Capítulo 9 – A gestão das distâncias sociais
p. 243-260
Texte intégral
ATENÇÃO À SOLUÇÃO que você dá quando está lidando com um CASO SOCIAL e quando tal solução encontra resistência da parte do visitante. Essa “solução” pode correr o risco de não ser vista como tal pelo visitante, e a resistência vem talvez do sentimento de não ter sido compreendido. É preciso, então, se esforçar para ir além das explicações dadas pela pessoa que está sendo atendida e prolongar a entrevista para tentar saber mais sobre a sua situação.1
1As transformações do público impactam a relação que os atendentes mantêm com o seu trabalho, além de afetarem a definição do seu papel; por essas transformações se traduzirem em uma heterogeneidade de visitantes até então inédita, elas também implicam em um importante trabalho de gestão da diferença e da diversidade sociais.
2Gestão da diferença: é preciso adaptar, sem parar, as categorias institucionais a situações que correspondem cada vez menos com tais categorias. Gestão da diversidade: é preciso se adaptar, sem cessar, a indivíduos dotados de recursos, portadores de expectativas e de práticas mais variadas do que nunca. No lugar da população “média” do período precedente, apareceu uma paleta social marcada por uma forte proporção de agentes de categorias sociais mais baixas – mas nem por isso menos diversificada.
3E é nesta gestão de distâncias que se inscrevem as condições do afastamento burocrático ou do engajamento pessoal, da aplicação formalista da regra ou da mobilização de recursos pessoais. Em função da ideia que o agente de atendimento tem da sua própria posição, da posição da pessoa atendida ou da distância que os separa, ele ajusta o seu comportamento, determina o que ele poderá se permitir fazer durante o atendimento do beneficiário à sua frente e aquilo que ele permitirá o beneficiário fazer. É igualmente nesta distância social que estão inseridas e que operam as condições da consideração do atendente para com os infortúnios pessoais que lhe são expostos.
“É preciso se adaptar à clientela”
4O olhar da sociologia espontânea que evocamos anteriormente é constantemente mobilizado pelo atendente em suas táticas de ajuste ao visitante na hora do atendimento. Essas táticas o ajudam a se adaptar ao seu interlocutor e, assim, passar sem grandes turbulências do desempregado recebendo as últimas parcelas do seguro-desemprego a uma esposa de médico – perfil este mais raro –, a qual veio ao guichê para tentar regularizar o seu dossiê referente ao subsídio para o cuidado domiciliar de crianças.
5Ajustar-se rapidamente ao visitante é necessário para que não se tenha que remediar depois, como por exemplo ter que desfazer uma situação na qual o agente estimou as competências linguísticas e administrativas do visitante demasiadamente superiores do que eram de fato e tendo, assim, que reformular as explicações. Ou ainda, de modo inverso, se o atendente “não soube com quem ele estava falando” e, com seus esforços pedagógicos inúteis, acabou cansando e irritando o seu interlocutor.
A gente não emprega a mesma linguagem com alguém que recebe o RMI e com alguém que vem para um auxílio relativo às crianças. Por exemplo, alguém que chega para requisitar o auxílio para o cuidado domiciliar de crianças não é nenhum pouco parecido com um RMista, não requer a mesma linguagem. Com certos beneficiários, a gente utiliza palavras mais simples do que com outros. É completamente diferente. Há pouco tempo tivemos um caso de alguns beneficiários que não entendiam aquilo que a gente dizia, e então, aos poucos, a gente passa a falar como eles, com o mesmo vocabulário. Com as pessoas estrangeiras a gente fala de maneira um pouco mais pausada, tenta se adaptar à maneira delas de falar. (Cécile Peugeon)
6O encadeamento de sequências de situações que forma o desenrolar dos encontros no guichê permite que o atendente opere esse ajuste. Primeiramente, o agente vai julgar o visitante quando este ainda está na sala de espera e, posteriormente, quando ele chegar no guichê. Depois de usadas as fórmulas dos rituais de início do atendimento, convidando a pessoa a explicar o seu problema (“O que traz o senhor, a senhora aqui?”; “Pois não, estou escutando”...), é do visitante a incumbência de continuar a conversa. Suas primeiras palavras (mas também o seu mutismo) fornecem ao agente os indícios que o ajudarão a avaliar o status e as competências do beneficiário e, como diz Jocelyne Fabre, “de se colocar no mesmo nível”.
