Capítulo 7 – As pessoas no guichê
p. 213-228
Texte intégral
1A análise das características organizacionais do cargo de atendente e das etapas da carreira de seus titulares nos permitiu reconstituir as condições que, longe do formalismo impessoal geralmente atribuído às funções burocráticas, mantêm os indivíduos engajados na definição de seus papéis.
2É preciso agora atentar à maneira pela qual ocorre este engajamento. Nós o faremos, antes de tudo, mostrando que as trajetórias e disposições individuais dos atendentes orientam não somente a relação mantida com o trabalho, mas também a construção do papel dos atendentes.
3Em seguida, nós o faremos mostrando como, nas suas práticas profissionais, os atendentes são conduzidos a exercer uma sociologia espontânea e a julgar sobre a moralidade de um indivíduo, sobre a normalidade dos casos, etc. Tais julgamentos consistem muito mais em uma ativação de esquemas interiorizados ao longo da experiência pessoal do atendente do que em uma aplicação de modelos institucionais.
Disposições pessoais, relação com o cargo e definição do papel de atendente
4Os atendentes “têm personalidade”: esse é um dos sinais distintivos que eles reivindicam. As histórias das modalidades de titulação para o trabalho no guichê, as “motivações” (mesmo que negativas) reconstruídas pelos atendentes ao longo das entrevistas e as suas maneiras de ser dentro da instituição dão crédito à tese de empregados “diferentes dos demais”. Como diz a responsável do atendimento à Dombourg: “É uma questão de temperamento: não é qualquer um que faz esse trabalho” (Agnès Courbetin).
5Não há um perfil único de atendente; e se eles reivindicam coletivamente uma marca distintiva em relação aos outros empregados dos escritórios, os agentes de atendimento ressaltam igualmente as diferenças que os separam uns dos outros. “Todos têm ‘a sua personalidade’. Cada um tem uma personalidade e o resultado disso é que cada um vai impor a sua personalidade, de maneira mais ou menos forte dependendo da pessoa, da maneira como ela funciona”, explica Claude Ligeot. “Mas eu confesso que eu tenho uma personalidade forte, eu a imponho logo. E você tem também pessoas frágeis que acabam sendo mais facilmente esmagadas.” Essas diferenças são perceptíveis nas atitudes e nas maneiras de trabalhar, como indicam Sylvie Véra e Marie Annaud quando comparam os atendentes que trabalham na sede da CAF de Béville.
Nós somos três pessoas atendendo e cada uma atende de maneira diferente. Eu, por exemplo, não deixo que as pessoas me chamem pelo nome, só pelo sobrenome. É verdade, por exemplo, que quando é um jovem que me chama pelo primeiro nome ou por ‘você’ ao invés de senhora, eu respondo logo ‘Atenção!’ [...]. Para os outros isso não é motivo de incômodo. Todo mundo sabe como eu funciono e pronto. O Lionel sabe o que eu penso. Para mim, ele se faz próximo demais das pessoas. Ele chama os jovens pelo primeiro nome, ele vai um pouco longe demais. Isso não me agrada nem um pouco. Porque depois não tem mais barreira, é amigo-amigo, a gente faz o que a gente quiser, a gente se permite coisas e isso eu não aceito, não. Marie, ela é a minha amiga e com ela é outra coisa. Ela tem uma maneira diferente de proceder, ela é como eu, ela não deixa que os outros a façam de boba, não, mas ela tem um jeito diferente do meu. (Sylvie Véra)
Nós somos diferentes. A Sylvie é muito mais nervosa, ela sacode mais as pessoas. Não é um método ruim, tem gente que gosta bastante disso, já outros não e aí, às vezes, o negócio esquenta. Ela explica de maneira mais técnica, mas aí as pessoas não entendem muito bem, não. Ela os faz participarem bastante, preencher os formulários. Mas se as pessoas começam a se contradizer, aí o caldo entorna. Lionel é muito social. Quando uma pessoa vem e que ela não tem moradia, isso não nos diz respeito normalmente, mas ele não, ele vai, pega o telefone, liga para a prefeitura, para a assistente social para achar uma moradia. A nível de vocabulário, ele se coloca muito mais próximo das pessoas. Ele vai fazer de tudo para ajudar. A sua maneira de atender é mais simples do que a de Sylvie. Eu acho que eu estou um pouco entre os dois na forma de ser. Eu sou bem paciente. (Marie Annaud)
6No entanto, há mais coisas no guichê do que idiossincrasias dos atendentes e pequenas diferenças nas práticas de uns e de outros. E nós o mostraremos de três formas: primeiro, a partir das disposições pessoais dos agentes que impactam a relação destes com o cargo; segundo, a partir das diferenças que os separam tanto em temos de competência que eles podem mobilizar no trabalho quanto na propensão que cada um tem de mobilizar tais competências. Tais diferenças se dão de acordo com as trajetórias individuais de cada agente. E, por fim, nós mostraremos como os três, trajetórias individuais, relação com o cargo e competências pessoais, combinam-se na definição do papel de atendente.
