Introdução
p. 31-67
Texte intégral
1A Mouraria tem sido recordada, lembrada, descrita e visionada através de imagens que mencionam a sua pobreza, miséria e degradação, a sua sina fadista e triste, as suas casas arruinadas e sobrepostas num entrelaçar de ruas tortas cheias de vida e agitação. Imagens de um lado mais público e visível do bairro, e que sobretudo prevaleceram em alguns dos textos que evocaram a Mouraria na primeira metade do século XX tendo, inclusivamente, justificado a promoção de um “urbanismo civilizador” que se refletiu na sua destruição conforme a política urbana do Estado Novo. Nos nossos dias, entretanto, o lado público e mais visível da Mouraria parece refletir-se numa espécie de jogo de espelhos que reproduz imagens que transitam entre a ideia de típico, tradicional, popular, multicultural, multiétnico, como num novo Casal Ventoso, Texas e até Bronx!
2A Mouraria, um bairro que nos nossos dias é uma soma de territórios sobrepostos e dinâmicas que, para além de conjugar os atributos mais característicos da sua população e mesmo do seu espaço físico, lida com diferentes estilos de vida que não se explicam somente pelo fenómeno da gentrificação, nem pela heterogeneidade das classes populares, mas também por fenómenos de cariz étnico e imigratório. Um mundo em que o fado, as severas e os marialvas, as tascas, as peixeiras, os operários, os migrantes, os desempregados e os reformados coexistem com as lojas e mercearias chinesas, os cabeleireiros luso-africanos, os bazares indianos, a Associação Comercial China Town, o gang dos telemóveis, os toxicodependentes, os sem-abrigo, etc. Um bairro com tantas similaridades e tantos contrastes com os outros bairros populares e típicos de Lisboa, como Madragoa, Bica, Alfama ou Bairro Alto.
3Na verdade, a Mouraria é um bairro com múltiplas facetas e significados. Um bairro em que as imagens culturais e urbanas que sobre ele são construídas tanto podem emblematizá-lo como segregá-lo. De modo que, apresentar e refletir sobre algumas das articulações existentes entre o campo de significações do bairro, os espaços e as experiências urbanas de diferentes indivíduos foi o objetivo central do estudo que aqui se apresenta.
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4Duas questões orientaram este estudo. Uma primeira reporta-se aos processos de definição de imagens socioespaciais distintas no seio da cidade, através da reprodução de determinados símbolos urbanos identitários, valores e representações, como de projetos de renovação incrementados em torno da ideia de cidade plural. A segunda questão é relativa às complementaridades e contrariedades que atravessam os processos de definição de determinadas imagens urbanas, através de lógicas ambivalentes e ambíguas. O enfoque analítico aqui delineado é uma interpretação da realidade do bairro pelo ângulo das repercussões múltiplas, pelo que a singularidade local é definida pela experiência do quotidiano. A essa interpretação associa-se uma reflexão sobre a forma como as práticas de uso e apropriação dos espaços públicos interferem no processo de construção de imagens urbanas. Nesta ótica, tenciono elucidar alguns dos significados, artifícios e representações que se ocultam por detrás da visibilidade das práticas que decorrem nos espaços de uso coletivo do bairro.
5Ciente de que os distintos rótulos atribuídos ao bairro em diferentes momentos da sua história estão identificados com certas imagens identitárias, aqui não se pretendeu analisar essas imagens como uma consequência dos efeitos ditados por uma sucessão de acontecimentos lineares. Antes foi objetivo complexificar a análise de forma a compreender os contrastes e as complementaridades existentes entre as diferentes imagens que mais recorrentemente são atribuídas ao bairro. Apesar de a história ter sido um complemento fundamental para o desenvolvimento deste estudo, ele não pretende traçar a historiografia de um bairro. Isto é, o trabalho aqui empreendido trata das razões sociais dos dilemas e conflitos simbólicos que acometem uma sociedade e um determinado contexto com diferentes imagens culturais e urbanas que, entretanto, se refletem no mapa social da cidade. Como será possível verificar, o bairro tanto é representativo de uma Lisboa típica e popular, como de uma cidade patrimonial e histórica, como pode transformar-se numa referência à multietnicidade, como denotar variantes que induzem a pensá-lo como espaço marginal e liminar.
6O ponto de partida deste trabalho refere-se à própria dinâmica social que classifica o bairro da Mouraria em função da heterogeneidade das práticas sociais. Aqui interessa perceber quais os critérios e significados que vigoram no processo de construção de imagens socio-espaciais. Entendendo essa dinâmica de classificação como central para o desenvolvimento deste estudo, foi ainda fundamental tomá-la como algo que se constrói a partir de um processo relacional entre espaço e tempo. Aqui demonstra-se como as diferenças entre as formas e os modos como o espaço é usado, apropriado e representado criam uma multiplicidade de significados e um complexo sistema de classificações que podem opor, relacionar, conectar ou articular imagens. Acredita-se, assim, que esse complexo processo de classificação e de manipulação dos significados atribuídos ao espaço local tanto podem colaborar para a construção de imagens com um relativo grau de marginalidade urbana como podem ampliar a zona imaginária da identidade territorial, identificando o bairro com a cidade, contribuindo assim para a construção de imagens com um relativo grau de centralidade simbólico-espacial. No entanto, não quis com essa demonstração afirmar que o processo de construção de imagens é conduzido por uma ou outra lógica em função das ocasiões, nem tão-pouco dizer que alguma dessas lógicas estejam posicionadas localmente ou exogenamente ou que sejam hegemónicas ou contra-hegemónicas. Mas quis sim mostrar a forma como ambas as lógicas, às vezes, se justapõem, noutras se opõem, articulam ou se conectam tanto do ponto de vista endógeno quanto exógeno, como relativamente ao discurso do poder ou do contradiscurso.
7Como desafio metodológico do estudo de caso foi essencial a compreensão da ordem sociocultural e da dinâmica de produção e construção de acontecimentos que incentivam a criação de imagens do bairro. Sendo que a ordem sociocultural e os acontecimentos foram aqui tomados como processos relacionais no espaço e no tempo, o que significou considerar tais processos como sendo reciprocamente conduzidos pelas dinâmicas sociais endógenas e exógenas, bem como pelos discursos que se pretendem hegemónicos e contra-hegemónicos ou pelas situações quotidianas e fora do quotidiano. Na verdade, o desafio foi analisar o espaço social da Mouraria como um lugar onde se produzem e se constroem significados, territorialidades, identidades e imagens, como forma de compreender a complexidade sociocultural que transforma esses processos de produção e construção da realidade em metáforas da identidade do bairro. Foi aqui objetivo demonstrar o modo como a experiência fenomenológica do lugar e as metáforas elaboradas sobre ele participam do processo de construção de imagens culturais e socio-espaciais. Neste sentido, demonstra-se como essas imagens comunicam significados específicos que, fazendo parte do conhecimento que se tem do bairro, também fazem parte do conhecimento da cidade.
8Aqui segue-se a sugestão de Hannerz (1992) de que a cidade é uma rede social total. Desse modo, importando a ideia de que “uma das competências das análises dos fenómenos culturais na antropologia urbana consiste em traçar um mapa do lugar, nos diversos universos sociais da cidade, nos quais existe uma intensa produção de significado coletivo” (Hannerz 1992: 467). Essa perspectiva implicou ainda que, ao tomar o bairro da Mouraria como contexto privilegiado de estudo, foi essencial considerar que alguns dos significados produzidos no e sobre o bairro “circulam na rede e se ligam entre eles” (Hannerz 1992: 467). Assim, como estratégia de pesquisa privilegiei as metáforas e os significados – endógenos e exógenos – que, a partir das representações e experiências vividas no espaço público local funcionassem como “símbolo e suporte da experiência urbana”, entendendo que esses espaços eram bons para pensar a Mouraria e, numa perspectiva mais ampla, a própria experiência de viver (n)a cidade (Magnani 2000a).
Precedentes da pesquisa
9Nascido do interesse que nutro pelo estudo dos processos de construção social do espaço e, nesse sentido, pela relação entre organização social e espacial, este trabalho afigura-se como uma continuidade, no sentido de um aprofundamento, de investigações anteriores. Enquanto, por outro lado, se enquadra numa proposta mais alargada de estudar as intersecções existentes entre as práticas sociais, o espaço e a construção de imagens urbanas.