7“No começo, nós somos nós mesmos, é depois, ao longo da conversa, que nós nos adaptamos. [...] Nós não podemos falar ‘com tal pessoa eu serei assim e com tal pessoa eu serei desta outra maneira’. A gente os deixa primeiro chegarem até nós e depois a gente muda” (Cécile Peugeon).
8No entanto, a avaliação social do interlocutor e o ajuste que se segue não se limitam a essa necessidade do serviço, a qual faz parte de uma boa compreensão mútua, entre atendente e atendido. A gestão da distância social consiste igualmente, para os atendentes, em um julgar aquilo que eles podem se permitir, durante o atendimento, com o usuário. E isto em função da percepção que os atendentes têm das posições e disposições do usuário em aceitar humor, ordens e advertências.
9E aqui vale articular tais ajustes dos agentes da CAF ao trabalho de Jean Peneff (1992: 47), o qual, no serviço de urgência de um hospital no Oeste da França, observa o mesmo tipo de ajuste de práticas de funcionários públicos de acordo com as posições sociais dos clientes.
10É, pois, neste sentido que Julien Arthaud conta com discernimento as suas piadas habituais. Porém, ele se abstém de fazê-lo com pessoas que não apreciariam uma tal atitude demasiadamente informal. Ele sabe, porém, contar tais piadas para os “habituados” (os que recebem o RMI, mais particularmente). Estes não somente estão acostumados, mas estão em posição – mais do que os outros – de serem simpáticos, aceitando tais brincadeiras e não as rejeitando como uma informalidade despropositada.
“Tem diferentes maneiras de atender, depende da clientela que temos. Por exemplo, quando eu falo para alguém ‘Ah, o senhor de novo!’, não se pode falar isso para todo mundo. Acaba também criando uma certa atmosfera para as pessoas na sala de espera.” Habituado a esse tipo de brincadeira, ele faz a seguinte piada com alguém que veio por causa de um erro na declaração de renda: ‘Não se preocupe, os oficiais de justiça estão de férias!’”2
11O humor dos atendentes não é sempre assim aparentemente “inocente”, e o que Radcliffe-Brown (1968: 69;3 Beaud e Pialoux 1998: 109)4 chama de “relação à piada” ou o “desrespeito permitido” pode ganhar significados bem diferentes. O uso do humor pode ser o sinal de uma ausência de consideração pelo visitante. A piada passa a ser o produto da distância social, distância esta que é evidenciada pela brincadeira feita. Como mostra a seguinte interação:
Um homem de origem argelina, 46 anos de idade, nos estende a mão ao chegar. Beneficiário do RMI, ele reclama que as suas procuras por emprego não resultam em nada. “Os empregadores não querem nem saber de nós.” A sua situação se torna cada vez mais difícil. Quando ele afirma não ter dinheiro nem mesmo para comprar uma calça nova e mostra a sua rasgada, Thierry Courtecuisse acha que pode fazer uma brincadeira, dando o seguinte conselho: “Coloque um short!”5
12A posição de inferioridade do visitante em relação ao atendente faz, assim, com que diferentes formas de julgamento sejam possíveis. Esses julgamentos são dificilmente imagináveis de serem destinados a agentes de categorias sociais equivalentes ou superiores à do atendente – e se o fossem, o agente de atendimento teria logo que lidar com uma resposta do visitante colocando-o “no seu lugar”.
