Capítulo 13 – O retorno do indivíduo repelido
p. 355-379
Texte intégral
1A boa ordem das interações no guichê acontece graças, em parte, ao jogo feito pelos agentes de atendimento com sua dupla identidade pessoal e burocrática e, igualmente, graças à aceitação, pelos visitantes, da maneira como as suas respectivas situações são administrativamente construídas.
2A ordem rotineira da relação e o funcionamento normal da instituição dentro das relações com o público são colocados em questão quando os visitantes contrariam as táticas de duplicidade e rejeitam a sua “identidade de papel”, e quando, por conseguinte, os atendentes perdem o controle de sua identidade e da do beneficiário, arriscando deste modo perder o controle da situação.
3São as práticas dos visitantes que dificultam a regulação identitária, regulação pela qual a ordem institucional é mantida no guichê. E é especificamente sobre elas que nós iremos falar agora. Essas práticas são aquelas pelas quais tudo o que é ordinário – e que por sê-lo é habilidosamente repelido ou, pelo menos, controlado (corpo, emoção) – vem à tona na relação, contrariando assim o bom desenrolar desta.
4Tais práticas são também aquelas pelas quais os visitantes reativam a sua “identidade para si” e a opõem à construção administrativa de suas respectivas identidades; além de tais práticas, há também aquelas que fazem com que os elementos que compõem a individualidade do atendente ressurjam, sem que ele queira ou preveja. Esses elementos são, por exemplo, o sexo do agente, o corpo físico, os seus afetos. Assim, nós abordaremos aqui as situações nas quais o atendente não pode mais ser unicamente atendente, não pode mais se esconder atrás da fachada da instituição a qual ele representa, além dos momentos em que o visitante não pode mais ser reduzido a um beneficiário.
5Tais situações vão desde tentativas dos beneficiários de personalização da relação até cenas de violência, durante as quais os seres humanos, em carne e osso, ultrapassam os papéis que lhes são institucionalmente atribuídos.
Quando os visitantes personalizam a relação
6Como nós pudemos ver, a personalização – iniciada ou controlada pelo atendente – constitui um recurso útil para o controle da situação e, até mesmo, útil para reforçar a dependência dos visitantes; quando ela é praticada pelos visitantes ou quando ela escapa do controle dos atendentes, a personalização pode, no entanto, produzir efeitos desestabilizantes.
7Três tipos de práticas o mostram bem:
8Antes de tudo trata-se (e este é o primeiro tipo de práticas) das práticas nas quais os visitantes diferenciam um atendente do outro. Essas formas de personalização adotadas pelo visitante são um modo frequentemente observado de acomodação e de desvio da ordem institucional. E elas são, no mínimo, revestidas de faculdades de julgamento e de escolha as quais a ordem habitual da relação com o público tende a apagar. Ter experimentado anteriormente relações diferentes a nível de qualidade relacional com um ou outro agente de atendimento faz com que o visitante alimente, com ou sem motivo, uma tática de escolha. O visitante escolhe o agente que ele estima ser o mais apto a achar a melhor solução para o seu problema. Como é o caso de uma mulher que recusa ser atendida por um atendente que, segundo ela, “mete os pés pelas mãos”.1
9Dessa forma, os beneficiários podem reintroduzir uma forma de personalização que lhes permite atenuar, pelo menos em aparência, o rigor do tratamento recebido – o que ocorre de forma ainda mais forte quando os atendidos tentam colocar um atendente contra o outro. O mesmo acontece em casos nos quais o visitante decide ir ao guichê pela segunda vez porque na primeira ele achou que recebeu apenas uma estimativa dos seus possíveis direitos ou uma resposta negativa ou insuficiente.
10Tal comparação suspeita entre diferentes agentes ou entre atendimento na sede e atendimento na filial, ou ainda entre atendimento telefônico e atendimento no guichê, permitirá, nestes casos, denunciar uma incoerência ou dar peso a uma reivindicação. Assim, mais do que um simples se acomodar frente à instituição, a personalização feita pelos visitantes permite uma tentativa de desvio da ordem institucional.
11Um segundo exemplo de personalização refere-se às táticas de autocomiseração por parte dos visitantes. Por meio delas, eles insistem nas dificuldades vividas, fazendo assim com que a interação escorregue para o registro pessoal da emoção. Ao se colocarem em cena fora do contexto administrativo, os visitantes apelam para a sensibilidade dos agentes. Eles fazem ressurgir a individualidade dos atendentes, contra a vontade destes, contrariando assim o jogo duplo de manutenção da posição de agente, o qual fora estabelecido no princípio.
12As táticas de exposição da desgraça permitem aos visitantes enfrentar o desenrolar da interação: organizando a confrontação entre o atendente e o sofrimento humano, tais táticas resultam em um ultimato bem montado, cujo objetivo é abrir uma brecha na fachada construída no guichê.
13Ao jogo feito com as diferenciações entre agentes e às táticas de autocomiseração adiciona-se um terceiro tipo de práticas, a saber: o conjunto de práticas que acaba por revelar a identidade individual dos atendentes – e isto apesar do querer deles. Tais práticas são os “deslizes” que acontecem na interação e que são produzidos por alusões sexuais. A nossa pesquisa acabou por limitar inevitavelmente tais “deslizes”: as alusões de cunho sexual não foram muito abordadas pelos agentes durante as entrevistas, e a minha presença do lado dos atendentes ao longo das observações das interações freou inegavelmente possíveis avanços e alusões deste tipo de questão. No entanto, histórias e depoimentos foram coletados mostrando tais situações. Essa coleta de material foi feita durante conversas mais descontraídas (mais do que as entrevistas), como por exemplo durante os almoços entre funcionários ou ainda durante conversas entre agentes após termos passado jornadas inteiras de trabalho juntos.