10No início da década de 1990, no âmbito da atividade como investigadora do Núcleo de Ecologia Social (NESO) do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), participei de dois estudos em bairros degradados – Casal Ventoso e Quinta da Casquilha1 –, que funcionaram como o meu batismo na pesquisa da realidade urbana lisboeta. Independentemente das reflexões e dos objetivos de investigação colocados por ambos os estudos – fundamentalmente orientados no sentido de fornecer instrumentos de apoio a propostas de intervenção socio-urbanística –, eles permitiram evidenciar alguns aspectos relacionados com os modos de apropriação e organização social do espaço que, ao longo do meu percurso como investigadora, se têm manifestado com alguma proeminência. Essencialmente, tais aspectos referem-se às múltiplas influências que o modelo físico de arranjo espacial, o grau de abertura ou fechamento socio-urbanístico dos contextos, as relações entre espaço exterior e interior, as práticas e a visibilidade dos grupos em presença exercem sobre as configurações socio-espaciais.
11Seguidamente, continuei o meu percurso de investigação num contexto socio-espacial particularmente distinto dos anteriormente referidos, ou seja, no bairro da Madragoa. Dava, desse modo, início a uma pesquisa com vista à obtenção do grau de mestre em Antropologia Social e Cultural.2 O principal objetivo dessa pesquisa foi a realização de uma etnografia circunstanciada da relação casa, rua e bairro. Com esse intuito, procurei estudar e refletir sobre os aspectos socio-espaciais que eram mais valorizados pelos moradores na construção de uma ideia de bairro. Através desse estudo foi possível verificar, entre outros aspectos, que paralelamente à afirmação e preservação da identidade socio-espacial, conforme pronunciada por uma espécie de bricolage do quotidiano – onde as imagens passadas, as presentes e as perspectivas futuras eram constantemente postas em relação –, dava-se uma mudança nos valores socioculturais locais de organização e arranjo do espaço, o que permitiu inferir a existência de um processo constante de reformulação socio-espacial que enriquecia o campo das significações imaginárias do bairro. Finalizado o relatório de pesquisa, em 1996, senti a necessidade de aprofundar o conhecimento da forma como a relação entre determinados símbolos urbanos, valores socioculturais, arranjo formal do espaço, representações, práticas e experiências dos indivíduos se articulavam com os processos de reformulação socio-espacial e o campo de significações imaginárias da cidade. Iniciava, então, a pré-construção da proposta de pesquisa que daria lugar ao presente estudo.
12Saliento ainda que no decurso dos trabalhos acima referidos, e como investigadora do NESO-LNEC, participei de um conjunto de estudos interdisciplinares ligados à análise e avaliação da qualidade habitacional.3 Tais estudos têm sido desenvolvidos em contextos residenciais identificados como Habitação de Custo Controlado (HCC) – podendo a promoção ser privada, cooperativa ou municipal –, encontrando-se esses contextos distribuídos pelo país. Aqui é feita referência a tais estudos pelo facto de a diversidade da experiência de trabalho de campo, bem como os próprios resultados das análises efetuadas, colocar em evidência um conjunto de implicações antropológicas muito interessantes para a discussão da relação entre sociedade e espaço construído. De modo que aqui destaco algumas dessas implicações. Uma primeira dessas implicações refere-se à utilização de distintas formas de conceptualização e categorização de um mesmo espaço, tanto da parte dos técnicos com formações disciplinares variadas como da parte dos diferentes habitantes, confrontando-nos com uma heterogeneidade de representações socio-espaciais que não são necessariamente opostas. Muitas vezes, essas representações são múltiplas e complementares, exigindo um esforço interpretativo para se compreender as várias linguagens utilizadas no processo de perceção ambiental ou os distintos processos intertextuais pelo qual o espaço é lido. Uma outra implicação é que, a par da heterogeneidade de uso, apropriação e representação espacial por parte dos habitantes, e a par dos processos de transformação socio-espacial, existem referências e práticas socioculturais e espaciais comuns a determinadas zonas geográficas do país e a certos ambientes construídos, sendo que algumas dessas práticas se caracterizam pela sua continuidade. Esse aspecto tem evidenciado a importância em abordar esses contextos residenciais a partir das suas especificidades socioculturais nos modos de apropriação e organização do espaço, para além das suas especificidades físico-arquitetónicas. Uma outra implicação é que os espaços privado e público não são excludentes mas relacionais, não só no que se refere às dinâmicas endógenas mas também ao nível da relação com a envolvência urbana, o que muitas vezes faz emergir problemas de integração socio-urbanística. As dinâmicas de vinculação socio-espacial com o contexto de residência e os processos de construção de imagens urbanas – endógena e exógena – estão intimamente ligados à promoção da qualidade e à garantia da manutenção dos espaços públicos. Pelo que tem sido relevante considerar a questão da visibilidade dos grupos sociais em presença e do próprio ambiente construído ao nível dos processos de percepção ambiental e de segregação socio-espacial a que alguns desses contextos se encontram sujeitos.
13Foi no decurso desta trajetória que o meu interesse pelos processos de construção de imagens da cidade e a sua relação com as práticas que se desenvolvem nos espaços público e semipúblico ganhou forma.
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14Os trabalhos de António Firmino da Costa sobre Alfama e de Graça Índias Cordeiro sobre a Bica despontaram como referências4 incontornáveis que, não esgotando novas perspectivas de abordagem, me mostraram que, apesar da idealização e mesmo mitificação dos bairros típicos de Lisboa, os seus universos socioculturais ainda são relativamente desconhecidos. Daí ter considerado que o contributo deste trabalho, eventualmente, poderia ser no sentido de enriquecer o conhecimento desses contextos, analisando e interpretando o quotidiano de um outro bairro que não Alfama, Bica ou Madragoa. Quanto mais caminhava pelos bairros populares da cidade, quanto mais sobre eles lia, um bairro, sobre todos os outros, mostrou-se particularmente expressivo. Com muito má fama, poucos estudos de carácter sociológico, muita mistura social e cultural, muito destruído nos anos 40 do século passado, misto de atração e repulsa, a Mouraria mostrava-se um desafio.
15Portanto, a Mouraria revelou-se como um contexto particularmente interessante para analisar os processos de reformulação socio-espacial e perceber como tais reformulações se repercutiam na imagem identitária do bairro. Todavia, assim que iniciei o trabalho de campo na Mouraria e de acordo com as leituras que comecei a efetuar sobre o bairro, dei-me conta de que a motivação de partida teria de ser enquadrada num outro tipo de problemática. Comecei, pois, a inquietar-me com um outro tipo de questão: como é que as metáforas que fazem menção ao bairro projetam imagens culturais e urbanas que, ao mesmo tempo que viabilizam a sua emblematização, podem segregá-lo e marginalizá-lo?
16Desse modo, tornou-se cada vez mais relevante a análise das lógicas de dualidade, ambivalência e ambiguidade que constantemente interferiam no processo de construção de imagens identitárias do bairro. Pois, tais lógicas tanto podiam relevar a tipicidade como imagem emblemática ou a multietnicidade como símbolo local, como realçar a marginalidade e a segregação socio-espacial a que o bairro, ao longo da sua história, parece estar sujeito. E, aos poucos, a problemática de estudo foi-se configurando em torno da percepção dos significados que estavam por detrás do cartão-postal do bairro, isto é, da sua imagem mais pública. Nesta perspectiva, a análise das práticas de uso e apropriação do espaço público do bairro revelaram-se como uma importante estratégia de pesquisa para o estudo dos processos de construção de imagens identitárias.
17Mas tomar o bairro como contexto privilegiado de estudo não foi uma tarefa fácil. A par da complexidade social, cultural, espacial e arquitetónica com que tive de lidar, um dos desafios que também se colocou foi descobrir que tinha de trabalhar com opiniões e mesmo representações muito adversas ao bairro e, em parte, ao próprio sentido do que poderia ser um estudo nesse contexto. As inseguranças iniciais do trabalho de campo tornaram-se, muitas vezes, difíceis de ultrapassar mediante opiniões que, vindas da parte de intelectuais por quem nutro respeito, me defrontavam com a falta de sentido em estudar um contexto que, por um lado, “deixou de existir” face à intervenção promovida pela política urbana do Estado Novo e que destruiu o bairro quase por inteiro, apenas restando umas poucas ruas “sem expressão socio-urbanística” e, por outro lado, a insensatez de estudar um bairro que somente se expressava por “exemplos negativos” ao longo da sua história. Se me valeu o estímulo por parte de alguns cientistas sociais e por parte dos técnicos de intervenção urbana do Gabinete Local da Mouraria (GLM) na continuidade dos meus intentos de pesquisa, o que se afigurou como decisivo enquanto antropóloga foi, entretanto, a postura quase subversiva pela qual a Mouraria se afirma como bairro típico e popular da cidade de Lisboa. Mouraria foi a designação de um arrabalde, um gueto para os mouros vencidos. Mouraria designa um bairro e dá expressão a um sentimento bairrista, designa ainda um gabinete de intervenção urbana, uma rua e uma calçada, uma marcha, uma coletividade, um infantário, um centro comercial, algumas lojas e cafés, às vezes, de indianos… À entrada da Junta de Freguesia do Socorro, na qual grande parte do bairro se inscreve, uma placa colocada na via pública dizia: “Bem-vindos a Mouraria”; foi o convite para conhecer melhor o bairro e continuar a pesquisa.
