstro, se assim que se pode dizer, porque aquilo não tem nem pés nem cabeça.” (D. Guilhermina)
98A percepção do CCM como um espaço problemático levava ainda alguns indivíduos a designá-lo como gueto. Veja-se, por exemplo, como um comerciante brasileiro que teve um negócio no CCM durante aproximadamente ano e meio comentou o motivo da sua mudança de local de trabalho: “É que o Centro Comercial da Mouraria é um gueto. O primeiro andar é um gueto de africanos, sobretudo num dos corredores, o segundo andar é um gueto de chineses e indianos, e o terceiro é um gueto de chineses que, ainda por cima, atraem os ciganos […], e isso não atrai cliente.”
99É de notar que o CCM é um espaço que se situa muito próximo do núcleo da Mouraria e da Praça do Martim Moniz, já considerada como sendo arredores.41 Condições espaciais que, para além de outros aspectos, fazem inferência à sua posição ambígua e, possivelmente, explicam por que os indivíduos, sobretudo os residentes no centro do bairro, têm a necessidade de se demarcar dele do ponto de vista social e simbólico (ver quadro 12).
100Ao ter por referência Douglas (1976), pode-se aqui considerar que, em face da existência de linhas precárias, a ideia de poluição surge para as reforçar. Na verdade, não podendo os indivíduos modificar a proximidade física e social de um espaço percebido como problemático, são acionadas determinadas estratégias socio-simbólicas que os auxiliam a demarcar-se daqueles que frequentam o CCM. Tendo em conta que a poluição alude a desordem e que a impureza é aquilo que deve ser excluído, parece-me que enquanto o núcleo do bairro é percebido pelos seus moradores como um espaço seguro e ordenado, tenta-se evitar a inclusão do CCM devido a esse contexto ser visto como um espaço inseguro e desordenado.
101É possível considerar que é ao nível da demarcação social que se nota uma linha simbólica de separação, como se assim fosse possível aos indivíduos separarem a ordem da desordem, o conhecido do desconhecido e o seguro do perigo. Portanto, o território de intersecção é um espaço de ambiguidade onde existe uma zona descontínua entre segurança e perigo, ordem e desordem, sendo que qualquer ato pode comprometer. Como referiu Leach (1976: 46), o espaço de intersecção é uma zona de margem, havendo sempre alguma incerteza, sendo que “o cruzamento de fronteiras e limiares é sempre cercado de rituais, como também a transição de um status social para outro”. Esse espaço de ambiguidade pode ser um espaço de conforto e segurança, de transição pausada entre uma esfera e outra do espaço ou entre um estatuto social e outro, mas também pode ser um espaço de ansiedade e transgressão, de segregação e exclusão (Sibley 1997).
102Contudo, essa demarcação social pareceu-me ainda mais reforçada para quem vive na envolvência do núcleo da Mouraria. Recorde-se aqui que esse núcleo tanto podia ser percebido como emblemático ou como problemático, desse modo se explicando a forma como a proximidade com o CCM reforça as impressões de desordem e perigo (ver quadro 13).
103As noções de ordem e perigo foram aqui essencialmente utilizadas no sentido de salientar dois aspectos relacionados com o processo de construção e reconfiguração da imagem do bairro. Um primeiro aspecto, é que os moradores mais antigos, entre outras características, percebem o núcleo do bairro como o espaço onde todos se conhecem desde pequenos (nós).42 No entanto, mediante novos e diferentes processos de recomposição social e de reconfiguração da imagem simbólica, sentem-se confrontados com dinâmicas socio-espaciais que incrementam a desconfiança, já que o bairro passa a ser habitado e frequentado por indivíduos desconhecidos (outros) e tidos como de fora, como dinamizado por práticas distintas daquelas que, até então, faziam parte do seu universo socio-simbólico. O que pareceu ser percebido como comprometedor do espaço social e das práticas que, a priori, definiam o bairro.
104Será, então, a cidade quem se irá aproximar? Mas se os bairros antigos de Lisboa e, dentre eles a Mouraria, são a cidade e se a cidade também é os seus bairros, como explicar que quem se aproxima do bairro é a cidade?
105Como observou Noschis (1984), o bairro é um lugar social e mais limitado do que a imensidão da cidade, sendo de acesso imediato aos seus moradores. O bairro é, porquanto, um lugar onde se desenvolvem uma série de atitudes, valores e comportamentos circunscritos a uma determinada rede de relações sociais. Um lugar onde a rua é um pedaço do espaço que se coloca numa posição intermédia entre o público e o privado, daí a sua expressão como espaço semipúblico (Magnani 1998) e que, por outro lado, faculta a ligação entre casa-bairro por oposição ao universo abrangente da cidade. Mas, no caso da Mouraria, é pertinente considerar que a destruição de parte do bairro, seguida de uma série de dinâmicas sociais, económicas e culturais que fogem ao controlo da população local, diminuiu a distância entre a casa-bairro e a cidade. Claro que isso se verifica devido ao facto de a acessibilidade ao resto da cidade se ter tornado mais fácil. Mas o que aqui importa ressaltar relaciona-se, sobretudo, com o facto de que indivíduos, práticas e valores, a priori vistos como pertencentes à vastidão do universo urbano, passaram a fazer parte das dinâmicas locais e da configuração da imagem identitária do bairro. Verificando-se que embora os moradores mais antigos identifiquem os outros como alheios nos processos de configuração socio-espacial, ambos os comportamentos, atitudes e valores que permitem a invenção do nós e dos outros contribuem para a construção social das imagens da Mouraria.
106De volta, entretanto, à questão da percepção do espaço a partir de um centro, é interessante ainda notar como esse se desmultiplica em dois outros pequenos centros. Onde um deles é o coração do bairro e se define como um espaço circunscrito onde se projeta um sentimento de pertença e um bairrismo mais acirrado. Contexto onde a rua é um espaço semipúblico em que, a priori, não existe anonimato. Um outro centro pode aqui ser identificado através da ideia de coração do comércio de revenda.43 Um comércio em grande medida controlado por indianos, chineses, portugueses e alguns africanos, e que ali estão por motivos de conveniência económica e social já que, segundo os comerciantes contactados, a Mouraria é conhecida em todo o país por concentrar um comércio de revenda especializado em determinados artigos – quinquilharias, roupas, brinquedos e artigos de brinde. Mas aqui o espaço não é tão circunscrito e é percebido como uma zona comercial, sendo a rua um espaço público em que o anonimato existe. As diferenças permitem a criação de uma espécie de segmentação do espaço social do núcleo do bairro, tornando possível a coexistência de dois centros simbólicos.
107Contudo, uma observação mais cuidada revela que no coração do bairro nem todos se conhecem, existindo um relativo anonimato, como no coração do comércio nem todos se desconhecem. É possível encontrar indivíduos afectos ao comércio no núcleo residencial ou, melhor dizendo, no coração do bairro; e junto do centro onde predomina o comércio também é onde muitos moradores costumam estar sentados a conversar ou simplesmente a ver quem passa. Verifica-se, assim, que ambos os centros estão articulados e a rua tanto é um espaço semipúblico como público. Consideração que, numa outra ótica, confronta os moradores do bairro com a existência de linhas precárias de demarcação, reforçando as ideias de poluição (Douglas 1976), sobretudo porque a dimensão comercial e as dinâmicas que lhe são subjacentes muitas vezes parecem sobrepor-se à percepção da Mouraria como bairro popular.
108Num outro sentido, as linhas de demarcação, ao funcionarem como interstícios, também facultam a comunicação e a construção de relações simultâneas e complementares. Pelo que aqui ambos os centros se encontram simbolicamente justapostos, já que geograficamente falando tratam de um território contínuo. Neste sentido, apesar de ser marcante a influência das atividades e práticas sociais afectas à função comercial nos processos de reconfiguração simbólica e da imagem do bairro, é particularmente sensível verificar que existem intersecções socio-espaciais e culturais entre esses dois centros.
109Pode-se, assim, considerar que o bairro tanto é um lugar de referência social e simbólica para os seus moradores como é referência para um número diferenciado de outros indivíduos e frequentadores. Como observou Magnani (2000a), apesar de a categoria pedaço remeter para “um território que funciona como ponto de referência – e no caso da vida de bairro evoca a permanência de laços de família, de vizinhança, origem e outros”, isto não significa que esse espaço seja fechado e impermeável, pois é um espaço de passagem, podendo ainda ser um ponto de referência, encontro e troca para um número mais diversificado de frequentadores e utilizadores.
