Capítulo 1. Mouraria: da história à invenção de tradições
p. 69-152
Texte intégral
1Como uma mancha irregular que se espalha por entre o vale do Martim Moniz e as colinas da Graça e do Castelo, ocupando as vertentes norte e poente dessa última colina, a Mouraria estende-se irregularmente por quatro freguesias: Socorro e parte das freguesias de Santa Justa, São Cristóvão/São Lourenço e Graça. De difícil delimitação, é certo, porém, que o núcleo do bairro se encontra na freguesia do Socorro desde o século XVI.
2O bairro da Mouraria desenvolveu-se de forma a adaptar-se à topografia acidentada, às construções antigas e quase sem condições, às tradições, às diferentes gentes que por ali passaram, à má fama, às dinâmicas de segregação socio-espacial, às imposições da política urbana e às dimensões próprias de um espaço local que se inscreve numa dinâmica de globalização. Dimensões da realidade social e urbana que complexificam a análise do bairro como a tentativa para o contextualizar no conjunto da cidade. Por onde começar? Talvez pelo nome do bairro…
3Pensar, ouvir, falar em Mouraria sugere um conjunto de imagens heterogéneas que transitam entre as ideias de tipicidade e cultura popular, marginalidade e perigo, multiculturalidade e multietnicidade. Uma denominação que se repercute no nosso subconsciente urbano através de uma imagem imbuída de muitos significados e significantes, mas que também nos guia em direção à sua origem etimológica: Mouraria foi o nome utilizado para designar o “vale dos vencidos”.
4Significados e significantes que nos conduzem a um ponto crucial para o entendimento do bairro: a dualidade da sua invenção. Um ponto que será tocado no decorrer de todo o trabalho porque também remete para uma outra questão: a dualidade das representações (Duncan 1997a, 1997b; Low 2000a). Porque, por um lado, a Mouraria teve uma origem histórica datada, formal e oficial. Mas essa Mouraria que surge como um espaço segregado para os mouros vencidos extravasaria as suas próprias muralhas, dando lugar a uma complexa dinâmica de mistura urbana, social, cultural e religiosa como a um elaborado processo de “estigmatização territorial” (Chaves 1999)1 e, seguidamente, um processo de emblematização (Cordeiro 1995). Por outro lado, a invenção da Mouraria reporta-se a uma complexa rede de elementos temáticos, condicionantes socio-históricas e inventores que, algures no século XIX, a inventaram como um bairro típico e tradicional. Na busca das origens que possam justificar essa Mouraria é pouco profícua a tentativa de encontrar um inventor, mas existem precedentes que parecem justificar essa Mouraria tradicional, precedentes esses que se guiam por princípios simbólicos orientadores e que fazem eco do mito da Severa, muito próximo de um mito de fundação.
5Numa outra perspectiva, entre os anos 30 e 60 do século XX, a Mouraria tornou-se foco de uma política urbana promulgadora de um “urbanismo civilizador” que pretendeu reinventar o bairro numa ótica de modernização.
6No decorrer de um processo de reconstrução simbólica e de reconfiguração da imagem urbana do bairro são ainda fatores decisivos: a instalação de um comércio vocacionado para revenda e que, desde a década de 70 do século XX, vem sendo, cada vez mais, controlado por indianos e chineses, seguidos de portugueses e de africanos; e o início de um processo de reabilitação urbana, em meados dos anos 80, que irá reinventar a imagem do bairro a partir de uma política de recuperação e requalificação socio-urbanística.
7Fundamentar, histórica e urbanisticamente, uma tal realidade social e urbana constitui, então, o propósito deste capítulo.
A invenção da Mouraria de Lisboa
O arrabalde da Mouraria
8Como resultado da reconquista cristã, em 1147, mouros e judeus que não deixaram a cidade tiveram de residir semienclausurados numa “comuna” ou “arrabalde”.2-3 O arrabalde mouro de Lisboa foi formado no rescaldo da reconquista cristã, ainda antes da instituição da comuna. Data de 1170 o foral que instituiu a comuna moura, sendo anterior ao outorgado à maioria cristã. Pode-se, assim, considerar que a invenção da Mouraria possui uma origem datada e formal.
9O arrabalde dos mouros vencidos foi “isolado dos fieis da cruz, constituindo no valle profundo que fica no sopé dos montes orientaes […]. Trepando em pittoresco amphitheatro pelas encostas, a communa dos mouros, cerrada com muralhas e cadeias, como as judiarias” (Ribeiro 1907: 251). Situada na encosta da colina do castelo, a norte da Cerca Moura e longe da zona comercial da cidade, na Rua Nova, a Mouraria parece ter sido intencionalmente localizada longe do rio, de forma a dificultar uma “combinação militar com os seus correligionarios de alem-Tejo ou mesmo do alem-mar” (Azevedo 1900: 269).
10Embora não se saiba com exatidão os limites do núcleo do arrabalde mouro, existem indicações de que tinha muros à sua volta e possivelmente duas portas nos dois extremos da Rua Grande Direita (atual Rua dos Cavaleiros) (Barros 1994: 591), pelo que:
“Os limites da Mouraria não se podem por enquanto, determinar exactamente. Pelo sul ficava a meio da encosta do Castello, pelo poente era limitada pela rua direita da porta de S. Vicente, hoje chamada da Mouraria, e pelo nascente não passava alem da entrada da rua da Amendoeira. Da parte norte ainda é maior a dúvida, porque era aqui onde se encontravam os almocavares dos judeus e dos mouros, os quaes terrenos foram depoes cortados por diversas ruas, ao que parece. […] Do lado poente o bairro dos mouros não passava das modernas ruas da Mouraria e da rua do Benformoso.” (Azevedo 1900: 270-271)4
11D. Afonso Henriques concedeu autoridade religiosa e civil aos muçulmanos que não deixaram a cidade e, assim, as comunas mouras constituíram-se “à margem da jurisdição municipal e senhorial, definindo-se a sua permanência em função dos vectores de diferenciação (intrínsecos às próprias comunidades e emanando da sua identidade religiosa/cultural) e de segregação (veiculada pela sociedade circundante)” (Barros 1998: 22). Mouros e judeus foram obrigados a cumprir determinados serviços, encargos e impostos. As medidas segregacionistas visavam restringir o quotidiano das minorias ao seu próprio espaço sociocultural, evitando, assim, o contacto entre membros de diferentes religiões. A segregação espacial desses arrabaldes projetava-se no ordenamento do espaço urbano, desse modo separando-os da envolvente urbana (Barros 1998: 141).
12Na envolvente dos edifícios de mais prestígio e que simbolizavam a organização da comuna e a identidade religiosa dos muçulmanos, foi estruturado o espaço público do arrabalde. A manutenção do arrabalde e do seu perímetro exterior era da responsabilidade da comuna muçulmana. A Mesquita Grande (300m2) – sob a atual Igreja do Socorro (Colégio de Santo Antão, também conhecido como Coleginho) – foi o principal edifício deste arrabalde. Junto à mesquita encontrava-se a escola (48m2), provavelmente vocacionada para o ensino religioso, conforme se verifica em outras cidades muçulmanas do período medieval. Também havia uma Mesquita Pequena (47m2) que se situava próxima a uma das entradas do bairro, na Rua de Dentro da Mouraria. Da propriedade do rei, os banhos e a carniçaria (3m2) encontravam-se fora dos limites internos da Mouraria – na esquina da Rua de Benfica (atual Rua do Benformoso)5 com a Rua Grande Direita. Próximo da Porta de São Vicente situava-se o curral, também propriedade do rei. A comuna tinha a sua própria cadeia (13m2), mas não se sabe a sua localização. Através de um poço designado como “poço dos mouros” era efetuado o abastecimento de água. O cemitério (almocávar) situava-se entre a encosta de Santa Maria da Graça e de São Gens (Barros 1998: 142-143).
13Determinados elementos do urbanismo muçulmano são identificáveis na toponímia (por exemplo: Borratém, Capelão, Olarias, Cavaleiros), no traçado estreito das ruas, nos becos sem saídas e em algumas casas térreas. Mas, regra geral, os edifícios da Mouraria não eram muito diferentes dos seus contemporâneos medievais, à exceção de algumas casas térreas que possuíam um quintal fronteiriço, possivelmente murado, desse modo diferenciando-se dos restantes casos medievais, pois este modelo é mais próximo daquele que caracteriza a casa muçulmana onde era comum a existência de um pátio interior (Barros 1998).6
14A abundância de água no vale que nasce no Areeiro e termina no Rossio, e que outrora constituía um braço do rio Tejo, facultou a proliferação da cultura intensiva de hortas que eram chamadas almoinhas. O abastecimento de hortaliças para a cidade provinha em grande parte dessas hortas. No entanto, a agricultura era um complemento económico, pois o sector secundário detinha uma percentagem de 84,6% do total das atividades, para apenas 1,3% do primário e 14,1% do terciário (Barros 1998: 90).7 As atividades artesanais foram aquelas que mais dinamizaram economicamente a comuna. Na Mouraria havia escolas industriais (com oficinas e teares) que estavam sob a proteção dos soberanos – ao que tudo indica desde D. João I. A importância da comuna moura de Lisboa não advém da sua preponderância económica, mas sim do facto de ela se ter constituído como um modelo nacional através do qual eram veiculados normas e regras comportamentais aplicadas às outras comunas do território.
15Os tecelões de tapetes muçulmanos, juntamente com os oleiros, eram um dos grupos privilegiados da Mouraria, encontrando-se isentos dos encargos tributários, sendo mesmo considerados como a elite social do arrabalde já que, ao contrário dos judeus que se encontravam distribuídos pelo patriciado e pelas classes médias, a maioria dos mouros pertenciam às camadas mais desfavorecidas da sociedade (Marques 1994a: 515).
16Estas dinâmicas sociais, económicas e espaciais viabilizaram a definição de dois núcleos centrais na Mouraria. Um desses núcleos encontrava-se no interior do arrabalde e correspondia à área da Mesquita Grande e da escola, onde também havia casas de oficiais da comuna. Esse núcleo era acessível pela Rua Grande Direita que ali se prolongava numa outra rua designada pelo nome de Rua do Físico. De características artesanais e comerciais, o outro núcleo formou-se na zona da Mesquita Pequena, junto dos banhos e próximo da Rua de Benfica, ou seja, já fora do núcleo muralhado (Barros 1994: 591). Curiosamente, verifica-se que esses dois núcleos são importantes naquela zona até aos dias de hoje.
O arrabalde novo da Mouraria
17Em 1375, Lisboa encontrava-se cercada pela Muralha Fernandina, perfazendo um espaço interior de mais de 103 hectares do qual o arrabalde mouro não fazia parte (ver mapas 1 e 2). Tomada como uma cidade média a nível europeu era, entretanto, a maior cidade portuguesa. Embora a média das casas possuísse rés-do-chão e primeiro andar, eram numerosas as situações de casas térreas, muitas das quais se alongavam em quintais murados, pomares e hortas, reflexo de uma cidade cuja paisagem ainda era marcadamente rural. Uma situação que caracterizava a maioria das paróquias desse período e que, no caso das freguesias mais periféricas – Santa Justa, Mártires, Santo Estevão, São Vicente de Fora e a própria Mouraria –, se prolongava para fora de portas, sendo as áreas verdes muitas vezes interceptadas pela muralha.8
18A população da cidade aumentou entre os séculos XIV e XV, ultrapassando os 50 000 habitantes em finais do século XV (Rodrigues 1994a). Este aumento demográfico foi correspondente à elevação dos andares de algumas das casas. No entanto, a população do arrabalde ainda era relativamente reduzida, com um pouco mais de 500 habitantes, entre o quais se contavam os cristãos que começavam a fixar-se nas áreas fora da zona muralhada da Mouraria. Com o intuito de incrementar o crescimento demográfico daquela zona, D. Dinis isentou os muçulmanos que para ali fossem viver de alguns dos tributos a que normalmente estariam obrigados, e provavelmente essa ordenação influenciou o desenvolvimento do arrabalde novo da Mouraria (Barros 1998: 144).
19A migração interna e externa, a importância das atividades económicas (sobretudo as artesanais) e a própria localização da comuna muçulmana – próxima do poder, do centro urbano e de uma das saídas da cidade em direção a norte – foram importantes vetores na atração de cristãos e muçulmanos, contribuindo para o aumento da população e a respectiva ocupação das áreas exteriores ao arrabalde muralhado.
20Após a construção da Cerca Fernandina, a Mouraria continuou a desempenhar um papel importante nas trocas comerciais entre a cidade e o campo, e nessa intensa atividade económica era cada vez mais evidente a participação dos cristãos. Embora o processo de segregação a que estavam sujeitos os mouros se materializasse na própria organização arquitetónica do espaço, a dinâmica económica que teve lugar na Mouraria provocou um movimento de atração, levando a que cristãos e muçulmanos dessem início a um convívio profissional e de vizinhança que, segundo Barros (1998: 143), somente teve lugar nessa zona da cidade.
21Numa petição ao soberano, datada de 1471, os mouros referem que “‘tinham sua Mouraria çarrada e portas fechadas de noite com suas chaves’, competindo rotativamente aos seus moradores fechar e abrir as portas, e a vigilância nocturna desse perímetro. Não obstante, o conceito de ‘Mouraria’ revela-se mais amplo, pelo menos para os cristãos, que, a partir de finais do século XIV, designam como tal a Rua de Benfica, embora esta se encontre já no prolongamento exterior do bairro” (Barros 1994: 591). No entanto, se em finais do século XIV a Rua de Benfica (atual Rua do Benformoso) era referida como “estando ‘acima’ ou ‘a par’ do arrabalde”, no século seguinte passou a ser “designada como um arruamento a mais da Mouraria” (Barros 1998: 141). Nessa rua houve uma grande concentração de olarias, atraindo e fixando uma população cristã, dando, assim, início a um convívio multiétnico: “pela complementaridade económica de habitantes cristãos e muçulmanos da cidade, constituindo a Mouraria mais do que um espaço fechado sobre si, uma zona que participa activamente na satisfação das necessidades económicas do centro urbano em que se integra” (Barros 1998: 96).
22Mouros e cristãos ligados à atividade oleira iniciaram a ocupação da área entre a Mouraria e o cemitério dos muçulmanos e judeus (entre as colinas da Graça e da Senhora do Monte). Ali começaram a extrair a argila para o trabalho das olarias.
23A organização industrial dessas olarias era reduzida a uma lógica de oficina caseira, onde
“cada proprietário da olaria habitava na sua casa, ao mesmo tempo oficina e tenda, a qual possuía anexo, no quintal, um forno para cozer a louça. Com o dono residiam os oficiais, aprendizes, forneiros e criados solteiros, que o auxiliavam na sua indústria. E toda a olaria de maior vulto possuía, além disso, um ou dois almocreves para o serviço de carreto de materiais e entrega de encomendas. Nas casas em volta acolhiam-se os oficiais e pintores de louça e azulejo, casados ou acompanhados de família.” (Virgílio Correa em Rodrigues 1970)
24Na antiga Rua das Tendas (atual Rua Marquês de Ponte de Lima), encontrava-se situado um mercado de artefactos de cerâmica, barro e azeite. Essa rua tinha início no atual Largo do Terreirinho e seguia em direção ao Coleginho, acabando na Cerca Fernandina.
25Os lagares de azeite também foram importantes naquela área da cidade, dando nome a uma rua e a uma travessa. A Rua dos Lagares ficava numa área cristã e mais adiante ficava Rua das Olarias, onde conviviam muçulmanos e cristãos. A Rua de Atrás dos Lagares foi a primeira via de comunicação da zona das olarias e, inicialmente, foi conhecida por carreirinha – embrião da atual Rua dos Lagares – pois era o local de
“passagem obrigatória das mulheres cristãs que se dirigiam de Santo André para os lados de Santa Bárbara, às quais era proibido transitar pela Mouraria, bairro infecto, afim de não terem tratos inconvenientes com os seus desprezados habitantes, sendo a infracção castigada, primeiramente, com a pena de morte, como se vê da crônica de D. Pedro I.” (Macedo 1981, vol. I: 224).
26A par das casas populares dos trabalhadores das olarias e lagares, surge no arrabalde novo um casario de maior porte, construído em terrenos de média dimensão e em ruas mais largas que o antigo arrabalde. Nessas casas, instalaram-se famílias nobres e com outro nível socioeconómico. O arrabalde novo distinguir-se-ia em dois núcleos: a nascente o núcleo das olarias e, mais perto do arrabalde da mouraria, o núcleo dos lagares (Jorge 1994: 662-663).9 No entanto, na sua totalidade formavam o “arravalde novo da Mouraria da dita cidade homde estão os olleiros” (citação do Livro 6 da Extremadura, fl.105, com data de 1501, em Azevedo 1900: 273).
O fim do arrabalde da Mouraria
27Em 1496, com a expulsão dos mouros e judeus, foi desfeita a estrutura comunal da Mouraria e foram desmantelados os edifícios públicos e os símbolos muçulmanos, com a passagem de todos os bens dos mouros (Mesquita Grande e propriedades, cadeia e lápides do cemitério) para o antigo Hospital de Todos os Santos (Hospital Real). Como forma de identificação do novo proprietário dos imóveis, foi mandado colocar sobre as ombreiras das casas lápides em mármore com as letras S ou O, que eram as iniciais de Sanctorum Omnium, o monograma do hospital (Jorge 1994: 661).10
28No entanto, mesmo após o édito de expulsão dessas minorias, continuou no arrabalde novo o principal foco oleiro de Lisboa.11 Em 1502, os lagares que possivelmente já funcionavam entre a Rua e a Travessa dos Lagares, e onde mais tarde surgiu o Largo do Terreirinho (Farinha 1932: 7), também passaram para a propriedade do Hospital de Todos os Santos.