Referências teóricas de pesquisa
18Este trabalho enquadra-se no campo do estudo da espacialização da cultura e da sociedade. O espaço social é aqui focalizado como um indicador central para o estudo dos processos de construção social de imagens urbanas, interessando apreendê-lo a partir da percepção dos indivíduos e das práticas sociais de uso/apropriação. Aqui oriento-me pela ideia de que, podendo a sociedade e a cultura serem compreendidas espacialmente, essa espacialização pode ser lida como um texto que igualmente nos fala sobre a ordem social e cultural.
Espaço: uma categoria de entendimento da sociedade
19O estudo do espaço é, muitas vezes, guiado por perspectivas que se pretendem distintas. Uma delas pretende abordá-lo como uma dimensão material e física, enquadrando geograficamente a paisagem e denotando extensão. Uma outra pretende tratar o espaço como uma dimensão que se define através do sentido que a sociedade lhe atribui (Durkheim 1989). Noutra reconhece-se uma relação dialética entre o social e o espacial (Lévi-Strauss 1974, 1993). Este trabalho enquadra-se nessa última perspectiva e, nesse sentido, parto do princípio de que os anteriores pontos de vista não são excludentes, mas complementares. Pelo que aqui considero a existência de uma relação dialética entre atores sociais e espaço ou, conforme observou Silvano (1988, 1994, 1997), que a similitude que daí emana diz sobretudo respeito ao problema que se põe em termos da relação entre configurações espaciais e identidades coletivas. E neste sentido, como referiu DaMatta (1991: 69), parto do princípio de que é “estudando o espaço de uma sociedade que se pode lançar luz sobre questões tão importantes como o seu sistema ritual e o modo pelo qual ela faz a sua dinâmica”. O que, conforme foi proposto por Lévy e Segaud (1983), leva a conceber o espaço como uma condição intrínseca às sociedades, manifestando-se na intimidade das estruturas sociais e no âmago dos dispositivos simbólicos.
20Porém, as distinções entre as perspectivas de abordagem do espaço não se esgotam nos pontos de vista acima referidos, parecendo desdobrar-se noutros tipos de problemáticas que, entretanto, muitas vezes continuam a ser presididas por lógicas analíticas que se pretendem opor. Como referiu Zukin (1996: 43-46), existem duas escolas que analisam o ambiente construído da cidade a partir de perspectivas diferenciadas: uma delas enfatiza a economia, o capital e o uso da terra; enquanto a outra privilegia a relação entre significados culturais e formas construídas, enfatizando o contributo das representações dos grupos sociais e dos significados visuais para a construção das identidades sociais. Neste sentido, é pertinente a crítica que a autora desenvolve sobre essas perspectivas de entendimento da cidade, como se fossem objetos separados. Para Zukin é fundamental analisar a cidade e o espaço construído a partir da interpretação e interpenetração dessas duas perspectivas, isto é, da cultura e do poder. Pois a análise da cidade a partir da interação entre o seu sistema económico e simbólico permite igualmente identificar dois sistemas de produção que funcionam paralelamente: a produção do espaço e a produção de símbolos.
21Interessa-me compreender o espaço a partir da articulação entre processos de produção e de construção social. Isto é, conforme observou Low (2000a: 127-128), considerarei aqui que a produção social do espaço comporta os fatores – sociais, económicos, ideológicos e tecnológicos – que contribuem para a criação e materialização de um setting. E que a construção social do espaço diz respeito às experiências fenomenológicas e simbólicas que decorrem no espaço, sendo estas mediadas pelos processos de mudança, conflito e controlo.
Espaço, cultura e poder
22Ao considerar a relação entre espaço, cultura e poder procurou-se, no estudo etnográfico empreendido, captar as articulações existentes entre as forças políticas de produção do espaço e de controlo social com as respectivas forças de resistência ao controlo imposto. Isto é, tencionou-se estabelecer uma relação entre a história, os conflitos inerentes à organização do espaço construído e os seus respectivos usos e apropriações, as imagens, as experiências dos indivíduos e os significados que são atribuídos ao espaço.
23Embora as estruturas do poder sejam representadas na forma como o espaço urbano se encontra ordenado, através de certas ações e usos políticos do espaço os indivíduos podem contestar as imposições do poder (Low 1995, 2000a, 2000b). Assim, tanto o espaço como o lugar não devem ser considerados como meros receptores das ideologias políticas e urbanas; portanto, não são passivos. Precisamente porque são agentes de enraizamento, operando através de sistemas “de interesses, representações e significações” (Guerra 1987: 186). A relação dialética entre atores sociais e espaço pode ser concebida como uma relação indutora das transformações espaciais, ou seja, o espaço reage e ao reagir interfere nas dinâmicas sociais (Silvano 1994).
24No entanto, as figuras históricas que representam o poder e a sua ideologia inscrevem-se no espaço, promovendo diferentes valores e manipulando o imaginário socio-espacial (Freitag 1992; Bonetti 1994). Nessa perspectiva, Low (2000a), ao recorrer a Pierre Bourdieu, observou que o ambiente construído e formalizado estrutura o nosso mundo e naturaliza a nossa experiência de tal modo que as relações de poder, mesmo as do passado, continuam a ser espacialmente representadas e reproduzidas o que, muitas vezes, dificulta os processos de mudança. Desse ponto de vista, o plano da cidade pode ser considerado como um produto intimamente relacionado com os conflitos sociopolíticos e com as forças económicas (David Harvey em Low 2000a).
25Por outro lado, de Certeau (1990) considerou que a partir de diferentes tipos operatórios as pessoas desenvolvem práticas criativas que lhes permitem a reapropriação do espaço quotidiano. Tais práticas quotidianas, muitas vezes, aparecem como táticas marginais ou clandestinas que são ativadas pelos indivíduos ou pelos grupos nas distintas ocasiões. Na construção desse processo criativo, o autor privilegia o ato de caminhar, considerando que esse ato particulariza a experiência espacial dos indivíduos. Pois, ao caminhar os pedestres nomeiam, narram e relembram a cidade de forma improvisada, inventiva e, assim, conseguem evadir-se dos constrangimentos e das imposições colocadas pelo planeamento urbano. Contudo, Edensor (1998) observou que as posições de de Certeau vêm sendo criticadas pela sua construção otimista de um pedestre heroico. Mas também notou que as ideias dele são convincentes por refutarem as noções deterministas de que os pedestres são mentalmente e fisicamente formados pelo planeamento e controlo urbano. No entanto, julgo importante complexificar a ideia de que o acionamento de táticas inventivas na apropriação do espaço permite aos indivíduos escaparem ao controlo imposto pela organização do espaço. Creio que, havendo um processo inventivo nas formas de apropriação física e mental do espaço, e podendo o ato de caminhar contribuir para esse processo de invenção – através do relacionamento entre a sensualidade dos movimentos corporais, da fantasia e do devaneio (Edensor 1998) – deve-se, no entanto, considerar que ao caminhar os indivíduos também se sentem constrangidos pelo meio social que atravessam e ainda que lidam com as suas próprias visões do mundo. Acredito, assim, que o processo de invenção inerente ao ato de caminhar não é necessariamente uma forma pacífica de evasão sendo, muitas vezes, conflituoso.