Espaço: linguagens e formas de orientação
110No sentido de identificar e fornecer indicações sobre a inscrição do território do bairro no espaço da cidade, no início deste capítulo inventariou-se uma série de referências espaciais e sociais que serviam como meio de orientação, desse modo auxiliando na localização da Mouraria. Posteriormente, foram explorados alguns dos aspectos relacionados com a forma como os indivíduos demarcam o espaço, tendo sido demonstrado como essa demarcação é mais dependente da rede de relações sociais e dos valores do que de fatores geográficos e urbanísticos. Em síntese, as referências e os limites assinalados permitem aos indivíduos ordenar e diferenciar o espaço, servindo desse modo como meio de orientação geográfica, social ou simbólica. O que, regra geral, respeita ao facto de que todas as sociedades disporem de referenciais de orientação, permitindo aos indivíduos encontrar (ou inventar) a sua própria localização no mundo (Lévy e Segaud 1983). E, assim, comecei a observar que, a par dos indivíduos recorrerem a certos limites como meio de orientação no espaço, tais referências davam expressão a uma espécie de linguagem que falava sobre o espaço social e que, traduzida, permitia compreender um pouco melhor como o espaço percebido é socialmente ordenado.
111De início, observei que sempre que me encontrava na envolvência do núcleo do bairro e perguntava a distintos indivíduos se ali era Mouraria, as respostas fornecidas desenvolviam-se em frases como: “Mouraria mesmo é mais ali para baixo, aqui é Mouraria também, mas ali é que é”, “aqui não é Mouraria, que é mais longe, é ali para baixo”, “está a ver ali o Martim Moniz […], depois ali o Centro Comercial da Mouraria? A Mouraria fica ali para baixo, por detrás do centro”, “aqui é Mouraria, mas a Mouraria mesmo é ali para dentro”, etc. Comecei, assim, a perguntar-me porque seria que quando os indivíduos eram confrontados com uma dúvida sobre a localização da Mouraria, mesmo admitindo que onde estavam era o bairro, davam-me indicações para ir mais “adiante”, mais para “baixo”, mais para “trás” ou mais para “dentro”?
112Com o passar do tempo, ficou claro que o núcleo do bairro é a principal referência para quem procura a Mouraria. Mas também fiquei esclarecida que por detrás das indicações que me eram fornecidas para chegar a esse núcleo existiam elementos de referenciação que aludiam uma percepção criativa e inventiva do espaço, como uma complexa escala de graduação, hierarquização e ordenação social do espaço. Na realidade, apenas havia dado início a um longo e moroso processo de aprendizagem acerca da rigorosa gramática de espaços no bairro da Mouraria, observando como as diferenças e contrastes eram demarcados e como tais demarcações implicavam ações e reações (DaMatta 1991: 56), e que no contexto deste trabalho importavam explorar.
“Em frente” e “atrás”
113A história urbana e social da Mouraria mostra como o bairro foi inventado e posicionado de forma a estar depois ou a seguir a algum outro elemento ou referencial com mais representatividade urbana: nas traseiras do Castelo de S. Jorge, por detrás da zona ribeirinha, atrás da Baixa Pombalina, etc. Mas, ao considerar que a cidade teve o seu centro no Castelo de S. Jorge e seguidamente na zona ribeirinha, isto é, que Lisboa se tinha transformado e reinventado, chamava-me a atenção o facto de que, a par desse processo de mudança, a Mouraria continuasse a ser indicada como um bairro que está nas traseiras de algo. Neste sentido, reparei que atualmente a Mouraria é referida como um bairro que continua a estar nas traseiras do Castelo, mas que também passou a estar por “detrás” do Centro Comercial da Mouraria, da Praça do Martim Moniz e da estação do metro do mesmo nome. Veja-se o fragmento de uma notícia: “[…] porque a Mouraria, o bairro dos mouros que galga a encosta até ao Castelo de S. Jorge, é mesmo ali por trás, ou seja, é aquilo que dantes se via e já não se vê por causa do centro do mesmo nome que tapa tudo” (Jornal de Notícias, Notícias Magazine, 14.09.97).
114É claro que tais elementos funcionam como referenciais urbanos, isto é, são indícios na paisagem que assinalam a aproximação com a Mouraria, sobretudo para um transeunte à procura de um bairro escondido no meio de uma encosta e rodeado de uma maioria de edifícios que não servem como indicação de destaque. No entanto, e regra geral, o que está na “frente” é, do ponto de vista cultural, social e simbólico, mais valorizado que aquilo que está nas “traseiras” – local de vergonha, depósito e acomodação – daquilo que, a priori, não deve estar visível. Essa inferência faz pensar nos processos de demarcação social e espacial que reforçam a segregação da Mouraria.
115Contudo, uma observação mais cuidada também permite tirar outro tipo de ilações. Estar na frente, ao implicar mais visibilidade, também infere um conjunto de situações e práticas inerentes à esfera pública do espaço. Por seu lado, as traseiras, ao estarem resguardadas, inferem um conjunto de práticas e situações mais próximas do domínio privado do espaço e, como aqui se fala de um bairro, também infere os pedaços do espaço associados a um domínio semipúblico, onde a casa se projeta na rua (Magnani 1998; Santos e Vogel 1985). Podendo as traseiras ser o local onde decorrem algumas práticas liminares e, por isso, estão resguardadas, há de se considerar que também é o espaço reservado às práticas quotidianas consideradas como menos públicas. Observe-se, entretanto, que as práticas liminares, como é o caso do tráfico e consumo de droga, encontram-se sobretudo concentradas nos pontos mais extremos do núcleo do bairro, nas suas regiões mais periféricas, já na sua saída: nas esquinas da Rua da Amendoeira / Rua Marquês de Ponte de Lima / Largo do Terreirinho, uma espécie de porta das traseiras.
116A “frente” da Mouraria, ou pelo menos do seu núcleo principal, pareceu-me ser a Rua da Mouraria. Daí, por exemplo, o incómodo que muitos sentem relativamente à localização do CCM que, percebido como um “mamarracho”, suscita a indignação por estar a encobrir o bairro.
117Como se fosse a própria face do bairro, a Rua da Mouraria parece funcionar como um espaço de intermediação entre a casa-bairro e o resto da cidade (ver figura 6). Desse modo proporciona uma passagem gradual de um espaço privado e semipúblico para um espaço percebido como público. O que, em outras palavras, significa a gradual diminuição do sentimento de territorialidade que, por sua vez, pareceu ser muito mais intenso por detrás da Rua da Mouraria, onde os movimentos, as ações e práticas, as conversas e os comportamentos inferem mais intimidade, domesticidade e interioridade. Nas traseiras, as crianças brincam, fazem-se grelhados, estende-se a roupa, tecem-se comentários privados, partilham-se utensílios, etc. A sensação de entrada num território distinto da envolvente e de que se invadiu território alheio advém, em parte, do carácter semipúblico das traseiras do bairro, ao contrário daquilo que se sente na Rua da Mouraria, e ainda nas ruas dos Cavaleiros e Benformoso. Pois quem é aquele que ousa olhar para dentro do bairro, da nossa casa, o mundo resguardado das traseiras?
118Sem explorar aqui em demasia as práticas de uso e apropriação social do espaço, que procurarei discutir mais adiante, julgo interessante referir duas situações em que existe uma nítida diferenciação entre as práticas nas traseiras e na frente, relativamente aos comportamentos femininos e masculinos, sobretudo no caso de indivíduos adultos.
119No que respeita aos homens, é expressiva a manifestação de um conjunto de práticas e sinais corporais que mais facilmente lhes permite a passagem do espaço privado / semipúblico para o público. Quando saem de casa, estão preparados para assumir qualquer compromisso fora do bairro ou dar a face no espaço da frente. Já no que concerne às mulheres, a passagem do privado e semipúblico para o público é mais intercalada, desse modo cumprindo mais rituais de transformação das expressões e sinais corporais.
120Durante o dia, em geral, os homens que não estão a trabalhar, muito dos quais reformados, sempre que saem de casa, estão vestidos de forma a poderem ir a qualquer parte da cidade sem necessitar de trocar as suas roupas. Fora de casa, costumam estar nas tascas locais, a conversar, jogar cartas e dominó, ou a beber um copo até à hora do almoço, ou então depois desse horário. Há duas tascas mais frequentadas, uma encontra-se no Largo da Guia e a outra no Largo do Terreirinho. Contudo, a Rua da Mouraria, sobretudo nos bancos públicos ali situados, é o espaço onde a concentração de homens é mais visível.44 Uma rua que ao dar a face bairro, de certo modo, demarca uma fronteira entre frente e traseiras, dentro e fora, definindo-se como o espaço mais público do bairro, até porque também é frequentemente atravessada, usada e apropriada por distintos indivíduos não moradores no bairro.
121Nas ruas internas do bairro assim como em casa, as mulheres estão com a mesma roupa, ao contrário dos homens. Quanto mais elas se encontram nos espaços que se definam por alguma interioridade, mais alto falam, mais os gestos são expressivos, mais roupa doméstica e discreta usam. Regra geral, essas expressões corporais manifestam-se de forma enfática até certas ruas – como a da Mouraria e dos Cavaleiros –, ou em outras palavras até certas zonas que já funcionam como interstícios entre o privado / semipúblico e o público. De modo que estar muito tempo na Rua da Mouraria implica outro tipo de comportamento, outro tipo de vestimenta e atrativos. Pelo que se não estão vestidas adequadamente para estar nessa rua, apenas passam ou ficam pouco tempo, pois a Rua da Mouraria infere a passagem da esfera semipública do espaço para a pública. Os homens que estão nessa rua, de um momento para outro vão até à Baixa Pombalina, tomam o autocarro ou o metro e seguem em direção a um lugar qualquer na cidade. As mulheres que reagem do mesmo modo estavam antecipadamente vestidas para esse efeito ou, então, necessitavam de ir a casa trocar de roupa.