7Entre as inúmeras disposições anteriormente adquiridas e que podem ser consumadas no trabalho de atendimento, duas despontam mais especificamente neste tipo de cargo. Primeiramente, certas formas de altruísmo são reivindicadas pelos agentes – e aqui nada autoriza a priori limitar tais formas de altruísmo ao único domínio das racionalizações interessadas. Tais formas podem efetivamente ser investidas no guichê. O caso mais flagrante se mostra na fala de Agnès Coubertin.
Eu só consigo viver estando próxima das pessoas. Eu tenho essa necessidade de me exteriorizar. Eu acho que se eu me fechasse muito em mim mesma, eu cairia rápido em depressão. Porque nós temos sempre boas razões para deprimir. Isso deve ser temperamento ou filosofia de vida. Crenças que te ajudam. Mas é alguma coisa que eu sinto, eu não sei muito como explicar.
8Além da valorização da relação com o outro, uma outra série de disposições corresponde à valorização da relação com o corpo. Sem fazer de tal valorização um princípio explicativo, tudo acontece, de fato, como se certas disposições – como a atenção à aparência, a valorização do contato, quiçá a força física, ou ainda aquilo que se chama habitualmente de um “temperamento expansivo” – encontraram-se temporariamente bloqueadas antes de poderem se expressar mais livremente no trabalho no guichê.
9Nós o vemos de maneira particular nas vocações contrariadas, as quais testemunham, no geral, de uma forte valorização do corpo ou da aparência física – mesmo que tais vocações possam ser muito diferentes umas das outras. É o que mostram os casos de Agnès Coubertin, Sylvie Véra e Claudine Truchot, cada qual com suas especificidades, mas sendo, porém, similares no quesito valorização do corpo ou da aparência: Agnès Coubertin, por exemplo, diz ser uma esportista desiludida, Sylvie Véra quis ser esteticista e Claudine Truchot lamenta, “se eu tivesse tido escolha, não seria isso o que eu faria. Eu queria ter sido aeromoça”.
10Já Claude Ligeot evoca com uma certa nostalgia a sua primeira experiência profissional em um salão de beleza. Além disso, ela conta que foi educada pelos avós que gerenciavam um hotel-bar-restaurante e que, aos 12 anos, ela estava acostumada a colocar os clientes bêbados para fora do estabelecimento: “Eu já era toda dentro das regras”. A maneira pela qual ela evoca a sua carreira, indo do trabalho em escritórios até o trabalho no guichê da sede e depois no da filial, tende a mostrar uma maior afinidade entre o trabalho de atendente e o seu “temperamento”.
Eu era prisioneira, eu precisava toda hora mudar, toda hora me movimentar. Quando eu virei atendente no pré-atendimento isso me deu vontade de me movimentar ainda mais. Como técnica [na CAF], eu fui notada rapidamente pelos responsáveis [...]. Uma informação que nós precisávamos para um dossiê, por exemplo do serviço social, antes a gente não se movimentava, ficámos lá parados, no nosso lugar, escrevíamos um bilhete. E esperávamos a resposta vir do serviço “mensagens entre serviços”, como era chamado. Mas comigo, eu pegava o dossiê e ia na mesma hora até o serviço e voltava com a informação que eu precisava e pronto, finalizava o dossiê. Eu estava sempre um pouco aérea, mas sempre com os dossiês atualizados. E foi assim que se percebeu que eu não podia ficar sentada por muito tempo no guichê. É por isso que eu virei atendente. E também o contato com o público... de toda maneira, antes eu tinha escolhido ser cabeleireira. Eu precisava do contato humano. Aqui, é completamente diferente, mas pelo menos não ficamos sentados atrás de um computador constantemente.
11O caso do antigo marinheiro Lionel Picard é o caso no qual a relação do atendente com o corpo, anteriormente engajado na vocação inicial, é a mais explicitamente investida no atual trabalho, ou seja, no trabalho feito no guichê de atendimento. Picard, que foi marinheiro nos Commandos (forças especiais da Marinha francesa) – como inclusive ele gosta de relembrar – utiliza em demasia o seu capital de força física nas relações com os beneficiários. Ao longo da entrevista, ele diz, não sem satisfação, como um dia ele “escorraçou” alguns usuários da sala de espera porque eles estavam com garrafas de vinho e facas amedrontando os demais. “Me disseram que eu exagerei, que eu fui duro demais, mas, bom, tinha uma mulher grávida e ela não tinha nem coragem de ir embora.”
12Essas disposições pessoais se conjugam com certas competências individuais na “personalização” deste papel burocrático. Os atendentes são de fato não somente dotados de competências pessoais desiguais, mas também mais dispostos – e de forma desigual entre eles – a mobilizar tais competências em seu trabalho.
13Diante de um beneficiário que pede conselho para tomar uma decisão em relação à vida pessoal (aceitar um trabalho, deixar o marido, alugar ou comprar um apartamento) – o que está longe de ser exceção –, cada agente é, de acordo com a sua experiência e o seu conhecimento do mercado de trabalho, da vida de casal e dos problemas de moradia, dotado de competências desiguais. Thierry Courtecuisse pode, por exemplo, aconselhar uma futura mãe em dificuldade a comprar roupas de bebê de segunda mão porque ele mesmo acabou de fazê-lo.1 Lionel Picard, quanto a ele, mobiliza a sua experiência na área de habitação.
