Capítulo 8 – A exposição à miséria
p. 229-242
Texte intégral
1A importante recomposição das Caixas de Prestações Familiares ocorrida desde o fim dos anos 1980 faz com que seja particularmente grande a incerteza do papel de atendente e, também, particularmente visível a ativação das disposições pessoais daqueles que exercem tal papel.
2Se, no período anterior, o recrutamento social dos usuários e a orientação clássica das Caixas como sendo “familiares” poderiam causar uma relação com o público e uma definição do papel de atendente a priori não problemáticas, as transformações conjuntas da população de visitantes e das “missões” de tais instituições vieram questionar tais evidências, já constituídas como certas.
3O público no guichê foi progressivamente se distanciando tanto dos modelos inicialmente veiculados pelas Caixas de Prestações Familiares quanto do universo social dos atendentes, o tratamento burocrático “natural e naturalmente feito” de casos “normais” – caracterizados, em particular, por um emprego e uma estrutura familiar estáveis – deu lugar a um questionamento permanente provocado pelo surgimento de situações “fora do comum”, “fora das normas”.
4O ajuste “natural” e imediato permitido pela proximidade social (mães – mais raramente pais –, família socialmente integrada tendo a mãe como referência – e por vezes o pai –, mãe esta que vem de uma família socialmente integrada) foi de fato perturbado pela chegada de uma população com a qual os atendentes não tinham sido até então confrontados nem em seu trabalho nem em sua vida pessoal: imigrantes desempregados, “marginais” e outros “casos sociais”...
5Esta nova situação geradora de incerteza e de inquietude propicia, de maneira particular, a ativação das disposições pessoais dos atendentes em seu trabalho ou, para colocar como Michel Dobry (1992 [1986]: 239 em diante),1 tal situação propicia a “regressão em direção aos habitus”. Essa ativação pode acontecer em dois sentidos opostos. De um lado, o sofrimento e a miséria de posição ocasionadas pelo declínio social do público favoriza a desilusão, o distanciamento e até mesmo uma autorretirada. Aqui, o termo “miséria de posição” faz referência à expressão utilizada por Pierre Bourdieu (1993a). Por outro lado, novas motivações e um engajamento pessoal mais forte despontam, e isso acontece também por conta da exposição à miséria; assim, longe da distância e da autorretirada, trata-se de novas práticas e de um novo papel que se inventam.
Exposição à miséria e miséria de posição
6Como eles mesmos dizem, o agente do guichê “toca” as transformações sociais e, em particular, a “precarização” de uma parte crescente do espaço social. Essa confrontação direta traz sofrimento para os agentes que – ao contrário dos assistentes sociais – não a buscaram e para a qual não foram preparados. Essa miséria de posição é ainda mais forte pelo fato de que os limites administrativos do trabalho dos agentes fazem com que eles se tornem muitas vezes impotentes diante da miséria de condição à qual são expostos.
7A esses fatores de sofrimento relacionados ao ambiente social adicionam-se outros, ligados à organização institucional. Esses fatores são em parte compartilhados pelos agentes com outras categorias de funcionários das Caixas de Prestações Familiares – como mostra o trabalho de Michel Dubois e Didier Retour (1994). Carga e complexidade de trabalho crescentes e falta de consideração da parte da hierarquia; o impasse no qual muitos se encontram em termos de carreira adiciona-se, pois, aos efeitos do declínio social do público ao qual eles, os agentes, são confrontados. Isto acaba por alimentar o sentimento de degradação da posição que ocupam.
8O declínio da população atendida no guichê corresponde com o declínio da posição de agente de atendimento, mesmo se ambos não são rigorosamente paralelos. Os atendentes evocam os efeitos negativos desta mudança de público, cujo aumento do número de pessoas acabou causando uma pressão mais forte sobre o trabalho dos agentes – e tal pressão se exacerba ainda mais pois são poucos os novos cargos criados nesta época.
9Por conseguinte, os agentes de atendimento tiveram que enfrentar duas exigências contraditórias: melhorar a sua produtividade para absorver o fluxo de visitantes (acelerando o ritmo dos atendimentos) e, ao mesmo tempo, dar mais atenção (e assim mais tempo) a estes novos visitantes “problemáticos”.