122Sentada horas e dias seguidos nos bancos existentes na Rua da Mouraria, dei-me conta de que as mulheres que se dirigiam para a estação de Metro do Martim Moniz, que iam em direção à Baixa Pombalina, Rua da Palma ou Av. Almirante Reis, apareciam transformadas: maquilhadas, mala de mão e vestido expressamente arranjado, falavam mais baixo e os gestos tornavam-se mais discretos; e de volta, quanto mais próximas do centro do bairro, gradualmente voltavam a comportar-se como quem chega a casa. Pelo que de todas as práticas e expressões corporais que assinalam a passagem de dentro para fora, das traseiras para a frente do bairro e daí para o resto da cidade, as que mais chamaram a minha atenção foram, de facto, as práticas femininas.
123Mas nos momentos de festa e de arraial popular, e no período de procissão, enfim, nos momentos fora do quotidiano, as posições são invertidas, trocadas e deslocadas. Dando a sensação de que as esferas privada e pública, os mundos da casa e da rua, passam a relacionar-se, como referiu DaMatta (1990: 82), por uma dupla metáfora, onde o doméstico invade o público, mas também é por ele invadido, inventando-se aqui um tempo especial que permite a intermediação entre casa, rua, bairro e cidade. E, aqui, a Mouraria das traseiras e de dentro é quem passa a dar a face ao bairro.
“Dentro” e “fora”
124A impressão de entrada num espaço distinto da envolvente, num outro território que é localmente configurado como núcleo do bairro, pode ser traduzida pela noção de dentro. Essa sensação, em parte, reflete-se na morfologia física do território. Neste sentido, o facto de o bairro se encontrar numa zona em declive, ser densamente construído, possuir um traçado de ruas apertadas e sinuosas, com fracos níveis de acessibilidade e um fraco grau de abertura, permite um relativo fechamento do espaço. Pelo menos, por contraposição com a Rua da Palma, a Praça do Martim Moniz e mesmo as Olarias, cujas áreas são mais amplas, abertas e lineares.
125A sensação de entrada de num território distinto da envolvente é ainda mais acentuada pelo controlo social que recai sobre quem passa nas ruas. Como se entre a cidade e o núcleo da Mouraria houvesse um espaço de mediação, em que o mundo público está para lá das ruas da Mouraria, dos Cavaleiros / Calçada de Santo André, da Costa do Castelo e das Escadinhas da Saúde, servindo esses eixos como uma discreta fronteira entre o que é o coração do bairro e o que não é.
126Também é significante a impressão de entrada num espaço interior no caso do Centro Comercial da Mouraria: um edifício com horários de abertura e encerramento, com seguranças e barreiras que controlam os acessos. No entanto, o CCM é um local de uso público cujo acesso, a priori, é livre. Assim, quando me refiro à sensação de entrada, considero sobretudo a intensidade com que ali se dá o controlo social (e não somente por causa dos seguranças). A impressão aqui era de que invadia o território de outros indivíduos, sobretudo porque não estava ali numa posição de cliente do comércio e dos serviços existentes ou somente de passagem. Como se ali me encontrasse num espaço que se situa entre o público e o privado. Na verdade, uma sensação com alguma semelhança àquela que sentia no núcleo do bairro. Diga-se ainda que a impressão de que se é controlado também nos acompanha no percurso que liga o CCM à estação de Metro do Martim Moniz.45
127Parecia-me que o núcleo do bairro e o CCM configuravam uma espécie de duas Mourarias distintas mas justapostas. Onde ambas se definiam por um carácter de interioridade social e espacial, daí a impressão de estar dentro desses territórios. Contudo, pouco a pouco, fui percebendo que a minha percepção não levava em linha de conta alguns outros aspectos que contribuem para a construção da ideia de bairro. Veja-se como.
128Ciente de que iria haver um espetáculo público de fado no bairro, comentei o acontecimento com a D. Manuela – que, como já foi dito, estava ligada ao CCM – ao que ela respondeu: “Na Mouraria?” De imediato, não compreendi qual era a dúvida dela, mas seguidamente ela compôs a sua interlocução, dizendo: “Ah! Lá dentro!” Fiquei com a impressão de que ela primeiramente percebeu que o espetáculo se passaria no CCM, entretanto, logo se deu conta de que um acontecimento daquele teor somente fazia sentido se realizado no núcleo da Mouraria. Reconheço que fiquei intrigada com o facto de ela perceber o núcleo do bairro como um espaço que era mais dentro do que o próprio CCM: como podia o coração da Mouraria ser considerado como mais dentro do que um edifício com portas, seguranças, horário de abertura, práticas específicas, intenso controlo social, etc., como é o CCM? A resposta não estava na substituição de dentro por espaço interior, mas sim na própria conceção do que é o bairro. Veja-se um outro exemplo.
129D. Teresa nasceu e foi criada no bairro, sendo que depois de casada foi viver para o Cacém, entretanto, trabalha na Mouraria, onde continua a ter familiares. Questionada sobre a extensão do bairro, referiu:
“A Mouraria mesmo é a Rua do Capelão, Amendoeira e João do Outeiro. Essa parte aí para dentro […]. A Rua dos Cavaleiros e as Olarias ainda é Mouraria, mas já não é bem. A Mouraria moderna é só isso daqui para dentro, Rua do Capelão e Rua da Guia […], e dali não sai nada, as pessoas são muito fechadas.”
130O depoimento acima permite tirar duas ilações. Uma primeira é que a Mouraria-Mouraria moderna (leia-se atual) é percebida como pequena (“só isso”), e como um espaço que passou a ser percebido como dentro de certas ruas. O que também infere que, antes da destruição da Baixa do bairro, essa percepção não se exprimisse da mesma forma, ou pelo menos não com a mesma intensidade. Uma segunda ilação é que aquilo que não está dentro de tais ruas está fora e já faz parte da Mouraria ampliada, o que no caso do CCM evidencia a sua exterioridade. Embora o núcleo do bairro e o CCM se exprimem por uma relativa interioridade, tal não significava que fossem percebidos como sobrepostos, ou seja, o CCM é localmente percebido como fora da Mouraria-Mouraria.
131Dentro corresponde ao coração do bairro, e não somente à ideia de espaço interior. Isto porque o coração do bairro é onde se inventa o sentimento de bairrismo e de pertença, onde as relações são fortes, de parentesco e de confiança, onde existe cordialidade e conflitos estruturais. Onde não existe uma relação dicotómica que coloca em oposição a casa e a rua, porque muitas das situações e relações que, a priori, definem o espaço da casa encontram-se presentes nas ruas interiores. Onde as ruas são um pedaço semipúblico do espaço e em que, a priori, não existe anonimato. Tornando-se o bairro, de certo modo, uma espécie de casa em que as ruas funcionam como espaços comuns, parecendo que são salas e quintais. Onde estar dentro é estar protegido. Neste sentido, algumas pessoas que trabalham no bairro, mas ali não vivem, referiram que o núcleo do bairro funcionava como um “feudo”, onde imperava o segredo e o controlo social (ver quadro 14).
132Contudo, explicar apenas o significado de dentro a partir das ideias de casa e proteção não retrata tudo o que se passa. Veja-se como a mãe de D. Teresa, que vive na Mouraria, se exprimiu:
“A violência está muito perigosa. Há calma, mas a pessoa nem sempre pode pensar que por estar tudo calmo que há calma. Por exemplo, antes quando entrava na Rua do Capelão já estava em casa. Daqui [Rua da Mouraria] para a Rua da Guia já fazia parte da minha casa. Agora quando eu vou, metade deles não são daqui, eu não os conheço e uma pessoa vai sempre com medo. Por exemplo, eu saio daqui [a senhora trabalha no próprio bairro] às seis horas e vou para casa, fecho a janela e já não vejo ninguém na rua. Fecha-se as janelas, desaparecem as pessoas, até fugiu o calor . […] Porque depois vem no jornal e vem na televisão […].”
133Esta outra faceta do bairro, onde já existem situações de anonimato, distância e desconhecimento social, é percebida localmente como algo relacionado com a entrada de novos moradores, muitos dos quais imigrantes, e ainda com o problema do tráfico e consumo de droga, e com as dinâmicas subjacentes ao comércio de revenda e à afluência ao local de chineses, indianos, africanos, ciganos, brasileiros, etc. Como se os pedaços semipúblicos da rua, pudessem estar ameaçados pela presença de desconhecidos.