Do espaço ao lugar
26Aqui aceito a ideia de lugar conforme a interpretação que lhe dá Agnew (1997), ou seja, como um conceito composto por três elementos essenciais: local, localização e senso do lugar. E, nessa perspectiva, ao retomar Rodman (1992), tenho em conta que o lugar tanto serve como metonímia da experiência antropológica como das outras experiências. O lugar é, assim, considerado como um espaço de experiência cultural e construção social; ou seja, é uma experiência fenomenológica. Sendo que a experiência do lugar como espaço vivido se dá através da infusão entre a experiência de um lugar mais a evocação de outros eventos, outros espaços, outras experiências e tempos, e das muitas vozes que sobre ele falam. Neste sentido, interessa-me trabalhar com as noções de “multilocalidade” e “multivocalidade” conforme o sentido que lhes é atribuído por Rodman (1992). Pois tais noções permitem abordar as várias dimensões de um lugar, possibilitando descentrar a análise e considerar o processo de construção dos lugares como sendo múltiplo, viabilizando a construção de um olhar a partir do ponto de vista dos outros. E mais: permite comparar as análises do espaço como indica a reflexibilidade entre os diferentes relacionamentos e os lugares, bem como dar expressão à polissemia dos significados atribuídos ao lugar pelos seus diferentes utilizadores. Pelo que aqui interessa proceder à desconstrução dos significados que, ao longo do processo de construção e produção do espaço, são atribuídos ao lugar.
27Observo ainda que, como estou preocupada em analisar um dos bairros antigos de Lisboa, me ancoro nos trabalhos desenvolvidos por António Firmino da Costa e Graça Índias Cordeiro,5 para assim me tentar distanciar de algumas posições defendidas por Remy e Voyé (1994). Neste sentido, parece-me importante desmistificar a ideia de que lugares como os bairros antigos, típicos ou populares não fazem parte da cidade, dos processos de urbanização ou do sistema global, como se eles existissem neles próprios. Pelo que concordo com Santos (1995: 135) quando nos diz que “o lugar não poder ser considerado como passivo mas sim como globalmente activo”, e com Santos Silva (1994: 123) quando referiu que “o micro não resulta, aqui, de operações de segmentação de um macro, mas sim da combinação e complexificação de vários níveis macros”.
Espaço público urbano
28O espaço público é aqui considerado como suporte para a manifestação de performances pessoais, sociais e culturais, atos de resistência e de dominação, conflitos, memórias, mudanças, imagens, identidades, encontros, etc.; como um espaço que é constituído pelos mesmos dramas (Carr et al. 1995; Fyfe 1998b; Low 2000a).6 Aqui entende-se que o espaço público é um lugar estratégico para se aprofundar o conhecimento da relação entre espaço e sociedade, já que é um espaço de mediação que possibilita a criação e a contestação de identidades, isto é, um espaço onde as práticas culturais que ali se desenvolvem fazem parte do nosso conhecimento da cidade (Fyfe 1998a; Crouch 1998).
29Portanto, atraída pela possibilidade de a apropriação continuada do espaço público ao longo do tempo poder ser entendida através da ideia de “formas ritualizadas” (Noschis 1984), foi meu objetivo descrever e analisar como essas formas ligavam o habitante ao bairro. Mas também foi objetivo perceber como as distintas práticas e os diferentes indivíduos que utilizam o espaço se encontram ligados ao campo de significações do bairro e da cidade, num sentido mais amplo. Para operacionalizar tais intenções, utilizarei as categorias “pedaço”, “trajeto”, “circuito” e “mancha” conforme são conceptualizadas por Magnani (2000b).
30De acordo com uma pesquisa sobre formas de cultura popular e modalidades de lazer dos trabalhadores de bairros da periferia de São Paulo, Magnani (1998) recorreu à noção nativa de pedaço para descrever uma forma específica de sociabilidade e apropriação do espaço. Para o autor (1998: 115), o termo pedaço é constituído por dois elementos referenciais: “Uma componente de ordem espacial a que corresponde uma determinada rede de relações sociais.” A componente espacial demarca um território a partir de certos pontos referenciais que servem como fronteiras como, por exemplo, o telefone público, a padaria, etc., sendo que tais pontos se constituem como locais de encontro e de passagem. No entanto, ser do pedaço implica fazer parte de uma determinada rede de relações, não bastando somente frequentá-lo, sendo essa segunda característica ordenada por um conjunto de códigos que permitem ordenar, separar e classificar quem é e quem não é do pedaço. Entretanto, a participação no pedaço não se dá aleatoriamente, sendo ordenada a partir de determinadas práticas que permitem distinguir os pontos e as formas de entretenimento como é, por exemplo, o caso das práticas masculinas por oposição às femininas, etc.; ou ainda a partir dos eixos em casa e fora de casa, subdividindo-se este último em no pedaço e fora do pedaço.
31Mas interessado em perceber o que se passava relativamente às formas de lazer e às sociabilidades na região central de São Paulo, Magnani (2000a, 2000b) constatou que a categoria pedaço lhe era útil para explicar e demarcar as distintas situações em que o espaço era apropriado por indivíduos/grupos ligados a uma determinada rede de relações. Embora tenha verificado que enquanto na lógica de bairro e de vizinhança havia um conhecimento mútuo entre os seus frequentadores, criando vínculos ditados pelo quotidiano da vida de um bairro, nos distintos pedaços da região central da cidade não era necessário o reconhecimento mútuo entre os seus frequentadores para que um pedaço fosse constituído. Isto é, nesses casos o reconhecimento dava-se pela partilha que os frequentadores do pedaço faziam de um determinado conjunto de símbolos diretamente relacionados com gostos, orientações, valores, hábitos de consumo e modos de vida com alguma semelhança. Segundo o autor, ainda que tais pedaços se constituam em espaços públicos e de livre acesso, encontrando-se impregnados por símbolos, o território é demarcado por marcas exclusivas e, assim, deixa de ser um espaço ambíguo.
32Para Magnani (2000a, 2000b), entre as esferas privada e pública do espaço existem gradações de usos e apropriações que se expressam por inumeráveis combinações intermédias, onde as ligações são feitas através de trajetos que, inclusivamente, abrem passagens para espaços não conquistados. O trajeto permite ligar pontos no interior de uma mancha, como permite a abertura dos pedaços e das manchas a outros pontos do espaço urbano e, nesse sentido, a outras lógicas. Entretanto, os trajetos são passagens, não pertencendo aos pedaços nem às manchas, definindo-se como os vazios fronteiriços que dão lugar aos espaços liminares.7
33Magnani (2000a, 2000b) ainda utilizou a categoria circuito para descrever a relação entre estabelecimentos, espaços e equipamentos que se especializaram na oferta de um determinado serviço ou se caracterizam por práticas específicas. Mas os circuitos não se definem pela contiguidade na paisagem urbana, sendo o seu reconhecimento restrito aos seus usuários, por exemplo, o circuito homossexual, o dos cineclubes, etc.
34A categoria mancha é utilizada por Magnani (2000a, 2000b) para designar os lugares que funcionam como pontos de referência para um número diversificado de frequentadores. Como exemplo, o autor cita o bairro do Bexiga em São Paulo, observando que nele coexistem vários Bexigas. O que diferencia o pedaço da mancha é que enquanto o primeiro termo é definido por uma rede de relações em que se verifica a manipulação de símbolos e códigos comuns, sendo porquanto um espaço restrito, que tanto viabiliza a alternação para um outro ponto como um pedaço pode ser levado junto para um outro local; o segundo termo aglutina uma diversidade de pontos e estabelecimentos, denotando uma maior estabilidade tanto na paisagem como no imaginário.
35Contudo, o autor ainda observa que a cidade não se constrói como pontos, pedaços ou manchas excludentes, havendo circulação das pessoas por entre as distintas alternativas existentes, de modo que o trajeto seria a categoria que serve para explicar os fluxos no espaço urbano que permitem a ligação entre os vários pontos. Pelo que as noções de pedaço, trajeto, circuito e mancha, conforme tratadas por Magnani, ajudam a compreender como a Mouraria é um espaço multidimensional, demonstrando, assim, a sua permeabilidade e abertura para fora. O que permite aqui inferir que, a par do pedaço dos moradores, na Mouraria coexistem diferenciados pedaços.
36Ao considerar que o espaço público é um local de mediação através do qual as identidades sociais e as imagens socio-espaciais podem ser criadas e contestadas (Noschis 1984; Fyfe 1998a; Low 2000a), parti do princípio de que esse espaço simboliza a comunidade como a sociedade e a cultura mais abrangente na qual ele se integra (Carr et. al. 1995), fazendo parte do conhecimento que se tem da cidade, contribuindo desse modo para se pensar a relação entre espaço, cultura e sociedade. Na análise do espaço público do bairro coloquei, então, as seguintes questões de partida: como é que a experiência e a vivência social desse espaço consolida e atualiza a imagem do bairro? Como é que as identidades, as práticas e as imagens socio-espaciais são constituídas e constituem o espaço público? Como é que a espacialização do poder produz e constrói significados que se inscrevem nesse espaço? Como é que os significados e a significância desse espaço são alterados nos processos de simbolização e ritualização? De que maneira é que o espaço público do bairro se torna significante no processo de construção social de imagens da cidade?