10Além das transformações morfológicas do público, os atendentes sentem de maneira negativa as mudanças de postura dos visitantes no guichê. As mudanças nas prestações combinadas com a instabilidade crescente das estruturas familiares fazem com que os visitantes passem a expor cada vez mais a sua vida íntima no guichê. “Quando eu comecei em 1976, a gente recebia números. [...] Aos poucos [...] começou a ser necessário se inserir cada vez mais na vida das pessoas porque elas precisam nos falar tudo. Apenas para o RMI, por exemplo, a pessoa precisa declarar coisas do tipo ‘O meu marido me deixou’, ‘O meu companheiro...’. E então a gente entra completamente na vida privada das pessoas” (Claude Ligeot).
11O agravamento das dificuldades financeiras traz novas exigências: porque os beneficiários são mais dependentes dos auxílios, eles – que são numerosos – querem se informar cada vez mais das prestações às quais teriam direito e por isso adotam uma atitude mais reivindicatória.
12“As pessoas chegam cada vez mais para reclamar”, afirma Christine Duval. “Eu, o que eu vejo é que as pessoas que não têm problemas, essas, não vêm aqui me ver. As pessoas [...] [que vêm] têm problemas e tudo é urgente, elas precisam achar uma solução [...]. Atualmente as pessoas têm pressa, elas querem que tudo seja feito para ontem. Agora se trata de um ‘é necessário’, ‘tal coisa deve ser feita’” (Julien Arthaud).
13Tais transformações tiveram efeitos sobre as práticas de trabalho dos atendentes, como por exemplo a necessidade de adaptar o nível do vocabulário utilizado com os visitantes culturalmente desprovidos. Essas transformações também impactaram a relação que os agentes têm com o próprio trabalho. A transformação da população de beneficiários fez com que o trabalho fosse mais difícil e desgastante. “Antes a gente era menos estressado. As relações eram diferentes [...]. Agora eu penso que todo mundo está saturado, viu?”, afirma Agnès Coubertin. “É duro, você está todo o tempo com pessoas necessitadas, isso acaba desgastando um pouco. É como os assistentes sociais. Não são muitos que podem fazer esse trabalho durante toda uma vida [...]. Quando eu digo que é desgastante, é verdade [...]. É sempre a mesma população que chega aqui, é realmente difícil”, conta Julien Arthaud.
14A exposição à miséria torna-se ainda mais dolorosa pelo fato de que os agentes logo experimentam os limites da sua própria capacidade em reduzir tal miséria. Ver de perto e por muitos anos as mesmas famílias e até mesmo constatar a transmissão hereditária dos problemas sociais acaba passando para os atendentes a imagem da sua incapacidade em resolver os problemas que eles testemunham. “Tem uns que nós acompanhamos desde o começo. Tem também famílias, e a gente acaba atendendo a segunda geração”, diz Jocelyne Fabre.
15Numerosos são aqueles que, como Christine Duval e Frédéric Galopin (há muito tempo na gestão de uma das filiais mais “difíceis” da CAF de Béville), fazem de modo substancial a seguinte constatação: “Nós recebemos os pais e agora encontramos os filhos na mesma situação. Tudo o que a gente tentou fazer por eles não serviu para nada.”
16Essa espécie de fatum social inevitável, ao qual os atendentes são expostos e sobre o qual eles não têm nenhum controle, permite compreender que eles possam se sentir mal em relação à sua posição de burocratas, impotentes para resolver os problemas para os quais a sua ajuda é solicitada.
17Esse sentimento de impotência é ainda mais forte pelo fato de que os agentes são colocados de lado nas fronteiras relativamente estreitas do seu segmento administrativo. Expostos à miséria, eles não estão aqui para resolver os problemas daqueles que sofrem por causa dela, mas eles trabalham para assegurar a administração dos auxílios que são, apesar de tudo, limitados, e cujos critérios de concessão fazem com que muitas pessoas “necessitadas” não tenham acesso aos benefícios.