134Referi anteriormente que é o espaço fora do núcleo do bairro que é percebido como perigoso, como por exemplo o CCM. Observe-se aqui uma espécie de inversão dessa situação: agora o perigo está dentro desse núcleo. Aqui, a exterioridade e os espaços abertos parecem proporcionar mais segurança, pois é-se mais visível nesses espaços do que nos interiores e fechados, como é o caso do núcleo do bairro. Nesse prisma, a relação entre casa e rua é transformada numa relação dicotómica e de oposição, sobretudo com o anoitecer e após o fecho do comércio, ficando o bairro quase deserto, pois de facto quase todos se recolhem dentro de casa, transformando a rua num espaço onde as transgressões se tornam possíveis.
135Repare-se, entretanto, que quem normalmente é visto como ameaça à segurança local é o outro. Isto é, aquele que é de fora, indivíduos anónimos, como se não tivessem nome nem história, mas com práticas e sinais corporais que permitem designá-los como drogados (mais raramente como toxicodependentes), traficantes, sem-abrigo, chineses, africanos, indianos, paquistaneses, brasileiros, ciganos, etc. Outros que quando conhecidos podem, entretanto, ser transformados em pessoas e potenciais vizinhos.
136A associação entre o desconhecido, o perigo e o que se passa na televisão e é noticiado nos jornais contribui, de algum modo, para a construção ou invenção da relação que estabelece que quem é de fora significa perigo. Testemunhei algumas conversas cujo tema era o aumento da insegurança no bairro. Essas conversas geralmente transcorrem em espaços nodais, pedaços do espaço que funcionam como pontos de encontro da população: na mercearia, no mercado, na padaria, na farmácia, na banca de revistas e jornais, nas esquinas, nos bancos públicos situados na Rua da Mouraria ou à porta de casa. As pessoas começam por comentar ou narrar um acontecimento qualquer ocorrido no bairro e que, sendo mais violento ou estando ligado a atividades ilegais, tenha tido alguma repercussão ou tenha levado à intervenção de vizinhos ou mesmo da polícia e tenha sido noticiado nos jornais. Ou então começam por comentar uma notícia qualquer sobre violência, roubo e insegurança, de seguida os acontecimentos sucedidos no local são misturados com aqueles que foram televisionados ou lidos em jornais, e a confusão é estabelecida. Porém, comecei a notar que havia, aproximadamente, a proporção de um caso sucedido na Mouraria (e que pode ser sempre o mesmo e ter ocorrido em tempos passados) para vários que se sucederam em outro lugar de Lisboa ou mesmo do País. E conforme a conversa se desenrolava, os acontecimentos ocorridos na Mouraria diluíam-se e a temática explorada girava, cada vez mais, em torno dos atores e dos atos de violência que apareciam nas notícias. Seguidamente, era estabelecida uma correspondência entre aqueles que frequentam o bairro e, de algum modo, manifestam sinais físicos similares aos que foram notícia pública por atos de criminalidade. Como a frequência de desconhecidos no bairro aumentou nos últimos anos é-lhes, de certo modo, atribuída a culpa da má fama local: os culpados são de fora, são os outros, “porque antes aqui dentro era tudo como uma família”, “daqui para a Rua da Guia já fazia parte da minha casa”…
“Cá em cima” e lá “em baixo”
137Quando se olha para a topografia local, verifica-se que as zonas altas geralmente se encontram na envolvência do núcleo do bairro que, por sua vez, é considerado como a parte baixa da Mouraria. Considerando o declive do terreno, é natural que a utilização das noções “alto” e “baixo” tenham correspondências topográficas e sirvam como referências de orientação. Mas não só, sobretudo porque existe um conjunto de atributos que servem para exemplificar as diferenças entre as partes alta e baixa que, curiosamente, não se socorrem das características topográficas do terreno.46
138Nas partes altas, em geral, os quarteirões são maiores, a época de construção dos edifícios é mais recente, sendo estes mais amplos e em melhor estado de conservação, e normalmente é onde vivem alguns segmentos da população com mais recursos económicos, profissionais e educacionais. Por seu lado, na parte baixa, ou seja, no núcleo da Mouraria, sucede o contrário. Fazendo, a princípio, com que acreditasse que as noções alto e baixo indicavam uma relação hierárquica entre uma zona e a outra. Contudo, aqui a percepção em causa é minha. Porque, quando confrontada com as percepções de moradores, reparei que apesar de também expressarem uma hierarquia na ordenação do espaço ela era explicada a partir de outros valores e atributos.
139Comecei por notar que quem recorria à distinção entre baixo e alto de uma forma mais enfática eram aqueles que residiam ou de algum modo estavam mais ligados à envolvência do núcleo do bairro e, dentre esses, em particular os da zona das Olarias. Porque quem vive no núcleo do bairro, ao entender a envolvência como arredores, pensa-os como algo que é mais longe, onde as partes mais altas são mais difíceis de aceder por causa da inclinação do terreno. Mas muitos dos indivíduos com quem falei na zona das Olarias referiram-se a duas Mourarias: uma “cá em cima” e outra “lá em baixo”. D. Carolina, por exemplo, comentou:
“Os cá de cima não vão muito lá abaixo e os lá de baixo não vêm muito cá acima. Mas vêm mais os lá de baixo aqui que o contrário. Vêm mais agora por causa de um clube de vídeo que abriu no Largo das Olarias, mas são os jovens que vêm, os velhos têm dificuldade em subir isso tudo, só vêm ao Mouraria [refere-se ao Grupo Desportivo da Mouraria] em noites de fado. Nos campeonatos de luta e desporto os mais velhos não vão, só vão os mais novos, havendo torneio os mais jovens vão. […] A malta aqui chama-os do centro dos reformados, o centro dos bêbedos [refere-se a uma associação local] […], lá em baixo é dos drogados e aqui em cima dos bêbedos […]. [risos]”
140A principal coletividade da Mouraria é o Grupo Desportivo da Mouraria (GDM). Fundado no núcleo do bairro pelos seus moradores, é uma referência para muitos deles. Mas a sede do GDM passou a ser na Travessa da Nazaré, já na zona das Olarias e na freguesia da Graça, e desde então os moradores do núcleo da Mouraria somente lá vão pontualmente e quase sempre por motivo de campeonatos, sessões de fado, festas ou no período dos ensaios da marcha.47 Mas nem por isso os das Olarias se destacam como frequentadores do GDM, pois este não parece ser uma referência simbólica para eles, excetuando-se apenas o período dos ensaios da marcha popular, quando também participam indivíduos das Olarias como de São Cristóvão / São Lourenço.
141A par de uma certa ironia e de uma capacidade de autorreflexividade relativa à percepção do espaço como “cá em cima” / “centro dos bêbedos” e “lá em baixo” / “centro dos drogados”, reparei que essa relação ainda revelava alguns outros aspectos com interesse (ver quadro 15). Ao verificar que os moradores do núcleo da Mouraria, sobretudo os do sexo masculino, conhecem e vão algumas vezes às redondezas, constatei que o contrário não sucede da mesma forma. Isto é, quem vive nas áreas circundantes, apesar de reconhecer a existência de um centro do bairro, muitas vezes referia nunca lá ter ido. Não obstante o “nunca ter ido” possa sugerir um certo encobrimento da realidade, tal revelava, entretanto, uma posição ou um desejo de distanciamento daquilo que se passava no núcleo da Mouraria, e notei ainda que quem mais procurava dissociar-se desse espaço eram as mulheres. Nestes casos, fiquei com a impressão de que no confronto com um “centro de bêbados” os indivíduos se sentiam mais dispostos a tolerá-lo, de que quando confrontados com um “centro de drogados” que, por sua vez, parecia acentuar ainda mais a má fama da Mouraria. Repare-se, entretanto, que alguns homens já idosos e moradores no núcleo do bairro se tenham referido aos bêbedos das Olarias (também fazendo referência à mesma associação local) de forma depreciativa, por contraposição com a união, amizade e familiaridade do seu local de morada. Mas tais relações não são somente de oposição, porque também existem simultaneidades e muitos interstícios entre centro e arredores, baixo e alto. Daí que, por exemplo, quem se sinta incluído ou excluído, ou aquilo que inclui ou exclui, tanto possa estar no centro como na periferia do bairro.
142Comecei, então, a explorar os aspectos que permitiam estabelecer distinções entre a parte baixa e a alta. De modo que, apesar de extenso, devido à representatividade daquilo que é referido, reproduzo de seguida os fragmentos de uma das conversas que tive com a D. Guilhermina:
“ – Onde começa, então, e termina a Mouraria lá de baixo?
G.: […] a Mouraria lá de baixo é a Rua da Guia e a Rua do Capelão.
– E a Rua Marquês de Ponte de Lima?
G.: Já é uma zona diferente. Porque também é muito parecida com as ruas das Olarias, as pessoas são mais calmas, as pessoas trabalham e não se juntam assim na rua, então essa zona até é pior, é pior do que nas Olarias pois vê-se menos pessoas na rua, porque eu quando passo ali não vejo praticamente ninguém, mesmo durante o dia é muito raro […].
– Mas ali no Largo do Terreirinho está sempre cheio […].
G.: Sim, mas o Largo do Terreirinho já pertence mais à zona de baixo, mesmo à Mouraria.