29À ocupação moura sucedeu-se a cristã que “invadiu o arrabalde, enchendo-o de templos, de ermidas, de procissões e de nichos, com seus cultos e devoções” (Ribeiro 1907: 255-256) e, assim, a Mouraria tornava-se parte da cidade. Mas
“se os ódios acabaram não acabou a ‘Mouraria’. A de Lisboa mantém ainda o seu nome numa parte do sítio por onde alastrava outrora. Assim no-lo explica Damião de Góis na sua descrição da capital […]. ‘Chega-se – diz ele – a um vale fértil e alegre, que toma o nome Mouraria, por isso que depois da conquista dos sarracenos se lhes permitiu que elles alli ficassem habitando’. Hoje, a velha Rua da Mouraria, tortuosa e escura, sem verdura e sem flores, é ainda um dos melhores espécimes medievais que nos ficaram; e quando à tardinha (antes do acender dos candeeiros) a observarmos com olhos de antiquário, revivemos quatro séculos atrás, e achamo-nos (afora a mesquinhez das lojas) em plena ‘Rua Nova’ de Afonso V.” (Castilho 1967: 298-299, 301)
A Mouraria numa Lisboa que se reconfigura
O lugar da Mouraria na Lisboa das Descobertas
30Consumando a primeira área de expansão urbana da cidade, aos poucos a economia da cidade começou a depender do rio e o seu movimento deu-se em direção ao Tejo e a ocidente, assim ocorrendo até ao século XVIII. Como observou Brito (1976: 26), “na era manuelina, termina a preponderância da colina original, agora afecta a funções espirituais […]. A vida da cidade passa a gravitar entre o Terreiro do Paço e o Rossio, a preponderância da Baixa, no comércio, no governo e noutras funções de relação, perdurará por mais de quatro séculos, até à descentralização dos nossos dias”. Pelo que “o conjunto de providências manuelinas pode considerar-se como o primeiro surto de urbanização de Lisboa” (Brito 1976: 26), uma cidade que era essencialmente constituída pela Baixa, com vocação comercial, artesanal e administrativa; pelos bairros de cariz popular, como a Mouraria – com uma vocação operária intimamente ligada às atividades dos oleiros – e Alfama.12
31As Ordenações Manuelinas significaram um maior controlo no desenvolvimento do espaço urbano por parte do poder. É de observar o facto de que os Descobrimentos implicaram uma mudança na cosmogonia da sociedade portuguesa que, assim, passou a ser representada por uma força centrífuga e de abertura que se refletiu na própria organização do espaço, onde a cidade medieval rompeu de dentro para fora (ver mapas 3 e 4). Com a extinção das judiarias e da mouraria da cidade, tornou-se possível a apropriação pública dos espaços desses bairros e das suas ruas, até então privativamente apropriados pelos balcões, sacadas, alpendres e tabuleiros que serviam para expor os produtos comerciais. “Tornada pública, a cidade […] precisou romper-se a si própria, e fê-lo a partir do que a definia, do seu espaço público e seu espaço ritual” (Araújo 1990: 23, 26).
32Mas a par da expansão ocidental e ribeirinha, foi necessário desenvolver os eixos de ligação com o centro urbano da cidade e, assim, foram abertos os acessos lineares do Caminho de Penha de França – Graça e o eixo Arroios – Anjos – Mouraria, influenciando a dinâmica urbana de toda a área da Mouraria (Santana 1994: 517). Com o objetivo de facilitar a acessibilidade abriu-se a porta ou postigo da Rua Nova da Palma (1562) entre as portas de São Vicente e de Santo Antão. A nova serventia dava passagem pelos terrenos de propriedade do Mosteiro de São Vicente de Fora – que até à abertura daquela artéria foram usados como terrenos agrícolas. Tais intervenções contribuíram para o aumento da população na zona da Mouraria, que crescia paralelamente ao aumento da densidade populacional da cidade de Lisboa e que, no decurso do século XVI, havia ultrapassado o número de 100 mil habitantes, vindo a atingir os 165 mil em 1620 (Rodrigues 1994a).
33A expansão urbana da época deu-se em torno dos edifícios religiosos e o crescimento do bairro da Mouraria não fugiu à regra, desenvolvendo-se sem critérios de planeamento, acompanhando a mesma lógica do resto de Lisboa e de outras cidades portuguesas. Clero e nobreza empenharam-se na construção de um conjunto de edifícios de arquitetura erudita como igrejas, conventos e palácios, promovendo o desenvolvimento da zona que assim passou a ter um papel preponderante na definição e consolidação da religião.13 Foram fundados a Ermida de São Sebastião (1505 ou 1506, sendo a partir de 1662 designada por Ermida ou Capela de Nossa Senhora da Saúde), o Convento de Santo Antão-o-Velho (1540-1759) – onde havia sido a Mesquita Grande –,14 o Colégio dos Meninos Órfãos (1549), o Mosteiro da Rosa (1519-1755) e o palácio do Marquês de Tancos (1539).15 Muito embora o marco de urbanização dessa área da cidade esteja intimamente ligado à construção, em 1596, da paróquia de São Sebastião da Mouraria, posteriormente designada Nossa Senhora do Socorro (1646).
34Inicialmente o arrabalde da mouraria inseria-se na área da freguesia de Santa Justa – provavelmente existente desde a época de D. Afonso Henriques –,16 mas estava fora da jurisdição eclesiástica. O arrabalde somente foi oficialmente integrado nessa freguesia quando se extinguiu a mouraria (em 1496). Ressalva-se ainda que as freguesias mais antigas da cidade são anteriores ao domínio muçulmano, mas foi no século XVI que se multiplicou o número de freguesias, seguindo o surto de expansão urbana da cidade cuja área foi ampliada à custa dos territórios das paróquias mais periféricas.17
35Pelo que, tendo a Ribeira se convertido na zona mais rica e importante, era consequente o facto de que a partir da freguesia de Santa Justa se encontravam as zonas mais pobres da cidade. Os indivíduos mais privilegiados foram, assim, residir nas artérias mais amplas e elegantes também próximas do rio e, conforme aumentava a distância da zona ribeirinha, proporcionalmente pioravam as condições socioeconómicas dos seus habitantes, das ruas e das habitações. É de notar que os fidalgos da época “não desdenhavam a vizinhança dos mercadores e cedo se levantaram meia dúzia de palácios; para gozar a vista e a frescura do rio […]. Toda a margem se urbaniza do Terreiro do Paço às cercanias do actual Cais do Sodré, em menos de vinte anos” (Brito 1976: 25).
36A zona de Santa Justa acolhia, em concordância com o “Livro do Lançamento e Serviço” de 1565, as camadas populares da população. Dentre essas camadas distinguiam-se os braceiros (com 44% do total da população da zona) – representando 22,7% das famílias inventariadas –, os oficiais mecânicos (19% do total) e os lavradores (35% do total) (Rodrigues 1970: 105). Situada entre as freguesias da Ribeira e de Santa Justa estava a freguesia de São Nicolau, constituindo-se como uma área de transição entre a zona mais aristocrática e a popular. Podendo-se, inclusivamente, fazer referência a “um verdadeiro fenómeno de sucessão ecológica nessa região: os burgueses e os aristocratas estabelecidos na Ribeira expulsam as classes populares para além dos antigos limites fortificados da cidade, indo ocupar os vales mais distantes e onde desempenhavam actividades ligadas ao abastecimento da cidade” (Rodrigues 1970: 106). Era claro que a recém-extinta Mouraria continuava sujeita a um processo de segregação social e espacial.
37A princípio, nas ruas estreitas das zonas mais populares e mais antigas da cidade, proliferaram as casas baixas e de pequena dimensão, contrastando com as novas áreas residenciais que se iam consolidando em direção à Ribeira e a ocidente. Mas esses bairros populares e antigos logo se tornaram os locais de maior densidade populacional, de modo que as dificuldades de expansão geográfica corresponderam ao aumento em altura dos edifícios e dos níveis de ocupação intrarresidencial. Entretanto, rapidamente algumas dessas zonas populares ficaram saturadas, de modo que estabilizaram ou decresceram (Rodrigues 1997: 36-39).
O lugar da Mouraria na Lisboa seiscentista
38A Mouraria seiscentista já tinha alastrado pela área circunvizinha, indo na direção sul até ao Poço do Borratém e traseiras de São Domingos, e para poente até à Rua da Palma (Sucena 1994a: 589). Esta situação fazia jus ao quadro de uma Lisboa formada por uma “teia medonha de pequenas ruelas que se cruzavam, estreitas e tortuosas, irregulares na sua largura, cheia de becos e betesgas” (Castelo-Branco 1990: 25).
39Em termos urbanísticos, entretanto, a cidade ainda lidava com sérios problemas de acessibilidade, sujidade e controlo de novas construções ou ampliações das construções existentes, dificultando ainda mais a circulação interna. Um ambiente urbano que assim continuou na centúria seguinte, sendo muito criticado pelos viajantes estrangeiros que por aqui passavam (Santos, Rodrigues e Nogueira 1992).18
40No sentido de instituir melhorias na circulação interna e na rede de esgotos, foram abertos e ampliados mais portas e postigos, assim como se procedeu a alguns poucos melhoramentos na rede de canos. Na Mouraria, quanto à antiga Porta de São Vicente, em 1672, “por motivo da dificuldade da circulação no local, e depois de considerados vários alvitres, propôs a Câmara ao rei D. Pedro II que se rompesse ‘a torre das portas da Mouraria em um arco que tenha capacidade de passarem coches, para que assim, podendo tomar a rua dos Canos para o Rocio, se evite o continuo embaraço da passagem da rua Nova da Palma’” (Silva 1987: 43)19.
41Posteriormente, foi construído o Palácio do Marquês do Alegrete (1674), sendo o arco da Mouraria integrado na sua fachada, daí ter passado a ser também conhecido pelo nome do palácio. A serventia da Rua Nova da Palma, em 1673, já era tomada como um dos principais acessos da cidade. Tentou-se ainda resolver alguns dos problemas de salubridade e de escoamento das águas com a construção da rede de canalização e a ampliação da serventia da Rua dos Canos (1673), onde se propôs colocar uma “grade de ferro groça no cano real da banda de dentro do muro (cerca), defronte da rua dos Canos” (Silva 1987: 53).20
42O crescimento demográfico e urbano iniciado no século XVI desacelerou-se em finais da primeira metade do século XVII, apenas se verificando uma continuidade na ocupação das áreas da cidade que se encontravam vazias. A sucessão de crises catastróficas aumentou os níveis de mortalidade, diminuindo as vagas migratórias e a taxa de crescimento urbano. Em finais do século XVII deu-se um novo impulso no crescimento da cidade, entretanto interrompido, em meados da centúria seguinte, por motivo do terramoto de 1755 (Baptista e Rodrigues 1995).
O lugar da Mouraria na Lisboa setecentista
43O terramoto de 1755 atingiu sobretudo a zona situada entre o Terreiro do Paço e o Rossio, da base do Monte do Castelo a São Roque, o Bairro Alto e parte de Alfama e de Sant’Ana. Desde então observa-se que o crescimento urbano dessas diferentes zonas seria marcadamente distinto das épocas anteriores (Marques 1967). Já que a “empresa pombalina, na sua brutal operação cirúrgica, marca uma etapa fundamental, separando duas Lisboas – a medieval e barroca e a moderna, que o século XIX desenvolverá” (França 1989: 53). Na verdade, o empreendimento pombalino remeteu para o esquecimento as áreas mais antigas da cidade, indiretamente acelerando as dinâmicas de degradação e segregação espacial. Na delineação desse novo quadro urbano, a zona da Mouraria saiu particularmente prejudicada.
44O terramoto pouco alterou a malha urbana da Mouraria. Foram sobretudo destruídos alguns edifícios, igrejas e os palácios do Marquês do Alegrete e da Rosa,21 implicando a reconstrução e alteração dos alçados de alguns edifícios. A maior parte dos danos verificaram-se na zona das olarias e na parte superior da Rua dos Cavaleiros. Após o terramoto, precisamente em 1759, a situação da Freguesia de Nossa Senhora do Socorro foi descrita do seguinte modo:22
“[…] esta freguesia de Nossa Sn.rª do Socorro tem ao prezente outo centos e trinta fogos, e tres mil, e trezentas e trinta pessoas, he orago da parochia Nossa Sn.rª com o titullo do Socorro, tem quatro altares, a saber o altar mayor em que está Nossa Sn.rª do Socorro, o das Almas em que está Santo André, e São Miguel, outro de Cristo crucificado, e o de Nossa Senhora da Conceição […].” (Portugal e Matos 1974: 267-268)
45Nas áreas pouco afetadas pelo terramoto, “onde o sol dificilmente entrava, amontoavam-se os edifícios altos e esguios. Grades exteriores de madeira faziam as vezes de vidraças, de longe mais dispendiosas. A má qualidade dos materiais utilizados para construir o tecto e as paredes nem sequer isolavam os seus ocupantes do Inverno ou do calor estival” (Rodrigues 1997: 55). Se a qualidade das habitações e as condições sanitárias da cidade eram, na sua generalidade, precárias, no caso dos bairros da Mouraria e Alfama esses problemas eram consideravelmente piores. As habitações não ofereciam nenhuma espécie de conforto ambiental. Com poucas ou nenhuma divisão; e no caso da existência de uma segunda divisão, essa normalmente servia como espaço de oficina e trabalho.
46Contudo, passados os traumas urbanos provocados pelo terramoto, a cidade retomou o crescimento dos seus efetivos populacionais sobretudo devido ao fluxo migratório que, a partir de meados do século XVIII, tendeu a condicionar, cada vez mais, a dinâmica da cidade (Rodrigues 1997: 61). Nos bairros mais populares isto correspondeu ao aumento da densidade populacional e construtiva (e em altura), vindo a tomar conta das áreas verdes e obrigando as pessoas a compartilharem os seus espaços privados. Forçosamente, as condições de vida nesses bairros eram cada vez mais precárias e insalubres.
47É neste período que se dá a consolidação e edificação do troço sul da Rua dos Cavaleiros e a ligação dessa rua com a Calçada de Santo André, o que implicou o derrube de alguns edifícios e a abertura do atual Largo do Terreirinho. Nesse período, também se instalaram algumas famílias nobres no bairro e na envolvente, preferencialmente nas partes altas situadas entre a área mais popular e densa e a Costa do Castelo, onde as casas nobres, como os palácios da Rosa e do Marquês de Tancos, intercalavam com os conventos.
A Mouraria numa Lisboa moderna
48Para Baptista e Rodrigues (1995), são três os momentos que definem a viragem de Lisboa para o século XX. Um primeiro momento deu-se após o terramoto de 1755, relacionando-se com a reconstrução da Baixa da cidade a partir de um modelo urbanístico identificado com a sociedade industrial. O desenvolvimento então desencadeado acelerou a ocupação e respectiva expansão da cidade em direção a Belém e ao interior (Penha de França, Campo de Santa Clara, Rato, Campolide e Campo Grande). Um segundo momento respeita à abertura da estrada de circunvalação, em 1852, permitindo delimitar a área da cidade. Contudo, nessa época o desenvolvimento urbano ainda se apoiava em modelos tradicionais, confrontando-se com as dificuldades colocadas pelo crescimento continuado dos efetivos populacionais, sendo decisiva a substituição do Passeio Público, em 1879, pela Avenida da Liberdade, para assim serem alterados os modelos de desenvolvimento urbano. Paralelamente a esse novo eixo viário, abriram-se eixos perpendiculares – que facultaram a constituição de novos bairros, ocupados sobretudo pela classe média – e desenvolveram-se os transportes públicos urbanos. O crescimento urbano realizar-se-á, assim, no sentido definido pelos novos eixos viários que se iam abrindo, pelo que a consolidação do projeto das Avenidas Novas, em finais do século XIX, seria o terceiro marco para a viragem da Lisboa moderna.
49No âmbito do processo de urbanização oitocentista impõe-se um novo quadro socioeconómico, traduzido numa multiplicidade de fenómenos distintos entre si: migrações, industrialização, atividades portuárias, regime de propriedade e forma de aproveitamento do solo (Rodrigues 1995: 45). A cidade reconfigura-se e reinventa-se de modo a conjugar um composto variado de especificidades e descontinuidades socioculturais, económicas e urbanas23 (ver quadro 1).
50O crescimento da cidade intensificou-se na segunda metade do século XIX. Dos cerca de 170 mil habitantes e dos 44 mil fogos de princípios do século XIX, Lisboa atingiria os 350 mil habitantes para 78 mil fogos em 1900, contribuindo para tal o avanço dos fluxos migratórios, bem como a inclusão de novas freguesias que aumentaram o perímetro urbano da cidade (Rodrigues 1995: 65).24 Neste sentido, o quadro 2 permite observar as tendências de crescimento demográfico da cidade no decorrer do século, dando a ver a relação entre os saldos fisiológicos e migratórios.
51Condição essencial dessa Lisboa que se modernizava, foi o aumento do fluxo migratório daqueles que, de toda parte do país e também da Galiza, vinham para trabalhar como aprendizes, lavadeiras, carregadores, operários, artesãos, vendedoras, etc.
52No decurso do século XIX, o centro da cidade concentrou a maioria da população de Lisboa. Esse centro correspondia a uma primeira zona de ocupação urbana.25 Contudo, a dinâmica urbana da cidade é alterada com o crescimento do fluxo migratório e o desenvolvimento dos meios de transportes – o elétrico e o caminho de ferro –, sobretudo a partir de 1911. As chamadas classes populares passam a viver na periferia, embora continuem a trabalhar no centro da cidade.
53Nas primeiras décadas do século XX, dá-se a proliferação dos bairros de lata e o crescimento da cidade passa a ser de forma cada vez mais caótica. A partir de 1930, verifica-se que essa segunda zona de habitação já guarda mais de metade da população urbana, aludindo ao crescente processo de suburbanização da capital que, desse período em diante, tenderá a ser mais intenso.26 Entre as décadas de 60 e 90 do século XX, as duas primeiras zonas, onde está incluída a Mouraria, perdem cada vez mais população. Observando-se que, a partir da década de 90, será uma terceira zona que passará a deter mais de metade da população (Baptista e Rodrigues 1995).27
O lugar da Mouraria na Lisboa oitocentista
54Com a renovação da população da cidade, os bairros populares viram o seu quotidiano ser significativamente alterado e, assim, passam a ser identificados como “bairros pobres da cidade” (Cordeiro 1995: 163). Esses bairros logo se tornaram o porto de abrigo dos novos e jovens habitantes, correspondendo a uma das áreas mais densas da cidade, quer pelo vertiginoso aumento populacional quer pelo aumento da densidade construtiva. Paralelamente, observou-se o agravamento das condições de vida e de coabitação, sobretudo em bairros como Alfama, Mouraria e Bairro Alto, onde se registaram subidas de 11,4% e 37,5% nos efetivos populacionais entre as duas metades do século XIX (Rodrigues 1995).
55Se a “Lisboa dos Oitocentos pouco se modificou no que respeita aos comportamentos humanos […), foi caracterizada por altos níveis de mortalidade, diferencial segundo os sexos, as idades e os locais de residência, que só no final do século tendem a regredir”, ao que “a geografia da mortalidade de crise” iria sobretudo afetar as áreas que concentravam as populações recém-chegadas e que eram as mais densas da cidade (Rodrigues 1994b: 48, 68). Mediante esse quadro catastrófico, é de distinguir a situação da Mouraria que, ao longo da centúria, se particularizou como uma das áreas mais pobres e de maior concentração populacional – com um elevado percentual de homens solteiros e jovens – e ainda por possuir uma das maiores taxas de mortalidade.28 Vale a pena notar que, em princípios do século XIX, a Mouraria, Santa Catarina e Alfama se distinguiam por possuírem as maiores densidades populacionais. E, em finais do século, os espaços com densidades superiores a 600 hab./ha seriam os bairros da Mouraria e Bairro Alto (Rodrigues 1995).