A gente apenas ajuda essas pessoas a conseguir nadar nesse mar de miséria, sem poder, de fato, socorrê-las e tirá-las de lá. A gente não tem força, nós somos apenas simples funcionários administrativos. Nós não temos as capacidades de um assistente social [...]. Nós podemos começar alguma coisa, mas não conseguimos terminar. (Frédéric Galopin)
Tem dias que ficamos um pouco desmoralizados [...]. Às vezes a gente quer ajudar, mas não tem o que fazer, não temos nada para lhes dar. A nível de legislação, não se pode fazer nada, nós estamos um pouco desamparados. (Frédérique Rouet)
Nós devemos perguntar o que deve ser perguntado e depois a gente passa para o próximo. É um pouco triste. [...] As pessoas pensam que a gente não tentou resolver os problemas delas. Que a gente não fez tudo o que podíamos para ajudá-las. É frustrante. (Julien Arthaud)
18Dois recursos são possíveis. Os agentes podem enviar tal miséria a outros: assistentes sociais, organizações de caridade e serviços especializados. Esta orientação é, de fato, útil, mas ela alimenta o estigma dos burocratas que “passam a batata quente” entre eles e que fazem com que os indivíduos “passeiem” de um guichê a outro.
19O outro recurso é o de um engajamento mais pessoal do agente, que acaba então saindo de seu papel burocrático: “Você percebe, de tempos em tempos, que você não pode fazer nada. Existe uma possibilidade, enquanto indivíduo, mas isso não tem nada a ver com a Caixa de Prestações Familiares”, constata Agnès Coubertin. Nas páginas que seguem nós analisaremos as condições deste engajamento pessoal.
20Se a constatação de uma degradação de sua posição é sobretudo feita após as transformações sociais do público, os fatores organizacionais como a crescente complexidade técnica do trabalho, o isolamento e o pouco reconhecimento recebido da hierarquia ou ainda a ausência de reais perspectivas de carreira conduz igualmente os agentes de atendimento a constatações desiludidas.
21“A maneira como o trabalho evolui é que é mais difícil. É preciso se lembrar de tudo, e nós atendentes somos cada vez menores em termos de número, tem uma restrição neste sentido, no número de funcionários, isso com certeza. Nos pedem muita coisa e muito mais coisas do que nos pediam há cinco anos e sem nos dar nenhuma compensação. Mas tudo isso é porque a evolução do trabalho acontece dessa forma”, resume Christine Duval. Colocados em uma situação de serem obrigados a controlar, de maneira direta e operacional, prestações que são mais numerosas (elas contabilizavam mais de vinte no momento desta pesquisa), baseadas em um arsenal complexo de regulamentações que não param de mudar, os atendentes consideram que o trabalho no guichê é cada vez mais difícil.
22Essa dificuldade é ainda mais acentuada pelo sentimento de uma perda de tecnicidade quando se muda de cargo, do cargo de técnico de liquidação de dossiês para o de agente de atendimento. A dificuldade também é aprofundada pelas reclamações constantes de que eles, os atendentes, não recebem as informações necessárias em termos de legislação. E toda esta complexidade do trabalho é vivida sem compensação, o que faz com que os atendentes reclamem da falta de reconhecimento dos seus esforços.
23“Nós damos o nosso máximo, não somos recompensados e estamos um pouco cansados disso. [...] A gente pede apenas um pouco de reconhecimento. É verdade que tem momentos que não conseguimos nem respirar” (Christine Duval). “Seria necessário rever um pouco as condições de trabalho e o salário do atendente. Não recebemos recompensas. Não há mais motivação, o que existe é desânimo” (Frédéric Galopin).
24Esse problema faz-se tão agudo que os titulares de um tal cargo não têm perspectivas de carreira. Como mencionado antes, a ideia de voltar ao trabalho no escritório não é, salvo exceção, o objetivo dos atendentes, estes dotados de uma relativa independência e que exercem um trabalho mais “vivo” do que o tratamento puro e simples de dossiês. Não existe verdadeiramente outra alternativa oferecida a eles.
25A perspectiva de um cargo de fiscal pode atrair alguns agentes; no entanto, a maioria deles desiste do cargo, seja porque falharam em consegui-lo seja por motivos, como eles dizem, de consciência pessoal. “Não, francamente, em termos de trabalho... rastrear mulheres sozinhas criando seus filhos! [...]. Isso não é o mais motivante para mim, não” (Julien Arthaud). Sobra, pois, a formação interna para a diretoria regularmente descrita como dificilmente compatível com um trabalho pesado, a fortiori para mulheres com filhos pequenos, e que é mais submetida a um limite de idade e que acaba não assegurando a obtenção de um cargo de responsabilidade dentro da CAF.