– E a Calçada dos Cavaleiros?
G.: A Calçada dos Cavaleiros seria assim, talvez até ao meio, porque depois é Santo André e que penso que ainda pertence […]. Portanto, até ao meio da calçada considero que é Mouraria mesmo, mas depois também já não, é outra zona mais calma e depois temos a Rua dos Lagares também, depois tem a continuação da Rua das Olarias que também não é Mouraria-Mouraria como se diz, como eu digo, mas eu tenho impressão que é diferente do que eu chamo mesmo Mouraria, mesmo nós aqui dizemos “Ah! é lá em baixo na Mouraria”.
– E se eu lhe pedisse uma descrição da Mouraria lá de baixo […].
G.: As pessoas são muito bairristas e, portanto, tanto homens como mulheres. Descrevo agora como droga, penso que é onde se centra mais a droga é mesmo ai, Largo do Terreirinho e aquela rua mais estreitinha que vai depois para a Rua da Guia [refere-se à Rua da Amendoeira], e esse bocadinho aí de rua. Mesmo as crianças a brincar na rua é diferente, porque nós aqui temos a preocupação, porque nós aqui temos a preocupação dos carros, não vão para as ruas por causa dos carros e lá em baixo é diferente, elas lá em baixo vão para a rua, elas andam na rua independentemente de haver carros ou não haver […]. Depois as pessoas preocupam-se com quem é que tem a roupa na janela mais bem estendida, a roupa mais branca e mais bem estendida, e eu penso que isso também é uma característica das pessoas lá de baixo, porque, pronto, eu também morei aqui em baixo na Calçada da Mouraria uns anos e aqui também […], porque aqui na rua da minha mãe já não, mas lá em baixo já era assim […].
[…] Eu pessoalmente penso que isto é o bairro das Olarias, aqui não tem muito a ver com o bairro da Mouraria em si, eu penso que isso aqui em cima é o bairro das Olarias. Pronto, lá está, o bairro, as senhoras vendedeiras, até as próprias asneiras já nascem com elas, porque elas dizem meia dúzia de palavras e outra meia dúzia são asneiras, mas isso eu acho que já faz parte das pessoas que vivem lá em baixo, porque aqui em cima já não há nada disso. As pessoas aqui não dizem asneiras, só se for assim uma discussão assim grande, lá está, as pessoas ofendem-se […], mas lá em baixo eu acho que é diferente, são mais acentuadas essas coisas, essas discussões mesmo, portanto, aqui não há. Eu acho mesmo que o bairro está dividido.”
143O depoimento anterior permite tirar várias ilações. Uma delas é que o espaço é dividido, e várias vezes subdivido, em função das práticas e das representações que o constituem. Essas representações mostram, por exemplo, que “cá em cima” é percebido como mais calmo, menos bairrista, onde há mais prudência no cuidado dos filhos e na relação com os vizinhos, onde as pessoas se juntam menos na rua porque estão a trabalhar, onde não há discussões nem se dizem asneiras, ao inverso de “lá em baixo”.
144Mas as ruas das Olarias funcionam, de facto, como eixos de circulação automóvel. No entanto, o mesmo não se pode dizer relativamente ao núcleo da Mouraria, onde boa parte das ruas são pedonais, com exceção da Rua Marquês de Ponte de Lima e, de forma bastante condicionada, a Rua e Largo da Guia. Assim, aquilo que é assinalado por D. Guilhermina quando se refere ao núcleo da Mouraria, embora esteja nas entrelinhas do seu discurso, não é propriamente um problema de trânsito, mas sim que as crianças brincam num meio que é percebido como impróprio para o desenvolvimento infantil. Contexto onde existe bairrismo, mas também mais perigo – por causa daqueles que estão na rua porque estão a comprar ou a vender droga (ao contrário das Olarias, onde os seus moradores estariam a trabalhar) –, e mais conflito, por causa das discussões e confusões entre vizinhos.
145Aquilo que foi ressaltado neste ponto permite demonstrar como as relações entre “cá em cima” e “lá em baixo” expressam, sobretudo, uma lógica de ordenação social do espaço que certamente não se apoia nas qualidades topográficas e urbanísticas do território.
“É perto” e “é longe”
146Ao constatar que a proximidade física podia não significar proximidade social, não esperava, entretanto, que aquilo que percebia como “perto” fosse, muitas vezes, referido como “longe”, e aquilo que me parecia longe do bairro, como por exemplo Belém ou o Parque das Nações, fosse considerado como perto. Pois, por exemplo, como podia o bairro das Olarias ser considerado como longe para os que vivem no núcleo do bairro se é muito mais perto do que o Parque das Nações?
147Intrigada com essas lógicas espaciais comecei, então, a perguntar porque era longe da Mouraria-Mouraria o bairro das Olarias. As respostas davam a entender que, para além de as Olarias serem já no exterior da Mouraria, era difícil e incomodo ir até lá, por causa da inclinação do terreno.
148Mais intrigada fiquei quando, no meio de uma conversa com uma proprietária de um snack-bar e residente na Calçada de St. André, resolvi perguntar se os filhos costumavam brincar ou ir ao Projeto Ambijovem (no Largo da Guia, no núcleo da Mouraria). Ela respondeu-me que esse local era longe. Mas o interessante é que o local que os filhos frequentam é, geograficamente, mais longe ainda do que o núcleo da Mouraria:
“Meu filho não costuma ir para o Largo da Guia, já é muito longe e não sei como é. Depois ele mete-se com os miúdos de outro bairro e também tenho medo […]. A minha filha somente tem amigos da escola e não costuma ficar por aqui, porque não é sítio para ninguém parar aqui […], é só bandidos, outras gerações, mas falo com toda gente. Eles, ás vezes, vão brincar para a escola, ou ali na Voz do Operário ou num lugar que tem lá para os lados de Alfama, ali perto do miradouro […].”
149Na Mouraria, longe e perto nem sempre têm correspondências exatas em termos de uma perspectiva de distância física. Mas confesso que também comecei a imaginar que ali o ditado popular que diz “para baixo todos os santos ajudam” nem sempre era a fórmula exata… Pois, para alguns indivíduos, longe parecia ser o que era alto ou fora do bairro, para outros longe era lá em baixo e dentro do bairro. Podem fazer-se equivalências semelhantes para perto, como baixo e dentro ou como alto e fora do bairro. Mas a dúvida permanecia: como explicar que Alfama, Belém, o Parque das Nações ou ainda a Baixa da cidade, ao serem reconhecidos como fora da Mouraria fossem, em determinadas circunstâncias, percebidos como mais perto do que as áreas limítrofes?
150A ideia de distância ou de proximidade social ajuda a responder a parte da questão. Isto é, o longe ou o perto são, em certos momentos, referências que indicam a existência de mais ou menos relações entre os diferentes indivíduos e, nesse sentido, entre os locais.48 Pois quanto mais existem relações em comum entre os indivíduos, mesmo que essas também impliquem conflitos, a distância física que os separa é percebida como menor, portanto, encontram-se mais perto, e vice-versa. Assim, a distância é percebida como maior quando existem menos relações entre os indivíduos, podendo as áreas geograficamente próximas ser consideradas como longe. De certo modo, a tradução estava na obviedade dos significados ou da substituição do “lá em baixo” ou “em cima” por “longe” e o “cá” por “perto” (ver quadro 16).
151Ao considerar que certas zonas da cidade, já fora do bairro, eram mais rapidamente percebidas como mais perto do que aquilo que eu, na minha racionalidade, acreditava como sendo mais longe, dei-me conta de um aspecto fundamental: perto, de alguma forma, significava a inexistência de relações ambíguas e intersticiais por motivo de uma maior ou menor distância ou proximidade social.49 Como se perto significasse maior facilidade de acesso social e espacial, refletindo-se essa situação em duas circunstâncias: por motivo de presença nos núcleos de referência espacial e social (por exemplo: o núcleo do bairro) ou já totalmente fora da Mouraria ampliada onde tais relações de ambiguidade e intersticialidade podem ser ultrapassadas, porque os indivíduos se encontram num espaço percebido como sendo de domínio público. Mesmo tendo em conta que, quando vão passear na cidade, normalmente fazem-no em grupo de mais de duas pessoas. Neste sentido, depois de um grupo de amigos ter referido que as pessoas ali não tinham muitas relações com os das Olarias, o Sr. Paulino comentou: “[…] a menina já foi à Expo? Aquilo ficou muito bonito. Nós costumamos ir lá passear, assim, depois do almoço, já da parte da tarde, e ficamos lá a conversar ao pé do rio […]. Agora como já tenho direito ao passe social dos velhos é fácil, estou por aqui e vou até Belém, até à Expo, reunimos aqui assim com mais outros e vamos […].”