14Um agente de atendimento do sexo masculino evoca, por exemplo, os decotes provocantes e outros jogos de sedução. Os mais jovens entre os agentes, e mais especificamente as mulheres, contam diversas vezes entre elas episódios recorrentes de flerte vividos por elas mesmas. Segundo seus relatos, alguns homens flertariam muito diretamente, como acontece de forma particular nos atendimentos nas filiais isoladas, nas quais as agentes mulheres podem se encontrar completamente sozinhas. Elas fazem igualmente menção de flertes ameaçadores, podendo chegar até a situações em que o atendido segue de carro a agente depois do expediente.
Eu fui seguida após o expediente, saindo de uma filial. É preciso fazer atenção, desconfiar. Um RMIsta [...]. Na semana passada, tinha um RMIsta que saiu da prisão, eu estava preenchendo o seu formulário quando ele me disse: “Você é bonita.” Eu lhe disse: “O senhor é gentil, mas agora vamos falar do dossiê.” O senhor vê, eu corto na hora. Porque se você começa a brincar com esse tipo de pessoa, você não sai disso nunca mais. É raro, mas acontece de vez em quando, e ainda mais estando sozinha a gente nunca sabe como pode acabar isso daí. (Laurence Pradin)
15Apesar da minha presença sem dúvida desencorajadora, algumas “escorregadas” puderam ser observadas. Na sede, em Béville, um tunisiano de 25 anos chega ao atendimento porque ele não recebeu o seu RMI por ter renovado tarde de mais a sua autorização de residência. Ao chegar, ele se mostra visivelmente decepcionado com a minha presença. Em voz alta, ele diz ser uma pena não estar sozinho com Sylvie Véra, uma atendente jovem e, segundo ele, sedutora. Ele precisa rapidamente: “É só brincadeira, enquanto não houver atos concretos, não quer dizer nada.” Quando Sylvie explica as razões para o problema no seu dossiê, ele responde: “Da última vez, eu fui atendido por uma mulher tão bonita quanto a senhora, mas ela não me disse a mesma coisa.” No entanto, descobre-se que fora Sylvie mesmo que o recebeu da última vez. “Ah bom? Mas então a senhora não estava com esse sorriso de hoje. É preciso sempre sorrir, porque se não a gente dorme mal, a gente começa a criar caraminholas na cabeça.” Sylvie se sente aliviada quando ele vai embora e me diz estar contente de eu estar lá com ela. “É preciso tomar atenção, porque com alguém como ele as coisas derrapariam muito rápido.”2
16Da mesma maneira, quando um homem de 55 anos, beneficiário do AAH, fala para Josiane Delpol que eles se conheciam muito bem e que ele é o seu “noivo”, Josiane mostra apreciar pouco tais familiaridades. “Eu não suporto quando ele começa a fazer essas gracinhas. Um dia eu o encontrei em uma loja no centro e ele quis me agarrar.”3
17Assim, quando um visitante faz a interação escorregar para o terreno do flerte mais ou menos aberto, da brincadeira com duplo sentido, quando ele engaja, pela sua postura corporal, um jogo de sedução, ele prejudica a ficção de uma relação administrativa que consistiria no encontro de duas abstrações necessariamente assexuadas: o usuário e o burocrata. A erupção das relações entre sexos na relação administrativa é, deste modo, mais amplamente reveladora dos implícitos das interações no guichê, assim como dos elementos que podem contrariar o desenrolar habitual dessas interações. Como ocorre quando o engajamento não desejado pelo agente de uma parcela de sua identidade o obriga a responder com estratégias de isolamento.
A deterioração dos termos da troca no guichê
18Neste sentido, a agressividade dos visitantes traz um problema análogo. Comprometendo a pessoa do atendente, e até mesmo a sua integridade física, a agressividade provoca um retorno brusco da sua identidade individual e do seu corpo, rompe a rotina da relação administrativa e faz com que ajustes sejam obrigatórios, afim de marcar os limites das formas “normais” de manutenção da ordem institucional.
19De maneira análoga ao que propusemos acima em relação ao silêncio dos visitantes, três hipóteses complementares podem ser formuladas afim de compreender as condições, os usos e, assim, os sentidos das marcas de agressividade. E aqui nós indicamos o trabalho de Gabriel Almond e Harold D. Lasswell (1934) para a exploração dos fatores que predispõem a um “comportamento agressivo” nos serviços de ajuda social.
20Em primeiro lugar, a violência pode constituir o último recurso dos agentes que, expostos à violência de situações sociais difíceis (grande pobreza, isolamento, etc.), dominam mal as formas eufemizadas de expressão do ressentimento e da resolução de problemas. Agressividade e ameaça física seriam, assim, a resposta que os mais desprovidos podem dar – e opor – à violência social que sofrem e, em particular, à violência institucional que se reveste mais do registro simbólico da experiência.
21Como escreve Philippe Braud (1996: 199), existe de fato uma “ligação entre a intensidade da violência simbólica sofrida por agentes de pouca capacidade cultural de expressão e a probabilidade que estes ajam com violência física. Isso pelo fato de não saberem controlar uma violência simbólica ‘reparadora’”.
22E pode-se, de fato, observar que a violência expressa é amplamente ligada ao fato de que os agentes sociais em questão são incapazes de opor uma outra coisa à demanda institucional além de injúrias racistas, marcas verbais de agressividade ou, muito excepcionalmente, socos. Uma situação social degradada adicionada a um fraco nível de aculturação administrativa ou adicionada a uma baixa competência linguística dá, de fato, condições propícias à agressividade.