13No entanto, tais julgamentos são frequentes no caso de agentes financeiramente dependentes da instituição e que, por isso, são pouco capazes de reivindicar a sua autonomia. Eles são igualmente mobilizados com os indivíduos que os atendentes se sentem à vontade para rotular como os que se desviam das normas. Como no caso desta mulher que Lionel Picard me fala, depois do atendimento, ser “uma prostituta que tem um apartamento comprado por um terceiro”. Beneficiária do RMI, ela chega no guichê reclamando veementemente de estarem lhe pedindo papéis de maneira aleatória para o seu dossiê de auxílio moradia. Proprietária do apartamento onde mora, ela diz ter adquirido tal apartamento graças a um amigo que lhe emprestou dinheiro. Diante dessa situação pouco frequente e que é construída como uma situação não-conforme à moral, Lionel Picard adota uma atitude pouco frequente: de uma maneira particularmente autoritária, ele lhe dita um texto no qual ela declararia oficialmente o que acabara de dizer no guichê. “A senhora escreva isso imediatamente.”6
14O particular esforço de controle consentido pelos atendentes, quando estes têm que lidar com agentes de classes superiores – e até mesmo a desconfiança que eles alimentam em relação a tais visitantes – mostra igualmente a importância das práticas de ajuste social. Uma troca administrativa com uma pessoa de um nível social e de formação elevados é a priori mais fácil: pode-se ir mais rápido e se esforçar menos na tradução do jargão administrativo, limitar o serviço à sua dimensão técnica e limitar, de igual modo, o diálogo ao seu conteúdo informativo.
15“É verdade que de vez em quando a gente recebe diretoras, diretores e, então, as coisas vão claramente mais rápido [...]. Normalmente, eles conhecem a situação, e aí vai ser mesmo uma questão de dar uma informação precisa sobre um direito. [...] No geral, eles gostam de uma resposta rápida, concreta. O que os interessa é o limite máximo de recursos para tal e tal prestação” (Geneviève Donné).
16No entanto, os atendentes não gostam muito das (raras) visitas desse tipo de beneficiário. Primeiro, porque elas pouco se encaixam na função de ajuda social que se construiu, pouco a pouco, nas Caixas de Prestações Familiares e, em particular, no guichê. Frédérique Rouet escandaliza-se com o que ela considera serem abusos produzidos por não se levar em conta o salário dos pais dos estudantes beneficiários do auxílio moradia.
17“Tem uns que tem uns salários..., precisa ver isso aí! [...] Essas pessoas não precisam da nossa ajuda. [O auxílio] acaba sendo para os filhos como uns trocados, mas a gente não está aqui para isso.”7 “É verdade que nós ajudamos mais as pessoas necessitadas do que as que têm um cargo de direção, de gerência”, estima Geneviève Donné. “Eu prefiro atender um RMIsta. Eu sei que o RMIsta precisa da gente, ele espera realmente alguma coisa.” Sobretudo, tais visitantes, em particular, invertem a ordem hierárquica habitual das interações: o atendente encontra-se agora em posição de inferioridade. Ele deve fazer atenção, mais do que de costume, à precisão e à exatidão das informações fornecidas. É o que indica Laurence Pradin sobre os beneficiários da AGED. Ela não os vê regularmente por lá e nem gosta de recebê-los: “Os que vêm para ver isso aqui são normalmente médicos, etc, então não podemos nos enganar, não.” Segundo os atendentes, eles conhecem melhor a regulamentação do que a média dos beneficiários e são mais prontos a reclamar em caso de erro: “São do tipo de ir até a direção na mesma hora” (Marie Annaud). As fórmulas normalmente utilizadas para controlar a situação (“Cale-se”, “Continue se comportando de forma educada”), as atitudes autoritárias e as demonstrações de competência são nesses casos impraticáveis. Trata-se aqui de “abaixar a cabeça”:
É difícil saber o que responder para uma gente como essa, eles são bem duros, mas calmos e respeitosos. Nós não podemos falar “Olha, acalme-se” ou “Por favor, continue se comportando de maneira educada”. Mas é raro. De maneira geral, são pessoas que vêm porque recebem a ajuda para a guarda domiciliar das crianças; são pessoas que geralmente têm renda alta. Ou seja, são de um outro meio. Eles têm mais reserva. No geral, quando não estão contentes, é preciso fazer atenção àquilo que a gente vai dizer por que eles são do tipo de ir falar com a direção na mesma hora. Então, é preciso deixar eles falarem, dar uma boa conferida no dossiê, não podemos cometer nenhum erro com esse tipo de pessoa, precisamos preparar uma resposta muito, muito clara.