152Em geral, a cidade é percebida como um espaço de todos, onde as distâncias geográficas podem ser vencidas com os transportes públicos, com a facilidade dos passes sociais, com a motivação de ir e ver outras coisas, etc. De modo que a globalidade do território lisboeta é percebido como perto, pois nele os espaços públicos urbanos (como o Parque das Nações ou Belém), a priori, podem ser apropriados por qualquer pessoa. Mas os territórios geograficamente próximos – a Mouraria ampliada – encontram-se socialmente demarcados por núcleos de referência identitária, valores e atributos de classificação, já não sendo as suas distâncias – e aqui leia-se distância social – facilmente ultrapassáveis. Como se a conquista ou a apropriação espacial dos territórios limítrofes – psicologicamente, cultural e socialmente mais difíceis de ultrapassar – transformasse o caminho a ser percorrido em mais longe. Não obstante se verifique a possibilidade de também serem vencidos, sobretudo se o que estiver em causa for a demarcação identitária da Mouraria face aos outros bairros ou à própria cidade, e assim o que fica longe é o resto do território urbano.
A plasticidade dos limites e fronteiras de um lugar
153Como se verificou, não se pode definir o território do bairro através de um perímetro visível e objetivo. Pois este território constitui-se como uma mancha cuja elasticidade pode ser mais ou menos contida em função de uma pluralidade de referências sociais e espaciais, acontecimentos, visões de mundo ou da participação em determinados modos e estilos de vida. Mas, a par dessa pluralidade e diversidade de situações e percepções, parece ser unânime o reconhecimento de um núcleo central do bairro. Neste sentido, a percepção do bairro em centro e arredores infere a existência de uma espécie de escala de ordenação social do espaço que, por sua vez, reflete uma lógica de hierarquização e segmentação. Observando que, para alguns indivíduos, o centro do bairro detém o grau máximo da escala, diminuindo a sua importância de forma gradual nos arredores; enquanto para outros indivíduos, face a certas circunstâncias, essa escala de valores parecia ser invertida e ao centro era atribuído o valor mais baixo. Refira-se, ainda, que tais constatações não são exclusivas da Mouraria, podendo atravessar a realidade de outros bairros.
154Mas o contexto socio-histórico e urbanístico interfere no processo de percepção e demarcação espacial do bairro da Mouraria que, assim, apresenta algumas particularidades. Por um lado, quando os indivíduos se apercebem de que o bairro é apenas um “bocadinho” de um território outrora “grande” e que ocupava “isso tudo”, é pertinente considerar que o bairro, de facto, perdeu território. A destruição de parte da Mouraria nos anos 40-60 do século XX, com a posterior substituição do tecido urbano destruído por uma rede de acessibilidades moderna – constituída por eixos de circulação viária e pela rede do metropolitano –, por uma praça e por centros comerciais, e a introdução de um comércio grossista controlado por segmentos da população usualmente designados como minorias étnicas, refletem-se na forma e nos modos como o espaço local é percebido. Por outro lado, a força simbólica dos momentos fora do quotidiano – como a marcha, o arraial popular e a Procissão de Nossa Senhora da Saúde – facultam ciclicamente recuperar para o imaginário coletivo o território perdido e, de certo modo, integrar e misturar centro e arredores, nós, eles e os outros, público e privado, casa e rua, sagrado e profano, bairro e cidade. Essas manifestações festivas e rituais operam como mediadores simbólicos e institucionais, o que faculta aos diferentes atores sociais a possibilidade de identificação e distinção dos outros, permitindo a introdução de vínculos de sentido social, bem como a continuidade e afirmação da Mouraria como um dos bairros típicos de Lisboa.
155Dir-se-ia que captar como os indivíduos percebiam os limites do bairro revelou-se uma tarefa complicada. Na sua resolução, tentei demonstrar como os indivíduos recorriam às suas redes de relações sociais, percursos, memórias, tradições rituais e ao arranjo do território para explicar o território do bairro, salientando que a exequibilidade dessas dimensões somente fez sentido porque, na mesma proporção que são estruturais e estruturantes, também são dinâmicas. E, nesse âmbito, é essencial considerar que a Mouraria é um lugar que dialoga com as lógicas globais, exprimindo-se tanto através de permanências como de mudanças e transformações.
156Tentei também demonstrar que as várias vozes que falam sobre o bairro expressam a capacidade que este tem de convergir ou dispersar um conjunto de relações sociais e espaciais. Já que, paralelo à especificidade de certas representações e à própria realidade social e urbana do bairro, dá-se uma dinâmica de descentração dessa mesma condição. É de notar, entretanto, que uma condição não substitui a outra: ambas coexistem num intricado sistema de relações onde as lógicas podem ser ambivalentes ou ambíguas.
157Através da experiência antropológica do lugar, tive muitas dificuldades em lidar com a ideia de que a antropologia que realizava se restringia a um espaço autocontido. Muito embora o lugar privilegiado como terreno de observação antropológica possa, de um ponto de vista estratégico e metodológico, ser definido como um espaço autocontido, tenho dúvidas de que a complexidade e a multidimensionalidade com que me confrontei possam ser descritas, explicadas, analisadas e interpretadas como tratando-se de um universo autocontido. Parece-me, assim, importante não confundir a localização de uma determinada prática, no caso a do antropólogo, com a tridimensionalidade inerente à noção de lugar.
158Daí ter partido de uma noção de lugar que admite flexibilidade, elasticidade e plasticidade, e é tridimensionalmente composta por três elementos essenciais, respectivamente: localização, local e sentimento do lugar (Agnew 1997). E para captar as múltiplas formas pelo qual o espaço era apropriado e percebido, trabalhei com as noções de multilocalidade e multivocalidade (Rodman 1992). E para resolver o problema da escala de observação do lugar considerei que: (i) as referências socio-espaciais são o resultado de justaposições, sobreposições, fragmentações ou da correlação de vários elementos, suscitando a existência de significações múltiplas e combinadas; (ii) o movimento dialético existente entre a razão global e a razão local suscita a utilização de escalas de mediação ou intermediação entre essas duas ordens (ou razões) (Santos 1995; Menezes 2000).
159Inicialmente, ao sintetizar alguns dos aspectos observados – de âmbito geográfico, urbano, histórico, social e cultural –, foi possível esboçar uma primeira identificação do bairro da Mouraria (ver quadro 17).
160Mas esboçar um quadro que sintetizasse as diferentes configurações e demarcações socio-espaciais poderia suscitar uma certa simplificação da complexidade existente, na medida em que não se retomariam os distintos conteúdos que conferem validação e expressividade às múltiplas formas de combinar e estabelecer limites. Assim, o quadro-síntese seguidamente apresentado somente faz sentido porque fundamentado no decurso deste capítulo.
161Portanto, o quadro 18 apresenta um breve sumário sobre como é percebida a extensão do território do bairro, ressalvando que as distintas demarcações socio-espaciais são atravessadas por relações e lógicas socio-espaciais e simbólicas ambivalentes, ambíguas, de inclusão e de exclusão.
162De seguida, no quadro 19, são referidos alguns dos elementos que, servindo como instrumentos ou meios para orientação no espaço, fazem, sobretudo, alusão a uma rigorosa gramática de espaços, onde a tradução da linguagem utilizada infere lógicas inclusivas e exclusivas, diferenças e contrastes, ações e reações, fragmentações, complementaridades e simultaneidades.
163Neste capítulo foi possível verificar um conjunto de atributos que servem como intermediadores do processo de percepção espacial e constituição de uma sucessão de formas, maneiras e modos de representar os limites e as fronteiras. Observou-se ainda que os resultados são múltiplos e demasiado complexos, o que implica que a sua leitura somente tenha sentido quando contextualizados nas suas devidas relações. E, ainda assim, o exercício aqui realizado no sentido de captar as formas e modos como os indivíduos percebiam o espaço de modo algum esgota a riqueza dos significados e sentidos existentes, apenas configurando-se como uma janela para a compreensão da complexidade que é a construção social do lugar Mouraria.
164No próximo capítulo, as práticas de uso e apropriação do espaço público urbano serão exploradas e analisadas de forma mais aprofundada. Interessará, então, perceber o modo como as práticas e as experiências dos indivíduos alimentam determinadas representações do bairro, e as formas como tais representações participam de um imaginário urbano em que a Mouraria emerge como um contexto onde é possível combinar tipicidade, má reputação e multietnicidade.
Notes de bas de page
1 Muito embora, isto não signifique dizer que os limites de um território não possam coincidir com um perímetro administrativo, um dado físico ou arquitetónico, ou mesmo ser explicados a partir de certos acontecimentos históricos ou políticos.
2 Consultar: Cordeiro 1995; Menezes 1996b, 2002; Costa 1999.
3 A importância do espaço como objeto de análise nas Ciências Humanas e, em particular, na Antropologia, transformou a noção de lugar num objeto de discussão central, inclusivamente, transmudado em problema (Appadurai 1988). Para Rodman (1992), uma das dificuldades em trabalhar com o conceito de lugar na antropologia, é que ele tem sido tratado a partir de duas perspectivas opostas: como setting ou espaço de localização de conceitos; como construção social ou de espacialização da experiência. Pelo que, a autora considerou a possibilidade de compatibilização dessas duas perspectivas, até porque ambas se manifestam como construções sociais.