Ler e perceber o espaço
37O espaço contém relações objetivas e o propósito de as identificar é feito a partir da leitura dessas relações. Para Rapoport (1980), a leitura do ambiente construído dá-se através de uma série de relacionamentos entre coisas e coisas, coisas e pessoas, e pessoas e pessoas. Sendo considerado que o ambiente construído é socialmente organizado a partir de quatro elementos: espaço, significado, comunicação e tempo. Portanto, dir-se-ia que o espaço organizado expressa significados e possui propriedades comunicativas, também podendo ser analisado a partir das metáforas ou do comportamento humano não-verbal, isto porque o ambiente construído e apropriado pode ser analisado como um sistema de comunicação (Rapoport 1980; Richardson 1980). Neste sentido, a observação antropológica do espaço permitiria identificar: (a) uma realidade social através do espaço formalizado (“evidência de uma configuração”); (b) a tradução das relações sociais a partir das formas espontâneas (“as formas informam”); (c) a capacidade de reformulação psíquico-espacial nos indivíduos a partir da reflexividade que as formas emitem (Lévy e Segaud 1983: 192, 193).
38Contudo, como referiu Casal (1986), não se deve condicionar a análise sociológica do espaço à organização da forma espacial, pois o principal elemento dessa análise é a organização social. Nessa perspectiva, considera-se que a especificidade na organização do território é muito mais a expressão das interações resultantes entre espaço/tempo e sociedade de que um simples resultado. De modo que a relação entre as formas, os símbolos e os valores sociais não é aqui tomada como algo definido por princípio e, em concordância com Michel Bonetti (1994: 16-17), nem tão-pouco como uma relação rígida, justamente porque é flexível e flutuante em função dos processos de ajustamento cultural que, por sua vez, são dinâmicos e arbitrários.
39Repare-se, assim, que o problema da percepção do espaço releva a importância da experiência fenomenológica (Bettanini 1982: 93), pois interessa captar os processos de construção do espaço, para se compreender os significados que lhes são atribuídos, bem como captar as mudanças que dialeticamente são imputadas ao espaço.
Espaço e tempo
40Voltando à relação entre espaço e tempo, o estudo aqui empreendido procura analisá-la através dos ritmos das atividades humanas, ou seja, o número de ações por unidade de tempo e a distribuição dessas ações no tempo, podendo esse ser durante o dia ou a noite, fim de semana ou feriado, nas diferentes estações do ano, no quotidiano ou nas situações extraordinárias (Rapoport 1980). Como observou Low (2000b), o exame das microgeografias socio-espaciais de uso e apropriação do espaço público confronta-nos com uma rotina quotidiana em que os locais são inventados através de atributos temporais e espaciais individuais, sendo que “as crescentes diferenças destes locais em termos de seus usuários, classes, géneros e idade, bem como das suas correspondentes atividades sociais, são reforçadas pelas diferenças das interpretações locais do conceito de cultura” (Low 2000b: 31). Para a autora, o exame das microgeografias quotidianas do espaço público urbano ajuda-nos a compreender algumas das metáforas de delimitação e demarcação social que se desenvolvem no contexto local. Mas não só, também permite compreender algumas das dinâmicas sociais e ideológicas que contribuem para a invenção de determinados significados urbanos que, por sua vez, se espelham no mapa social da cidade. Pelo que é saliente observar que as diferentes formas de uso, apropriação e representação do espaço não se dão de forma totalmente aleatória e individual, enquadrando-se num quotidiano ditado “por injunções colectivas que regulam o trabalho, a devoção, a diversão, a convivência e que deixam as suas marcas no mapa da cidade” (Magnani 2000a).
41Na compreensão das microgeografias quotidianas dos espaços públicos do bairro, interessou a ideia de que os indivíduos são uma das componentes de um determinado quadro comportamental, sendo produtores e produtos desse setting, havendo uma interdependência entre indivíduos, espaço e tempo. De acordo com Barker (1973), a ideia de setting implica: um lugar no espaço e no tempo, a existência de comportamentos padronizados e mais característicos, como de uma íntima relação entre indivíduos e espaço. Ao que Wicker (1979) referiu que a análise de um setting passa pelos seguintes pontos: tempo, duração e limite do setting, número de pessoas envolvidas e seus atributos (por exemplo: idade, sexo, estrato social, etc.), a extensão de influência do setting noutros quadros comportamentais, a extensão em conversas e representações, e o próprio tempo de duração da pesquisa.
Imagens e representações socio-espaciais
42Uma das ideias centrais deste trabalho é que a construção de imagens urbanas está intimamente relacionada com as condições de visibilidade e as suas respectivas interpretações ao longo do tempo. Neste sentido, interpretar o modo como a visibilidade das práticas de uso e apropriação do espaço público interfere no processo de construção da imagem do bairro foi um dos principais objetivos deste trabalho. Na concretização de tais intentos de trabalho, considerei que o espaço torna-se significativo e significante através da experiência social, sendo importante observá-lo a partir de um olhar interativo que contemple as mútuas influências entre a variedade dos fenómenos socio-espaciais e a diversidade das formas espaciais, em termos de expressão, consequência e razão desses para nós e para os outros. Pelo que a interpretação dos significados do espaço como expressão das interações entre o meio físico e a experiência sociocultural é uma premissa fundamental no decorrer deste trabalho. Assim, julgo que a experiência e a imagem servem como meio de compreensão do ambiente construído e socialmente apropriado (Richardson 1980).
43No entanto, tais questões remetem para o tema das representações. Neste sentido, Lévy e Segaud (1983) referiram que as representações são um duplo do próprio espaço. Consideração que se aproxima da perspectiva de que a cidade é tanto um mundo objetivo como uma representação (King 1996), desse modo permitindo insinuar que que os vários significados das representações podem ser considerados como processos intertextuais em que a cidade é escrita e lida a partir de inúmeras e diferentes narrativas (Duncan 1996). Deste modo, dir-se-ia que as diferentes representações são coexistentes – quer sejam paralelas, quer sejam conflituais –, insinuando o carácter multidimensional das mesmas. Portanto, como sugeriu Shields (1996: 246), é importante analisar a cidade como um transdiscurso onde o mundo empírico e o fabricado, o real e o imaginado, o factual e o fictício se encontram a tal ponto misturados que é difícil traçar uma linha de separação entre eles. Desse ponto de vista, é necessário ter em consideração a multidimensionalidade das práticas, percepções, representações, desejos, valores e o imaginário relativo a esse mesmo espaço.
44Mas tendo em consideração que o espaço aqui analisado é complexo, multidimensional e heterogéneo, como resolver o problema da sua percepção?
45De um lado, a heterogeneidade local ou as possíveis descoincidências existentes entre as múltiplas formas de usar, apropriar e representar o espaço não podiam somente ser analisadas na ótica da população residente no bairro, mesmo tendo em conta a sua diversidade. Pois o universo das práticas socioculturais e das formas de uso e apropriação do espaço é muito diversificado, repercutindo-se nos processos de construção de imagens culturais e urbanas – endógenas e exógenas – do bairro. De outro lado, a ideia de heterogeneidade aqui referida não é somente no sentido de o espaço admitir o desenvolvimento de atividades diferenciadas, mas também no sentido de que nele se encontram sobrepostos múltiplos usos e significados, pois o espaço é multidimensional. E, neste sentido, é considerável o reflexo dessa multidimensionalidade no espaço público urbano. De acordo com Cooper (1998), a condição de heterogeneidade que caracteriza o espaço público urbano é, inclusivamente, uma forma de heterotopia – no sentido que lhe atribuiu Michel Foucault –, na medida em que justapõe distintos e às vezes incompatíveis espaços e temporalidades. E, segundo Edensor (1998), as heterotopias constituem formas de desafio aos modos hegemónicos de regulação e representação do espaço. Nessa ótica, o pedestre é mais do que um mero espectador dos espetáculos produzidos, pois é parte essencial na criação da heteroglossia. Tais questões colocam em evidência a importância de conhecer as várias maneiras pelas quais o espaço público é imaginado, estruturado e observável, bem como as várias maneiras pelas quais se dá o confronto com o outro.