- Acaba sendo até mais difícil de se comportar com pessoas como essas?
- Sim, são pessoas para as quais é preciso estar muito disponível, pessoas que gostam um pouco de dominar. É triste, mas é preciso abaixar um pouco a cabeça, não pode dar a impressão de que estamos falando com altivez, que estamos lhes dando ordens. Eles não gostam de ter a impressão de que nós sabemos mais do que eles.
- Você aceitaria adotar essa postura?
- É preciso se adaptar, a gente está aqui para prestar um serviço às pessoas. No começo, quando vinham pessoas assim, eu não me deixava rebaixar, não. Mas no fim as coisas acabam virando contra você. (Marie Annaud)
18As atitudes que os atendentes podem se permitir adotar diferem umas das outras e de acordo com o status social de seus interlocutores. Seguindo o mesmo princípio, eles, os atendentes, também permitem que os visitantes adotem diferentes práticas e atitudes. Não se aceita as mesmas coisas de agentes sociais com status diferentes. Como bem disse Marie Annaud, uma alta exigência técnica e uma atitude dominadora são necessariamente aceitas quando elas vêm de visitantes cujo nível social é superior ao nível dos agentes de atendimento. De modo geral, o que é considerado como aceitável varia em função do que os atendentes julgam como sendo uma atitude normal, própria dos diferentes status sociais.
197Assim, se por um lado Sylvie Véra faz muita atenção para que não adotem com ela nenhuma atitude ou prática informal, por outro, ela aceita que a chamem de “você” por aqueles que podem fazê-lo sem que haja uma conotação de demasiada informalidade: “Se é uma pessoa do Norte da África, eu tolero, mas se são pessoas que já estão na França há um tempo, depende do tom da voz e etc., mas eu não tenho muito problema em aceitar.”
20O ajuste às diferenças sociais dos visitantes faz com que serviços diferentes sejam prestados. Para mencionar um caso já citado, a prática de preencher formulários no lugar do usuário é, nesta perspectiva, moldada em função das capacidades do visitante antecipadas pelo agente: tal prática é quase que sistematicamente utilizada com pessoas que dominam pouco a língua francesa ou ainda com idosos, mas ela é raramente adotada com beneficiários vistos como tendo um nível suficientemente bom para preencher tais documentos.
21E ainda: ela é sistematicamente recusada quando se trata de pessoas que deveriam ter um domínio privilegiado da língua escrita (como é o caso dos estudantes):
Eu não faço para todo mundo. A gente percebe aqueles que são capazes de fazer ou não. [...] Quando se trata de alguém capaz, eu peço para preencher. A gente também não vai falar [ela imita um tom de voz agressivo] “Ah, o formulário tinha que ter sido preenchido”. É preciso também saber como pedir. (Christine Duval)
22Além disso, o ajuste às diferenças sociais dos visitantes rege as mudanças das diferentes definições do papel do atendente. Retomemos dois elementos constitutivos do papel do atendente que foram abordados anteriormente. Primeiro, a distância social separando o agente do beneficiário pesa sobre as práticas de controle. As rendas sociais mínimas, tais como o auxílio de pai/mãe solteiro e a renda mínima de inserção, são as prestações mais conhecidas como sendo alvo de tentativas de fraude.