Um magrebino, 55 anos, desempregado, chegando no fim das prestações do seguro-desemprego e dominando muito mal o francês:
“Eu tô de saco cheio dessas macacadas. Isso não muda nunca aqui. [Ele aponta o dedo para a agente em sinal de ameaça. Christine explica muito calmamente o porquê estão lhe pedindo um documento suplementar.]
- Merda. Para mim isso tudo é uma merda nojenta.”
Christine Duval continua as suas explicações. Visivelmente, ele não entende nada. Ele reclama ter muitos papéis para preencher. Ele sacode a cabeça, depois arruma os seus documentos de maneira extremamente vagarosa.4
23A hipótese da violência como último argumento dos indivíduos desprovidos é igualmente confirmada nos casos em que a violência se volta contra a própria pessoa, como por exemplo em casos de automutilação ou chantagem suicida. Lionel Picard relata um caso desse tipo:
Um dia eu atendi um homem aqui. A sua esposa tinha expulsado ele de casa, algo assim. Eu disse pra ele: “Olha, tudo vai se resolver, é questão de se recuperar e etc.”, eu fiz um pouco do social, e o cara me disse: “Não, não vai se resolver e se vocês não me derem os meus 500 francos eu me mato.” Eu pensei comigo, “não, isso não está acontecendo, ele não está falando sério”. Mas o cara pegou uma faca e depois fez isso aqui [ele faz um gesto de colocar a faca na garganta]. [...] Ele ficava tomando sem parar um monte de remédios. Toda essa história aí durou uma hora e meia. Eu não queria que ele se suicidasse aqui.
24De acordo com esta primeira hipótese, a violência constitui o argumento daqueles que não têm argumentos; a arma do pobre, de certo modo.
25Pode-se também fazer uma hipótese complementar a esta primeira, a saber a de uma possível dimensão tática do uso da violência. Um dos lugares-comuns sobre a administração de que “sempre é preciso gritar para conseguir algo” poderia muito bem ser estendido e adaptado às práticas de certos beneficiários. Aumentar o tom de voz ou ameaçar o agente de atendimento, por exemplo, também significa poder encontrar mais facilmente um gerente e, por conseguinte, esperar receber um tratamento mais vantajoso. Fazer-se alguém ameaçador pode ser também uma maneira eficaz para dar um curto-circuito nos procedimentos habituais em vigor.
O testemunho de Agnès Coubertin sobre a única experiência violenta que ela teve atesta a possibilidade de uma utilização tática da violência. “Uma vez tudo ocorreu extremamente mal, eu acabei sendo arremessada em cima dos móveis do local de atendimento. Era uma pessoa que havia beneficiado da renda mínima de inserção na qualidade de pessoa isolada, mas que na verdade vivia maritalmente com uma mulher que tinha renda, o que não é certo. [...] A gente acabou por perceber. A pessoa foi notificada da dívida, uma dívida importante porque ela tinha recebido a mais um valor alto. E... eu acho que era alguém muito inteligente. Não era uma pessoa perdida, nem marginalizada. E também eu acredito que ele esperava ganhar a causa sendo arrogante, violento. Mas não deu certo. E quando ele percebeu que não deu certo, ele ficou agressivo de verdade. Na hora, eu quis sair do guichê para chamar o responsável, mas ele se colocou na minha frente, ele me pegou pelo braço e me jogou sobre os móveis da área de atendimento. Chamamos a polícia e eu dei queixa.”
26E, por fim, o uso da violência pode ser o objeto de uma terceira hipótese. É sobre ela que nós gostaríamos de insistir aqui. Aumentar o tom da voz ou dar um soco na mesa pode também ser uma forma de autoafirmação, uma maneira de os agentes sociais expostos à decadência social provarem (para eles mesmos) que existem fora da conformidade a categorias administrativas. Alguns trabalhos, de fato, já mostraram as ligações que unem o enfraquecimento dos elos sociais à violência “expressiva” – como por exemplo o trabalho de Eric Dunning (Elias e Dunning 1994)5 – ou que ligam a depreciação identitária aos comportamentos violentos, como é o caso do estudo de Philippe Braud (1996: 180). A violência contra o agente de atendimento, contra a CAF, contra o sistema que eles representam seria, assim, uma violência feita para si mesmo, ou seja, não tanto por causa de um problema de dossiê, nem simplesmente para “relaxar”, mas para se dar a ilusão de que se é capaz de influenciar o curso das coisas.
27E parece que é uma lógica deste tipo que está em ação na interação a seguir. Um homem nascido em 1962 chega ao guichê porque no escritório de assistência social lhe disseram que era possível receber um pagamento antecipado do RMI. Mas descobre-se que, na verdade, tal antecipação no pagamento é difícil. O seu dossiê de RMI está em curso e ainda não fora tratado. É a sua primeira demanda.
28“Eu sou um antigo morador do Emmaus [associação de caridade.] Antes eu morava na rua, eu era SDF.” A assistente social enviou o seu pedido de RMI muito tempo depois da feitura do dossiê. Ele bufa indignado: “Então parece que eu tenho tempo para esperar, para morrer esperando.” Geneviève tenta explicar a situação mencionando o atraso de alguns documentos. Ela faz uma ligação para tentar falar com um responsável.
29O homem atendido é de Béville, mas foi para Marselha “para achar um trabalho tranquilo, sem complicações”. Ele escreveu inúmeras vezes para diversas administrações de Marselha para obter os documentos que faltam, “mas eles não estão nem aí”. Ele tem o seu cartão da Sécurité Sociale da Caixa de Marselha, o que pode indicar que ele trabalhou, mas mesmo assim isso não lhe permite obter o RMI.