46Contudo, isto ainda coloca uma outra questão: a problemática ligada à dualidade das representações. Neste sentido, Low (2000), recorrendo ao trabalho de James Duncan sobre o Sri Lanka, referiu que tanto as distintas formas de compreender a estrutura urbana quanto as explicações históricas acerca da criação e das transformações do espaço público urbano podem ser enquadradas numa teoria construída a partir da leitura da paisagem urbana. Pelo que o estudo de como a sociedade classifica determinadas formas culturais pode, por exemplo, ser desenvolvido através da análise de fotografias e de textos construídos sobre a paisagem local, pois estes comunicam informações sobre as relações sociais, bem como sobre a dualidade das representações. Esta perspectiva de análise foi particularmente enfatizada neste trabalho.
Contexto, estratégias e itinerários de pesquisa
47O contexto privilegiado de observação foi o núcleo do bairro, mais três ruas que o envolvem e se caracterizam por uma intensa atividade comercial e ainda a Praça do Martim Moniz. No entanto, a complexidade das dinâmicas socio-espaciais do local exigiu que também observasse, embora não tão intensamente, as dinâmicas relacionadas com o Centro Comercial da Mouraria.
48Resolvi não ir viver no bairro e entre as explicações que suportam essa decisão é assinalável a experiência que tivera no bairro da Madragoa e as implicações daí decorrentes (Menezes 2002). Decidi, entretanto, ir para o bairro sempre a pé e as vezes que recorri ao metro para sair do bairro fi-lo através do seu acesso pelo Centro Comercial da Mouraria. Duas decisões fundamentais para perceber alguns níveis de exterioridade e interioridade socio-espacial e verificar como o local se relacionava e se particularizava relativamente à envolvência urbana.
49O trabalho de pesquisa foi focalizado em dois campos de análise: das significações imaginárias e das práticas sociais de uso/apropriação do espaço. No que respeita ao primeiro campo, interessou captar como o espaço é percebido – endogenamente e exogenamente –, de forma a destacar as metáforas que projetam determinadas imagens do bairro. Relativamente ao campo das práticas, interessou captar a experiência fenomenológica da vivência do espaço público local, de forma a realçar a mediação entre determinadas práticas e o campo das significações imaginárias do bairro.
50Centrei a análise nos discursos, nas práticas, nas memórias e nas distintas citações literárias que evocam o bairro para apreender os modos como os distintos discursos que evocam a Mouraria projetam determinadas imagens socio-espaciais que parecem funcionar como uma espécie de rótulo para a classificação do contexto. Contudo, o espaço construído e apropriado também foi lido como um texto e analisado a partir da experiência fenomenológica do lugar e das metáforas sobre ele construídas. Também foi importante captar as formas como localmente é percebido o bairro enquanto território urbano e quais as metáforas e significados que sustentam tal percepção. Aqui foi, então, privilegiada a análise da percepção que os indivíduos fazem dos limites, fronteiras e referenciais de orientação no território. Ainda foi objetivo da pesquisa a identificação dos significados atribuídos por distintos indivíduos à vivência quotidiana dos espaços de uso coletivo; assim como a percepção de como tais significados são manipulados no processo de construção de imagens socio-espaciais do bairro; e como o espaço público é usado e apropriado nas situações extraordinárias. Como estratégia, foi privilegiado o estudo da relação entre indivíduos, espaço e tempo, bem como a observação do espaço em dois momentos importantes para o bairro da Mouraria: a Procissão de Nossa Senhora da Saúde e os arraiais populares.
51Ressalva-se que tais problemas, contextos e procedimentos de análise não foram antecipadamente determinados. Aos poucos confrontei-me com a multiplicidade de aspectos socioculturais, espaciais e históricos, tendo de negociar e relativizar no quotidiano do trabalho de campo quais é que seriam mais relevantes, o que implicou o recurso a uma multiplicidade de estratégias, escalas de observação e instrumentos de recolha de informação.
52Observo ainda que, apesar de este trabalho abordar o campo das significações imaginárias e das práticas sociais num determinado contexto da cidade, ele lida com as suas próprias contradições. Uma dessas contradições diz respeito ao facto de que, embora o bairro da Mouraria seja um contexto com particular interesse para o estudo das relações étnicas, o percurso aqui seguido apenas toca nesta temática não a aprofundando.8 O presente estudo somente descreve e mapeia algumas das práticas de uso e apropriação do espaço. Daí as práticas manifestadas pelas distintas etnias que frequentam o bairro terem sido contempladas no decorrer desta análise. Aqui apenas procurei cumprir um dos objetivos do trabalho, que foi o de verificar o modo como as práticas interferem no campo de significações imaginárias do bairro e da cidade. Contudo, a partir desta situação emerge uma outra contradição da pesquisa: o não aprofundamento das implicações analíticas da utilização de noções como multicultural e multiétnico. Sendo levada a admitir que seria interessante aprofundar empiricamente e teoricamente a análise dessas noções, sobretudo tendo em conta as suas implicações científicas e políticas (Bourdieu e Wacquant 2001), aqui também reconheço as limitações da presente pesquisa. Assim, saliento que aqui tais noções apenas são referidas porque utilizadas – sobretudo exogenamente – como uma das metáforas mais frequentemente evocadas para caracterizar e classificar as dinâmicas que se sucedem na Mouraria e, nesse âmbito, são aqui inferidas como um dos significados que contribuem para a construção da imagem do bairro com repercussões na sua realidade social e urbana.
53Noto ainda que a variedade de visões do bairro como dos significados subjacentes é difícil de apreender na sua totalidade, bem como o leque de perspectivas que podem guiar a interpretação da realidade local é muito variado e amplo. A metodologia de análise das relações entre indivíduos e meio, sociedade e espaço, coloca ao investigador uma multiplicidade ilimitada de variáveis a observar e analisar, inferindo a necessidade de se proceder ao estudo do meio urbano através de uma perspectiva transdisciplinar. Mas, podendo essa perspectiva ser considerada ideal e tendo ela sido aqui assumida como uma postura teórica, pela sua abrangência esta é uma tarefa de difícil realização por um único investigador igualmente condicionado por limites de tempo e de recursos. De modo que o presente trabalho se justifica pelo seu carácter exploratório, não pretendendo esgotar as possibilidades de abordagem das dinâmicas que trespassam a realidade do bairro da Mouraria, nem tão-pouco os processos de construção de imagens urbanas. O objetivo desta pesquisa exploratória é, assim, contribuir para o conhecimento da realidade urbana e, eventualmente, colocar questões que possam guiar futuros projetos de estudo. Conforme referiu Meditisch (1996: 39), ao comentar as contradições do trabalho do cientista social da atualidade, “esta constatação leva a admitir […] que a transdisciplinaridade impõe uma outra postura epistemológica, na qual a procura da síntese dá lugar à complexidade do real, e obriga a admitir as suas contradições”.
Itinerários
54As primeiras aproximações ao contexto de pesquisa foram através de longas e silenciosas digressões a caminhar. Em consonância desses primeiros contactos, iniciei um percurso bibliográfico pela história do bairro, como uma recolha de distintos textos jornalísticos e literários que abordassem a Mouraria, recolha que se alongou até ao final da pesquisa. No decurso dessas primeiras investidas, iniciei o contacto com as instituições locais para me apresentar, recolher informações e tentar estabelecer alguma proximidade com possíveis interlocutores, seguindo um percurso usual na aproximação de contextos similares à Mouraria. Isto é, fui à Junta de Freguesia do Socorro, onde me foi disponibilizado apoio e o livro Socorro, Freguesia Mourisca – Berço do Fado (Mendes 1996). Também me disponibilizaram informações gerais, artigos de jornais e revistas assim como alguns avisos: “A Mouraria é um bairro muito fechado, não sai nada cá para fora”, “é como um feudo, é muito difícil de entrar”.
55Seguidamente, dirigi-me às associações locais de cultura e recreio. Mas logo verifiquei que através destas instituições não entraria em contacto direto com o quotidiano do bairro e ficaria afastada das dinâmicas sociais e dos espaços que pretendia estudar. Isto porque, devido à situação de crise e de desarticulação das atividades, da relativa distância social e física do bairro, tais instituições não se constituíam como espaços de sociabilidade privilegiados naquela comunidade, pelo menos durante o tempo de realização do trabalho de campo.