23Os mais desfavorecidos são igualmente mais suspeitos de declarações falsas. Ao mesmo tempo, a preocupação de não sobrecarregar pessoas que estão objetivamente em uma situação difícil, independentemente de terem feito declarações falsas ou não, faz com que os atendentes evitem ao menos uma atitude demasiada e sistematicamente inquisidora – isso quando tais atendentes não “fecham os olhos”, o que embora não parece ser o objetivo dos agentes de atendimento.
24Assim, o tom mais severo é dirigido aos que são potencialmente suspeitos de serem “falsos pobres”, seja por causa da maneira de se vestir, seja por causa do vocabulário empregado ou ainda das declarações feitas: ou seja, os potencialmente “falsos pobres” são os beneficiários que recebem importantes auxílios e que conhecem tão perfeitamente a legislação que a esmiúçam a ponto de ultrapassar os seus direitos.
25E quando os beneficiários se “viram” tão bem, da mesma maneira ou até mais do que os agentes de atendimento, e que tais beneficiários estão sem trabalho, isso acaba virando uma situação propícia à suspeita de fraude por parte do atendente, que passa a procurá-la de maneira sistemática.
26A mobilização de competências que não estão ligadas à instituição também depende fortemente da distância social entre o agente e o beneficiário. As atitudes mais voluntariamente prescritivas são adotadas tanto por parte dos beneficiários mais desprovidos quanto por parte dos beneficiários socialmente mais próximos do agente. No caso dos mais desprovidos, a prescrição acontece mais em função de princípios normativos relativos à “integração”. Estes princípios convergem com a linha que a política da CAF deve seguir (incitação a aceitar todo o tipo de trabalho e não ficar inativo, advertência em favor da estabilidade familiar, etc.).
27Já com os beneficiários socialmente próximos dos atendentes, a atitude é completamente diferente: nesses casos, o agente se permite dar um tratamento “personalizado”, o qual se distancia do modelo institucional. O agente mobilizará mais a sua própria experiência e promulgará mais prontamente conselhos do tipo: “Se eu estivesse no lugar do senhor...”
As condições sociais da compaixão
28Esse último item nos leva a explorar a questão das incidências da distância social sobre a consideração que o atendente pode ter com os problemas que lhe são expostos. Ou seja, trata-se de questionar as condições sociais da compaixão, as quais podemos chamar de “o fato de ser ‘pego’, na prática e de maneira não necessariamente refletida, pelo sentimento de responsabilidade em relação ao sofrimento do outro, no cara a cara e na proximidade dos corpos” (Corcuff 1996: 31).
29A possibilidade da compaixão para com os sofrimentos do outro se inscreve nas relações sociais nas quais os indivíduos estão inseridos. Tal é o ensinamento que se pode tirar do conto de Flaubert Un cœur simple,8 no qual o autor mostra, a partir das histórias pessoais de uma moça que trabalha como empregada e das de uma viúva, na casa da qual a moça trabalha, que a compaixão se inscreve em uma relação social desigual. É absolutamente normal que a empregada chore com a sua patroa durante episódios de drama familiar que afetam a viúva; a recíproca, porém, está longe de ser verdadeira: o que é dramático no primeiro caso e chama naturalmente à solicitude do entorno é, no segundo caso, apenas um problema pessoal que os outros não têm motivo para se preocupar. A observação feita dos guichês de atendimento nos conduz a complexificar este esquema binário de Flaubert. Deste modo, nós gostaríamos de diferenciar de maneira ideal-típica três condições da compaixão no guichê.
30A primeira – e a mais importante – corresponde à possibilidade do agente de atendimento se projetar na situação difícil que lhe é exposta. O agente se sente ainda mais concernido pelos problemas que lhe são endereçados à medida que lhe é possível imaginar vivê-los, ele mesmo, um dia. A proximidade (de posição social, de situação, de idade ou de sexo) é, deste modo, um fator importante da compaixão. Exemplifiquemos:
31Sophie Delvaux se sensibiliza menos com as situações socialmente mais degradadas – ou seja, aqueles que “chegaram no fundo do poço” – do que com aquelas que consistem em um declínio ocorrido recentemente e cujo agravamento parece inevitável. A proximidade social vem, então, reavivar a angústia da queda – queda esta que provoca, ao mesmo tempo, a apreensão e a chamada para se engajar frente ao sofrimento do outro. Vale a pena lembrar aqui o trabalho de Dominique Memmi (1996), o qual trata do uso de metáforas verticais para se falar do deslocamento social.