30Ele diz que o fato de ter morado na associação Emmaus lhe dá direitos junto à Sécurité Sociale. Mas enquanto as administrações concernidas não fornecerem os documentos atestando os seus direitos, a CAF só vai poder se basear no que ele diz. Geneviève ausenta-se do guichê, e o homem e eu conversamos. Ele me diz: “Se eu soubesse, eu teria ficado na rua. Eu tento fazer de tudo para sair dessa situação, mas um papel bloqueia tudo. É muito louco e decepcionante. O pessoal ajuda as pessoas, mas ajuda mal. No Emmaus, eles ajudam bem. Eu tô de saco cheio desses papéis.”
31O seu discurso muda rapidamente, indo de um abandono de suas tentativas de sair dessa situação para um discurso violento e ameaçador. “E eu vou parar com o meu estágio. [Ele é agente de limpeza.] Eu não aguento mais. Eu vou repetir para vocês: estou sentindo que isso vai explodir de uma vez. E se explodir, vai machucar.” Como que para dar um certo peso à sua ameaça, ele evoca ter passado pelo exército e conta, com um grande sorriso no rosto, um “probleminha” que teve com alguns policiais que teriam lhe “provocado” em um bar em Marselha. Geneviève volta. Ele alterna conciliação, sorrisos, agradecimentos e ameaças de violência. A violência das suas declarações e a sua agitação crescente param quando, finalmente, Geneviève lhe informa que o adiantamento de seu RMI é possível. Brigas e afirmações de voltar a morar na rua são logo esquecidas: por eu ter me identificado como estagiário, o homem inicia uma conversa comigo sobre um estágio que ele fez – “eu tirei uma ótima nota, 8 de 10”. E conclui: “Pelo menos, com o adiantamento eu vou conseguir pagar o aluguel.”6
32Um outro episódio de uma violência raramente vista vem confirmar a hipótese da violência como modo de autoafirmação.7 O relógio marca quase 15 horas nesta importante afiliada da CAF de Béville. Ela está situada no coração de um pequeno bairro de moradias populares e funciona no térreo de um imóvel residencial. No corredor, ouvem-se gritos. Um homem magrebino que já tinha vindo pela manhã tentou cortar a fila por ter, segundo ele, somente um papel para entregar.
33Um homem por volta dos sessenta anos (e francês “da gema”) grita, se apronta para a briga e emite declarações racistas. “Esse elemento aí é um lixo! E ainda por cima nem francês ele é!” Uma vez que o homem magrebino vai embora, o senhor continua a vociferar na sala de espera. Os beneficiários que lá estão comentam uma tal atitude. Muitos estão chocados e desejam “Boa sorte” a Christine Duval, agente de atendimento.
34Às 15h30, ouve-se a voz do homem vindo do guichê: “Eu ganho menos do que um árabe! [...] Você pode chamar a polícia, porque eu não vou me acalmar, não!” Às 16h40 não tem mais ninguém nos locais da CAF, a assistente social e a secretária já foram embora. O senhor é o último a ser atendido. Ele esperou mais de uma hora e meia para ser atendido pela agente. Ele grita sem que se saiba ao certo o motivo. Ele espuma de raiva. “Vocês sabem por que eu vim! É como sempre, eu tenho os papéis em dia, e vocês me pedem sempre a mesma coisa.” Ele recusa sentar-se, apesar de Christine o ter convidado a fazê-lo inúmeras vezes. E ela continua supreendentemente calma. Ele pega todos os seus papéis. Descobre-se, no entanto, que é a Caixa da Assurance Maladie (correspondente, em parte, ao SUS do sistema brasileiro de saúde) que lhe pede os documentos. Mas Christine não consegue informá-lo disso. “Vocês estão de brincadeira comigo! Eu estou começando a ficar de saco cheio! E além do mais, os árabes recebem tudo!” Ele arranca das mãos de Christine os papéis que ele tinha acabado de entregar a ela. Ele dá um soco nos formulários que repousavam sobre a mesa, imprimindo assim as marcas da sua mão sobre os exemplares que estavam debruçados em cima de um papel carbono. “E agora que vocês mostrem para todo mundo que isso aqui é um soco meu!” Ele vira para mim e fala: “E você, anota tudo, vai, anota, anota tudinho!”
35Ele evoca, em pequenos pedaços de frase, elementos da sua vida que, ao seu ver, fundamentam as suas recriminações. “Eu não aguento mais. Eu sou aposentado. Eu até fui para a guerra. Eu não aguento mais.” Ele fala do seu irmão que intervirá a seu favor. Ele mostra um recorte de jornal que tem uma foto do irmão: é um vereador da região. O artigo anuncia que ele é réu em um caso de corrupção. “Eu não aguento mais. Chamem a polícia ou eu acabo com tudo aqui.” Christine Duval se recusa a chamar a polícia. O homem levanta a mesa de atendimento, mas ela é pesada demais para que ele a vire. Ele dá socos na mesa e grita. Christine Duval não diz nada, espera o homem se acalmar, o diz progressivamente que já é o suficiente, sem lhe falar para ir embora. Depois de vinte e cinco minutos ele acaba indo embora, ainda aos berros.
A difícil gestão da violência
36Mesmo se ela ficou muito calma durante esta difícil interação, isto não quer dizer que Christine Duval não tenha sido impactada pelo ocorrido. Imediatamente após o atendimento, nós discutimos o caso. Ela evoca diferentes maneiras de “gerenciar” as situações violentas. Não poder “racionalizar” o beneficiário violento, ou seja, não conseguir fazer com que ele entenda o sistema de raciocínios e lógicas em vigor na CAF é o impasse no qual se encontram, nestes casos, os agentes de atendimento.
É complicado em uma filial assim, porque ele aterroriza os beneficiários! [Risos] [Mais baixo, com um tom mais sério:] A gente nunca sabe como vai acabar, é verdade. Ele não me assustou, mas o que me incomoda é que a gente não pode racionalizar essas pessoas. De maneira geral, eu não tenho medo das pessoas, mas desse tipo de gente, a gente não pode racionalizar eles, não, a gente não pode explicar para eles o porquê a gente está aqui, qual é o objetivo do nosso trabalho, o porquê de os assistentes sociais existirem, porque... pff, é... mas nessas situações é realmente como dar murro em ponta de faca.