56Após infrutíferas tentativas de aproximação com indivíduos com algum protagonismo local e que auxiliassem a conhecer um pouco melhor algumas das intricadas teias de relações locais, resolvi recorrer ao Gabinete Local da Mouraria (GLM) para solicitar apoio na identificação e contacto com tais indivíduos. Através da intermediação do GLM me foi facilitada a entrada em algumas casas e o desenvolvimento de entrevistas, como conheci dois indivíduos que detém um considerável protagonismo, a partir de quem vim a conhecer outros moradores. Mas esta intermediação também teve as suas implicações. Pois se o simples facto de por ali andar todos os dias fez com que muitos pensassem que eu era uma engenheira do gabinete, tal se tornou ainda mais constrangedor quando ia a casa de algumas pessoas que, face à precariedade habitacional com que tinham de conviver, se encontravam ansiosas por terem os seus problemas resolvidos o mais rapidamente possível. De forma que desisti dessa intermediação após a realização de algumas entrevistas, pois condicionava muito aquilo que era dito e mostrado.
57A maior parte do trabalho de campo decorreu nos interstícios de espaços, tempos e conversas, debaixo de sol e de chuva, por entre uma multiplicidade de indivíduos, alguns dos quais com diferenciados estatutos de liminaridade, no meio de uma profusão de falas e línguas, práticas e visões do mundo, de uma desconfiança generalizada, de silêncios perturbadores e olhares penetrantes, onde o ser mulher tanto pode ser sagrado como profano ou estar entre os dois e, enquanto pesquisadora, carregava comigo essa ambiguidade, sendo essa ainda mais acentuada pela minha condição de estrangeira.9 Tive, desse modo, que negociar diariamente a minha presença no bairro, nas suas ruas e esquinas, através de um conjunto diversificado de estratégias, muitas vezes, acionadas ao sabor da corrente.
58Assim, à medida que me deixei estar nas ruas do bairro fui conhecendo diferentes pessoas, e sempre que tentava marcar um próximo encontro era confrontada com respostas que se desenvolviam mais ou menos assim: “…a menina apareça, porque eu costumo estar por aqui […]”. Dei-me, então, conta de que os espaços público e semipúblico se tornariam os espaços sociais intermediários da pesquisa…
59Vi-me, assim, no meio de um conjunto de pequenas peças, fragmentos e metáforas, muitas vezes de difícil colagem ou interpretação. Somente através da assiduidade, de um olhar muito atento e de uma autocapacitação de memorizar eventos e narrações e do recurso a uma multiplicidade de estratégias de recolha de informação, mais tarde, foi possível colar algumas das tantas peças soltas de um imenso quebra-cabeças.
60Mas foi, sobretudo, nos momentos rituais e festivos que a aproximação com as pessoas se tornou mais facilitada. Nesses momentos, o bairro dá-se a ver e as pessoas fazem-se mais comunicativas. Durante esses períodos, optei por estar ali o mais tempo possível. Relativamente à Procissão de Nossa Senhora da Saúde, procurei acompanhar as atividades que antecedem o momento central da procissão. Mas, face à dimensão de acontecimentos e de indivíduos vindos de todas as partes da cidade para participar na procissão, restringi a minha observação a certos espaços e aspectos que julguei mais relevantes para a pesquisa. No período das festividades dos Santos Populares fui ao bairro assiduamente, acompanhei alguns ensaios da marcha e assisti às atividades de decoração e arranjo para a efetivação dos arraiais populares. Entretanto, optei por não assistir à marcha na Avenida da Liberdade nem no Pavilhão Carlos Lopes, limitando-me a acompanhar as dinâmicas socio-espaciais que decorriam no bairro.
61Necessitava, entretanto, de conhecer um pouco mais as dinâmicas socio-espaciais ligadas à atividade comercial, bem como as impressões que os comerciantes tinham do bairro. Mas essa proximidade não foi fácil de conquistar e foi muito relativa e condicionada. Estar diariamente nas ruas mais comerciais ou no Centro Comercial da Mouraria simplesmente a observar era demasiado constrangedor e criava muitos obstáculos. Colocou-se, então, a necessidade de inventar um pretexto para explicar a minha presença no local que ao mesmo tempo tornasse possível recolher informações que não se cingissem à observação. O pretexto foi a aplicação de um pequeno inquérito de caracterização e de recolha de impressões. Essa atividade durou aproximadamente três meses, permitindo-me observar o ritmo das ruas e alguns quadros de interação. Mas o sucesso dessa estratégia foi maioritariamente garantido junto dos comerciantes portugueses e indianos, sendo ineficaz junto dos chineses e africanos. Relativamente aos chineses, tal dificuldade de aproximação foi, em parte, devido à dificuldade de comunicação, pois a maioria apenas fala chinês, mas também é assinalável o facto de serem uma comunidade fechada. Relativamente aos africanos, notei que a aplicação de um inquérito era motivo de desconfiança generalizada e não resultou.
62No Centro Comercial da Mouraria (CCM) revelou-se impossível a aplicação do inquérito e deixar-me estar diariamente nos corredores ou num café, simplesmente a observar, mostrou-se demasiado incomodativo. Pelo que decidi estabelecer contactos com a administração do centro para conhecer algumas das particularidades daquele espaço. Junto à administração conheci um contabilista português que praticamente ali trabalha desde a fundação do centro comercial, sendo ele o meu principal interlocutor, explicando-me algumas das dinâmicas do CCM desde a sua criação até aos dias de hoje.
63Mas precisava ainda de obter mais alguns dados que me auxiliassem na caracterização do comércio, das práticas e de alguns quadros de interação, tendo de inventar também um pretexto para ali estar. Esbocei, então, uma ficha de caracterização das lojas e dos comerciantes, o que facilitou a obtenção de alguma informação através da minha própria impressão visual. O pretexto encontrado permitiu-me ali estar semanas seguidas. Mas, ainda assim, tive de justificar a minha presença quase todos os dias (para não dizer horas) e constantemente recorrer a intermediários para traduzir a explicação que dava sobre o que ali fazia. Aos poucos, descobri uma explicação que parecia tranquilizar os indivíduos e passei a utilizá-la com alguma frequência: I’m student. I study Mouraria. I’m not police.
64O método privilegiado de pesquisa foi a observação direta, quer na confrontação com o quotidiano, quer pela possibilidade de defrontar o vivido com aquilo que era dito e representado. Pelo que procurei estar presente no bairro o máximo de tempo possível. A fotografia e o mapeamento dos principais grupos de indivíduos que utilizavam o espaço público foram instrumentos fundamentais para o registo e interpretação dos cenários quotidianos de uso e apropriação do espaço.10
65Ressalvo que através do apoio de duas estagiárias finalistas em Sociologia foi aplicado um “Inquérito ao uso e apropriação do espaço público e exterior” junto aos moradores do bairro (Taborda 1998; Andrade 1998). Embora a informação produzida por esta via tenha sustentado as monografias de fim de curso das estagiárias, ela aqui foi analisada em função dos meus objetivos de pesquisa, desse modo permitindo confrontar e confirmar algumas das tendências e dinâmicas observadas no bairro. Também tive a oportunidade de conhecer um pouco melhor a condição do género feminino na Mouraria, a partir do contributo de uma terceira estagiária licenciada em Antropologia que desenvolveu um trabalho sobre a relação entre mulheres, trabalho e cuidado familiar (Militão e Menezes 2000).
66Salienta-se que, com o intuito de preservar a identidade dos distintos indivíduos que colaboraram com este trabalho, na medida do possível aqui não são revelados os seus nomes nem factos que permitissem detectá-los. Pelo que são fictícios os nomes como um ou outro elemento que faculte a identificação.
***
67Em princípios de 1997 iniciei o trabalho de campo que suporta a presente pesquisa. Com algumas interrupções, essa primeira fase no terreno de pesquisa decorreu até setembro. Seguidamente intensifiquei o trabalho de pesquisa e análise bibliográfica. De setembro de 1997 a fevereiro de 1999 orientei os dois estágios na área da Sociologia e cujas pesquisas foram desenvolvidas no bairro.
68Em princípios de 1998 recomecei a frequentar assiduamente o bairro, inicialmente todos os dias de manhã à noite. No entanto, como o espaço de intermediação com a população era essencialmente a rua, dei-me conta de que não se justificava garantir a assiduidade após as 20:00 horas, aos domingos e feriados, pois o bairro ficava praticamente deserto e os poucos indivíduos que via, à exceção de alguns poucos transeuntes, encontravam-se maioritariamente em situação liminar. No segundo semestre de 1998, a minha presença no bairro foi mais circunstancial, na medida que no âmbito da minha atividade profissional tive que desenvolver outras pesquisas. Em setembro de 1998 iniciei a orientação do estágio na área da Antropologia, prolongando-se até meados de 1999.