56Proporcionalmente ao aumento dos efetivos populacionais na Mouraria, aumentou a ocupação das áreas ainda não construídas. Construiu-se intensivamente nos terrenos envolventes à Calçada de Santo André e às ruas João do Outeiro e da Mouraria, isto é, nas áreas limítrofes, internas e externas à Cerca Fernandina (ver mapa 5). E nos logradouros e nas traseiras dos edifícios do bairro surgem pátios e vilas que logo se tornaram contextos isolados: de certo modo, ainda mais segregados do que o próprio bairro.29 Se aqui considerarmos a ideia de uma Mouraria ampliada, em finais do século são construídos os seguintes pátios e vilas: Vila Luz Pereira (localizada na Travessa do Jordão, no local onde existia o Pátio do Jordão, foi inicialmente chamada Vila José de Oliveira), com tipologia de vila operária e com uma traça arquitetónica de melhor qualidade comparativamente à Vila Eduardo (também na Travessa do Jordão); Vila Almeida (1895); Pátio do Coleginho (ambos na Rua Marquês de Ponte de Lima); Pátio das Olarias (Rua das Olarias); e Vila Júlia (Calçada Agostinho de Carvalho).30
57A degradação das condições de vida nos pátios e vilas da cidade era, na sua globalidade, proporcional ao crescente aumento da densidade populacional, levando a que em 1902 esses espaços fossem objeto de um inquérito que publicitou a situação deplorável desses contextos lisboetas:
“Recintos irregulares, onde se aglomeram os vários moradores em pequenas habitações de construcção defeituosa e muita limitada capacidade, húmidas por encostarem ao terreno, ou terem lojas subterrâneas. Enfim, em deploráveis condições de salubridade, mas que, pela falta que se nota em Lisboa de casas convenientes para operários e classes pobres e indigentes, a esses immundos recintos não lhes falta moradores e os senhorios assim folgam desalmadamente.” (Inquérito aos Páteos de Lisboa 1903: 5-6)31
58Tais condicionantes contribuíram para a degradação da existência humana na Mouraria. As casas velhas e húmidas estavam superlotadas, não havia braseiros ou fogões para as pessoas se aquecerem no inverno, e em muitas casas nem água canalizada havia. Os despejos eram atirados para o meio das ruas, traseiras e quintais que, entretanto, estavam repletos de animais, aumentando a sujidade do bairro. Na rua, praticamente fazia-se de tudo, assava-se as sardinhas, intrigava-se, namorava-se, brincava-se, catava-se piolhos, conversava-se, brigava-se…
59Em paralelo acentuava-se um processo de segregação social e espacial a que o bairro e os seus habitantes parecem ter sempre estado sujeitos. Sem querer com isso dizer que os seus habitantes não se relacionassem (ou não se relacionem) com os outros universos urbanos ou que ali não tenham residido estratos populacionais com mais recursos económicos, pois desde o édito de expulsão dos mouros e judeus que existe uma simbiose nessa zona da cidade. Repare-se, assim, que em finais do século XIX instalaram-se na Mouraria famílias ligadas à aristocracia e à burguesia, dessa vez ocupando o troço final da Rua do Terreirinho e da Rua do Benformoso com edifícios de traça arquitetónica de mais qualidade e com maiores dimensões ao inverso das habitações populares. Na realidade, o processo de renovação populacional e de ocupação espacial implicaria “uma simbiose complexa entre antigos e novos habitantes, todo um leque de interacções entre diferentes camadas sociais que coexistem, próximas ou distantes num mesmo espaço social” (Cordeiro 1995: 165).
60No entanto, no século que se seguiu, muitas das famílias aristocráticas e burguesas deixaram o bairro e esse abandono proporcionou a ocupação dos logradouros e da envolvência dos edifícios onde residiam com pequenas atividades industriais ligadas à fabricação de sabão e a padarias (Vieira 1994). Alguns palácios e casas nobres foram abandonados e reocupados ou subalugados pelos estratos mais pobres da zona, sofrendo subdivisões nos seus espaços interiores, transformados em compartimentos com dimensões mínimas. O Palácio do Marquês do Alegrete seria adaptado como prédio de rendimento e, até ao seu desaparecimento, foi ocupado por famílias proletárias, estabelecimentos industriais e comerciais (Silva 1987: 51). E o Palácio da Rosa, com a morte do terceiro Marquês de Ponte de Lima seria abandonado, tornando-se um “montão de escombros, inabitável e sinistro, onde se refugiavam os perseguidos da polícia, nas rusgas da Mouraria. Durante muitos anos o glorioso edifício […] esteve convertido em valhacouto de ladrões e albergue de mendigos, que o consideravam abrigo inviolável, onde para sempre se lhes perdia o rasto e onde nunca se aventuravam os beleguins da judiciária” (Cartas de Lisboa, em Andrade 1957: 63).
61Num certo sentido, as condicionantes históricas e geográficas, a pobreza e os fenómenos de concentração, distribuição e interação conduziram à invenção de determinados sistemas culturais adstritos ao território do bairro. E numa perspectiva mais ampla, contribuíram para a proliferação de um conjunto de elementos temáticos que, a par das condicionantes históricas, sociais e espaciais dos outros bairros antigos da cidade, se refletiriam na invenção das tradições populares. Isto correspondeu a um processo de emblematização da Mouraria como um dos bairros antigos embebidos de eficácia simbólica para representar e tipificar a cidade, sendo porquanto um bairro tradicional e típico (Cordeiro 1995). Na verdade, por detrás dessa emblematização ensaiava-se um elaborado processo de estigmatização territorial (Chaves 1999), que inclusivamente se refletiu e se reflete na própria imagem do bairro.
62Sem menorizar o conjunto de dinâmicas e fenómenos que conduzem ao isolamento da Mouraria e, por conseguinte, à segregação socio-espacial, conotando o espaço social do bairro com um certo grau de marginalidade, é preciso notar, no entretanto, que o local se relaciona com o universo circundante. Pelo que o isolamento do bairro tanto é o reflexo da singularidade que ali assume a relação entre local e global como é um bom ponto de partida para compreender alguns aspectos da sociedade mais ampla, como se o bairro fosse capaz de relativizar a sociedade urbana que se constituía na Lisboa de oitocentos (e também na Lisboa dos nossos dias).
63Para compreender o elo existente entre o processo de emblematização e estigmatização, é necessário explicitar que, por um lado, ambos se combinariam de modo a gerar uma identidade territorial. Por outro lado, essa identidade é, no plano social, cultural e espacial, contraditória (e de certo modo ambígua) e parece exprimir-se, enquanto realidade oitocentista, num misto de peculiaridade sociocultural, miséria e vício.32 Peculiaridade sociocultural porque alguns aspectos da dinâmica do bairro logo participariam de um conjunto temático mais amplo dando origem ao que se veio a chamar tradições populares, sendo esse conjunto composto por temas como o fado, arraiais, marchas, conversas, memórias, comportamentos, solidariedades, etc. (Cordeiro 1995). Miséria porque, como foi anteriormente referido, as condições de vida no bairro não eram as mais propícias. Vício porque essa parte antiga da cidade, com os seus bairros “ainda muito atrasados, servidos de ruas e bêccos estreitos e ingremes, povoados a maior parte de pardieiros, aonde residem as classes operárias e as viciadas” (Pinheiro 1905: 205) contribuiria também, em conjunto com o que se designou como peculiaridade e miséria, para a invenção de uma Lisboa boémia e que “aparece como um espaço social fechado marcado essencialmente pela marginalidade e sua especificidade que passa pelo espaço físico que a circunscreve (Bairro Alto, Alfama, Mouraria…) mas que a ele não se reduz; especificidade que passa principalmente pelo tipo de relações que se desenvolvem entre os participantes da boémia: prostitutas, fadistas, marialvas, chulos” (Pais 1985: 44). E, como também notou Machado Pais,33 esse espaço da boémia situar-se-ia na intersecção do mundo do fado com o da prostituição e dele participavam fadistas, marialvas, aristocratas, marinheiros, toureiros, boleeiros, vagabundos, prostitutas que, nas tabernas e nas esperas de touros, encontraram os seus espaços privilegiados para o convívio.
A Mouraria na geografia da boémia lisboeta
64Em paralelo às gentes dos ofícios e serviços e ao baixo nível socioeconómico da população, a Mouraria rapidamente se tornaria um bairro “mal afamado” e “tempestuoso” por causa da gente de “vida parasitária” e das “desordeiras”, sendo exemplo dessa condição as prostitutas e o tipo fadista.34 Na Lisboa boémia, a Mouraria teria um lugar cativo com as suas
“casas suspeitas, os hotéis para pernoitar, com a sua tradicional lanterna de luz frouxa, os seus cantos e recantos que protegem baixas aventuras, as estalagens das lavadeiras saloias, os vendedores de elixires maravilhosos que pregam ao domingo, a infabilidade dos seus medicamentos nos largos do bairro; e ainda o formigar de gente baixa pelas ruelas da encosta, o Capelão, João do Outeiro e Amendoeira, tudo nos ajuda a invocar o quadro cheio de cor deste bairro popular, onde ainda se vê nas mais sujas serventias o nicho, devoto, o registo dos azulejos com St António ou S. Marçal, e um ou outro pormenor arquitectónico dos tempos idos. […] Esta história animada e pitoresca ainda hoje se reflecte na fisionomia gritadora do antigo arrabalde cedido aos muçulmanos vencidos.” (Guia de Portugal 1991: 245)
65As prostitutas eram conhecidas pela sua fama de “desaforadas”, “intriguistas” e “tumultuosas”, como a notícia de uma tal Ana Rita que era uma “desordeira insuportável” e que, em 1820, vivia na Rua das Tendas, e de uma Ana dos Santos que, em 1826, vivia na Rua da Guia e era vulgarmente conhecida como “loureira piranga”. E mesmo já existindo uma Guarda de Polícia na Mouraria, desde 1830, “repetiam-se as desordens à navalha e a cacete – tudo por amor do Amor – entre marujos, soldados e paisanos”. Os sujeitos “sem ofício nem benefício e de patuscos de profissão vaga ou intermitente” reuniam-se nas tabernas e tascas que se multiplicavam pelas ruas do bairro: as tabernas de Maria do Nascimento e de José Monteiro na Rua da Amendoeira, a da Joana na Rua das Tendas, a do Mendes Coutinho no Largo do Terreirinho, a dos Migueis no Largo da Mouraria…; a tasca da Rita na Rua da Amendoeira e que era um verdadeiro “coito de ladrões e malfeitores”, sendo a dona “um vivo demónio”… (Carvalho 1994: 74-75).
66Ao longo do século XIX, criadas e costureiras parecem ter constituído um verdadeiro “exército de reservas” de prostitutas (Pais 1985: 81). As prostitutas acompanharam os fluxos migratórios do campo para o centro da cidade e, mais tarde, para a periferia urbana. No bairro da Mouraria viviam as do mais baixo escalão. Ali ocupavam as lojas ou casas térreas e, sobretudo, atraíam uma clientela popular.35 A freguesia do Socorro destacava-se no número de casas toleradas para o ofício da prostituição no período intercalar de 1841-1947, somente perdendo para a freguesia da Encarnação. Em 1841 havia, portanto, 51 dessas casas na freguesia e, em 1947, ainda existiam 25 (Pais 1985: 110).36
67O fadista era um dos tipos que se destacava neste ambiente. Isto é, aqueles que “repartiam a vida entre o fadário das baiucas, a intimidade tépida das mancebias com as marafonas e a residência temporária na cadeia ou no ‘chelindró’” (Carvalho 1994: 71).37 Vadios, arrogantes, desordeiros e galanteadores, assustavam só pelo nome: o “Facada”, o “Trinca”, o “Naifa” (Pais 1985: 46). E, assim, o fadista logo se tornaria
“um novo e curioso typo de Lisboa, um typo genuinamente privativo dos bairros miseraveis da Alfama e da Mouraria. E’ heroe das alfurjas, minado de taras hereditarias, crivado de enfermidades, roído pelo vício e pela bebida, lovelace dos alcouces, atrevido, insolente, rufião, covarde, faquista traiçoeiro, repositorio de todas as perversões, ocioso, inutil, tendo por arena dos seus triumphos a viella, a taberna, o café.” (Ribeiro 1907: 259)
68No bairro da Mouraria ficaram conhecidos os fadistas: Epifânio Mulato, um verdadeiro verdasca que quando não andava por aquelas paragens desempenhava o ofício de torneiro de botões; havia ainda o Justiniano, um torneiro de metal e vulgar “espirra-canivetes”; Manuel Saragoça, “faquista de primeira plana”; José Nabo, um serralheiro “latagão, um fadista de navalha e cacete, um roncador com farófia”; Rafael Serralheiro, o Duarte Perico, um “mariola turbulento”, o Tamanqueiro, um verdadeiro “gatuno”, o Preto da Tia Leocádia que “comandava as ‘troupes’ de matulões e garotos apedrejadores” (Carvalho 1994: 71-72).
69Estes homens e mulheres davam muito que fazer à polícia, ao ponto de Castilho (1967: 303) acreditar que as “estatísticas criminais hão-de abrir uma casa negra nos seus mapas, com o nome Mouraria. As cidades grandes todas têm sítios assim, para onde convergem, impelidos de uma força oculta, de uma gravitação sinistra, os detritos da escória moral e social. São os regueirões entre os píncaros; são o enxurro dos costumes”. Entrar na Mouraria depois do sol-posto era uma aventura…
70O mundo do fado, da vadiagem e da prostituição garantiu um lugar para a Mouraria na geografia da boémia lisboeta. Mas, sem descuidar o facto de que a aristocratização do fado, em finais do século, e a tendência para o aumento das densidades populacionais na periferia seriam decisivos para a diminuição da boémia no centro da cidade, ela não desapareceu de todo, mas talvez tenha ganho uma outra forma que perduraria praticamente até aos finais da primeira metade do século XX, quando o bairro sofreu uma radical alteração física e social. Contudo, tanto a fama que deu visibilidade à Mouraria como o lugar que conquistou junto aos outros bairros típicos não foram esquecidos, mesmo nos dias de hoje.
Severa: um mito de fundação?
71A Severa é uma personagem que está intimamente relacionada com este contexto espacial e temporal. Maria Severa Honofriana, aquela que logo se destacaria como a própria essência do fado. “Mito, lenda ou certeza, esta cantadeira portuguesa, de estilo original” (Baguinho 1999: 30) ficou na memória do fado e dos bairros típicos da cidade, em especial na memória social da Mouraria. Daí ser aqui interessante desconstruir o mito da Severa e verificar como o sistema de representações por ele evocado se reporta a um outro sistema de representações.
72É comum a ideia de que a Severa está associada à Mouraria. Mas versa a lenda que ela nasceu no bairro da Madragoa, na Rua da Madragoa (atual Rua Vicente Borga).38 Nessa rua, a sua mãe – chamada Barbuda, “possuía tanta barba, que a obrigava a cortá-la frequentemente” – chegou a ter três tabernas e foi nesses locais que a Severa manifestou o seu precioso jeito para cantar as desgarradas. A lenda ainda versa que a Severa e a mãe se mudaram para o Bairro Alto e só depois vieram viver para a Mouraria. A Barbuda era uma mulher “de faca na liga, cabelinho na venta e língua de prata, uma fadistona que podia medir meças às mais decididas, trigueira e mal-encarada – um estafermo”, ao contrário da sua bela filha, que era agradável, alta e formosa e que com a sua invejável voz de meio-soprano cantava o fado como um fadista (Carvalho 1994: 62, 67).
73Ao contrário das outras mulheres da sua estirpe, a Severa fumava em público. A lenda ainda reza que ela tinha um génio pior do que o da mãe. Foi muitas vezes questionada pela sua falta de modéstia e timidez, dois predicados femininos muito valorizados na época. Com uma personalidade vincada e canalha, a Severa tanto dava uma sova a quem a incomodasse como se comportava esplendorosamente quando lhe convinha. Conta-se que aquando da visita sanitária às prostitutas, a Severa amotinou-se, espancando os visitantes que tiveram que fugir do bairro. Diz-se ainda que a Severa e a mãe nunca chegaram a pagar a renda aos senhorios.39
74No bairro da Mouraria, a Severa e a mãe, viveram na Rua da Amendoeira numa casa cuja fachada tinha um azulejo com a Imagem da Virgem e a legenda: “Toda sois formosa Maria. 1777” (Câncio 1940: 343). De seguida, a Severa mudou-se para uma loja térrea na Rua do Capelão, local que se tornaria emblemático da curta existência dessa personagem que morreria aos 26 anos de idade.40
75Segundo a lenda, a Severa andou com um tal “Chico do 10” – assim chamado por ter pertencido ao Regimento de Infantaria 10 –, mas num dado momento da sua vida trocou-o por um outro e o Chico, cheio de ciúmes, foi fazer uma espera ao novo amor da sua amante, matando-o e fugindo posteriormente para África, onde morreu. Após o crime, em 1840, a Severa conheceria o Conde de Vimioso. Com ele passaria longas temporadas fora da Mouraria e iria a touradas e a festas aristocráticas. Severa passou a usar um “capote azul – a grande moda – e vistoso lenço de seda na cabeça”. Contudo, aos poucos, o conde desinteressou-se da sua amada, levando-a aos “abismos fuliginosos da morte” e, com a sua morte, a Barbuda que tinha entre os 56 e os 58 anos de idade, deixou a casa na Rua da Amendoeira e foi viver para o Pátio do Carrasco (Carvalho 1994: 79-84).
76O Conde de Vimioso – D. Francisco de Paula de Portugal e Castro – era um aristocrata ligado à linhagem do marquesado de Valença e aos Braganças, nasceu em 28 de julho de 1817, casando-se aos vinte anos de idade com uma fidalga mais velha do que ele e que depressa teve de se adaptar ao feitio irrequieto do seu marido, dedicando-se à criação dos filhos. Conta-se ainda que o Conde, aos 23 anos de idade, “distinguia-se na sociedade da época pelo seu inconfundível garbo de cavaleiro, espora dourada na Praça de Campo de Santana, nas feiras destemido alquilador e na alta roda mimoso atractivo das ‘élites’”, mas que também era muito respeitado no meio popular devido ao seu prestígio social, à sua força muscular e à sua desenvoltura nas touradas. O Conde de Vimioso viria a morrer a 9 de julho de 1864 com 47 anos de idade (Almeida 1952: 229).
77A princípio, repare-se que o próprio percurso de vida da Severa irá cumprir a passagem por três locais ou ciclos do próprio fado: Madragoa, Bairro Alto e Mouraria (ver quadro 3).41 Note-se, a partir desse ciclo, o percurso de aprendizagem e consolidação dos seus dotes fadistas que, mais tarde, lhe deram fama na Mouraria, onde viveu nas ruas mais emblemáticas do bairro, vindo a morrer na casa da Rua do Capelão, “nesta casinha sagrada/ Viveu, amou e sofreu/ Triste, só, abandonada/ Com vinte seis anos morreu” (Baguinho 1999: 40), como se pairasse na Mouraria “uma quadra lânguida e saudosa do Fado da Severa” (Câncio 1940: 367).
78Num outro plano, observem-se as potencialidades pessoais da Severa por comparação com a sua mãe e o Conde de Vimioso (ver quadro 4). Com uma faceta ambígua, a Severa é, por um lado, potencialmente distinta da mãe, possuindo atributos que lhe permitiram ligar-se a um homem cavaleiro, elegante e de outro estatuto social, como se assim fosse materializada uma aspiração de ascensão social. Por outro lado, observa-se que ela possui uma personalidade ainda mais irascível e intrigante que a própria mãe, o que reforça a ligação com o seu meio social de origem, ainda que de forma destacada.