26Assim, os agentes exprimem em termos vagos eventuais possibilidades de mudança
(“Eu não me vejo fazendo isso até me aposentar”) e muitos deles acabaram se conformando e enxergando as suas situações profissionais, estas vividas desde uma idade precoce, com uma lucidez resignada: “Eu não tenho diploma, eu fui formada para o trabalho na Caixa, daqui a pouco eu completo vinte anos de carreira... não podemos alimentar falsas esperanças, né? Claro que eu gostaria de fazer outra coisa, mas o que exatamente... eu não sei [...]. Não pode se iludir”, constata, como tantos outros, Christine Duval.
Investimento pessoal e vocações sociais
27A exposição à miséria e as desilusões da carreira não causam apenas a autorretirada ou o distanciamento (do agente em relação ao trabalho); elas podem, de maneira inversa, fornecer condições para um investimento mais forte. Eis aqui, sem dúvida, um traço comum a numerosos pequenos funcionários, “mão esquerda do Estado”, que são ainda mais predispostos a uma alta dedicação porque a “mão direita pediu demissão” (Bourdieu 1993a: 222). E aqui é preciso adicionar os efeitos próprios da interação, esta que, organizando a confrontação direta, física, funciona de maneira a obstruir o engajamento pessoal.
28Outro fator que contribui para o engajamento pessoal dos agentes é a incerteza destes quanto a seu papel: eles precisam trabalhar para reinventá-lo. O estudo sob a direção de Jacques Ion e Michel Péroni (1997) analisa tais ligações entre incertezas do papel de um profissional e engajamento pessoal. Assim, a confrontação aos “excluídos” leva, no caso dos atendentes da CAF, à reafirmação de uma missão de ajuda social.
29Os atendentes são levados a dar de si mesmos. Essa autodoação é marcada, primeiramente, por um engajamento físico no trabalho. Aceitar a evidência da exposição – nos dois sentidos do termo – da pessoa física no atendimento não é tão natural quanto parece – e aqui, ao falarmos de atendimento físico, o diferenciamos bem do atendimento telefônico.
30Exercer a profissão de agente de atendimento significa ser observado constantemente no detalhe da sua aparência, da sua vestimenta, da sua voz e da sua maneira de falar ou ainda ser observado enquanto caminha, entre uma ida e outra a diferentes serviços para buscar um dossiê, copiar um documento, chamar o próximo “cliente”. Expor-se é, deste modo, se oferecer ao olhar dos outros; é talvez igualmente se expor à ameaça física que os outros representam.
31Se casos de agressão são exceção, isso não impede que o risco de sofrer agressões esteja sempre presente no espírito dos agentes de atendimento – e isto de maneira ainda mais forte quando se trata de atendentes que se sentem menos capazes de se impor pela força (como as mulheres) e que estão mais isolados, sem possibilidade de escapar do seu possível agressor (como nos atendimentos feitos nas filiais). Eles se expõem e são expostos ao olhar alheio de forma frontal e direta, e o fazem mesmo quando a sua presença física no guichê pode gerar neles mesmos um desconforto ou inquietude: como quando são expostos/se expõem a usuários deficientes físicos ou sujos, com mau cheiro, casos problemáticos, bêbados ou drogados, etc.
32Se doar ao atendimento é, pois, primeiramente aceitar a perda da proteção confortável do trabalho rotineiro e coletivo nos escritórios, trabalho este que é fisicamente separado dos beneficiários. Autodoar-se é igualmente doar o seu tempo. Nos serviços, os horários moduláveis são generalizados e permitem intercalar a organização do tempo de trabalho com atividades e empecilhos exteriores, especificamente familiares – metade da jornada diária de trabalho livre, finais de semana prolongados.
33Já os atendentes devem estar “sempre disponíveis”, “sempre a postos”. O ritmo de trabalho é imposto pelos horários de abertura da Caixa; eles não podem se permitir antecipar a folga do fim de semana – o que é por vezes dificilmente vivido quando eles veem a agência vazia às 15h de uma sexta-feira – e encontram-se praticamente sozinhos na Caixa em casos de “ponte de feriado”. “Não pode olhar as horas, de jeito nenhum [...]. É uma coisa que é preciso... é preciso dar um pouco do seu tempo. É o trabalho de atendente, é preciso agradar” (Lionel Picard).
34Assegurar uma “assistência técnica” além do estrito registro de documentos ao qual o atendente poderia se contentar é também uma outra maneira de se engajar pessoalmente no trabalho. E isso se vê de maneira particular quando os atendentes dão grande importância ao seu papel de pedagogos da relação administrativa.