4 Conforme dados dos Censos de 1991.
5 Com a abertura da estação de metropolitano na Baixa da cidade, também o Bairro Alto passou a ter uma ligação a essa rede de transportes e futuramente o bairro de Alfama terá uma ligação ao metropolitano através da ampliação dessa rede, ligando o Cais do Sodré com a Estação de Santa Apolónia.
6 Mouraria foi designação de um dos bairros fiscais da cidade, mas tal divisão administrativa há muito deixou de existir, apenas restando a freguesia como divisão administrativa e política do território da cidade. No que respeita à evolução da divisão administrativa de Lisboa, é conveniente consultar o trabalho de Vieira da Silva (1930, 1943) e, no que respeita à desconstrução da ideia de bairro, consultar Cordeiro (1995).
7 A ligação da colina de Sant’Ana com a Praça do Martim Moniz faz-se através de dois conjuntos de escadarias. O terreno situado entre essas escadarias ainda se encontra vago, sendo fruto da destruição da Baixa da Mouraria. Apesar de cercado, esse terreno servia como depósito de lixo e, às vezes, viam-se ali barracas onde viviam pessoas sem-abrigo e toxicodependentes. Para esse local, prevê-se a construção de edifícios vocacionados para a população jovem da cidade, sendo esse um projeto da responsabilidade da EPUL.
8 O mesmo sucede relativamente aos outros bairros tradicionais da capital.
9 D. Paula, 50 anos, nasceu no bairro, na Calçada da Mouraria, mas distingue-se das pessoas bairristas ao enfatizar a sua situação como filha de empresários. É casada com uma pessoa de fora do bairro, não tem filhos. Tem duas irmãs que vivem na Linha de Cascais. Cursou a Escola Comercial, a Alliance Française e o Cambridge School.
10 Sr. Karin, 49 anos, é um comerciante indiano que veio de Moçambique em 1979 com os pais e os irmãos. A família instalou o seu negócio na Rua do Benformoso.
11 Sr. Fernandes, aproximadamente 60 anos, nasceu como a mulher na região do Douro. Vivem na Rua dos Cavaleiros há 34 anos, onde também nasceram os seus dois filhos.
12 Por exemplo, Nogueira de Brito, em 1933, delimitou a Mouraria como uma área “que se estende desde as trazeiras de S. Domingos e Poço do Borratém até à encosta que trepa ao Coleginho e corre desde as alturas de Santo André até às Olarias, Benformoso e Terreirinho”.
13 D. Manuela, 23 anos, 12.º ano, é nascida e criada na freguesia dos Anjos. Trabalhou no Centro Comercial da Mouraria (CCM) num restaurante chinês durante aproximadamente dois anos, tendo deixado esse emprego em meados de 1996 pelo facto de o seu patrão não cumprir com as leis de trabalho e, para garantir os seus direitos, entrou com uma ação legal contra o patrão. Foi no CCM que conheceu o seu marido, Marcos, um brasileiro de aproximadamente 45 anos que teve uma loja no CCM durante ano e meio.
14 Somente os números ímpares de 1 a 121 e os pares de 74 a 100 da Calçada de Santo André pertencem à freguesia do Socorro, os outros pertencem à freguesia da Graça.
15 Enquanto desenvolvia um inquérito junto dos comerciantes da Rua do Benformoso encontrei um morador com quem costumava trocar algumas impressões acerca do bairro que, ao detectar que eu me encontrava fora dos limites da freguesia do Socorro, sublinhou que me encontrava numa área que não estava relacionada com a Mouraria.
16 D. Júlia, 69 anos, nascida e criada no bairro, 2.º ano da escola primária. Os seus dois filhos, depois de casados, foram viver para o Cacém.
17 Sr. Augusto, aproximadamente 45 anos, representante da Junta de Freguesia do Socorro, nascido e criado no bairro, mas há muitos anos vive fora dali.
18 A propósito da discussão da relação entre bairro e freguesia, consultar: Cordeiro (1995: 193); Costa (1999: 67-71 e 93-109).
19 D. Elisabete, 73 anos, nascida no Algarve, veio viver para Rua do Benformoso aos 3 anos de idade. Estudou no Ateneu Comercial de Lisboa.
20 D. Laura, 72 anos, 4.º ano de instrução primária, viúva, neta de galegos, nasceu na Rua do Benformoso e agora vive na Calçada da Mouraria. Tem quatro filhos, mas nenhum deles vive no bairro.
21 Sr. Francisco, 65 anos, sapateiro, nascido no núcleo do bairro, onde viveu a maior parte da sua vida.
22 A Mouraria é um bairro muito heterogéneo sob vários pontos de vista – histórico, patrimonial, cultural, urbano e social –, e tal é reconhecido pelos técnicos do GLM. Pelo que, quando esses técnicos agrupam determinadas áreas em zonas específicas, o que está subjacente é a definição de uma hierarquia das áreas prioritárias de intervenção. No entanto, essa estratégia metodológica e técnica acaba por reinventar o espaço e influenciar as configurações socio-espaciais e, nesse sentido, também a dos próprios técnicos.
23 Apesar de São Cristóvão / São Lourenço corresponder a uma única freguesia, os seus moradores costumam explicar a sua pertença residencial separadamente: se fisicamente próximos da Igreja de São Cristóvão, utilizam essa paróquia como referência; se próximos da Igreja de São Lourenço, é a ela que se referem. Refira-se que São Cristóvão e São Lourenço foram, até 1959, freguesias separadas. Com a reformulação das freguesias ocorrida em finais dos anos 50, as duas freguesias foram unidas e os livros e registos paroquiais passaram a estar guardados na igreja paroquial de São Cristóvão (Freguesias; em Santana e Sucena 1994: 417). Mas com a junção dessas duas freguesias, a Igreja de São Lourenço passou a estar no limite dessa freguesia, mas já na alçada da freguesia do Socorro, daí que para alguns indivíduos a área circundante a essa igreja seja considerada Mouraria.
24 A este respeito, uma técnica do GLM relatou-me um episódio curioso. Uma senhora nascida e criada na Mouraria, por motivo de obras de reabilitação na sua casa, foi realojada num fogo situado na Costa do Castelo. Essa rua é, de certo modo, uma zona intermediária e normalmente é percebida pelos moradores do núcleo da Mouraria como sendo “mais fina”. Também é bastante frequente os moradores dessa rua considerarem que ali já não é Mouraria, só a parte inferior da rua, a que desce a encosta é que, às vezes, é considerada. Portanto, a senhora que ali foi realojada passou, então, a dizer que vivia na Costa do Castelo e que não tinha nada que ver com a Mouraria, e tal era motivo de riso entre outros moradores do bairro.
25 Sr. Pereira, 73 anos, nascido na Beira Baixa. Vive no núcleo do bairro há 53 anos.
26 Sr. Sebastião, 62 anos, nasceu em Campolide, vive no núcleo do bairro há 41 anos.
27 A continuidade da designação Mouraria intrigou-me desde o início da pesquisa, sobretudo devido ao facto de a sua origem etimológica ter designado o “vale dos vencidos”. Mas esse mistério não consegui desvendar. É interessante notar que ainda hoje se ouve falar do bairro como um local de vencidos: os “vencidos da vida de Lisboa”. Por exemplo, um morador indiretamente reforçou as características topográficas do vale ao observar que a Mouraria é “onde a merda toda vem cá parar e quando se vai ver não é ninguém cá do bairro”.
28 Sr. Constantino, aproximadamente 55 anos, comerciante português instalado na zona há mais de 30 anos.
29 Outros gabinetes técnicos de reabilitação urbana de Lisboa também utilizam nomes de bairros na sua designação.
30 Esta observação merece um pequeno esclarecimento, pois a não utilização da noção centro por parte dos técnicos do GLM reporta-se a uma reflexão teórica sobre a cidade contemporânea, onde a noção de centro urbano é relativizada e, eventualmente, é considerada a possibilidade de existência de vários e múltiplos centros. De modo que aqui não quis dizer que tais técnicos neguem a importância social e simbólica do núcleo da Mouraria, mas sim aprofundar os significados, os sentidos e as perceções de certas noções, contextualizando-as.
31 Parte da Rua do Benformoso e a Calçada da Mouraria também foram, muitas vezes, consideradas como pertencentes ao centro do bairro.
32 A freguesia de São Cristóvão / São Lourenço encontra-se situada num terreno muito inclinado, sendo toda a sua área entrecortada por íngremes e compridas escadarias. A parte inferior dessa freguesia tem uma ligação direta com a Baixa Pombalina e, nessa zona da freguesia, verifiquei que os seus moradores não gostavam de ser associados à Mouraria e se diziam pertencentes à zona do Borratém.
33 D. Guilhermina, 36 anos, nascida e criada nas Olarias, casada com uma pessoa da Mouraria e que apesar de atualmente viver no Largo da Graça está a procura de casa nas Olarias, para onde pretende retornar, até porque ela e o marido trabalham no bairro da Mouraria.