79Repare-se ainda que a Severa tanto participa de um mundo de miséria e vício como de um mundo burguês e aristocrata. A par da segregação social e espacial dos espaços marginais da boémia, os meios sociais intersectam-se. De modo que “grandes noites de fado viveu a Mouraria dos meados do século passado, onde fidalgos ombreavam com fadistas ouvindo gemer guitarras” (Câncio 1940: 344).42
80O Conde de Vimioso, por seu lado, de certo modo somente ganha notoriedade por causa da sua ligação à Severa. Mas pode-se dizer o mesmo dela. Isto é, provavelmente, sem um Conde de Vimioso a lenda da Severa também não teria chegado aos nossos dias. Talvez por isso Júlio Dantas (1979) tenha designado o Conde por “Vimioso da Severa” ao que o inverso também parece ser pertinente: Severa do Vimioso; sobretudo ao ter em consideração que a sua decadência, doença e morte foram motivadas pelo abandono do Conde.
81O vínculo da Severa ao Conde de Vimioso permitiu-lhe vestir-se melhor do que as suas vizinhas de bairro e participar de alguns meios sociais que também eram frequentados pela aristocracia e burguesia. No entanto, a Severa continuou a viver na Mouraria, a cantar, a conviver com a gente vadia, pobre e miserável. É desbocada e insubordinada, o que lhe confere uma áurea heroica tendo em conta a submissão das classes populares às autoridades e à hierarquia social. Mas a estrela da “perfeição de corpo e de alma” morre jovem, numa condição pobre e deplorável, convenientemente apropriada ao seu estatuto social e que a levou a “chafurdar na lama” (Câncio 1940: 356). O Conde, por seu lado, é um aristocrata, bem formado e atraente, mas também é um personagem ambíguo, participando dos ambientes de vício e daqueles mais burgueses, morreu mais velho do que a Severa, contudo, ainda relativamente jovem. Na verdade, a posição de ambos é ambígua (ver quadro 5).
82O mito mostra ainda, de forma subliminar, a atração e a repulsão entre um e outro meio social. Por um lado, as camadas populares anseiam ou invejam as camadas sociais mais privilegiadas da sociedade, ao mesmo tempo que desdenham das suas práticas, normas e regras. Aqui, recorde-se que a Severa passava temporadas fora do bairro, mas acabava por se cansar e retornava à Mouraria. Por outro lado, os meios populares atraem aristocratas e burgueses por lhes fornecerem experiências inesquecíveis, aventura e liberdade, mas também os repugnam e, assim, deixam de aparecer, trocam de amantes, alternam os lugares de frequentação, participam dos convívios em salões, etc.
83O mito da Severa apresenta um efeito ordenador e justificativo do espaço que extrapola o próprio bairro da Mouraria. Ou seja, o mito é válido para o contexto da cidade, o que permite explicar a sua emblematização e idealização. Nesta perspectiva, observe-se que a imortalização da Severa costuma ser associada à peça – que estreou a 21 de janeiro de 1901 no Teatro D. Amélia (atual São Luiz) – e ao romance (1901), ambos escritos por Júlio Dantas e chamados Severa.43 Importa considerar que a imortalização do mito também se reporta à memória social, às canções de fado que evocam a Severa e mesmo aos rituais e cerimónias festivas como, por exemplo, a marcha da Mouraria, que ao longo da sua existência tem privilegiado o fado e a Severa como tema de seu enredo coreográfico.44
84O mito da Severa, de certo modo, justifica a existência de espaços sociais marginalizados, demonstrando, entretanto, como esses espaços se relacionam com a sociedade circundante, isto é, revelando que esses espaços não estão fechados sobre si próprios. O mito permite enquadrar geograficamente os acontecimentos e transformar os atores das ações em personagens heroicos. Na verdade, é um mito que, no plano das representações e no campo das relações de identidade, oferece antecedentes para explicar a ordem social e ainda justificar certas coisas que se passam no bairro e na cidade. O mito da Severa permitirá transformar a história numa espécie de natureza que se alimenta de uma áurea sagrada ou eterna, mas que no fundo continua como um produto da própria história. A particularidade de tornar espontâneo e naturalizar aquilo que é historicamente produzido é que o confere ao mito da Severa aptidão para funcionar como um mito de fundação. Um mito que se apoia na retórica da naturalização, integração, idealização, renovação e repetição para incutir uma lógica eternamente válida para explicar o lado boémio da cidade.
85Embora o mito da Severa seja um produto das condicionantes históricas, sociais, culturais, urbanas e económicas, ele servirá como um artifício de reelaboração e reinterpretação da história. Desse modo, servindo para recordar o passado no presente como para naturalizar o próprio presente, como tratando-se de um passado continuado. Um poeta local da atualidade escreveu: “[…] então, onde é que estão as severas e os fadistas? Será que o fado morreu? Descansem meus amigos, ainda não morreu, nem morre tão depressa neste tão maltratado Bairro de Lisboa. […] Enquanto a alma bairrista existir o ‘Fado’ não morre e a Mouraria também” (Baguinho 1999: 6). De modo que
“a escassez de pormenores sobre a sua curta existência, a ausência de retratos que permitiriam com alguma nitidez perpetuar a sua figura mas que também a conteriam dentro dos limites retratados, reforçaram a eficácia simbólica de um mito que percorreu mais de meio século e deu origem a uma literatura feita de biografias mais ou menos documentadas ou imaginadas, dramas, operetas, para além dos filmes a que emprestou o nome ou a história e dos folhetos que a cantaram.” (Brito 1994: 13)
Paisagem e intervenção urbana
86Como foi referido, no último quartel do século XIX a cidade expandia-se cada vez mais e novos ideais urbanos começaram a impor-se. Perceber como essa dinâmica de desenvolvimento se refletiu na Mouraria é fundamental para, por um lado, se entender a tendência, ainda que fraca, para uma certa abertura do bairro, como para o aumento das construções que, aos poucos, ocuparam as ainda existentes áreas verdes da zona. Por outro lado, é fundamental para entender que, por detrás dessa dinâmica de desenvolvimento urbano, se elaborava uma ideologia urbana que mais tarde se vingaria da Mouraria, quase a destruindo por inteiro.
87Em finais do século XIX, a Mouraria tinha-se transformado num bairro repleto de pessoas e casas, mesmo as pequenas lojas tornaram-se casas de habitação. Na Rua da Mouraria era onde havia mais estabelecimentos comerciais, como a confeitaria do Bernardino, em frente da Capela de Nossa Senhora da Saúde; a loja do funileiro, a loja de bolos da Preta Branca, o barbeiro Longuinho e alguns sapateiros. Ao entardecer, as peixeiras ocupavam as ruas do bairro, onde vendiam o peixe à gente pobre que, após uma dura jornada de trabalho, retornava a casa. Na Carreirinha do Socorro havia a tasca do João Grilo, onde era feito o famoso prato da desfeita. Na Rua de São Vicente à Guia havia uma fábrica de velas de sebo e um lojista de chapéus. Por detrás da Igreja da Guia, estava a horta das Atafonas que se estendia até à Igreja do Socorro. O dono da horta era o Tio Francisco, conhecido pela alcunha de “Francisco da horta”. Nessa horta, havia tanques para lavar roupa e um poço, e jogava-se ali à malha e à bola. A horta das Atafonas chegou a ser um dos locais mais frequentados pelas pessoas da Mouraria, onde iam cantar, dançar, beber, enfim, divertir-se. Ai também eram realizados os arraiais anuais. Na Baixa da Mouraria também havia muitos quintais com pomares de laranjeiras e olivais, alguns transformados em pátios com barracas (Carvalho 1994: 63-67).
88Na verdade, a Mouraria esboçava uma paisagem que contrastava com os ideais de salubridade, habitação económica, embelezamento, efeito de imitação e trânsito, conforme a ideologia urbana que se começou a impor desde a construção da Avenida da Liberdade, em 1879. Portanto, ideais que não se coadunavam com a existência dos bairros antigos:
“Os nossos velhos bairros de Alfama, Mouraria, Castelo e Bairro Alto também estiveram seriamente ameaçados em nome da salubridade da capital, razão que se invoca para a sua remodelação e que se considerava de muito mais peso do que as razões históricas que levariam a conservá-los intactos. Alfama foi aquele para onde mais convergiram as atenções dos vereadores e munícipes apavorados com as precárias condições habitacionais que oferecia.” (Marques 1967)
89Mas apesar de os ideais liberais terem posto em causa a existência de alguns dos bairros antigos da cidade, as demolições não se efetuaram, devido “a falta de meios financeiros, a enormidade dos trabalhos e a densidade activa de bairros então pouco envelhecidos […], dificultado a passagem aos actos mas entretanto outras razões se impunham. Sobretudo a incapacidade, permanentemente reverificada, de construir bairros para operários […] mas também a inédita ‘valorização patrimonial’ desses ‘lugares castiços’, carregados de história” (Silva 1994: 421). Os bairros antigos não foram destruídos, mas essa intenção prolongou-se até ao século XX.
90As principais alterações urbanísticas no bairro da Mouraria iniciaram-se na segunda metade do século XIX. Uma das intervenções que mais contribuíram para a nova feição urbana da área foi a abertura da Rua Nova da Palma, alterando a malha e a dinâmica urbana da zona da Baixa da Mouraria. Para tal, foram destruídos um troço da Cerca Fernandina e a Ermida de Nossa Senhora da Guia (de 1759).45 Por detrás da antiga Igreja da Nossa Senhora do Socorro estava a famosa horta das Atafonas, expropriada em 1859.46 As expropriações prolongaram-se até ao Largo do Intendente. Inicialmente, o novo trecho da rua chamou-se da Imprensa, mas no edital de 1859 “foi trocada em Rua Nova da Palma, e incorporada a nova artéria no primeiro troço quinhentista que já tinha esse nome. […] Em 1889 passou esta via pública, de extremo a extremo, a chamar-se Rua da Palma” (Silva 1987: 60). Contudo, as construções que deveriam “marginar a artéria” decorreram com lentidão, tendo tido início somente em 1852. Inicialmente, ficou definido pela vereação da cidade que as novas construções não poderiam passar dos três andares. Mas essa norma logo seria ultrapassada e prédios mais altos começaram a ser edificados. Surgiram igualmente o Teatro do Príncipe Real (1865) – depois chamado Teatro Apolo –, o Real Coliseu de Lisboa (de 1887),47 o Paraíso de Lisboa (local para realização de espetáculos) e o Circo Popular Lisbonense. A vocação lúdica e de diversão popular desses locais, para além de atrair a população lisboeta, também atraía aqueles que viviam nos arredores da cidade, sobretudo porque o terminal dos transportes provenientes das redondezas localizava-se ali.
91Mais tarde, a Rua Nova da Palma determinaria o sentido da Av. dos Anjos e da Av. D. Amélia (com data de 1903, sendo posteriormente designada como Av. Almirante Reis), seguidamente cortada por vários acessos transversais onde foram construídos os bairros de Andrade, Castelinhos e Brás Simões (posteriormente chamado Inglaterra). Em meados do século XIX, para facilitar a circulação na área, também foi aberta a Calçada da Mouraria, desse modo melhorando o acesso à zona das Olarias, tendo para tal sido destruído um forno e um pátio público.
92O arquiteto Faria da Costa, durante este período, chegou a elaborar um Plano de Remodelação da Baixa da Mouraria que previa rematar a Av. Almirante Reis com uma praça de onde surgiam túneis de ligação com a Baixa Pombalina e a Av. da Liberdade (Restauradores). Embora o plano não tenha sido efetivado, serviu para consolidar a ideia da área como um espaço de utilidade pública.
93Em 1885 surgiu a hipótese de se abrir uma via que ligasse a Calçada de Santo André com a Rua das Farinhas e em 1894 foi aprovado o projeto que daria origem à Rua Marquês de Ponte de Lima. Essa rua foi traçada em terrenos interiores e exteriores à Cerca Fernandina – que ali teria um troço destruído –, ligando a Rua dos Cavaleiros com a cidade intramuros, de modo que a rua até então chamada Rua das Tendas passou a ser integrada no mesmo acesso designado por Rua Marquês de Ponte de Lima (Silva 1987: 39). Nesse trecho, a Cerca Fernandina descia até à Rua da Mouraria e aí “virava a muralha em ângulo recto para sul, e formava em seguida um redente, indo constituir um dos lados do recinto da Porta de S. Vicente ou da Mouraria” (Silva 1987: 40).
94No decurso da abertura da Rua Marquês de Ponte de Lima também foi criado um acesso em escadaria com 6 metros de largura e 8 patins intermédios, ligando essa rua com a Rua da Mouraria.48 Esse acesso foi chamado Escadinhas da Saúde (1900).49 Nesse período, foi ainda ampliada e urbanizada a Costa do Castelo – que, até então, havia funcionado como estrada de circunvalação e de defesa militar. Essas obras melhoraram a ligação entre o vale e a colina, contudo, não eliminaram a barreira física entre a zona da Mouraria e as áreas circundantes, isto é, entre aquilo que foi o arrabalde dos mouros e a área cristã. Vale notar que a então existente Cerca Fernandina separava, em finais do século XIX, a Mouraria da cidade intramuros, um limite que apesar de já não existir evocará um sentimento local de que a parte da cidade que estava dentro da cerca não faz parte do bairro da Mouraria.
O lugar da Mouraria novecentista
95Numa cidade que se modernizava a passos rápidos, aos poucos a Mouraria tornar-se-ia o mártir esquecido dos efeitos drásticos de uma proposta desastrosa de tentativa de limpeza e ordenação urbana. Num primeiro momento, observa-se que a sua modernização foi uma repercussão dos ideais urbanos que, desde meados do século XIX, preconizavam o modelo haussmanniano de largas avenidas e a destruição dos bairros de Alfama e Mouraria, ambos destinados à mesma sorte: tornarem-se verdadeiros bairros operários (Silva 1989: 18).50
96Por exemplo, Fialho de Almeida, um partidário convicto da destruição total destes bairros, opinou que…
“[…] o bairro de Alfama, como o do Castelo, St.ª Apolónia, Mouraria, etc., devem ser por completo arrazados e desfeitos, pois sem essa destruição, impossível se faz estancar tantos sinistros focos de patogenia complexa que se os distingue, assim como empreender dum jacto o plano de canalização impermeável, completo, que todo o bairro higiénico necessita antes de tudo, e com suficiente escoante para imundície não fazer depósitos permanentes no subsolo, já de si secularmente infiltrado e pestilento.” (Em Marques 1967)
97Em 1907, Victor Ribeiro já falava de uma Mouraria onde só restavam:
“[…] algumas ruas apenas, onde o carmatello municipal vai abrindo clareiras para alargamento e saneamento do sitio, e onde os proprietários vão dia a dia restaurando, desfigurando os predios, cuja architectura original caracterizava aquellas viellas tortuosas. […] Só nos restam fracos vestígios em alguns raros edifícios da Mouraria de outrora. Lá estão algumas das taes casas com andar em ressalto, junto á esquina da rua do Capelão, cuja entrada é typica e interessante.” (Ribeiro 1907: 261)
98A ideia de que os bairros típicos da cidade necessitavam de uma nova imagem ou de um “urbanismo civilizador” ganha muitos adeptos. Luís da Câmara Reis (1908) escreveu um artigo denominado “A miséria em Lisboa”, onde considerava que a miséria, o crime e os perigos dos bairros típicos desapareceriam caso se deitasse
“[…] abaixo os bairros velhos, os bairros do vício e do crime, respeitando as recordações históricas e artísticas, conservando um ou outro aspecto integral de encruzilhadas e bêcos mais pittorescos. E levantar bairros novos, hygienicos, arejados, amplamente fornecidos de água e luz. […] Melhorar as condições económicas, physicas e moraes dos pobres que para lá fossem viver.” (Reis 1908: 342)
99Instala-se, pouco a pouco, uma ideologia que valoriza a melhoria da rede viária e dos transportes, vistos como a possibilidade de tornar Lisboa mais eficiente e funcional, a par da necessidade do seu arranjo estético.51 Essa ideologia urbana estimulou o desenvolvimento de estudos que versavam sobre as formas de transformar os velhos bairros, como Alfama e Mouraria, em contextos com ruas largas e modernas. Mas, paralelamente às alterações urbanas que se verificavam em outras partes da cidade, os velhos bairros da cidade continuariam – nos anos 20 desse século – na mesma situação das décadas anteriores, com as suas ruas estreitas, os seus edifícios degradados e as péssimas condições de vida (Marques 1967: 177). Muito embora a destruição da Baixa da Mouraria, prevista desde princípios do século, se concretizasse nas décadas seguintes.
100No decurso da década de 20, o trânsito na Rua Nova da Palma aumentou de tal modo que foi necessário alargar o seu último troço, implicando a destruição do Palácio Folgosa – apenas restando um dos seus corpos que seguidamente seria ocupado por uma repartição camarária –, bem como a demolição dos edifícios contíguos ao palácio.52 Nos jardins do palácio (onde havia funcionado o Paraíso de Lisboa e que também seria destruído) construíram-se novos edifícios que seriam ocupados por um cinema, pela Associação de Socorros Mútuos dos Empregados no Comércio e Indústria, e por uma garagem; e, em 1936, os edifícios situados entre o Arco do Marquês do Alegrete e a serventia da Rua da Palma também foram demolidos (Silva 1987: 52).
101Somente a partir de 1937 é que os problemas de trânsito foram tratados radicalmente, o que implicou mais demolições e a tentativa de arranjo urbanístico daquela área da cidade. Esse período de intervenção e planeamento é marcado pela realização das grandes obras públicas e a publicitação de um planeamento retilíneo a ser preenchido por edifícios de nobreza arquitetónica.53 Ideais que chocavam com a existência da cidade antiga, vista como um interregno ao progresso, fazendo-se necessário demolir os “velhos bairros” e as “indignas” e insalubres habitações populares, para nos seus lugares serem construídos edifícios novos, mais altos e rentáveis e que, ironicamente, logo se tornaram edifícios com uma marcada falta de qualidade arquitetónica.
102As intenções preconizadas pelo arranjo urbanístico dos bairros populares, em certa medida, fazem eco dos ideais defendidos por Le Corbusier, em 1929, de que era necessário “matar a rua”, como forma de ordenar social e urbanisticamente o caos dos antigos arruamentos. Acredita-se que é possível a invenção de uma cidade socialmente e espacialmente segmentada onde as pessoas estavam separadas do tráfego, os ricos dos pobres, o trabalho da residência, enquanto “no meio, barreiras de grama e concreto, para que os halos possam começar a crescer outra vez sobre a cabeça das pessoas”, facilitando desse modo o controlo político e ideológico da cidade (Berman 1987: 162)54 (ver figuras 1 a 4).