- Nesse caso, o atendimento foi relativamente longo. A senhora poderia ter encurtado o atendimento e ter feito ele ir embora mais rápido, não?
- Mas nesse caso era o último usuário a ser atendido, então a gente tenta sempre acalmar e trazer um pouco de razão para a cabeça deles. [...] É verdade, tinha essa escolha de chamar a polícia para expulsá-lo da sala de espera. Mas nunca fazemos isso nas filiais. A gente sempre evita.
- Por quê?
- Porque nos fora dito que é melhor evitar. [...] É preciso falar antes com a direção, ter a permissão deles para chamar a polícia. E, de qualquer jeito, até esperar a polícia chegar... [...]. Eu já atendi um caso parecido, com o senhor lá que eu estava te falando, o tatuado, ele virou o escritório inteiro. Ele jogou o computador no chão, a assistente social chegou... ele teria batido nela sem pensar duas vezes. Ele estava fora de si. [...] Eu fui recebida pela [equipe de direção]. O diretor me disse que ele não tinha o hábito de receber usuários indomáveis, e eles só escreveram uma carta proibindo o homem de vir à filial. [...] O que o impede de vir? Eu estou em um lugar público, eu não posso lhe impedir de voltar na agência. [...] Bom, mas agora, vendo o que aconteceu hoje, certamente eu vou sinalizar para a gerência e ver se podemos fazer com que a polícia intervenha mais rápido. Mas isso não muda nada, não acaba com o problema. Eles vêm quando a gente chama, mas no dia seguinte... [Sobre o beneficiário que fez o escândalo:] Amanhã de manhã eu vou ligar para a assistente social para ver se ela está informada do seu dossiê, mas... como ele possui recursos próprios a gente não pode intervir para fazer um dossiê [pedido de RMI]. É um caso um pouco particular. É alguém que está em uma situação muito difícil, que não tem apoio e que se sente agredido também. Para ele, nós somos todos uns incapazes, e a discussão com o marroquino não ajudou. Isso o irritou ainda mais e ele mesmo se irritou sozinho na sala de espera. [...] Eu não gosto de agir com punho de ferro, não. A gente sempre tenta ser convincente e achar uma solução. [...] Há pouco, quando eu fui vê-lo na sala de espera, ele me disse que iria embora. E ia ajudar em nada se eu virasse para ele e dissesse: “Ah, então agora o senhor vai embora.” O único remédio é recebê-lo, atendê-lo, tentar acalmá-lo, tentar racionalizar as coisas. Bom, mas também neste caso eu até que tive sorte. Chega uma hora que é preciso mostrar que a entrevista acabou, eu me levantei e aí deu certo. Mas poderia muito bem não ter dado certo. Nós não podemos muito saber com antecedência o que vai acontecer de fato. [...] [Sobre a discussão com o marroquino, quando eles quase se bateram e ela se colocou no meio, eu falo para Christine Duval que isso implica uma intervenção e uma coragem físicas:] Se é uma mulher, é verdade que eles não ousam de jeito nenhum. Mas com um homem... eu vejo o meu colega, o senhor Galopin, em primeiro lugar, ele reage muito mais rapidamente a palavras pontiagudas, lançadas assim..., ele grita muito mais [...]. É nas formações que se aprende a controlar alguém como [aquele que fez o escândalo]. Porque é bem legal virar para a gente e falar que não podemos aumentar o tom da voz, que é preciso racionalizar as coisas, trazer um pouco de razão para a cabeça das pessoas, mas parar aí. Seria necessário fazer uma formação para aprender a se controlar e a controlar os outros. Eu acho que nos falta formação. Nós tivemos uma formação para o trabalho no atendimento e nos disseram que não podíamos nos irritar nem empregar jargões, mas sim falar calmamente. Mas e quando tem uma pessoa que quer destruir o escritório, e aí, o que a gente faz?”
37Vê-se que a expressão da agressividade no guichê – sendo esta socialmente determinada – conduz os atendentes a exercerem um papel de “para-choque”, termo este utilizado por Goffman (1989). De fato, a experiência prática serve de ponto de referência para que o ressentimento social ou a rebelião sejam mais facilmente dirigidas contra a instituição:
38“Quando a revolta é expressa, ela para nos limites do universo imediato e, por não conseguir ir além da insubordinação, da insolência diante da autoridade ou do insulto, ela atinge mais as pessoas do que as estruturas”, afirma Pierre Bourdieu (1997: 275).8 Por vezes, os visitantes agressivos o dizem: ao se recomporem após um gesto agressivo, eles asseguram os atendentes que a briga não é com eles e pedem compreensão em caso de excessos descontrolados – excessos esses que, aos olhos desses visitantes, são justificáveis.
39A violência não acontece sem gerar efeitos sobre os agentes de atendimento nem sobre o seu trabalho. Efetiva ou apenas temida, a violência afeta a relação que os agentes mantêm com o trabalho e acaba lhes conduzindo ao desengajamento. “Desde que me colocaram uma faca na garganta, é a minha saúde que é o mais importante, só depois é que vem o trabalho”, resume Frédéric Galopin. Foi um “cara que tinha acabado de sair da prisão”, que “transportava droga” e que, por não ter recebido o adiantamento esperado, “pegou simplesmente uma faca”. “Ele me dizia sempre: ‘Se um dia eu cruzar com você eu te arranco a pele fora.’ Desde então, eu faço muita atenção.”