69De janeiro a novembro de 1999 estive intensivamente no bairro no período diurno, diminuindo esse ritmo relativamente ao período noturno, nalguns domingos e feriados. Em meados de 1999 iniciei a aplicação do inquérito aos comerciantes e dei andamento ao preenchimento das fichas de caracterização da atividade comercial desenvolvida no CCM. Durante o ano de 2000, fui vezes seguidas ao bairro, até aproximadamente finais de julho, tendo acompanhado a Procissão de Nossa Senhora da Saúde e os arraiais dos Santos Populares. Seguidamente, já em agosto, iniciei a redação da tese de doutorado. Entre agosto de 2000 e a primeira metade de 2001, fui pontualmente ao bairro para acompanhar algumas das suas dinâmicas e mudanças.
Apresentação dos capítulos
70O capítulo 1 – “Mouraria: da história à invenção de tradições” – apresenta uma contextualização da Mouraria a partir da sua história urbana e social. Reflete-se, aqui, sobre a dualidade da invenção do bairro como contexto segregado para os mouros vencidos e como bairro tradicional e típico, sendo aqui destacado o mito da Severa que é interpretado como um dos mitos de fundação do bairro. Assinala-se ainda algumas das dinâmicas que suportam um processo continuado de estigmatização territorial, como de um processo de emblematização, sendo ambos os processos enquadrados numa perspectiva continuada de reconstrução da realidade simbólica e da imagem urbana do bairro.
71No capítulo 2 – “Fronteiras sociais e espaciais de um lugar” –, focaliza-se alguns dos aspectos que permitem a inscrição do bairro da Mouraria no mapa social da cidade. Primeiramente procura-se identificar o bairro na paisagem urbana, seguidamente explora-se a forma como os seus limites e fronteiras são percebidos por distintos indivíduos. Isto é, procura-se captar o modo como os indivíduos se pronunciam relativamente à extensão do território do bairro e quais são as referências sociais, topográficas, arquitetónicas e simbólicas que são utilizadas como meios de orientação no espaço. Assim, ao discutir-se o lugar Mouraria através das noções de multilocalidade e multivocalidade mostra-se como os limites e os referenciais de orientação são mais dependentes das relações sociais de que de fatores de ordem geográfica e urbanística. Este capítulo permite constatar a importância das lógicas duais, ambíguas e ambivalentes na forma como o espaço é apropriado e percebido.
72No capítulo 3 – “Espaço vivido: percepções, experiências e ritmos” –, focaliza-se a experiência fenomenológica do lugar no sentido de captar o modo como essa experiência participa do processo de construção de imagens identitárias do bairro. Para tal, analisa-se as práticas de uso e apropriação do espaço público urbano a partir das noções de pedaço, trajeto, circuito e mancha. Descreve-se as microgeografias quotidianas de uso e apropriação do espaço público, entendendo que essas se definem por uma relação entre práticas, espaços, indivíduos e tempo, o que permitiu analisá-las através da ideia de formas ritualizadas. Para complementar essa análise, desenvolve-se ainda uma reflexão sobre as transformações temporárias do espaço público urbano nas situações extraordinárias. Defende-se, neste capítulo, que a visibilidade das práticas quotidianas associadas aos ritmos que lhe conferem vida estimula a criação de metáforas que se refletem como imagens do bairro.
73Nos dois capítulos que se seguem, analisa-se algumas das representações, visões e tipos de experiências que sustentam determinadas imagens culturais e urbanas do bairro da Mouraria na atualidade. No empreendimento dessa análise, trabalha-se com a noção “dentro” para identificar as posições dos moradores que se consideram “filhos do bairro”, e a noção “fora” para situar as posições daqueles que localmente não são considerados como “filhos da Mouraria”. Aqui entende-se que dentro e fora são noções recíprocas, ou seja, são construídas através de um processo de redobramento simbólico conduzido do exterior. Através dessa constatação foi possível demonstrar a forma como através da relação entre os de dentro e os de fora, entre o tempo de antes e o de agora, novos elementos são introduzidos no processo de construção de imagens identitárias, enquanto outros se reproduzem de forma continuada, desse modo ampliando o campo das significações imaginárias do bairro, onde a Mouraria tanto pode ser evocada como um bairro típico e tradicional, multicultural e multiétnico, como um contexto repleto de liminaridades sociais e espaciais. O capítulo 4 – “A fala que vem de dentro” –, centra a análise nas visões que os de dentro têm da Mouraria. Aqui demonstra-se como as metáforas que servem para projetar determinadas imagens do bairro podem evocá-lo como típico e tradicional, assim como um contexto que está descaracterizado. No capítulo 5 – “A fala dos de fora” –, analisa-se as visões que os de fora têm da Mouraria. Para o desenvolvimento desta análise recorre-se a três pontos de vista: o processo de emblematização do bairro a partir das tradições ditas típicas e populares; a renovação da imagem simbólica e urbana do bairro a partir da invenção das tradições multiétnicas e multiculturais; e, por último, através da continuidade de um processo de segregação e estigmatização territorial.
74Por último – nas “Notas Finais” – é feita uma (re)leitura conjunta das especificidades sociais, culturais, espaciais e urbanas referidas no decurso dos diferentes capítulos.
Notes de bas de page
1 Conforme: Menezes (1993, 1993a, 1994, 2000); Menezes, Rebelo e Craveiro (1992); Menezes e Rebelo (1992); Machado, Craveiro e Menezes (1992); Menezes e Craveiro (1992).
2 Em concordância com: Menezes (1995, 1996a, 1996b, 1996c, 1998, 2000, 2002).
3 Conforme: Cabrita et al. (1994, 1998); Cabrita (2000); Coelho et al. (1995, 1998); Menezes (2001b, 2001c); Freitas e Menezes (1997); Freitas, Menezes e Coelho (1996).
4 Nomeadamente: Costa e Guerreiro (1984); Costa (1984a, 1984b, 1985, 1988, 1995, 1999); Cordeiro (1990, 1994a, 1994b, 1995, 1997); Cordeiro e Costa (1999).
5 Os estudos sobre os bairros de Alfama e da Bica habilitam-nos a conhecer a forma como esses bairros se constroem, a par da sua relação com o mundo exterior, enquanto especificidades sociais e espaciais (Costa 1984a, 1984b, 1985, 1988, 1999; Costa e Guerreiro 1984; Cordeiro 1995, 1997).
6 A conceção de espaço público aqui utilizada privilegia a sua componente espacial e, como tal, este é tratado como um espaço constituinte e constituidor de práticas sociais e culturais. Aqui não é enfatizada a perspectiva da Habermas (1984) a respeito da relação entre a esfera pública e a ordem social burguesa.
7 Apesar de que os trajetos não se constituem aleatoriamente, denotando preferências e exclusões (Torres 2000: 73).
8 Salienta-se que, não tendo sido objetivo deste trabalho discutir as questões relacionadas com a temática da identidade étnica, apenas se procedeu-se a uma simples caracterização dos comerciantes e clientes do comércio local, bem como de alguns moradores e frequentadores da área, utilizando-se categorias endógenas e que se baseiam numa relação entre tipo físico/tipo cultural dos indivíduos, ou seja: portugueses, indianos, chineses, africanos, ciganos, brasileiros, andinos, turistas (normalmente europeus).
9 A minha condição de mulher e brasileira suscitou muitas curiosidades e dúvidas como, por exemplo, qual era o motivo da minha presença diária no bairro sem ali viver, sobretudo devido às dinâmicas locais e a íntima relação entre certos espaços e a manifestação de práticas liminares e marginais. Porém, em determinadas circunstâncias, tais condições culturais também se revelaram úteis para uma maior aproximação com o contexto de estudo. No entanto, ao despertar a curiosidade, alguns moradores e frequentadores do bairro vieram ter comigo, desse modo facilitando certas abordagens que posteriormente fiz a esses indivíduos e, assim, na medida que tive de esclarecer algumas dúvidas sobre o Brasil e o meu próprio percurso de vida, senti-me com alguma liberdade para esboçar algumas perguntas acerca da vida dos indivíduos que ia conhecendo nas ruas locais, bem como sobre as suas interpretações do bairro. Mais tarde descobri que era localmente conhecida como a brasileira que ali estava “a escrever um livro sobre a Mouraria para sair no Brasil” ou a “fazer uma reportagem sobre o bairro para sair no…”.
10 No decurso da análise foi essencial a utilização de imagens fotográficas dos espaços e das práticas observadas. Mas no âmbito deste livro não foi possível reproduzir a totalidade das fotografias. Para uma consulta mais detalhada, ver Menezes (2001a).
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