103Em 1946, na Mouraria foi destruído o Palácio Marquês do Alegrete e, seguidamente, todo o quarteirão que o envolvia. No lugar do palácio e das ruas que lhe eram contíguas nasceria um largo que passou a ser designado por Martim Moniz, ou seja, o nome daquele que se tornou um mito da reconquista cristã e que se reporta à lenda de um soldado que no Cerco de Lisboa ficou preso numa das portas da Cerca Moura, desse modo auxiliando a entrada dos cristãos na área ainda controlada pelos mouros.55 O largo recebe, assim, um nome bastante conveniente para a ideologia do Estado Novo que, entre outros aspectos, pretendia apropriar-se dos espaços públicos da cidade.56
104Num documento da Câmara Municipal de Lisboa, com data de 1948, a destruição do bairro foi justificada nos seguintes termos: “[…] o ‘bairro da Mouraria’, bairro de construções antigas desajeitadas e inestéticas já não tinha razão de existir no coração da cidade e, por outro lado, não permitia a construção de uma via de comunicação tão larga quanto a necessária sem se destruir totalmente este bairro” (CML 1948: 10).
105Em 1949 foi, então, destruída a Igreja do Socorro como os quarteirões e ruas que a circundavam: Rua do Socorro, Rua da Mouraria (totalmente destruída do seu lado ocidental), Travessa da Palma, Travessa do Alegrete e Rua do Marquês do Alegrete, Largo e Rua Silva e Albuquerque, Rua de S. Vicente à Guia, Beco dos Álamos, Rua dos Vinagres, Calçada do Jogo da Péla, Beco da Póvoa. Mas, como que por milagre, foi poupada a zona alta do bairro e a Capela de Nossa Senhora da Saúde. Terá sido uma renovação urbana ou da história? Ai, Mouraria!
106Também em 1949 foi destruída a Praça da Figueira57 e para dar vazão às necessidades colocadas pelos que lá compravam, juntamente com aqueles que haviam perdido os seus postos de venda na Baixa da Mouraria, foram instalados a título provisório pavilhões pré-fabricados no desolado espaço vago que se havia tornado o vale da Mouraria, onde ficariam alojados os tantos comerciantes das áreas arrasadas até à conceção e construção de uma praça representativa de uma “arquitectura civilizada”.58 Mas os pavilhões provisórios permaneceram ali até à década de 90, quando muitos dos seus comerciantes foram transferidos para a Praça de Espanha e instalados num mercado, curiosamente também de carácter provisório e que nos nossos dias ainda existe.59 O Largo do Martim Moniz seria, então, ocupado por escombros, lixo e como lugar de estacionamento e, somente em finais da década de 90, mais precisamente em 1997, é que finalmente foi transformado numa praça.
107Sobre as dinâmicas de renovação urbana que estavam em curso na cidade, em 1957, Ferreira de Andrade comentou que a Mouraria entraria “na hora crepuscular e triste da sua agonia” (p. 49), pois dela pouco sobreviveria com o novo delineamento previsto por um urbanismo civilizador, apenas devendo restar a parte comercial do bairro:
“Pouco e pouco esse bairro de ruas estreitas, modestas e tristes, vai-se desfazendo. Desaparecem, num arrasamento crescente, as típicas estalagens das lavadeiras saloias, as tabernas escuras dos rufiões e ‘mundanas’, os botequins e os cafés de ‘lepes’. Já não cruzam, a altas horas da madrugada, esse dédalo de vielas as carroças hortaliceiras – como há muito deixara já de passar a barulhenta e popular Procissão do Ferrolho. […] Mas do bairro da moirama, a que se seguiu o bairro da estúrdia reles, de vincada expressão popular e triste, só a recordação existirá no futuro. Sim, da Mouraria da Rua dos Canos e da Rua do Capelão – que a Severa consagrou na voz nostálgica do fado, evocador, quem sabe!, das toadas plangentes das infiéis muçulmanas – dos becos do Imaginário, da Amendoeira e do Jasmim, de tão saborosa e poética toponímia, dos Três Engenhos e do João do Outeiro, nem um cunhal, um ‘registo’, uma lápida, ficará a atestar-nos a sua existência oito vezes secular.” (Andrade 1957: 50)
108O único edifício nobre – o Teatro Apolo – que ainda restava na Baixa da Mouraria foi, então, demolido em 1957. E em 1961 foi finalmente empreendida a controversa destruição do Arco do Marquês de Alegrete, o último resquício das portas da Cerca Fernandina.60 Ambos recordados em versos:
Teatro Apolo
Demolir e não erguer
É sentimento de loucos
Fica a imagem para ver
E ao mesmo tempo dizer:
Ó palermas, Teatros há poucos
(Baguinho 1999: 12).
Arco do Marquês de Alegrete
O quadro ilustra bem
Uma imagem que morreu
Será que existe alguém
Que este passado viveu?
Era palácio e cinema
Eléctricos, engraxadores
Eis a leitura do tema
Ao Arco dos meus Amores.
(Baguinho 1999: 13)
109Nos vazios deixados pelas demolições foram construídos alguns edifícios de carácter comercial e o Hotel Mundial (projeto de Pardal Monteiro), erigido em finais da década de 50,61 exemplos da modernização urbana que ali se pretendia realizar. O ímpeto pelas inovações e pela melhoria do sistema viário levou a que em 1959 fosse retomada a ideia de ligação da Av. Almirante Reis com a Marginal e a Av. da Liberdade através de um túnel. Mas esse plano nunca se realizou (Nunes 1994). E ao invés da acessibilidade local ter sido facilitada pelo descongestionamento proporcionado pelas demolições de toda a Baixa da Mouraria, curiosamente, o Hotel Mundial viria a estrangular essa mesma acessibilidade.
110Com a destruição da Praça da Figueira e da Baixa da Mouraria, foi desencadeado um processo de desarticulação de toda aquela área da cidade, prejudicando o núcleo de atividades e funções que lhe davam vida e a caracterizavam, reforçando um processo de marginalização funcional, física e social. Com as demolições, o bairro sofreu um repentino desfalque populacional. Era, contudo, necessário realojar todos aqueles indivíduos que, em menos de dez anos, vagavam na pesada constatação de que as suas vidas não eram mais do que insalubres e infames. Triste história para as gentes que seriam mandadas para os bairros de habitação social, alguns provisórios, que se iam construindo pela periferia da cidade. Dessa gente pouco se sabe. A memória oficial muitas vezes é curta e os registos praticamente não se preocuparam em resgatar a história daqueles que ali habitaram. Uma parte da cidade tantas vezes vencida, fazendo pensar que aquele ainda é o “vale dos vencidos”… Somente algumas das marias, josés, antónios e lauras, etc. que, vivendo na zona alta da Mouraria foram poupados da destruição e do autoritário realojamento, guardaram na lembrança as brincadeiras, os arraiais, as zaragatas, as tascas, as confeitarias e os casamentos na Igreja do Socorro. Da Baixa da Mouraria, apenas restou a saudade… “Foi da Câmara a decisão / E esta sentença lavrou / Vai a igreja para o chão / Vai o padre e o sacristão / E uma saudade ficou” (Baguinho 1999: 11).
Renovação e reabilitação socio-urbanística
111Em 1967 surge um segundo plano de urbanização para a cidade, sendo esse elaborado por Meyer-Heine. Um dos intuitos desse plano era modernizar toda a área do Martim Moniz. Pretendia-se, assim, realizar uma operação de renovação e revitalização urbana que privilegiaria a acessibilidade automóvel em detrimento da ideia de ali se fazer uma praça. Mas o que se verificou é que, em 1972, ainda não se tinha concretizado nenhuma das propostas até então preconizadas para a área. Entre os anos de 1973 e 1975, a recém-formada Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL),62 elaborou algumas propostas de intervenção urbana para a Baixa da Mouraria. No entanto, devido à conjuntura política, tais propostas não foram implementadas. É na década de 80, precisamente em 1982, num concurso público promovido pela EPUL, que a proposta elaborada por Carlos Duarte e José Lamas se torna a base para o “Plano de Renovação Urbana do Martim Moniz”. Esse projeto abrangia uma área de 115 354 m2 na qual se incluíam equipamentos, comércio em geral, comércio alimentar, escritórios, instalações culturais, salas de espetáculos, habitação e estacionamento.
112Tendo por referência este plano, a área oriental teve trabalhos de drenagem, a Rua da Mouraria foi alterada em alguns dos seus troços, foi feito o arruamento principal a nascente do Martim Moniz e da Rua Fernandes da Fonseca, e construíram-se dois centros comerciais, o da Mouraria (ao lado da Capela de Nossa Senhora da Saúde) e o do Martim Moniz (a sudeste do Hospital São José). Dois edifícios desenquadrados, com uma estética híbrida e de exagerada volumetria, comprometendo a imagem urbana daquele contexto, pelo que o Centro Comercial da Mouraria (projeto de José Lamas e Carlos Duarte) ficaria vulgarmente conhecido localmente e pelos lisboetas como o mamarracho. Seguidamente, no lugar do Arco e Palácio de Alegrete foi construído um outro edifício, igualmente desenquadrado daquela malha urbana, e que também recebeu uma alcunha local: comboio. As restantes propostas do plano ficaram esquecidas até 1997, quando se recuperou a ideia de transformar o Largo do Martim Moniz numa praça com estacionamento subterrâneo.
113As dinâmicas urbanas, sociais, culturais e económicas da Mouraria também foram alteradas mediante a instalação, a partir de finais dos anos 70, de um comércio grossista na área. A proximidade do centro de negócios e de comércio e o baixo custo dos terrenos locais foram fatores decisivos para o desenvolvimento desse tipo de atividade, inicialmente atraindo comerciantes portugueses e indianos, bem como uma clientela diversificada. Os indianos que ali se instalaram vieram maioritariamente de Moçambique, sendo que muitos já estavam ligados à atividade comercial e ao comércio grossista, dando assim continuidade a uma atividade que já desenvolviam. No decurso dos anos 90, a notoriedade da atividade comercial que ali existia atraiu comerciantes chineses e alguns africanos. Os chineses primeiramente instalaram-se no Centro Comercial da Mouraria e seguidamente, já em finais da década de 90, alastraram pela envolvência, ocupando as caves do Centro Comercial do Martim Moniz e as lojas que foram vagando nos principais eixos do comércio local. A par do elevado número de comerciantes indianos na área, a presença de comerciantes chineses tornou-se cada vez mais importante, aspecto que encontra particular expressão com a fundação da Associação Comercial China Town. O comércio grossista e a presença de comerciantes indianos, chineses e africanos atestam à Mouraria uma outra dinâmica que, evidentemente, se refletirá nos processos de construção da imagem do bairro.
114Ressalve-se ainda que o primeiro troço do metropolitano que passa no bairro da Mouraria (correspondente à linha Rossio-Anjos) ficou concluído em 1966 e, em 1972, foi completada a sua ligação com Alvalade.63 A estação de Metro recebeu o nome de Socorro, uma alusão descabida à igreja que havia sido destruída. Note-se ainda que no processo de requalificação da Praça do Martim Moniz,64 concluído em 1997, o Metro também renovou a estação local e, após a conclusão das obras, a estação até então designada por Socorro reabriu com uma nova designação: Martim Moniz.
115Com a remodelação da estação, as plataformas dos comboios foram decoradas com figuras que simbolizam a reconquista cristã: os soldados e o rei que conquistaram a cidade aos mouros. Uma alusão que reforça a simbologia da lenda de Martim Moniz. Mas não só: nos painéis de azulejos que decoram a entrada do Metro aparecem símbolos gráficos que aludem aos árabes, indianos e africanos que por aquelas paragens passaram e passam. Fica-se entre a história, as lendas da reconquista cristã, a lembrança de um cultura moura e a ideia de uma positiva atualidade multicultural que mistura indianos e africanos com os antigos árabes, deixando de lado a memória da Mouraria popular, parecendo que o bairro é mais uma vez vencido. Poderia ser a invenção de novos símbolos que procuram explicar um presente sem severas e marialvas, isto é, sem peculiaridade popular, sem miséria e sem vício. O multiculturalmente correto parece ser uma das imagens mais evocadas por essa tentativa de reemblematização da Mouraria, permitindo, de certo modo, globalizar o local, como se por detrás dessas intenções se pretendesse retirar do bairro toda a sua especificidade local, tantas vezes negativamente interpretada. Será a invenção de novos mitos? Recuperação de velhos mitos? Ou também será uma renovação urbana, quem sabe da história? Ai, Mouraria!
116Perante a degradação socio-urbanística dos núcleos históricos da cidade e o início de uma dinâmica de valorização do património urbano, aos poucos instala-se na autarquia uma nova ideologia urbana, dando início ao processo de reabilitação urbana da cidade. Em 1985 é constituído o Gabinete Local da Mouraria.65 Essa nova política urbana será movida pelos ideais de reabilitação, requalificação, revitalização sociocultural, económica e urbana, e recuperação do património arquitetónico. Isto é, uma política marcadamente distinta das perspectivas anteriormente adotadas.
117No âmbito deste novo ideal urbano, foi definido um conjunto de prioridades que primam pela valorização do património histórico-cultural a partir da demarcação de princípios orientadores e de regras que viabilizem a transmissão da herança histórica e a responsabilização dos diferentes atores sociais no processo de manutenção e conservação do património. Pelo que visa-se “a fixação e melhoria das condições de vida dos residentes, proporcionando melhores condições de habitabilidade, reconvertendo e criando novos equipamentos. Pretende-se deste modo a revitalização económica, estimulando a população residente a participar neste processo global”.66
118A instalação, aplicação e desenvolvimento desta orientação urbana desencadeou, entretanto, um conjunto de novas dinâmicas sociais e urbanas. De um lado, alterando as rotinas quotidianas há muito sedimentadas, contribuindo para tal a instauração de um longo e moroso processo de realização de obras que, a par das melhorias que implementa, exigirá da população uma capacidade de readaptação continuada ao seu próprio quotidiano, situação muitas vezes de difícil aceitação sobretudo para as pessoas idosas. De outro lado, o gabinete técnico, cuja sede está no bairro, tornar-se-á num ator social determinante ao nível das dinâmicas locais. Apesar da sua importância no desenrolar do próprio processo de reabilitação urbana, ele também influenciará as atividades económicas, as redes sociais e as dinâmicas identitárias locais (Costa 1999: 443).
119A reabilitação urbana induziu (e induz) à criação de novas lógicas de uso, apropriação e percepção do espaço do bairro bem como de novas relações com a cidade. A definição de uma área de intervenção afecta ao Gabinete Local da Mouraria, que excede o território do bairro, passou a constituir-se como mais uma das referências socio-espaciais para a discussão das fronteiras e da imagem do bairro. Neste sentido, note-se que a atual Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística da Mouraria engloba parte da Colina do Castelo e alastra para norte pela vertente poente, sendo limitada pela Graça, Castelo, Alfama e Martim Moniz.
120A reabilitação urbana contribuirá, assim, para a recuperação e reinvenção do que é tradicional e histórico. A par da melhoria das condições de habitabilidade, gradualmente o processo de reabilitação urbana apropria-se da imagem pública do bairro e, curiosamente, tradicional e histórico passam a ser associados a medieval, práticas antigas e multietnicidade.67
Algumas especificidades sociodemográficas
121O bairro pode ser caracterizado pelos elementos que retratam a sua composição social e de habitabilidade ou ainda pelas suas atividades económicas, funcionais e recreativas,68 Mas esse retrato é apenas uma das pistas para se proceder à interpretação do espaço social da Mouraria. Pelo que aqui apenas se fornecem alguns dados que auxiliam a situar algumas das suas especificidades sociodemográficas, nomeadamente no que concerne ao número, sexo, estrutura etária, nível de escolaridade e composição socioprofissional da população. Os dados do Recenseamento Geral da População de 1991,69 e os produzidos pelo Gabinete Local da Mouraria – GLM (1989, 1996) relativamente à sua área de intervenção, foram aqueles utilizados para a execução deste breve retrato da Mouraria no advento do século XXI.
122Portanto, as tendências demográficas que começaram a verificar-se em Lisboa ao longo do século XX, sobretudo a partir da segunda metade desse século, corresponderiam a uma drástica alteração na estrutura demográfica da Mouraria bem como da freguesia do Socorro. Se na viragem do século XIX, a população do bairro e da freguesia cresceu em decorrência dos fluxos migratórios, em finais do século XX, a propensão é cada vez mais para a diminuição dos efetivos populacionais, o que acontece em paralelo com o envelhecimento da população.
123Ao comparar a evolução da população nas duas principais freguesias por onde se estende o bairro da Mouraria, isto é, as freguesias do Socorro e de São Cristóvão / São Lourenço observa-se que ambas têm perdido população no decurso do século XX.70 Contudo, a freguesia de São Cristóvão / São Lourenço teve, até aos anos 30, uma dinâmica populacional mais variada, com avanços e recuos na sua população; enquanto a freguesia do Socorro teve uma diminuição moderada que, entretanto, se inverteu nas décadas de 30-40, quando se registou um pico no seu crescimento populacional, atingindo o número 10 239 habitantes, um efetivo populacional maior do que no início do século (ver quadro 6).
124As principais alterações na composição social destas duas freguesias verificaram-se na segunda metade do século XX. Por um lado, isso deveu-se à destruição do Martim Moniz nos anos 40-50, desfalcando o tecido social da freguesia do Socorro em mais de dois mil habitantes. Por outro lado, apesar de se verificar um crescimento na população nos anos 50-6071, na década de 70 os efetivos populacionais diminuíram uma vez mais, devendo-se essa alteração à tendência para a diminuição da população a nível nacional, sobretudo a partir de 1960, quando a freguesia do Socorro perdeu numa década três mil habitantes e a de São Cristóvão / São Lourenço mil e quinhentos. A tendência para a diminuição dos efetivos populacionais da freguesia do Socorro continuou nas décadas seguintes, observando-se entre 1981 e 1991 uma perda de aproximadamente dois mil indivíduos. Tal situação agrava-se entre 1991 e 2001 quando, segundo os dados definitivos do Recenseamento Geral da População de 2001, se verifica uma diminuição de 1634 habitantes na freguesia do Socorro e de 830 habitantes na freguesia de São Cristóvão / São Lourenço.
125De acordo com o Censo de 1991, a população da freguesia do Socorro era de 4309 habitantes, distribuindo-se quase que equilibradamente pelo núcleo da Mouraria – com 2148 indivíduos – e pelo resto da freguesia – com 2161 habitantes. Observe-se, contudo, que na globalidade da freguesia existem mais mulheres (2369 / 55% do total) do que homens (1940 / 45% do total), aspecto particularmente registado na população idosa.
126Em termos etários, a população da freguesia do Socorro é consideravelmente envelhecida. Os jovens (0-19 anos) apenas representavam 18,8% do total da população da freguesia, enquanto a percentagem de indivíduos idosos (com 60 ou mais anos) era de 30,8%. A população de adultos (20-59 anos) da freguesia do Socorro (com 50,4%) encontra-se, desse modo, com uma elevada percentagem de indivíduos a seu cargo. O rácio jovens/adultos é de cerca de 38/100 e o de idosos/adultos próximo dos 62/100.