Talvez seja porque isso me deixe mais apreensiva, porque eu não consigo me desligar daqueles que estão caindo [socialmente]. [...] São pessoas e elas não estão longe de nós. Elas falam: “Eu trabalhei, eu trabalho, eu me mato e eu não tenho nada e eu despenco.” Todos eles têm os seus argumentos, mas eles despencam e estão em queda livre. E aí a gente se sente impotente, nós temos menos argumentos para lhes dar.
32A compaixão pode igualmente ser explicada pela proximidade social, e particularmente no caso das mulheres sozinhas que chegam no guichê. As interações mais longas e durante as quais o dossiê é estudado de maneira mais completa são aquelas frequentemente tidas entre os agentes de atendimento – 80% deles são mulheres e quase todas casadas e mães – e uma outra mulher, mãe de família que acabou de ser deixada por seu companheiro.
33A contrario, vê-se a forma bem menos amena com que os ex-maridos são tratados quando estes chegam no atendimento para tratar de problemas com o auxílio ligado à pensão alimentar. Frédérique Rouet mostra-se, nestes casos, particularmente fria quando um homem exprime múltiplas reclamações sobre a mulher a qual ele deixou e tenta justificar a sua atitude. “É uma malandra. E ainda ela recebia os [auxílios] ‘pai/mãe solteiro’! É uma raposa. Não tem outra palavra.”9
34E, sobretudo, vê-se tal compaixão na pressa com que Agnès Coubertin e Josiane Delpol, por exemplo, tratam dos dossiês das mulheres em processo de divórcio. Antes mesmo da primeira sessão judicial, Agnès toma a iniciativa para obter uma ajuda ou para requerer o depósito das prestações familiares na conta bancária da esposa.10
35Josiane Delpol explora todas as possibilidades, fornece todas as explicações possíveis para uma mulher de 42 anos que veio expor o seguinte problema: “O meu problema é o seguinte: eu vou passar daqui a pouco pelo divórcio consensual. Atualmente, eu estou sozinha com as minhas duas crianças...” A atendente age da mesma maneira com uma outra moça que acabara de ser deixada pelo marido.11 Essa solicitude vai regularmente além de um simples zelo profissional. Ela resulta também em trocas mais calorosas e marcadas por importantes traços de consideração.
Geneviève Donné recebe uma mulher da mesma idade que ela, talvez de pouco mais de 40 anos. Mãe de três crianças, ela se separou recentemente de seu cônjuge e teve de se mudar para a casa da mãe. Quando ela conta os seus problemas e explica como as suas condições de vida tornaram-se precárias, a discussão toma um tom quase amigável: não somente Geneviève escuta a mulher, mas ela também termina as frases dela, mostrando com isso que ela, Geneviève, “entende bem”.12
36A sensibilidade com os problemas afetando as crianças pode também ser interpretada como um efeito de uma possível projeção dos atendentes. É deste modo que as mães de família dizem reagir a tais casos. Os trabalhos de Jean Peneff (1992: 166-167) mostram, por exemplo, que entre os funcionários hospitalares “cada categoria tem as suas preferências e repulsões” quando se trata da população atendida no setor de urgência, sendo os preferidos os mais próximos (solidariedade entre os jovens, uma maior sensibilidade às crianças doentes por parte dos funcionários com mais de 40 anos).