40A violência tem por efeito fazer ressurgir, contra a vontade do atendente, a sua própria individualidade. Tendo sido atacado e, por vezes inclusive sendo fisicamente exposto, o agente de atendimento perde o relativo controle do uso alternativo do seu corpo físico e do seu papel burocrático – papel este que lhe permite normalmente controlar a situação. Essa revelação angustiante do corpo é muito bem colocada por Geneviève Donné ao falar sobre as ameaças de violência sofridas quando estava grávida:
Eu vou me lembrar disso para sempre: eu estava grávida quando ele quis me bater com a sua bengala, o que acabou por me traumatizar um pouco. Eu não estava preocupada comigo, mas sim com o bebê. Tinha alguém com ele que o acalmou, vendo o meu estado, ele disse para ele: “Fica calmo, essa senhora está aqui para te ajudar.” Quando ele me disse: “Sabe, senhora, eu não vou demorar muito não para destruir esse escritório aqui e te bater com a minha bengala...!” De noite, quando eu fui dormir, isso ficou na minha cabeça me angustiando de uma tal forma que eu não parava de visualizar o homem querendo me bater com a sua bengala.
41Além do corpo, os agentes precisam crer no “instinto” que viria a ser revelado em caso de uma interação conflituosa: “instinto” que explicaria, por um lado, o fato de que cada agente consegue, bem ou mal, controlar a situação e que cada um deles tem o seu próprio jeito de fazê-lo. Esta explicação das suas próprias práticas dada pelos agentes de atendimento tem o mérito de revelar aquilo que escapa à definição burocrática do trabalho, ou seja, as histórias e disposições pessoais dos atendentes: o hábito socialmente determinado às situações conflituosas, a distância social em relação ao visitante (e a atitude resultante), a grande adesão (em maior ou menor escala) às normas da instituição (e a resposta autoconfiante e equilibrada resultante de tal adesão), etc.
42As interações violentas implicam, consequentemente, na mobilização de técnicas de controle, de enquadramento ou de evitamento. Técnicas de autocontrole, antes de tudo. Não se trata aqui destas “cóleras reparadoras” das quais fala Patrick Brunetaux a respeito das forças policiais que, considerando as disposições sociais dos agentes que as compõem e das configurações nas quais eles estão inseridos, podem deixar a violência escapar, mas apenas por um tempo controlado. Como, por exemplo, quando os policiais são confrontados a pedradas e insultos de manifestantes que se dirigem ao Estado por intermédio de tais atos (Bruneteaux 1996: 247 em diante).
43Trata-se aqui muito mais de não dar lugar à violência. E não dar lugar à violência é, antes de tudo, não entrar em tal terreno. É empregar, se necessário for, um tom sério e seguro para relembrar as regras de bem-estar e de convívio respeitoso (“isso não é jeito de falar”) ou para mostrar o caráter inapropriado das declarações violentas (“gritar não leva a nada”). Com isso, o agente não entra em confrontação direta com o visitante agressivo e evita o nocaute. Não dar lugar à violência é também – e sobretudo – opor à violência uma calma que a torna inoperante.
Eu não sou eficaz quando eu estou agressiva, quando eu não consigo passar a mensagem eu acabo não facilitando as coisas para mim mesma, porque menos tempo poderia ter sido gasto. E eu não consigo saber como apresentar tal informação para que a pessoa entenda e vá então embora. (Sophie Delvaux)
44É particularmente o caso das atendentes que, por vezes, estão sozinhas em uma filial e não podem mobilizar a força física (ou pelo menos ameaçar usá-la) para se oporem a um visitante problemático. Nestes casos, elas acabam tendo que dissimular as suas reações e, particularmente, o medo. É o que conta Christine Duval sobre aquele que ela chama de “o tatuado”. Ele foi preso inúmeras vezes e internado em um hospital psiquiátrico umas outras tantas. E ela fica apreensiva de atendê-lo. Ele vem à filial regularmente sob efeito de calmantes, o que acaba provocando fortes tremores em seu corpo.
45É alguém “muito nervoso”, diz Christine Duval, que tem dificuldades em antecipar as reações do homem em questão. Ela tenta se controlar de todas as maneiras para que ele não ache que Christine teria uma opinião negativa a seu respeito – o que poderia suscitar a sua ira. “Eu fico pensando: ele não pode perceber que eu estou vendo que ele está tremendo.”
46Controlar-se, manter a calma é também manter a possibilidade de uma explicação racional; ter esperança de que o usuário se torne (novamente) “racional”, no sentido literal do termo. A explicação pedagógica também serve de técnica de controle da relação, mas isso até o momento em que a agressividade chega a um nível tal que acaba por inutilizar todo o esforço pedagógico.
Concretamente, como a senhora faz para controlar uma situação que começa a se tornar conflituosa?
- Em princípio, estoura muito rápido, muito rápido mesmo. A pessoa não está contente, com ou sem razão, e então eu falo para ela: “O senhor não está contente, mas se nós começamos com esse tom aí, todo mundo vai ficar nervoso, vai ter briga, e isso não vai resolver o problema do senhor. Então vamos tentar nos acalmar, eu vou te explicar tudo e aí então o senhor terá todo o direito de falar que não está satisfeito.” Mas eu falo para eles que não adianta nada agredir os outros, porque todo mundo sai perdendo. [...]. Mas também brigas e escândalos são raros aqui. (Episódios assim aconteceram apenas uma vez] em vinte e um anos, apenas uma vez alguém levantou a mão para mim. Em vinte e um anos, eu tive que ligar três vezes para a polícia. Então, de maneira geral, eu tento acalmar as coisas e isso acaba funcionando [...]. Mas falar, tentar racionalizar aquele que não tem mais nem um centavo furado é complicado! Porque a gente consegue alguma coisa, um adiantamento em um pagamento, mas... (Agnès Coubertin)
47“Racionalizar” os beneficiários, convencê-los por meio de uma atitude calma e com argumentos torna-se uma tarefa ainda mais fácil quando o agente de atendimento dispõe de recursos físicos que poderiam, em última instância, tirá-lo de uma situação embaraçosa. Lionel Picard diz que o importante antes de tudo é ter um “método” racional para a resolução de situações conflituosas.