127Muito embora se confirme a tendência para a diminuição da população da freguesia do Socorro nas últimas décadas, regista-se um elevado número de habitantes por quilómetro quadrado,72 o que se explica pelas características morfológicas da sua malha urbana apertada, pela exiguidade dos edifícios e fogos, e por haver uma percentagem significativa de famílias com mais de 3-4 elementos a residir num mesmo fogo (31,4% do total). A dimensão média dos agregados familiares da freguesia do Socorro ronda os 2-3 habitantes. Muito embora fosse considerável o peso das famílias com 1 ou 2 elementos (com 61,3% do total).
128Ao discriminar os dados relativos ao número de indivíduos por agregado familiar, observou-se que de um total de 1809 famílias, 30% eram constituídas por pessoas isoladas, correspondendo ao núcleo do bairro 14,2%, evidenciando esta percentagem o elevado número de idosos residentes em toda a freguesia.
129Em consonância com as fontes consultadas, o peso da população natural de Lisboa era considerável (com 51,1%).73 Mas, ao ter em conta a origem migrante da população, deve-se atentar para o facto de que tais dados servem como indicadores da antiguidade residencial dessa população. Entre os indivíduos com origem em Lisboa, 29,5% eram naturais das freguesias onde residem, sendo que 17,7% eram de outras freguesias do concelho de Lisboa. Era ainda considerável o peso de indivíduos nascidos nas freguesias da Sé e de São Paulo, ambas em Lisboa. Relativamente aos outros distritos do país, era considerável o peso da região Centro, especificamente do distrito de Coimbra (com 11%) – entre os quais se destacam os originários de Góis, Pampilhosa da Serra e Arganil.74
130Em termos de recursos escolares, era considerável o baixo nível de instrução da população da freguesia do Socorro. Mais de metade da população não ultrapassou o ensino primário (53,7% do total), sendo que o nível de escolaridade média se encontrava muito abaixo da escolaridade mínima obrigatória. Era ainda considerável a percentagem de indivíduos com mais de 10 anos que não sabia ler nem escrever (10,4%). A condição de analfabeto é particularmente evidenciada na população idosa, onde se destacam as mulheres. É corrente as situações de pessoas que sabem ler e escrever, mas que não completaram o ensino primário, por motivo de abandono da escola e início da atividade de angariação de recursos económicos para o agregado familiar.
131No cômputo geral, o capital escolar dos indivíduos residentes no núcleo do bairro como na freguesia do Socorro, mostrou-se bastante baixo, refletindo-se nas atividades profissionais desempenhadas por esses indivíduos, essencialmente ligadas às profissões menos qualificadas no conjunto das atividades que compõem o sector terciário.
132Relativamente à condição perante o trabalho da população da freguesia do Socorro, observa-se que a taxa de atividade profissional era de 48,4%, atingindo a taxa de não ativos um valor de 51,6%.75 No que respeita à situação na profissão, a maioria dos indivíduos em idade ativa ou que já estavam reformados é ou foi assalariado por conta de outrem (85,8%). Na situação de patrão, apenas se encontrou 4,5% da população da freguesia, distinguindo-se nessa situação o efetivo masculino. Os empregados por conta própria também tinham alguma expressão no cômputo da população ativa (9,1%), com maior incidência na população masculina. Contudo, apesar dos baixos valores apresentados, os indivíduos que se encontravam em situações diferenciadas normalmente eram trabalhadores familiares não remunerados e, geralmente, quem se encontrava nessa situação eram as mulheres.
133O grupo socioeconómico predominante encontra-se ligado aos empregos administrativos, comércio e serviço, onde se verificava a predominância dos serviços pessoais e domésticos, destacando-se os empregados de limpeza, os empregados de hotelaria, as domésticas, os empregados de balcão e os vendedores. Num segundo plano, destacavam-se as atividades ligadas ao trabalho artesanal e industrial.
134Observam-se algumas alterações ao nível da composição socioprofissional da Mouraria. Algo a que não é alheio o aumento dos recursos escolares da população mais jovem e que permite destacar alguns contrastes. Por exemplo, na faixa dos 15-30 anos os grupos socioeconómicos predominantes são o pessoal do comércio, os trabalhadores da indústria e dos transportes, o pessoal dos serviços e administrativo; já nas faixas etárias superiores a 30 anos os grupos mais representados encontram-se ligados aos serviços de limpeza e ao operariado semi ou não qualificado. As dinâmicas de recomposição socioprofissional identificam uma tendência para a terciarização das ocupações profissionais.
135Mas, em paralelo com a diminuição e a propensão para o envelhecimento da população naquela zona da cidade, do retraimento de determinadas atividades culturais e recreativas, e ainda do aumento da atividade de revenda, sucedem um conjunto de outros e variados fenómenos com muitas repercussões no espaço social e que, na continuidade deste trabalho, importará referir.
Mouraria: (re)construção simbólica e da imagem urbana
136Para enquadrar as dinâmicas de permanência e mudança da Mouraria, foi fundamental apresentar uma reconstrução histórica do bairro, de modo a explicitar os acontecimentos que contextualizam o surgimento das formas sociais, culturais e urbanas.
137Pode-se assim considerar que, de certo modo, a Mouraria é uma invenção datada e instituída através do foral de 1170. Essa característica da sua constituição repercutiu-se, inclusivamente, na própria materialidade e visibilidade do arrabalde que, inventado como um espaço segregado para os mouros vencidos, teve limites e fronteiras que, à época, eram precisos e reconhecíveis. Contudo, esse primeiro período formativo e constitutivo seria ultrapassado em decorrência das circunstâncias sociais, económicas e urbanas e, assim, o arrabalde mouro transbordou as suas próprias muralhas, estendendo-se pelas áreas circundantes, para norte e oriente. Dir-se-ia, entretanto, que o bairro continuaria fora das muralhas da cidade, constituindo-se como uma espécie de espaço intersticial que, mesmo após a expansão da cidade, com a urbanização dos campos e o derrube da Cerca Fernandina, condicionou do ponto de vista simbólico e urbano a elaboração de um complexo processo de estigmatização territorial que na atualidade ainda se faz notar (ver quadro 7).
138A Mouraria, entretanto, também foi (e é) socialmente construída como um bairro que tem como pano de fundo algumas tradições, encontrando-se a sua fundação algures no meio de uma complexa rede de elementos culturais, sociais, históricos, urbanos e rurais, sonhos, mitos e representações. Se concebermos a ideia de tradição como “um conjunto de orientações valorativas consagradas pelo passado” (Oliven 1992: 21), passado esse que, entretanto, é quotidianamente inventado (Hobsbawm e Ranger 1996), coloca-se o problema de tentar perceber como operam essas construções sociais que ligam as tradições às identidades sociais e espaciais.76 Assinala-se, assim, que um dos fenómenos que despontam da dinâmica de recomposição e reconfiguração urbana, traduzido nos elevados índices de concentração populacional nos bairros antigos de Lisboa e nas mudanças demográficas, sociais e culturais provocadas pelas vagas migratórias de finais do século XIX, é a invenção daquilo que posteriormente seria chamado por tradições populares. Nos dias de hoje, essas tradições diferenciam esses bairros e a sua gente dos outros locais e dos outros bairros da cidade por causa de uma herança cultural e vivencial que continua a “afirmar-se através de sistemas culturais locais […] como se tivessem incorporado uma cultura local com traços de continuidade com o passado” (Cordeiro 1995: 163-164). Encontrar os precedentes que justifiquem essa Mouraria típica e tradicional foi como ir ao embate de um sistema de representações que se reporta a um outro sistema de representações.77 Neste sentido, foi aqui referida a importância de um mito – a Severa – cuja função sociológica é bastante próxima de um mito de origem.
139Note-se que essa complexa rede de invenção ou de inventores também se repercute na forma como o bairro presentemente se inscreve no espaço da cidade. Mas aqui os seus limites e fronteiras não são materializados, sendo maleáveis e flexíveis, esboçados como uma espécie de jogo de relações e complementaridades entre passado e presente, poder e contrapoder, indivíduos, cidade e o centro (ou os centros) do próprio bairro.
140Num outro plano, entre os anos 30 e 60 do século XX, observa-se que a Mouraria se torna foco de uma política urbana promulgadora de um “urbanismo civilizador” e difusor de uma perspectiva de higienização e embelezamento que, assim, pretendeu renovar (reinventar) o bairro numa ótica de modernização, alterando radicalmente as suas dinâmicas sociais, culturais e urbanas. Curiosamente, a tentativa de limpeza social da tão insalubre e mal-afamada Mouraria, e que quase destruiu o bairro por inteiro, sairia em parte defraudada na medida que empurrou as prostitutas, os rufias, chulos e tascas que ali tinham alimentado muitas lendas, casos e enredos narrativos para uma zona que fica um pouco mais adiante do coração do bairro: o Largo do Intendente Pina Manique. Não deixa de ser uma ironia da história o facto de as intervenções socio-urbanísticas terem empurrado o “vício” para uma zona que recebeu o nome de um daqueles que mais combativamente lutou contra a proliferação da prostituição na cidade! E mais: nos espaços sociais deixados vagos por uma Mouraria de boémia decadente, logo apareceria a nova face da liminaridade urbana: sem-abrigo, traficantes, consumidores de droga e minorias étnicas.
141Destaca-se, ainda, a alteração da realidade social e urbana do bairro com o desenvolvimento da atividade comercial, sobretudo de um comércio de revenda maioritariamente controlado por minorias étnicas – entre os quais se destacam os indianos e chineses. Por um lado, verifica-se a gradual substituição da função residencial pelas atividades ligadas a um comércio de âmbito grossista que, desde a década de 70, tem vindo a ocupar fogos e edifícios anteriormente afectos à função residencial, com lojas, armazéns e escritórios onde estão sediadas empresas de importação e exportação dos produtos de revenda. Por outro lado, assiste-se à reconfiguração das dinâmicas socio-espaciais locais, atraindo distintos tipos de pessoas, condicionando o movimento do bairro ao horário comercial, contribuindo para a constituição de uma espécie de entreposto comercial e cultural e ainda para os processos socio-simbólicos de construção da imagem do bairro. Essa nova realidade contribuirá para a configuração de uma nova imagem do bairro que, para além de se tornar uma área identificada com o comércio de revenda e étnico, não perderá a sua conotação de espaço liminar, por se tornar um lugar de pessoas, práticas, músicas, artefactos, roupas e comidas diferentes, que primam pelo exotismo cultural (ver quadro 8).78
142Ainda que as dinâmicas geradas pelo comércio sejam importantes para se compreender a realidade cultural e urbana do bairro, não se deve, contudo, descuidar da outra face do bairro: a Mouraria popular. Não obstante as atuais dinâmicas populacionais indicarem a dificuldade de renovação fisiológica da população, elas também traduzem uma estabilidade residencial que se prolongou no tempo. E existem ainda as várias facetas sociais do bairro que – apesar da sua invisibilidade nas estatísticas oficiais ou nas imagens multiculturais – têm influência na sua constituição social, como seja, por exemplo, o papel das mulheres, os locais de encontro e estada dos mais idosos, os locais e as brincadeiras infantis, as conversas à soleira da porta e à janela, as festas populares, a marcha e a procissão.
143Um outro fenómeno que influencia a imagem e as dinâmicas socio-espaciais do bairro é a concentração de pessoas sem-abrigo nalgumas das suas ruas. Apesar dos sem-abrigo não serem uma população sujeita aos recenseamentos demográficos, não contribuindo desse modo para a contabilização dos efetivos populacionais do bairro e da freguesia – até porque os indivíduos nesta condição constituem populações que flutuam no espaço da cidade –, não deixa de ser verdade que esses indivíduos informalmente influenciam várias dinâmicas locais.
144Por último, face à degradação do parque edificado local, em muitos casos em risco de ruína eminente ou consumada, situação ainda mais agravada pela precariedade socioeconómica local e pela dificuldade de implantação de atividades que permitam a dinamização económica e cultural da área, o bairro é desde 1985, social e urbanisticamente, endógena e exogenamente, constituído como objeto de reabilitação urbana (Costa 1999; Costa e Ribeiro 1989). Pelo que o processo de reabilitação urbana irá contribuir para a reconstrução social da realidade simbólica e da imagem urbana do bairro e, no decurso das ações implementadas, tal terá implicações na definição de novas fronteiras socio-espaciais e na invenção de uma imagem patrimonial e histórica que, inclusivamente, terá repercussões na própria invenção das tradições do bairro.79
145A Mouraria dos nossos dias é uma soma de territórios sobrepostos e em interação, bem como se caracteriza por uma amplitude de dinâmicas e fenómenos multidimensionais: moradores novos e velhos, sem-abrigo, transeuntes, turistas, toxicodependentes, prostitutas, traficantes, comerciantes e clientes, todos se encontram nas ruas da Mouraria; redimensionando a própria noção de vizinhança e de bairro. D. Júlia, aproximadamente 70 anos, nascida e criada no bairro, referiu que “a Mouraria foi um bairro de mouros, mas eles foram expulsos. Mas agora voltaram, os mouros voltaram todos, é só ir ali em baixo e ver tudo cheio de paquistaneses, indianos e chineses”.
146As condicionantes históricas, sociais e urbanas aqui ressaltadas colocam algumas questões de ordem analítica: como é que esse bairro sociourbanisticamente minimizado perante os outros bairros antigos continua a afirmar-se como um dos bairros típicos da cidade? Continuará o mito da Severa a preencher a função sociológica de interpretar o presente através de categorias e relações anteriormente concebidas? Inventam-se outros mitos e tradições para se explicar o presente?
147Considerar que as pessoas e as suas práticas definem especificidades no uso, apropriação, representação e constituição do espaço social, complexificando-o, é um dado fundamental para a continuidade deste trabalho. Como é que o tecido social local se repercute nos processos de reconfiguração da imagem simbólica do bairro? Como é que os moradores mais antigos se relacionam com os novos moradores? Existem relações interétnicas? Se sim, quais são os espaços e os tempos privilegiados? Os novos moradores e os frequentadores do bairro participam das festas e rituais locais? Existem rituais e festas locais relacionados com as diferentes etnias que frequentam o bairro? Como é que as atuais dinâmicas sociais, culturais e económicas são percebidas endógena e exogenamente? Qual é o protagonismo dessas dinâmicas na imagem socio-espacial do bairro? Será que o bairro passa por um conjunto de transformações que irão alterar o seu estatuto de bairro popular, típico e tradicional? Essas e muitas outras perguntas pulsam intensivamente para quem olha para o espaço vivido. Pois a multidimensionalidade das dinâmicas socio-espaciais da Mouraria não é revelada por um único retrato, como se por detrás da fotografia continuasse a existir um filme pouco suscetível a determinados processos de revelação.
148De modo que, no decorrer deste trabalho, rendo-me a uma perspectiva etnográfica, procurando enriquecer o retrato até aqui esboçado com movimentos e ritmos que permitem sobretudo insinuar que o filme que se desenrola na Mouraria tem muitas mensagens subliminares. De entre as quais a de que aquilo que se passa nos espaços público e semipúblico do bairro é, em certas circunstâncias, definidor dos processos de configuração e reconfiguração da imagem simbólica – endógena e exógena – do bairro, reforçando as metáforas que inventam o bairro da Mouraria como espaço popular, tradicional e típico, multicultural, liminar e estigmatizado.
149No que respeita ao objeto em estudo, alguns dos aspectos aqui considerados serão desenvolvidos nos capítulos que se seguem. Neste capítulo, apenas se pretendeu desvendar os elos entre a história urbana e o processo de construção da imagem identitária da Mouraria, procurando esclarecer as condicionantes socio-espaciais que estão na base da configuração social, cultural e simbólica do bairro, de forma a introduzir algumas questões que serão retomadas ao longo do trabalho. No capítulo que se segue procura-se captar a forma pela qual são percebidos os limites socio-espaciais e quais são os principais referenciais de orientação (no)/do bairro.
Notes de bas de page
1 A noção de território estigmatizado é aqui utilizada no sentido que lhe atribui Chaves (1999: 290-291), ou seja: tal estigma reflete as representações que uma maioria ou amplos sectores de uma sociedade elaboram sobre um dado território urbano; a aceitação exógena do estigma reduz a diversidade e a complexidade endógena a poucas ou a apenas uma única dimensão, entretanto, negativamente valorizada e transformada em problema social; o território estigmatizado transporta essa carga negativa e torna-se símbolo do próprio problema; o processo de estigmatização poderá ser de tal modo amplificado que o território como os habitantes sobre o qual recai o estigma, eventualmente, tornar-se-ão exemplos exclusivos de tal problema; os habitantes transportam virtualmente o estigma atribuído ao território.
2 Repare-se que “os judeus permaneceram no Reino sob um regime similar ao estatuído no período de dominação muçulmana”, mas “os mouros passaram de dominadores a dominados, perdendo, nesta transição, as suas elites” (Barros 1998: 19).
3 Por comuna entenda-se o “conjunto de todos órgãos religiosos, administrativos e legais que permitem, por mercê régia […] uma identidade própria dentro da sociedade cristã, embora sujeita à lei geral do reino” (M.ª J. Ferro Tavares, em Barros 1998: 20), e por mouraria o espaço físico destinado a habitação dos mouros. Segundo a documentação existente havia “uma comuna para uma mouraria, ao contrário do que se verifica com a minoria judaica, em que à comuna podem corresponder uma ou mais judiarias ou uma ou mais ruas do concelho cristão onde habitam judeus” (idem: 20). Mas nem toda a população moura vivia enquadrada pela mouraria, ou seja, nem todos os muçulmanos estavam obrigados a cumprir as regras da comuna, sobretudo nos casos das comunidades agrícolas, onde a organização não estava sujeita a estrutura comunal.
4 Na antiga Rua da Porta de S. Vicente “havia um recolhimento para crianças abandonadas instituído pela Rainha D. Beatriz ou Brites, esposa de D. Affonso III”, significando que a “actual rua da Mouraria não fazia parte do arrabalde dos Mouros, e effectivamente a estrada que saía de Lisboa por uma das suas portas principaes e com a invocação do padroeiro da cidade, não devia estar inquinada com a vizinhança mahometana. Ainda assim parece que havia um ou outro mouro residente, como tambem havia entre os almoinheiros christãos outros mouros” (Azevedo 1900: 262-263).
5 A Rua de Bemfica é noticiada desde o século XIV e tudo indica que a sua localização era naquele local. Coloca-se a hipótese, considerada por muitos como plausível, de esta rua ter sido posteriormente chamada por Rua do Boi Formoso, derivando daí a sua atual designação de Rua do Benformoso (Azevedo 1900).
6 Os poucos casos estudados, um total de nove habitações, deram a entender que as casas tinham uma área correspondente a 11,29m2 e a 36,3m2, sendo muito menores do que as das mourarias situadas a norte do Tejo, contudo, com valores aproximados às de Évora (Coelho 1996: 53).
7 As atividades artesanais que mais predominavam eram a olaria (com 30,5%), os trabalhos em fibra (tapeteiros, esparteiros, esteireiros e cordoeiros, com 28%) e os trabalhos em metal (17,1%), sendo esses seguidos das seguintes profissões: sapateiros (3,7%), carpinteiros (3%), albardeiros (2,4%) e vidreiros (2,4%) (Barros 1998: 90 e 92).