Os casos que me tocam mais são os casos de crianças. Quando as crianças sofrem ou estão doentes ou coisas do tipo. Eu vi uma mulher um dia que chorava porque ela não podia dar presentes de Natal para as suas crianças, eu quase chorei com ela. São coisas que... é porque eu também tenho filhos, é por isso. (Christine Duval)
Eu penso no caso de uma mulher que chorava porque ela não tinha o que dar para os filhos comerem. É verdade que, neste tipo de situação, a gente precisa achar uma solução. Temos uma relação muito humana, não podemos deixar as pessoas assim. (Frédérique Rouet)
Quando nos dizem que uma criança faleceu, isso é o mais difícil, é isso o que me toca mais. (Laurence Pradin)
37Esta compaixão por projeção pode ser contrastada com um caso diferente. Tudo acontece como se os agentes de atendimento recusassem, aos que pudessem ser considerados como seus homólogos, a possibilidade de serem submetidos a uma condição que lhes desarmaria completamente; formulando de uma outra maneira, tudo acontece como se os agentes recusassem a estas pessoas a possibilidade de serem “vítimas” pedindo compaixão. Sem dúvida que agir assim é uma maneira de os agentes dissiparem uma eventual possibilidade deles mesmos se tornarem “vítimas”. Assim, a proximidade (como a identidade de sexo) torna-se um fator contrário à compaixão, podendo esta ser expressa somente na distância.
38E aqui podemos pensar em um caso similar: o da estrutura de acolhimento para as pessoas sem domicilio fixo estudada por Corinne Lanzarini e Patrick Bruneteaux (1996). Nela, uma distância social máxima – os “SDF” (sigla em francês para pessoas em situação de rua) são atendidos por voluntários aposentados vindos de “bairros nobres” – é a base do engajamento no sofrimento alheio.
39Tal compaixão que se expressa somente na distância está presente nos exemplos interligados de Thierry Courtecuisse, que guarda a sua sensibilidade para as mulheres, e de Josiane Delpol, sensível sobretudo quando é um homem quem sofre.
Um dia desses eu vi uma senhora com o olho roxo. E ela me disse: “O senhor está vendo, eu apanhei do meu marido.” É isso o que mais me marca. Eu disse para ela: “O que a senhora tem que fazer é simplesmente ir embora da sua casa.” E foi isso o que ela fez. [...]. Mas eu não sou tão sensível assim com um homem, a não ser que ele esteja doente, claro. Aí é outra história. Porque um homem, se ele quiser realmente, ele pode sempre achar alguma coisa. (Thierry Courtecuisse)
No começo eu era mais sensível, mas hoje eu já vi tanta coisa... Eu digo para o senhor, a gente vê coisas terríveis. É verdade que eu sinto mais pena quando eu vejo um tipo sofrendo. É verdade que uma mulher pode se encontrar rapidamente em dificuldade. A gente lhe dá alguns endereços e também compartilhamos os nossos sentimentos, as nossas emoções de mulher, falamos para ela como faríamos se estivéssemos no seu lugar. Mas um homem, isso me deixa sem voz, eu não sei muito o que dizer. (Josiane Delpol)
40A terceira condição típica da compaixão refere-se aos princípios de uma boa moral social. Os únicos que podem ser o objeto de compaixão são aqueles que mostraram ser leais a esta moral e que demonstram ter “boa vontade”. É deste modo que é reativada, na solicitude seletiva dos agentes de atendimento, a oposição clássica entre “bons” e “maus” pobres.
41Nesta segunda categoria, são colocados os “acomodados” que se contentam com ajudas e que “não fazem nada para sair da dificuldade”. Nada de se compadecer deles. Quando eu pergunto a Thierry Courtecuisse qual é a sua reação diante de pessoas que sofrem, ele responde: “É verdade que existem os acomodados, os miseráveis profissionais, e estes são sempre aqueles que não querem trabalhar. O pouco que eles têm já lhes é suficiente.”
42Claude Ligeot nos faz parte de uma atitude parecida:
É preciso também tomar para si certas responsabilidades. Eu tive alguns casos desses acomodados que, nove meses antes de o filho fazer três anos, fez um outro para obter novamente os direitos [a um auxílio]. E assim sucessivamente. Eu atendi uma mulher assim, ela teve quatro crianças assim. Quatro multiplicado por doze, é só fazer as contas, ela nunca trabalhou. Quando ela veio me dizer que estava grávida, eu não fiquei pensando muito não, mas também eu não senti compaixão pela sua situação, pelo seu problema.