48“Quando eles se irritam, eu cruzo os braços. E depois falo: ‘Terminou? Agora vamos conversar calmamente. Vamos dar uma olhada nisso juntos?’, mas é algo raro de acontecer [...]. Alguém que está irado, com razão, eu vou tentar então racionalizá-lo, acalmá-lo. Eu tento fazer com que ele chegue à conclusão de que ok, a Caixa cometeu um erro, mas também tem isso, isso e isso.” No entanto, Lionel logo acrescenta que o seu porte físico lhe permite não ter medo físico dos visitantes; ele diz também que a sua força física “acalma” já no início os “nervosinhos” e que ele está sempre pronto para usar a força física caso necessário.
49Mas se tal “racionalização” fracassar, a tática de evitamento é colocada em prática. O evitamento quer dizer, antes de tudo, interromper a relação ou fazer um colega intervir.
Era véspera do dia de Santa Catarina, queríamos fechar às 16h. [...] As coisas começaram a degringolar. Ela me disse: “Faça atenção!” Eu me lembro que as suas duas mãos estavam enfaixadas porque ela tinha saído no tapa com o marido. Ela começou: “Os seus brincos aí, você vai ver só, eu vou arrancar.” Ela levantou da cadeira e começou a erguer a mão para mim. Eu disse para ela: “A senhora não me assusta, a senhora se retire e pronto.” Depois Lionel chegou para intervir, e ela começou a chorar na sua box. (Sylvie Véra)
50Um outro método de evitamento consiste, como fora visto de maneira mais geral a respeito das técnicas de enquadramento dos visitantes, a levar o visitante problemático até a direção, a qual fica localizada em um outro escritório. Lionel Picard conta que ele fora chamar os seus superiores para parar uma chantagem suicida (já mencionada). “Eu interrompi a pessoa e disse: ‘Eu vou falar com o meu chefe de serviço, isso talvez possa ser solucionado, espere um pouco.’ Eu fui buscar o meu responsável, eu não sabia muito o que fazer [...]. Os dois responsáveis vieram, e nós três tentamos acalmar o homem para que ele soltasse a porcaria da faca!”
51Esta “esquentada” tem, porém, os seus limites e, especificamente, segundo os agentes de atendimento, o limite de encorajar os beneficiários a usar a violência de maneira tática – tal como fora feito mais acima. Aumentar o tom, ameaçar o agente para conseguir falar com um responsável e obter assim mais facilmente ganho de causa seriam, neste sentido, uma tentação cada vez mais frequente. Tais práticas viriam questionar não somente a posição do agente de atendimento, mas de maneira geral a “justiça” do sistema.
52Pôde-se observar um caso de litígio deste tipo. Esse caso mostra que o que faz as interações “degringolarem” não é só a agressividade dos beneficiários, mas também – e amplamente aqui – os elementos desta agressividade que os agentes de atendimento podem antecipar, antes mesmo de atenderem o visitante agressivo:
53Quando os agentes de atendimento perceberam que a senhora Martin estava na sala de espera, eles trocam olhares entre eles e fazem alusões que indicam, substancialmente, o seguinte: infeliz aquele que a atenderá. Ela é, de fato, conhecida por ser “difícil”. Por fim, ela é atendida no guichê onde eu estou.9 Ela é muito magra e está visivelmente tensa. Com 28 anos, a mulher aparenta dez anos a mais. Na tela do computador, pode-se ver que ela recebeu no passado o RMI, que tem atualmente uma dívida com a CAF e que beneficia do API.
“Eu venho aqui hoje porque me tiraram mil francos. Eu estou começando a perder a paciência. Todos os meses é a mesma coisa. A gente dá todos os papéis que pedem, mas nada é feito.” Logo no início, Marie Annaud lhe dá a possibilidade de uma entrevista com um responsável:
“Se a senhora quer fazer reclamações, a senhora terá que se dirigir à direção.
- A gente nunca consegue falar com eles.
- Ah, sim, sim. E se a senhora quiser, pode marcar um horário e eu transmitirei a sua requisição.
- Se a senhora me pagar o táxi, tudo bem. Eu não tenho só isso para fazer da vida, não. O melhor é falar com a direção agorinha mesmo.
- Não podemos incomodar o senhor Charlier assim, desse jeito, no meio de uma reunião... [Um agente de atendimento itinerante passa no escritório: ‘Charlier? Mas ele saiu de férias!’] A senhora pode também escrever para ele, se quiser.
- Ah, a gente vê logo que é mais barato para vocês que se envie cartas! E, inclusive, a senhora sabe muito bem que o meu marido está preso. Mas vocês ficam me pedindo um papel assinado por ele.
- Sabe, senhora, não é perseguição. A gente não quer ficar vindo atrás da senhora.
- É sempre igual. Para o RMI foi a mesma coisa. Foi preciso pedir para a subprefeitura intervir, o Ministério. Aqui, eles nos falavam que a gente não tinha direito a nada. Mas vocês estão sentados em cima de 1,8 milhões [de francos].
- Olha, senhora, tendo em vista a complexidade do dossiê e a sua insatisfação generalizada, eu aconselho marcar um horário para falar com a direção.
- Ah com certeza, me dê agora mesmo um horário.
- Eu não sou a sua empregada. Eu estou sendo gentil com a senhora, então a senhora também seja comigo.” Elas saem do guichê para requisitar um horário junto à direção.