8 “Só no centro comercial de Lisboa, correspondendo às freguesias da Madalena, S. Julião e S. Nicolau, é que as casas se encostavam e elevavam. Na Rua Nova, a principal da cidade, sucediam-se os prédios de rés-do-chão e quatro andares, também existentes noutros arruamentos próximos” (Marques 1994b: 91).
9 Na data de 1551 é referida a existência de 206 oleiros em Lisboa e, ao que tudo indica, muitos estariam nesta área da cidade. Saliente-se que mais tarde os oleiros agruparam-se com o objetivo de defenderem a sua classe, fazendo parte da Irmandade de Santa Justa e Santa Rufina (Jorge 1994: 661). Também data de 1551 a notícia da existência das ruas das Olarias de Baixo e de Cima, do Almocávar (atual Calçada do Forno do Tijolo), Lagares das Olarias, dos Cativos e Travessa dos Cavaleiros; nesse período essas ruas pertenciam à freguesia de Santa Justa (Farinha 1932: 7).
10 Nos dias de hoje ainda é possível ver algumas casas com estas lápides.
11 Estas olarias tiveram o seu apogeu no século XVI. Com a criação das grandes fábricas no século XVIII, as olarias da zona da Mouraria entraram em decadência. Algumas olarias ainda resistiram e em meados do século XIX ainda existiam seis olarias na colina de São Gens. Em princípios do século XX, as louçarias instalaram-se para os lados do Desterro e do Intendente, onde se destaca o surgimento da Fábrica da Viúva Lamego.
12 A este respeito, consultar Moita (1994: 146).
13 A igreja mais antiga situada na zona da Mouraria é a de São Lourenço, edificada no século XIII e reedificada várias vezes nos séculos posteriores.
14 Tendo D. Manuel ordenado que “as mesquitas, que fossem capazes de serem igrejas, se purificassem”, instalou-se na Mesquita Grande da Mouraria a igreja consagrada à Anunciação da Virgem Mãe e “dela aproveitaram umas boas mulheres que viviam juntas e se chamavam Beatas da Terceira ordem de S. Francisco”. Posteriormente, o convento foi entregue às religiosas de São Domingos e ficou conhecido por Anunciada (Andrade 1957: 76). Em 1538, as dominicanas trocaram esse edifício com os frades que viviam no convento de Santo Antão (que passou a ser conhecido pelo nome de Anunciada). Em 1542, o edifício entrou na posse dos jesuítas. Uma ordem de Santo Inácio de Loiola denomina-o com o título de Colégio, daí ter ficado conhecido pelo diminutivo: Coleginho. Em 1593, os jesuítas abandonaram o edifício e foram para o convento denominado Santo Antão-o-Novo (depois Hospital de São José). Em 1594, o Coleginho entra na posse dos eremitas de Santo Agostinho anteriormente sediados no Convento da Graça. Posteriormente, foi ocupado pelos padres redentoristas que, em 1833, o devolveram aos eremitas. Desde 1834, o convento é ocupado pelo “4º Batalhão da Guarda Nacional de Lisboa e pelo ‘Tribunal do Juri’. A igreja foi, então, entregue aos cuidados da Irmandade de Nossa Senhora do Bom Despacho”. Encerrado ao culto desde 1813, foi reaberto em 1938 e em 1950, por motivo da destruição da Igreja do Socorro, e passou a ser a sede paroquial da freguesia do Socorro (Andrade 1957: 78-79). Sobre o Colégio dos Meninos Órfãos, consultar Cortez (1994a) e Martins (s.d.).
15 Mais tarde foi construído o Palácio da Rosa sobre uma parte do muro descendente da Cerca Fernandina.
16 A freguesia de Santa Justa abrangia o Alto de Campolide e Portela de Arroios, Penha de França, Monte Agudo, Graça, Santo André e Mouraria. Os limites de Santa Justa mantiveram-se inalteráveis até à segunda metade do século XVI, sendo subdividida em cinco outras freguesias: Anjos (entre 1564 e 1569), Santa Ana (entre 1564 e 1569) – posteriormente, Nossa Senhora da Pena –, São José (dos Carpinteiros) (1567), São Sebastião da Pedreira (entre 1608 e 1620) e São Sebastião da Mouraria (em 1596) – posteriormente, Nossa Senhora do Socorro (1646) (Silva 1943: 31 e 58). No século XVIII, algumas parcelas da freguesia de Santa Justa foram novamente desmembradas para formar novas freguesias ou aumentar aquelas que lhe faziam fronteira.
17 Inicialmente, as freguesias ou paróquias eram designações da igreja matriz ou sede paroquial ou ainda de um determinado distrito ou circunscrição territorial cujo desenvolvimento urbano se dava em torno desses edifícios religiosos. Entretanto, aos poucos, a freguesia deixou de representar uma ligação ou identificação de parcelas da população com uma determinada paróquia, tornando-se unicamente uma divisão administrativa (Silva 1943).
18 Note-se que a Rua do Capelão, uma das ruas do coração da Mouraria, foi durante muito tempo conhecida pela alcunha de Rua Suja.
19 Conta-se que a “atribuição do nome de S. Vicente à porta, baseada no facto, inventado pelos nossos escritores dos séculos XVI e XVII, de haver sido desembarcado o corpo de S. Vicente nas proximidades do local da porta, quando D. Afonso Henriques o mandou buscar ao Promontorium Sacrum, vindo pelo esteiro do Tejo acima […]”. A designação de São Vicente data de, pelo menos, 1404, e “era ela devida ao facto de estar a porta situada junto de várias hortas do vale pertencentes ao Mosteiro de S. Vicente. […] Como ficava perto da porta de S. Vicente (a ocidental) o arrabalde da cidade chamado Mouraria […], começaram a denominar a porta também: Porta de S. Vicente da Mouraria, e depois, simplesmente, desde o século XVII: da Mouraria. […] O mesmo nome da Mouraria foi dado à ‘rua do arravalde’ (1468) que dela seguia para os arredores norte” (Silva 1987: 42-43). O muro oriental da Porta de São Vicente foi demolido em 1674 e dele não restou nenhum vestígio. No seu local foram construídos alguns edifícios.
20 Desde o século XVI que é noticiada a intenção de se construir uma rede de canos naquela área da cidade (Azevedo 1900: 223).
21 O Palácio do Marquês do Alegrete foi reconstruído e o Palácio da Rosa foi reedificado na segunda metade do século XVIII, sendo novamente restaurado e alterado em finais do século.
22 Os limites paroquiais foram alterados ao longo do século XVIII e tais mudanças refletiram-se no número de fogos e de pessoas existentes na freguesia. No caso da freguesia de Nossa Senhora do Socorro, entre 1755 e 1770, ela foi ampliada a partir de áreas antes pertencentes às freguesias limítrofes, como por exemplo Anjos e Santa Justa. Contudo, em 1780 a área da freguesia do Socorro parece estar mais próxima da que foi referida, em 1759, por motivo da aplicação do inquérito às paróquias para se averiguar a situação das mesmas no período pós-terramoto, encontrando-se, em 1780, 892 casas e 4829 habitantes (Santana s.d.). Saliente-se ainda que, em 1959, foi feita uma remodelação das freguesias e de suas áreas e desde essa época o Socorro possui a mesma área administrativa (Decretos-Leis n.ºs 42, 142 e 42.751, de 18 de fevereiro e 22 de dezembro de 1959).
23 Segundo Ferreira (1987: 110-111), a cidade moderna desenvolveu-se irregularmente, entre 1890 e 1940, em distintas manchas territoriais, sendo essas: Centro Histórico, Lisboa Antiga (onde estava incluída a freguesia do Socorro), Ocupação Oitocentista (diferenciada em duas fases), Expansões Novecentistas. Por seu lado, Rodrigues (1995: 51, 53), ao basear-se na proposta anterior, apenas considerou três manchas, designadamente: (1) Centro Histórico, relativo à Baixa Pombalina, em vias de terciarização e despovoamento; (2) bairros anteriores ao terramoto (onde é incluída a freguesia do Socorro), onde o crescimento populacional é moderado; (3) área de transição entre o tecido setecentista e oitocentista.
24 Entre 1886 e 1959, Lisboa teve 44 freguesias repartidas em quatro bairros administrativos. Em 1959, o número de freguesias passou para 53.
25 Esta primeira zona de ocupação urbana é considerada como central, correspondendo a 22 freguesias, designadamente: Castelo, Coração de Jesus, Encarnação, Graça, Madalena, Mártires, Mercês, Pena, Sacramento, Santa Catarina, Santa Justa, Santiago, Santo Estevão, São Cristóvão/São Lourenço, São José, São Mamede, São Miguel, São Nicolau, São Paulo, São Vicente de Fora, Sé e Socorro. Entre 1890 e 1900, a população dessa zona rondou os 140 mil habitantes, passando para mais de 160 mil em 1911, atingindo o seu limite máximo em 1949 com quase 190 mil habitantes. Desde então, esta zona diminuiu os seus efetivos populacionais chegando aos 79 mil habitantes em 1991. E, assim, o centro da cidade foi perdendo população e cedendo, cada vez mais, lugar às atividades terciárias (Baptista e Rodrigues 1995).
26 A segunda zona de habitação aqui referida é uma zona intermédia, correspondendo a 17 freguesias: Santa Isabel, São Sebastião da Pedreira, São Jorge de Arroios, Anjos, Santa Engrácia, Santos-o-Velho, Lapa, Beato, Prazeres, Santo Condestável, Campolide, Nossa Senhora de Fátima, Alto do Pina, Penha de França, São João e São João de Deus (Baptista e Rodrigues 1995).
27 Esta zona já é periférica e cobre 14 freguesias, nomeadamente: Santa Maria de Belém, Ajuda, Benfica, Carnide, Lumiar, Ameixoeira, Charneca, Santa Maria dos Olivais, Alcântara, Campo Grande, São Francisco de Xavier, São Domingos de Benfica, São João de Brito e Marvila (Baptista e Rodrigues 1995).
28 A par dessas condicionantes, Mouraria e Alfama também foram os bairros onde mais se registou a presença de galegos (Rodrigues 1995: 1997).
29 Os pátios e vilas são um tipo de habitação popular que se desenvolveu com grande intensidade na periferia e nos espaços ainda livres dos bairros populares, contribuindo para a saturação populacional desses locais. Apesar da distinção entre pátio e vila não ser muito evidente é, contudo, saliente observar que o pátio costuma ser “um espaço murado ou envolvido por casas de habitação e agrupa, geralmente, em volta de um terraço um conjunto de casas pobres. É um modo primário de articulação entendida como abrigo e por vezes sem as mínimas condições de habitabilidade” (Rodrigues 1978: 38), e a vila “um esforço de melhoria das condições de vida da classe operária, moralizando a relação de dependência entre o local de trabalho e de residência” (Cordeiro 1995: 169), sendo formadas por módulos simples e organizadas em volumes compactos, também vocacionadas para a habitação coletiva, entretanto, um pouco mais arejadas do que os pátios (Rodrigues 1978: 40).
30 Existem ainda outros pátios e vilas que não se encontram na Mouraria (mesmo se essa for considerada num sentido mais alargado), mas sim na área de intervenção urbana do Gabinete Local da Mouraria, sendo esses: Vila do Castelo e Pátio do Marquês do Castelo Melhor (ambos nas Escadinhas da Costa do Castelo); Vila do Leitão (1905, Rua da Costa do Castelo); Pátio do Lima (Calçada da Graça); e Pátio do Recolhimento (Escadas da Achada).
31 O Inquérito aos Páteos de Lisboa inventariou 233 pátios na cidade com cerca de 2278 habitantes. Um recenseamento atual desenvolvido pela Câmara Municipal de Lisboa inventariou 1200 pátios e vilas com 14 mil fogos e 50 000 habitantes (em documento do Gabinete de Pátios e Vilas de Lisboa: s.d.).
32 Nas descrições da Mouraria feitas por distintos olisiponenses, jornalistas e escritores de finais do século XIX e princípios do século XX, utiliza-se muitas vezes as expressões miséria e vício para evocar as condições sociais do bairro.
33 Do mesmo autor, consultar também artigo com data de 1983.
34 A notícia de uma Mouraria infame é referida numa carta com data de 1554, onde o seu autor diria que “este bairro infame com mulheres de mal viver. Mandou o Rei a Justiça, pedindo-se aos Padres, que não permitissem viver nenhuma neste bairro, e logo se pôs obra colocando-as penas e prendendo algumas que logo não foram” (Inácio de Azevedo, em Domingues 1973: 78). Também há referência da existência de prostituição na Rua dos Vinagreiros em 1570. Na Mouraria seiscentista é insinuada a existência de casas de prostituição nos versos satíricos intitulados Testamento da mui nobre Isabel Colassa, onde é referida a presença de prostitutas na Rua dos Cavaleiros, “pois ai se diz que ela deixa os seus pardieiros, com dote, a seis donzelas dessa rua” (em Castelo-Branco 1990: 150). Pinto de Carvalho (1994: 73), por seu lado, referiu que a Mouraria já desfrutava de fama “nas cartas da geografia amorosa” antes do século XIX.
35 José Machado Pais (1985: 94) referiu que, em finais do século XIX, as prostitutas estariam estratificadas em três classes: (1.ª) mais luxuosas no vestir e discretas, cobravam preços mais elevados e normalmente habitavam os primeiros andares ou partes de prédios destinados às casas toleradas, frequentando as ruas da Baixa e do Chiado e eram procuradas pelas classes mais abastadas; (2.ª) menos luxuosas e mais provocadoras, vivendo em comum nas ruas da Baixa, Bairro Alto, Chiado e Rua Nova do Almada e de São Paulo, normalmente em casas toleradas, frequentavam a zona onde habitavam e eram procuradas pelas classes médias e a pequena-burguesia; (3.ª) com vestimenta pobre, provocantes e desordeiras, viviam isoladas em lojas, casas térreas muitas vezes sem as mínimas condições, sendo sobretudo notadas na Mouraria, Bairro Alto e Esperança, cobrando os preços mais baixos atraíam uma clientela formada por operários, soldados e marinheiros. A respeito da prostituição na cidade de Lisboa em finais do século XIX, consultar Cruz (1984).
36 No século XIX procurou-se regulamentar a prática da prostituição com a criação de casas toleradas com o objetivo de concentrar o “vício, isolando-o das vistas da sociedade respeitável”. Com a viragem do século, o espaço de prática da prostituição passou a ser cada vez mais móvel e tal correspondeu ao próprio desenvolvimento da cidade que empurrou as camadas populares da população para a periferia, longe do centro tradicional da Lisboa Boémia (Pais 1985: 111-112).
37 De acordo com Carvalho (1994: 55-56), o fadista de meados do século XIX “usava boné de oleado com tampo largo e pala de polimento, ou boné direito, do feitio do dos guardas municipais, com fita preta formando laço ao lado e pala de polimento; jaquetas sobre o comprido, com uns enfeites de botões nas mangas, a que chamavam jalecas à Polka; calças de ganga azul ou de ganga amarela com boca de sino ou largas por igual, tendo botões de madrepérola nos alçapões ou nas portinholas, e, algumas, na costura exterior da boca de sino; a indispensável cinta e um lenço à marinheira ou um lenço de bandeiras estampadas – que os marujos traziam de Inglaterra – ao pescoço e outro lenço de bandeiras na algibeira, da qual pendiam as pontas; sapatos de cordovão, de entrada abaixo, com laço de fita preta – como usavam os marinheiros de guerra – os sapatos de polimento, que era a moda das modas dos que tinham mais maco os mais massa, como diriam hoje, e ‘cachucho’ (anel) de latão ou de oiro no indicador ou anular […]. O seu penteado […] consistia em trazer o cabelo cortado de meia cabeça para trás, mas comprido para diante, de maneira que formasse melenas ou ‘belezas’ empastadas sobre as testas”. As tatuagens eram uma das principais marcas trazidas no corpo dos fadistas e, de acordo com o Arquivo de Medicina Legal de Lisboa (1880-1925), as tatuagens fixavam a biografia dos fadistas, onde “os motivos desenhados narram histórias, lembranças e afectos, fazendo surgir toda uma panóplia de termos que integram figuras femininas, instrumentos musicais – e dentro destes, a guitarra portuguesa –, armas brancas, figuras mitológicas, episódios de carácter doméstico ou festivo, motivos religiosos, e demais memórias” (em “Lisboa com voz de fado”, 1830-1930, exposição temporária de 9 de fevereiro a 9 de maio de 2001, realizada na Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa).
38 Existe uma outra versão que conta que a Severa era filha de Severo Manuel de Sousa e de Ana Gertrudes Severa, tendo nascido na paróquia dos Anjos, no meio de umas barracas do Monte, na data de 26 de julho de 1820. Nessa versão conta-se que o pai era natural de Santarém e a mãe de Ponte de Sor (Sucena 1994b: 879). Mendes (1996), por exemplo, recorre a essa mesma versão para contar a vida da Severa. Norberto de Araújo (1991), por seu lado, referiu que a Severa veio para Lisboa com um grupo de ciganos e que, por volta de 1830, acampavam na Carreira dos Cavalos. No entanto, essas versões não parecem ser as mais populares e mitificadas.
39 Conforme Câncio (1940: 354); Almeida (1952: 226-227); Carvalho (1994).
40 No Livro dos Assentos de Finados, n.º 3 de 1846, folha 117 (Coleção da Divisão de Gestão Cemiterial da CML) foi assentado: “Registo de enterramento de Maria Severa Honofriana: (Naturalidade) Lisboa; (idade) 26 anos; (Estado civil) solteira; (Profissão) meretriz; (Morada) Rua do Capelão n.º 35 A – loja; (Paróquia) Socorro; (Falecida) 9h00 da noite de 30 de Novembro de 1846; (Moléstia) apoplexia; (Hora determinada para o enterramento depois do falecimento) 24; (Quando entrou no cemitério) 1 ½a da tarde do 1.º dia; (Quando sepultado) 7h00 da manhã do dia 2 de Dezembro de 1846; (Onde sepultado) Valla P. sem caixão; (Autoridade que deu bilhete) Regedor; (N.º do bilhete) 6.”
41 Embora o fado também exista em Alfama, esse bairro não é incluído nesta versão do percurso de vida da Severa, aspecto bastante saliente quando se sabe que esse bairro é, muitas vezes, referenciado como sendo rival da Mouraria. Araújo (1991) apenas refere que a Severa viveu no Bairro Alto antes de vir para a Mouraria. Por seu lado, Mendes (1996) apesar de não citar as fontes bibliográficas que utilizou, ao tomar como referência uma versão da origem da Severa que associa o seu nascimento à paróquia de Anjos, refere que ela viveu na Graça, no Pátio do Carrasco ao Limoeiro (ou seja, numa área ligada a Alfama) e no Bairro Alto, vindo posteriormente para Mouraria, onde viveu o resto da sua vida. Por seu lado, Appio Sottomaior num artigo para o Jornal da Região com data de 26.03.2001, ao tomar como assente o nascimento da Severa na freguesia de Anjos, mistura as duas versões, considerando que a Severa e a mãe viveram em muitos lugares, como a Graça, o Pátio do Carrasco ao Limoeiro, Bairro Alto e Madragoa, vindo por fim viver na Mouraria. Contudo, é aqui de se retomar Carvalho (1994: 79-84) quando faz referência ao facto de que, com a morte da Severa, a sua mãe (a Barbuda) tenha ido viver para o Pátio do Carrasco, já para os lados de Alfama.