35Vê-se também quando o agente compensa as insuficiências do “trabalho” do beneficiário, procurando ativamente os elementos que este não forneceu para tentar então resolver o seu problema. Doar-se ao atendimento consiste ainda em aconselhar fora do contexto institucional. Esses conselhos se fundam, de fato, em convicções e experiências pessoais.
36Desta maneira, eles constituem igualmente uma forma para o agente de se autodoar, de expor e de oferecer coisas que lhe são próprias e que ultrapassam a definição burocrática do trabalho.
Regularmente você é levado a exercer um papel que ultrapassa bastante o papel que se poderia esperar de um agente de atendimento de uma Caixa de Prestações Familiares...
[Eu menciono um exemplo de uma situação observada durante um dia de trabalho.]
- Não é a CAF, mas eu falo para mim mesmo que é o meu trabalho, na medida em que as pessoas estão completamente perdidas e que elas precisam ser tranquilizadas. Tem um cara que recebe o RMI, ele vem me ver. Ele achou um trabalho e me pergunta se ele deve aceitar [...]. Eu disse para ele: “Sim, aceite, porque a gente nunca sabe, o prefeito pode te tirar o RMI.” Se eu não tivesse dito isso, ele não teria aceitado o trabalho. Ele era um pouco descontado em seu RMI, com as taxas e tudo, e então o valor era igual ao de antes, mas agora ele está trabalhando. Eu expliquei para ele isso, e aí ele aceitou o trabalho. E isso o agrada muito. Eu acho que isso agrada. As pessoas já me trouxeram cuscuz, chocolate, e não só porque a gente as lembrou de tal e tal coisa, mas porque a gente sorriu, a gente falou algo bom para elas... Bom, quando tem muita gente tem que saber trabalhar rápido para não fazer os demais esperarem. Mas quando não tem ninguém, a gente pode escutar os que estão lá, se eles têm um problema com o filho ou com o aluguel, mesmo se a gente não pode fazer nada. Porque eu acho que hoje em dia as pessoas precisam falar. Porque elas saíram da frente da televisão, saíram da sua casa, do seu HLM [sigla em francês para moradia popular]... (Lionel Picard)
37Por fim, o investimento pessoal do atendente consiste em antecipar as expectativas do beneficiário quanto à atenção que ele espera receber, ele e os seus problemas. Longe de se limitar ao tratamento modelo do dossiê, é preciso então mostrar uma “capacidade de escuta” e de uma “abertura ao diálogo” que não devem somente permitir a empatia minimamente necessária para o bom desenrolar da relação, mas ainda que são necessárias à dimensão de ajuda psicológica às pessoas em situação difícil, dimensão que é tão reivindicada por diversos agentes.
O que as pessoas esperam vindo aqui? Bom... primeiro que a gente as escute, escute os seus problemas, e às vezes o simples fato de falar lhes alivia. Elas falaram com alguém que as escutava, que presta atenção no que elas dizem. (Christine Duval)
38Esses dois últimos pontos o sugerem: as dificuldades das pessoas atendidas no guichê podem, paradoxalmente, levar a uma revalorização do papel do atendente. Essas dificuldades permitem, de fato, aos agentes se autoconvencerem de sua própria utilidade social e colocar à distância a imagem socialmente desvalorizada do “burocrata” inútil e preservado do mundo. Uma identidade profissional e uma relação ao cargo valorizadas, tornam-se assim possíveis por meio de uma “inversão do estigma” – inversão que é bastante observada em outros trabalhos de serviço pouco admirados, como o de assistente de cuidados médico-hospitalares estudado por Anne-Marie Arborio (1996: 87-106).
39Estar em contato com desempregados recebendo as últimas prestações do auxílio-desemprego, com beneficiários do RMI ou ainda com pessoas sem domicílio não é mais, portanto, dilacerador à medida que o nível social do público diminui; ao contrário, atendê-los é transformar um trabalho administrativo rotineiro em engajamento na “luta contra a exclusão”.
40Ter que se adaptar a este novo tipo de “clientela” não é abandonar os conhecimentos específicos do trabalho de técnico, mas significa muito mais adicionar a tais conhecimentos novas competências relacionais e uma habilidade social que permitem ajudar aqueles que vêm até o guichê pedir ajuda e, ao mesmo tempo, exercer mais do que nunca um certo poder sobre eles. As transformações do público puderam, dessa forma, trazer novamente à tona o engajamento no trabalho de atendente. “Antes, eu não sei se, a nível de relação, eu tinha consciência da utilidade, da ajuda que a gente pode dar aos beneficiários”, afirma Agnès Coubertin.