54Marie Annaud fica muito afetada por aquilo que ela sentiu como sendo uma agressão. “Ela veio para me ferrar essa daí.” Marie me explica o “caso Martin”: eles são conhecidos e sistematicamente atendidos pela gerência por sempre causarem problemas. “É um círculo vicioso, a gente não pode fazer nada com eles. Nesses casos, a gente os envia para os responsáveis.” Um burburinho circula de que o marido tenha sido preso por ter batido em um gerente de uma outra agência da CAF. Um agente de atendimento confirma: ele indica de qual CAF se trata e afirma que o gerente teve que pedir quinze dias de licença após o ocorrido.
55O casal já tinha sido recebido por um responsável, e o senhor Martin já havia sido advertido por conta do seu comportamento particularmente violento. O agente de atendimento evoca um tipo de engrenagem da violência. “A gente lhe deu adiantamentos muito facilmente, o que não teria sido feito com outras pessoas. O responsável tinha medo. É preciso entender isso também. Ele deveria ter me ligado. Ele teria visto o que um antigo comandante ainda é capaz de fazer. O outro lá acabou com os armários.”
56No dia seguinte de tal encontro difícil, Marie Annaud é recebida por um responsável. Foi ela quem pediu a reunião para se explicar. Ela sai do encontro muito desapontada. Segundo Annaud, o responsável teria tomado o partido da senhora Martin – e contra ela, Marie Annaud. Ela critica de maneira geral a atitude da hierarquia como um todo, a qual, segundo ela, “cede” logo que um visitante “grita um pouco mais alto”. Ela denuncia a injustiça que resulta de tal concessão: “Nestes casos, basta gritar um pouco mais alto para obter mais coisas do que os outros.”
Eu acho que a política aqui é um pouco infeliz: um beneficiário, no geral, quando ele grita ou se ele pede para ver o chefe normalmente é ganho de causa. Agora, quando os beneficiários que são verdadeiramente amolados, a gente vê, eles não ousam pedir nada, eles choram, eles não ousam pedir, e então, bom... o que acontece é que o dossiê deles atrasa dois meses. E isso eu não acho normal. Eu não vejo as coisas assim, não [...], eu tenho mais vontade de ajudar alguém que seja assim do que alguém que grita, que falta com respeito.”
57Ela afirma novamente o princípio da igualdade no tratamento dos dossiês. Os agentes de atendimento aplicam a mesma regra para todos os usuários, mas têm o sentimento de que a hierarquia joga o “jogo do cliente”, lidando com os casos mais difíceis de acordo com a aparência do cliente. E o fazem para preservar a instituição e para se preservar.
58Annaud parece considerar que tal atitude da chefia – para ela incompreensível – coloca em questão a sua posição de agente de atendimento. (A sua incompreensão vem também do fato de ela não conhecer todos os elementos do dossiê litigioso e que assim, neste caso, ela acabou brigando com a pessoa por causa da reputação que esta tem junto dos outros colegas da Caixa: senhora Martin é temida por todos os agentes de atendimento, e Marie Annaud se preparara, ansiosa, para atendê-la.)
59“Basta pagar para ficar tranquilo. Não é assim que a gente aprendeu. Eu não concordo. Desse jeito, basta então a gente se colocar na entrada da CAF com um talão de cheques.” E aqui encontramos um traço clássico das administrações, nas quais “a base” é predisposta à “igualdade diante da lei” e que aceita mal a “lógica do jeitinho” que prevalece conforme se sobe na hierarquia, como pontuam François Dupuy e Jean-Claude Thoenig (1985).
Às vezes, quando conflitos acontecem é assim: a gente recebe alguém, aí as coisas se passam mal com esse alguém e ele vai e pede para ser recebido por alguém da chefia. Eu não concordo com isso porque nós, chefes, não vimos o que aconteceu, a gente nem sabe do que ele está falando, inclusive ele pode estar falando besteira. E se essa pessoa vai até a direção de má-fé isso quer dizer que nós não somos mais nada, que perdemos toda credibilidade. (Sylvie Véra)
60Assim, as interações violentas colocam em questão a ordem institucional de duas maneiras. Pelo seu próprio desenrolar, essas interações afetam diretamente o funcionamento normal do dispositivo de atendimento. Indiretamente, quando elas fazem o caso “subir” na hierarquia, elas geram um certo temor nos atendentes de que tal caso receba um tratamento privilegiado sem justificativa nenhuma.
61Por um lado, o tratamento privilegiado ameaça a credibilidade da posição do agente, esta fundada na manutenção da crença na igualdade do tratamento de visitantes. E, por outro, tal tratamento tende a encorajar os usos táticos da agressividade. Fora das interações violentas elas mesmas, as práticas dos visitantes afetam a organização do atendimento e, consequentemente, a ordem oficial da instituição. É sobre essas transformações mais profundas e mais duráveis que nós falaremos a seguir, terminando assim a nossa análise das relações no guichê.
Notes de bas de page
1 Dubarcq, mulher de 34 anos, desempregada (ex-empregada doméstica), grávida.
2 Béville, 11/04/1995-3.
3 Dombourg, 15/06/1995-24.
4 Dubarcq, 19/04/1995-9.
5 A obra citada de Nobert Elias e Eric Dunning pode ser encontrada em português, como por exemplo a publicada sob o título Sociologia do Esporte e Processos Civilizatórios (São Paulo: Editora Annablume, 2022).
6 Béville, 24/04/1995.
7 Dubarcq, 19/04/1995.
8 Para consultar a versão em português do livro citado de Pierre Bourdieu referir-se, por exemplo, a Meditações Pascalianas (Rio de Janeiro: Bertrand, 2007), 2.ª edição.
9 Béville, 8/08/1995-13.
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