43Já os “bons pobres”, as “pessoas guerreiras”, os “pobres cheios de mérito”, aqueles que dão de uma forma ou de outra amostras de sua boa vontade, recebem mais atenção. Eles são ajudados e “compreendidos”. No guichê, a boa vontade social inscreve-se primeiramente, como se pode ver, nas práticas administrativas conformes e na conduta “adequada”. Entre os mais desprovidos, os que se beneficiam prioritariamente da compaixão dos agentes são aqueles que se mostram mais dóceis por serem pouco autônomos nos seus processos administrativos e que mostram a sua gratidão ou o seu apego a um agente de atendimento. “É verdade que nós somos mais próximos dessas pessoas. Sabemos que nós os veremos mais regularmente. Eles aceitam as nossas críticas. Eles são gratos também porque a gente os atende, porque preenchemos os seus documentos” (Jocelyne Fabre).
Uma mulher de 40 anos em farrapos e sob grande tensão sabe apenas de maneira vaga o motivo de sua visita. Ela apenas dá informações esparsas fazendo com que Sylvie Véra trie as informações para estabelecer ligações entre elas e entender então o que lhe está sendo pedido; no fim das contas, trata-se de trocar a conta bancária para que ela possa receber os auxílios. O marido chega. O seu corpo está coberto de tatuagens. Ele fica em pé, pergunta se precisa assinar alguma coisa e diz preferir que o dinheiro seja depositado na conta da esposa. “É mais seguro!” Após os dois irem embora, Sylvie me explica o caso. A mulher recebe uma prestação para pessoas deficientes; o marido é “especial”. Mas “são pessoas guerreiras, estão apenas um pouco perdidas. Elas são fáceis, não amolam, mesmo se têm grandes dificuldades para entender as coisas”.13
Mulher, 45 anos, RMIsta. “Quando eu chego, eu falo assim, ‘eu quero ver o senhor Picard’. Eu prefiro ser atendida pelo senhor. Ao menos tudo fica claro e cristalino. Agora que com aquelas mulheres ali...” Ela fala sem parar, pergunta ao agente se ele sairá de férias, critica as pessoas cujas crianças estão sob tutela: “Eles teriam feito melhor se não tivessem feito filhos!” Lionel Picard incentiva o falatório enquanto trata do dossiê em questão. Após a mulher ir embora, o agente me fala: “Não são pessoas más, mas... se a gente não as pega pela mão, não dá certo.”14
Notes de bas de page
1 Trecho do prospecto resumindo os ensinamentos dados durante um estágio de formação para o trabalho no atendimento, 1992.
2 La Plaine, 20/06/1995-4.
3 A obra citada de Alfred Radcliffe-Brown também pode ser encontrada em português, como por exemplo, na versão intitulada: Estrutura e Função na Sociedade Primitiva (Petrópolis: Vozes, 1973).
4 O estudo de Stéphane Beaud e Michel Pialoux pode também ser encontrado em português, como por exemplo: Retorno à Condição Operária: Investigação em Fábricas da Peugeot na França (São Paulo: Boitempo, 2009).
5 Véribel, 19/06/1995-21.
6 Béville, 11/08/1995-10.
7 Conversa informal, Crépel, 3/08/1995-12.
8 O livro de Flaubert foi traduzido para o português sob o título “Um coração simples” como, por exemplo, na edição Um Coração Simples (São Paulo: Grua, 2015).
9 Dubarcq, 21/04/1995-26.
10 Dombourg, 6/06/1995-16.
11 Dombourg, sucessivamente 9/06/1995-2 e 15/06/1995-23.
12 Béville, 9/08/1995-6.
13 Béville, 11/04/1995-15.
14 Béville, 11/08/1995-1.
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