34 Repare-se que, no caso de Alfama, Costa (1999: 100) referiu que o sentimento de afectividade que a população de Alfama tem pelo bairro se expressa, por exemplo, nas situações em que os moradores são confrontados com a existência de roubos, quando referem logo que afinal não são assim tantos, pois existem lugares piores como “na Mouraria ou o Bairro Alto, esses sim, locais de marginalidade, perigo e maus costumes”. Situações semelhantes passam-se na Mouraria. Desde as vezes em que os moradores referem que quem causa problemas na Mouraria não é do bairro, mas de fora, como por contraposição com outros bairros da cidade, onde muitas vezes as situações de risco, roubo e perigo foram remetidas para o Casal Ventoso (“esse sim é um bairro ruim” – moradora da Mouraria), mas retomarei tais considerações quando discutir os processos e as dinâmicas de construção da imagem do bairro. Por ora, parece-me interessante apenas referir como a percepção que os indivíduos têm dos locais de perigo e roubo não correspondem necessariamente aos locais da cidade onde, de facto, existem mais situações de risco social. A esse respeito é interessante consultar o trabalho de Esteves (1995) sobre a percepção dos espaços de risco e de insegurança na cidade de Lisboa.
35 Aqui recorro a Augé (1997: 79; 1999: 47-48) para distinguir ambivalência de ambiguidade. Pelo que a primeira noção é considerada como aquela que permite a coexistência de duas qualidades, mesmo que contrárias; enquanto a segunda noção é uma realidade que não se define por uma ou outra qualidade, nem tão-pouco pelos seus contrários, mas sim por uma terceira condição constituída, por sua vez, sobre uma dupla negação: nem é x nem é y.
36 Com efeito, centro e arredores, enquanto categorias socio-espaciais, tanto implicam relações de oposição como de gradação e inclusão, fazendo lembrar as oposições segmentares dos Nuer, conforme a clássica descrição de Evans-Pritchard (1978: 127).
37 Sob o prisma técnico, a heterogeneidade da Mouraria induz de imediato a uma leitura fragmentada do seu espaço. Pelo que o depoimento de um técnico do GLM é bastante revelador da postura socio-espacial desse bairro: “Aqui é mais cerrado, há uma matriz pré-pombalina. Há depois, em volta do Castelo, a Costa do Castelo, que é uma rua hoje muito procurada por determinado tipo de população, já com outras posses e outra posição na vida, uma zona mais fina. Temos essas zonas mais antigas, onde ainda se desenvolve aquele ambiente urbano que é objeto da nossa preocupação e salvaguarda, temos as zonas comerciais da Rua dos Cavaleiros, Calçada de Santo André, Rua da Mouraria e Rua do Benformoso.”
38 Para Hunter (1974), a noção de focal point serve para enfatizar a convergência entre a forma física e a função social do espaço.
39 A par da proximidade do CCM com o bairro, ele não se constitui como um local de encontro dos moradores nem de trabalho, à exceção, é claro, de um ou outro indivíduo. O CCM essencialmente serve aos moradores como espaço de passagem e atravessamento para outros locais, sobretudo por causa da sua ligação com a estação de Metro; ou, mais pontualmente, como espaço que desperta a curiosidade de alguns poucos moradores que, muito discretamente, quase sempre sozinhos ou mais raramente acompanhados de um outro morador, atravessam o CCM para “ver o que se passa”.
40 D. Aurora, 60 anos, casada, residente no núcleo do bairro desde os 8 anos.
41 Dir-se-ia que a Praça Martim Moniz é, cada vez mais, outro ponto nodal do bairro. Entretanto, como já está fora do que é percebido localmente como sendo o núcleo do bairro, ela não é referida no presente tópico, sendo objeto de análise no decorrer deste trabalho.
42 A utilização da categoria nós é bastante enfatizada pelos moradores do núcleo ou da sua envolvência como forma de se diferenciarem dos outros. Contudo, no decorrer do trabalho, verifiquei que a noção de outros é, de certo modo, uma categoria que melhor se adapta àqueles que são localmente identificados como sendo de fora ou estrangeiros, e que normalmente são os comerciantes ligados à revenda, os clientes desse comércio, os novos moradores, os sem-abrigo, os frequentadores assíduos do bairro, os chineses, brasileiros, africanos, indianos, andinos, ciganos, etc. Pelo que, como mera estratégia de identificação e diferenciação, resolvi designar por nós aqueles que se assumem como vinculados socialmente, culturalmente e simbolicamente ao bairro da Mouraria; por eles aqueles que, não fazendo parte do núcleo de referência identitária que se reflete na ideia de nós, fazem, entretanto, parte de um núcleo de referência que é geograficamente vizinho. Os outros são todos aqueles que não são englobados pelas categorias nós e eles.
43 Apesar do tráfico e consumo de droga definir um ponto nodal, repare-se que esse se encontra dentro do núcleo do bairro. Já os dois outros pontos nodais referidos, uma esquina e o CCM, têm em comum a prática de um comércio de revenda, daí ter inferido que esses dois pontos do comércio local também se expressam como um centro que se desenvolve a par daquele que é definido como o coração do bairro.
44 Neste sentido, observei que sempre que estava na presença de um casal ou de um grupo misto de homens e mulheres, e perguntava algo sobre o bairro, quem falava mais vezes eram os homens. Ou caso fizesse alguma pergunta às mulheres sobre aspectos que caracterizassem o bairro, elas mandavam-me falar com outras pessoas, normalmente homens, e diziam que a sua vida era somente “casa-trabalho-casa”. Havia uma espécie de acordo implícito entre homens e mulheres, onde os homens eram quem parecia estar autorizado a falar do bairro. Na verdade, são eles quem dão a face ao bairro ou, em outras palavras, representam a faceta pública do bairro. Enquanto elas, ao representarem a faceta privada e doméstica, resguardam os seus comentários e observações para as pessoas que lhes são mais íntimas. Contudo, para conhecer melhor as dinâmicas internas do bairro, as mulheres são interlocutoras fundamentais.
45 Na acepção de Augé (1994), o centro comercial e o Metro poderiam ser definidos como não-lugares. Uma noção que, isolada, me pareceu pouco significativa para explicar a variedade dos fenómenos que experimentava, não porque eles se definissem por falta de relações sociais, históricas e espaciais, mas sim porque tais relações se encontravam contextualizadas e demarcavam territórios sociais e espaciais. Salientando que tais demarcações e relações não existiam somente porque, como antropóloga, o espaço havia sido inventado como lugar antropológico de observação. Aquilo que presenciei e experimentei nesses espaços só os transformaria em não-lugares aos olhos apressados do caminhante porque a repetição e as idas constantes deram-me a impressão de que são realidades contextuais que se exprimem por um conjunto de quadros de interação (Costa 1999), onde a multidimensionalidade das práticas e representações os aproxima da ideia de multilocalidade (Rodman 1992).
46 Consultar Duncan e Ley (1997b) sobre a dualidade da noção de topografia, na medida que essa noção tanto diz respeito a um sistema de conhecimento científico, implicando objetividade, racionalidade e tecnicidade; como diz respeito a uma ciência de dominação, validando fronteiras e normas de segurança, e tratando as controversas convenções sociais como factos sociais incontestáveis.
47 Pelo menos assim foi no período em que me encontrava em terreno de pesquisa.
48 No clássico Os Nuer, Evans-Pritchard (1978: 122-123), ao estabelecer uma distinção entre espaço ecológico e espaço estrutural, referiu-se às diferenças existentes entre distância física e distância estrutural, considerando que essa última noção, apesar de poder ser influenciada pelas condições ecológicas, diz sobretudo respeito à “distância entre grupos de pessoas dentro de um sistema social, expressa em termos de valores”, salientando mais adiante que “os valores atribuídos à residência, parentesco, linhagem, sexo e idade diferenciam os grupos de pessoas através da segmentação, e as posições relativas que os segmentos ocupam uns em relação aos outros fornecem uma perspectiva que nos permite falar das divisões entre eles como divisões do espaço estrutural”.
49 Aqui não me reporto a todas as situações de deslocação física no espaço. Por exemplo, na deslocação por motivo de trabalho existe obviamente uma relação entre distância percorrida e tempo despendido que pode ser percebida pelos indivíduos a partir de uma perspectiva geográfica. Daí ter procurado enfatizar que as observações aqui desenvolvidas somente têm sentido em determinadas circunstâncias e contextos. Ainda é recorrente observar que muitos me disseram não irem ou não conhecerem muito bem as redondezas por falta de tempo, já que o dia era preenchido no percurso casa-trabalho-casa. Não obstante muitas das práticas domésticas e caseiras poderem atravessar a porta de casa e apropriarem as ruas, mas voltaremos a essa questão. Por ora, a impressão com que fiquei é que os atos de caminhar, andar, passear ou deixar-se estar no bairro ou noutros locais da cidade encontram-se intimamente ligados às práticas de sociabilidade que se desenvolvem nos tempos e espaços de lazer ou, por outras palavras, de não trabalho.
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