[O empobrecimento da clientela] isso não me desagrada, no sentido que eu gosto bastante de ajudar. Eu vou até o fim da minha missão. Se eu vejo que tem um problema no dossiê, um dossiê que não consegue ser tratado pelos serviços, eu vou pegá-lo pessoalmente, vou pessoalmente até a pessoa que está a tratar tal dossiê e dizer: “Precisamos regularizar isso daqui.” Ela me promete um pagamento para tal data e aí eu acompanho o processo para ver se o pagamento foi mesmo feito. Se sim, ótimo, senão eu vou pedir para ela refazer. Eventualmente, se eu vejo que a família vive apenas com esse benefício, vejo se não podemos lhes fazer um cheque, avançar algo para a família, alguma coisa para ajudar ao máximo. (Geneviève Donné)
41Mais do que uma revalorização, a transformação do público conduz a uma redefinição do papel de atendente, em um sentido mais “social”. Como coloca Christine Duval, “agora muitas pessoas pensam que nós somos assistentes sociais”. E, de fato, mesmo se eles não têm nem a formação nem os meios para tal – e muito menos a “vocação”, em todos os sentidos do termo –, os atendentes, ou ao menos alguns entre eles, se forjaram práticas e princípios que lhes aproximam dos assistentes sociais e que lhes afastam do modelo estritamente burocrático.
Se alguém chega aqui e me diz: “Eu não tenho nada para dar para os meus filhos comerem”, é fácil, eu dou o endereço do Restaurant du cœur [associação francesa de cunho social que oferece refeições gratuitas ou a baixo custo], do Exército da Salvação. [...] Eu tento sempre mostrar que é possível sair de situações difíceis, reagir. Com o pouco que eu posso fazer, eu mostro que a gente compreende as pessoas, que a gente entende que eles estão na merda. Eu vi um cara que era proprietário do maior café de Béville, e que acabou sem nada e recebendo o RMI. Então, agora ele critica todo o mundo, o governo, claro. Eu digo para ele: “O senhor sabe, o senhor pode fazer isso, ter direito a tal coisa”, e aí o cara volta a ter o espírito de luta e diz: “Eu não vou me deixar abater” [...]. É preciso tentar, com os nossos poucos recursos e capacidades, fazer as pessoas reagirem. [...] Eu acho que a gente tem um papel, precisamos falar que é preciso avançar, lutar, porque tem pessoas que é preciso pegar pela mão para fazer tudo. Tem famílias que são assim, se a gente não vai com elas, elas não vão. Mas a gente vive em um mundo onde elas precisam aprender a se virar sozinhas. [...] É preciso reconfortar essas pessoas que estão na merda, de verdade. E também considerá-las, antes de tudo, como ser humano. É isso. Não pode sentir pena de mais da má sorte deles, é preciso fazê-los avançar. (Lionel Picard)
Eu não concebo a função de atendente como sendo simplesmente administrativa. O senhor sabe, a gente recebe bastante gente aqui que recebe a renda mínima de inserção. A inserção é achar um trabalho a qualquer preço. [...] Eu creio que a inserção é ter a possibilidade de olhar para a cara de alguém e poder dialogar. E pelo fato de que a gente é um órgão que paga [auxílios], [...] eu acho que é um pouco o nosso papel tentar tirar essas pessoas da marginalidade, de lhes dar de novo um pouco de confiança em si mesmas. [...] A gente tenta ver o que pode ser feito, aconselhar, contactar a assistência social do setor, as associações caritativas. Para isso é preciso ter tempo. Eu creio que isso faz parte do nosso papel. (Agnès Coubertin)
Notes de bas de page
1 O livro citado de Michel Dobry também pode ser encontrado em português, como por exemplo: Sociologia das Crises Políticas (São Paulo: UNESP, 2014).
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
A Europa é o Cacém
Mobilidades, Género e Sexualidade nos Deslocamentos de Jovens Brasileiros para Portugal
Paula Togni
2022
Mouraria, Retalhos de Um Imaginário: Significados Urbanos de Um Bairro de Lisboa
Marluci Menezes
2023