42 Na exposição temporária “Lisboa com voz de fado – 1830-1930” era feita referência a uma publicação designada O Boémio, com data de 1900, para assinalar a existência de uma marginalidade socialmente integrada onde “um fadista de calça à boca de sino, cinta jaqueta e chapéu desabado, tocando […]” está ao lado de “um filho pródigo que andava dissipando a herança paterna; acolá um fidalgo pândego, amador da paródia das esperas, trajando igual ao fadista, com esporas nos sapatos de saltos de prateleira empunhando um pau ferrado, todos em promiscuidade, soltando risadas francas, das quais algumas eram de mulheres fáceis do den-in-monde d’então, que ali concorriam em grande número a fim de animarem a pândega”.
43 Em 1909, o argumento da peça serviu como base para uma opereta e, em 1931, foi adaptado ao cinema por Leitão de Barros, sendo esse o primeiro filme sonoro português.
44 Repare-se que, em 3 de junho de 1989, pelas mãos de Amália Rodrigues, foi descerrada uma lápide no n.º 36 da Rua do Capelão em honra da Severa, em cuja lápide está escrito: “Nesta casa viveu Maria Severa Onofriana, considerada na época a expressão sublime do fado. Faleceu em 30.11.1846 com 26 anos de idade.” Pretendia-se transformar a casa da Severa num museu, mas essa intenção ainda não vingou e o edifício é ocupado como moradia. O segmento da Rua do Capelão onde está a casa da Severa teve, entretanto, o nome alterado e passou a ser designado como Largo da Severa. Também em junho de 1989, foi colocada uma outra lápide em homenagem a Fernando Maurício, um famoso fadista nascido num rés do chão que praticamente faz frente com a casa da Severa. Na lápide é referido: “Fernando Maurício, nasceu nesta casa em 21.11.1933. Homenagem da Junta de Freguesia do Socorro, expressando o querer e sentir da população da Mouraria a um dos maiores intérpretes do ‘fado’.”
45 A Cerca Fernandina ali ia na “direcção leste-oeste, com 160m de extensão, ao longo do antigo Largo da Rua dos Canos, depois Largo Silva e Albuquerque, e da Travessa da Palma, atravessando o estrangulamento do vale da Rua da Palma, que tem aí a sua menor largura, cerca de 80m.” (Silva 1987 49).
46 O processo de expropriação da horta das Atafonas foi registado por Pastor de Macedo (1963: 69) nos seguintes termos: “Para a avaliação da Quinta fizeram treze divisões, e vale a pena dizer o que por lá havia, para que o leitor que hoje passa pelo último troço da Rua da Palma possa fazer ideia de como aquele terreno era ocupado há um século. […] Laranjeiras da China havia 25, tangerineiras 166, oliveiras 6, pereiras 27, nogueiras 2, pessegueiros 7, macieiras 20, damasqueiros 2, e mais 1 romãzeira, 1 alpeceiro, 1 limoeiro, 1 figueira, parreiras sustentadas por 72 esteiros de ferro, 8 árvores silvestres e 2 canaviais. Havia ainda um barracão arruinado com pátio anexo, um poço com pilares de pedra próprios para engenho […], casas com frente para a Carreirinha, etc.” Repare-se ainda que a existência de atafonas (engenhos de farinha) naquela área deu origem ao nome da Rua das Atafonas que, segundo Macedo (1981, Vol. I: 229), foi em tempos chamada Rua de Entre-as-Hortas. Pastor de Macedo também nos conta que os atafoneiros começaram a ocupar o vale a partir de 1545 e constituíram a sua irmandade na Igreja de Santo Antão (no Coleginho). A respeito das destruições que se efectuaram na zona, ver ainda Macedo (1945).
47 No Real Coliseu funcionou a primitiva Feira Popular. Posteriormente, esse espaço foi ocupado pelos serviços das Encomendas Postais, sendo destruído em meados do século XX e ficando no seu local a Garagem Liz.
48 Junto às pequenas casas medievais, próximo das Portas de São Vicente, “havia, extramuros, uma casa com mui pequeno fundo, em que existiu um nicho dos passos (do Passo da Mouraria da Procissão do Senhor dos Passos da Graça), construído por 1622, alumiado com um candeeiro suspenso, que se acendia em certas noites. Esse nicho foi em 1698-1702 transformado em capela, segundo o projecto do Arquitecto João Antunes, e com essa forma se manteve até ao terramoto de 1755, em que ficou arruinado, sendo reconstruído em 1780 com o feitio que ainda lhe conhecemos e está representado nalgumas gravuras antigas; foi finalmente demolido em 1907” (Silva 1987: 41).
49 “Para abertura destas vias públicas foi rasgada a muralha da cerca no sítio da propriedade do Marquês de Castelo Melhor, e desse rasgamento para baixo foi demolida até aos alicerces, sobre os quais se levantaram os muros das fachadas posteriores dos prédios que desde 1903 se construíram no lado norte das Escadinhas da Saúde” (Silva 1987: 39). Entre as Escadinhas da Saúde e o lado oriental do Arco do Marquês do Alegrete havia alguns prédios que datavam do século XVII, mas em 1900 também foram destruídos e no seu lugar foi construída uma “casa de espectáculos cinematográficos: ‘Salão Lisboa’” (Silva 1987: 44).
50 A respeito da discussão entre o modelo haussmanniano de transformação da cidade e a aventura da modernidade, consultar Berman (1987).
51 No período de 1879 a 1938, o desenvolvimento da cidade não se deu por motivos de planeamento urbano, sendo as opções técnicas “fruto de determinantes e problemas de vários tipos que obrigavam a soluções imediatas em prejuízo de uma visão de conjunto que traria resultados mais eficientes” (Marques 1967: 256).
52 O interesse pelas transformações na Rua da Palma já era, desde 1889, defendido pelos lojistas e proprietários locais que, inclusivamente, vinham fazendo petições à Câmara em que sugeriam a implementação de mudanças no traçado daquela artéria. Contudo, inicialmente esses pedidos foram indeferidos, pois à Câmara interessava outro tipo de alteração das vias rodoviárias, bem como era do interesse da autarquia melhorar as condições sanitárias da área (Marques 1967).
53 A este respeito, consultar Pereira e Fernandes (1982); Brito (1982); como a interessante análise desenvolvida por Nobre (1994) sobre os reflexos da política de alojamento do Estado Novo no caso da destruição da Alta de Coimbra, em especial pp. 22-32 e pp. 63-70. Noutro plano analítico, consultar o trabalho de Leal (2000) a respeito da relação entre a cultura popular e a identidade nacional, em especial as pp. 107-223, onde o autor reflete sobre os dilemas e as contradições ideológicas que, durante o período do Estado Novo, estimularam a reflexão e a defesa da casa portuguesa, vista como um símbolo estratégico para a constituição da identidade nacional.
54 O livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas (Jacobs 2000), originalmente publicado em 1961 sob o título The Death and Life of Great American Cities, tece uma interessante crítica ao urbanismo modernista, mostrando como os espaços físicos ordenados e limpos deram lugar a uma vida social asséptica, sem expressividade e espiritualmente morta. Embora Jane Jacobs se apoie num certo nostalgismo sobre a cidade mais humana, considerou que a riqueza e a complexidade do caos dos arruamentos antigos e velhos da cidade não foram levados em conta pela arquitetura modernista, assim, sobrevalorizando ideais mecanicistas e tecnicistas. Por outro lado, a preconização da perspectiva antirrua, e a sua respectiva concretização na cidade de Brasília na década de 60 do século XX, foi criticamente analisada por Holston (1982, 1993), ao demonstrar o modo como na eliminação das ruas conforme a implementação de um projeto arquitetónico e urbanístico modernista, a ordem social e urbana instituída acabaram por permitir a preservação do estatuto das elites, aumentando as desigualdades sociais.
55 Araújo (1990: 45) referiu-se à sua “lenda ou verdadeira história” conforme a lápide colocada em 1908 no Arco da Praça Nova em que se lê: “Atravessando-se nesta porta / teve gloriosa morte / Dom Martim Moniz / que assim franqueou esta entrada / ao conquistar-se aos mouros / a cidade de Lisboa / em 21 de Outubro de 1147 / e reinado de / Dom Afonso Henriques.” Na Praça do Martim Moniz, concluída em 1997, existe uma placa cuja legenda refere a batalha em que participou o soldado, encontrando-se essa placa junto ao muro existente na praça e que simboliza a Cerca Moura, muito embora reproduza o traçado da Cerca Fernandina.
56 A par das diferenças de contexto, é interessante consultar um artigo de Atkinson (1998: 13-30) que trata do processo de reestruturação de Roma sob o fascismo, onde é demonstrado que a importância das ruas e do espaço público urbano foi renegociada e retrabalhada pelo regime fascista como parte gradual da apropriação da esfera pública do espaço urbano. A respeito da interferência dos regimes políticos no espaço público urbano, é ainda elucidativo um artigo de Faraco e Murphy (1997), onde as mudanças na toponímia da cidade de Almonte, na Andaluzia, nos diferentes regimes políticos (segunda república, franquismo e na restauração da democracia), são discutidas como o reflexo de objetivos, táticas, ideologia e ethos de cada um dos regimes em causa, induzindo a novos relacionamentos entre os habitantes, governo e cidade.
57 O poeta Baguinho (1999: 46) escreveu: “Aos arraiais desta praça / Vinha Lisboa bailar / Hoje vejo ali por graça / Milhares de pombos a cagar.” Sobre a Praça da Figueira, consultar também Câncio (1962).
58 Na revista Olisipo, Costa (1978-1979: 139-140) escreveu: “É melhor atravessar para a direita, assim não terei de enfrentar esse largo horroroso com barracas de calçado e de cacarecos de matéria plástica (referindo-se ao Martim Moniz). […] Onde estavam e que faziam os ‘Amigos de Lisboa’? Já sei, não puderam fazer nada, porque apenas tinham cultura… e os outros, os donos tinham dinheiro! Só uma coisa me diverte: até hoje não conseguiram matar as ratazanas do Teatro Apolo. Aquelas que vinham comer à minha mão!”.
59 Alguns comerciantes foram transferidos para o edifício da EPUL entretanto construído no espaço deixado vago pelo Palácio do Marquês do Alegrete.
60 Pouco tempo antes havia sido destruído o Arco de Santo André, uma das outras portas da cidade que se situava no cimo da Calçada de St. André.
61 Em finais da década de 90, este hotel foi ampliado e foram reformulados alguns aspectos da sua fachada.
62 A EPUL foi formada em 1971 com o objetivo de desenvolver estudos e obras respeitantes à urbanização ou renovação das áreas designadas para tal. A área de intervenção da empresa é essencialmente o concelho de Lisboa, embora com a autorização do Governo possa efetuar obras nos concelhos da periferia de Lisboa. Aquando da sua constituição ficou responsável pela urbanização de Telheiras, Restelo e a remodelação do Martim Moniz, onde foi encarregada, em 1972, de rever os estudos antes desenvolvidos pelo extinto Grupo de Trabalho da Zona do Martim Moniz, assim como de executar as obras que se fizessem necessárias (Nunes 1994: 178-179).
63 Em 1949 decide-se proceder à construção da rede do metropolitano, mas essa somente surge em finais da década de 50 a partir de uma estrutura radial que será desenvolvida em várias etapas (Nunes 1994).
64 Projeto dos arquitetos Daniela Ermano e João Paulo Bessa, ambos da Câmara Municipal de Lisboa, e projeto de paisagismo do arquiteto Ribeiro Telles.
65 No decurso dos anos 80, um grupo de cidadãos, técnicos e autarcas das freguesias de São Miguel e Santo Estevão – as freguesias que cobrem a maior parte do território do bairro de Alfama – iniciou um debate público sobre a necessidade da conservação e reabilitação desse bairro. Passados alguns anos, o processo iniciado por esse grupo desencadeou uma nova perspectiva de intervenção urbana que, aos poucos, se consolidou como uma política voltada para a reabilitação dos núcleos históricos da cidade. Em 1985, a Câmara constituía os primeiros gabinetes técnicos de reabilitação da cidade: Alfama e Mouraria e, mais no final da década, o do Bairro Alto. Esses gabinetes, após uma primeira fase de instalação, inventariação e caracterização, identificaram uma primeira Área Crítica de Intervenção que seguidamente foi ampliada. No decurso desse processo, em 1990, é constituída a Direção Municipal de Reabilitação Urbana – DMRU – e são formados outros gabinetes nos principais núcleos históricos da cidade. Sobre esse processo de intervenção urbana, consultar Lopes (1991); Godinho (1991). Refira-se, entretanto, que na atual conjuntura política essa estrutura orgânica foi alterada.
66 Conforme PUNHM (1996, vol. 4: 1).
67 A relação que aqui se estabeleceu entre tradicional e histórico com medieval, práticas antigas e multietnicidade é decorrente da análise dos discursos expressos por alguns técnicos ligados ao processo de reabilitação urbana na cidade.
68 Para uma consulta mais detalhada de dados sociodemográficos, habitacionais, funcionais e recreativos, consultar Menezes (2001a).
69 No momento de redação do relatório da tese de doutoramento, apenas existiam os dados preliminares dos Censos de 2001, pelo que se optou por trabalhar com os dados dos Censos de 1991.
70 Grande parte do bairro da Mouraria encontra-se na área da freguesia do Socorro e, regra geral, quando o território do bairro alastra pelas freguesias limítrofes, isso acontece porque os números pares ou ímpares de uma mesma rua pertencem a outra freguesia. Neste sentido, face à dificuldade em obter dados desagregados para as restantes freguesias, aqui somente trabalho com os dados relativos à freguesia do Socorro. Portanto, no âmbito do Censos de 1991, a freguesia do Socorro foi desagregada em sete secções, dentre as quais quatro foram aqui tomadas como correspondentes ao território do núcleo da Mouraria; e as restantes três secções como correspondendo ao restante da freguesia. Salienta-se que aqui apenas foi possível uma aproximação com a área do núcleo do bairro, pois as secções que serviram de base para a presente análise podem incluir ou excluir ruas que se encontram ou não associadas ao referido núcleo.
71 Segundo Costa (1999: 74-75), as diferenças entre os volumes populacionais dos anos 60 e 70 também se devem à metodologia utilizada na recolha de informação nesses dois períodos dos Recenseamentos Gerais da População. Tendo a metodologia sido mais minuciosa nos anos 60, é provável que tal explique por que nesse período se registou um aumento dos efetivos populacionais na freguesia do Socorro, quando na década anterior teve lugar um drástico desfalque da população. Na década de 70, a metodologia utilizada na recolha de informação parece ter sido bastante insuficiente, aspecto que, associado às “táticas de camuflagem” muitas vezes acionadas por essas populações, poderia explicar a considerável diminuição dos efetivos populacionais desse período e nos que se seguiram. Salienta-se que na Mouraria as táticas de camuflagem, assim como em Alfama, ainda vigoram e, provavelmente, influenciam os levantamentos oficiais da população, sobretudo em decorrência de dinâmicas sociais marcadas pela clandestinidade, como é o caso, por exemplo, do subarrendamento de quartos, a existência de imigrantes clandestinos, de indivíduos afectos a atividades económicas liminares (por exemplo, tráfico de droga e prostituição), etc.
72 Segundo Rosa (2000: 1051), as freguesias do Socorro, São Cristóvão / São Lourenço, Penha de França, Anjos, Graça, Santa Catarina, Santo Condestável, Encarnação e São Jorge de Arroios são aquelas que, em 1991, apresentavam densidades populacionais superiores a 20 000 hab./Km2.
73 Como não dispunha de dados desagregados que permitissem verificar qual a origem geográfica dos habitantes da Mouraria, recorri aos dados apresentados pelo Gabinete Local da Mouraria (GLM) para a sua área de Intervenção em 1989. No período em causa (1989) a área afecta ao GLM era mais próxima da ideia de uma Mouraria ampliada, na medida que apenas se estendia por parte das freguesias do Socorro e de São Cristóvão / São Lourenço, pelo que se admitiram tais dados como úteis para se estabelecer uma aproximação com a realidade do bairro. Documento consultado: Caracterização Sociológica e do Edificado de Alfama e Mouraria (1989).
74 Os indivíduos oriundos de outros países, apesar de apresentarem uma percentagem reduzida (5%), manifestavam algumas características comuns, pois dos 213 estrangeiros recenseados, 53% eram provenientes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e 13% do total de estrangeiros eram espanhóis, predominando o número de indivíduos originários da Galiza (CML 1989a).
75 Tal facto deve-se ao elevado número de reformados na freguesia – 30,1% do total da população (26% homens, 33,3% mulheres), salientando-se ainda a elevada percentagem de mulheres domésticas (17% do total da população feminina da freguesia). Como foi anteriormente referido, a elevada taxa de não ativos é, em muito, reflexo da própria estrutura etária da população. Não obstante as baixas taxas de atividade referidas e as dificuldades socioeconómicas de grande parte da população do bairro e da freguesia, existe uma economia informal que garante a sobrevivência de alguns agregados familiares, mesmo tendo em conta que essa economia não aparece nas estatísticas oficiais.
76 Apesar de Oliven (1992: 26) refletir sobre nação e tradição, aqui adapta-se o discurso para bairro e tradição e entende-se que ambos “são recortes da realidade, categorias para classificar pessoas e espaços e, por conseguinte, formas de demarcar fronteiras e estabelecer limites. Eles funcionam como pontos de referência básicos em torno dos quais se aglutinam identidades. Identidades são construções sociais formuladas a partir de diferenças reais ou inventadas que operam como sinais diacríticos, isto é, sinais que conferem uma marca de distinção”.
77 Para Barthes (1987), o mito é um sistema de representações que se reporta a um outro sistema de representações já constituído, sendo uma metalinguagem que define a outra a partir das suas próprias conveniências e propósitos.
78 As expressões “comércio étnico” e “práticas diferentes” foram recolhidas durante o trabalho de campo, sendo essas usadas pelos moradores do bairro, pelos técnicos de intervenção socio-urbanística e também aparecem em referências exógenas ao bairro.
79 O processo social de invenção das tradições é discutido por Hobsbawm e Ranger (1996). Choay (1992), por seu lado, refletiu acerca dos processos sociais e urbanos de invenção do património urbano na Europa desde o século XIX. Bourdin (1979, 1980, 1984, 1996) tem discutido as lógicas sociais e urbanas de reinvenção do património, sobretudo a partir das políticas de reabilitação, conservação, requalificação e renovação urbanas. Num sentido mais alargado, as lógicas de gestão, transmissão, conservação e continuidade do património são amplamente discutidas no trabalho coordenado por Jeudy (1990). E, no caso da discussão da relação entre invenção da tradição e invenção do património, é importante a reflexão traçada por Costa (1999) acerca do bairro de Alfama em Lisboa (especificamente as páginas 33 e 34).
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