Nós aconselhamos as pessoas, aconselhar é comigo mesmo. Eu vi pessoas se engajarem em taxas de APL (auxílio aluguel) exorbitantes, mas aí, quando eles entram na casa própria eles recebem apenas ¼ dessa taxa. Por seis anos eles ficam endividados até o pescoço. As pessoas usam praticamente todo o salário delas para pagar a casa. Eles não conseguem viver desse jeito. Então, é preciso dizer: “Atenção, vá a mais de um banco, converse com diversos gerentes.” Eu, por experiência própria, fui a mais de vinte e um bancos quando eu quis comprar a minha casa, e é verdade que o que era simples e barato acaba custando o dobro. E as pessoas acabam muito endividadas por besteira como essa. Para o quesito construção, eu falo bem assim: “Atenção, vocês têm água e luz para pagar.”
14Como diz Josiane Delpol: “Diante das pessoas no atendimento, nós respondemos de acordo com o nosso temperamento, de acordo com a idade. Uma jovem do estilo que o senhor viu, ela tem crianças pequenas, então ela dará mais conselhos de cuidados com bebês. Mas a gente que tem mais anos de experiência, aí vai ser mais para um caso de divórcio ou de educação de crianças já grandes. [...] Nós temos cada um o seu temperamento, nós não podemos nos comportar da mesma maneira. Cada um tem as suas vivências.”
15As “vivências” citadas por Josiane Delpol pesam sobre a profissão de atendente, trazendo para esta certas disposições e também certas competências individuais. Essas “vivências” afetam ao mesmo tempo a relação com o cargo (aquilo que se investe nele, aquilo que se espera dele, etc.) e a definição do papel de atendente (a maneira de se conceber os objetivos de tal papel, seus princípios, suas práticas legítimas, etc.).
16Neste caso, os dois – relação com o cargo e definição do papel – se reforçam mutualmente, porque, nas funções de contato com o público, a relação com o cargo orienta a construção do papel dos agentes. O trabalho de Lionel Chaty (1993) mostra em detalhe esta orientação, analisando o caso específico dos escritórios dos Correios no tocante às questões ligadas à relação com o cargo.
17Deste modo, compreende-se que, de acordo com os agentes e seus itinerários respectivos, uma importância sensivelmente diferente seja dada aos diversos elementos constitutivos de seu trabalho. Um primeiro indício disto está nas diferentes analogias que são mobilizadas pelos atendentes para descrever a profissão: banqueiro, policial, padre (no sentido de uma pessoa que ouve confissões), psicanalista, confidente, assistente social, conselheiro matrimonial ou ainda psicólogo...
18Um outro indício aparece nas diferentes prioridades que os atendentes se dão em relação ao trabalho. Citando apenas duas entre as principais prioridades possíveis, o agente de atendimento pode considerar ou não como prioritárias para o exercício de seu papel a busca sistemática de direitos ou a detecção de fraudes.
19O estudo sistemático dos direitos dos usuários é uma das dimensões mais citadas e de forma unânime para definir o trabalho de atendente. Lionel Picard o ressalta bem ao explicar o objetivo que ele mesmo se dá quando recebe um beneficiário: “Dar a ele os seus direitos. Para mim, não têm um máximo nem um mínimo. É para dar o que lhe é de direito, dar os direitos que são dele.”
20Se tal objetivo é sistematicamente afirmado – a análise dos direitos do público –, ele, que está igualmente alinhado com o objetivo da instituição, está, no entanto, longe de ser, na prática das relações, sistematicamente buscado e sistematicamente alcançado. Seguir tal objetivo vai depender fortemente do tipo e do nível de engajamento do atendente. A crença na eficácia social de seu trabalho, a adesão aos princípios que fundam as diversas prestações, a possibilidade ou não de ultrapassar o horário de trabalho; estes são alguns dos fatores que condicionam a busca por novos direitos. Deste modo, o elemento constitutivo da definição ideal do papel de agente está sujeito a volatilizações ligadas às disposições do agente e à relação que ele mantém com o seu trabalho.
21A detecção de fraudes e de falsas declarações é um outro elemento importante – e que é alvo de apreciações variáveis em função das disposições pessoais do agente. Quase todos os agentes se dizem sensíveis às fraudes. São relativamente frequentes os casos que fazem com que se acione um inquérito logo após uma interação durante a qual o agente duvidou da veracidade das declarações do beneficiário. Tais casos frequentes de dúvida mostram que a função de controle é parte integrante do trabalho de atendimento.
22E por fim, mas não menos importante, o lugar e o sentido de tal função de controle variam ambos de acordo com os antecedentes sociais do agente e a sua relação com o cargo, relação esta que faz com que o atendente atualize, no exercício de seu trabalho, diferentes concepções de justiça social.
23Debrucemo-nos sobre alguns exemplos: Cécile Peugeon vê o atendimento apenas como uma experiência provisória que a permitiria “ajudar as pessoas” – inclusive, ela acabou deixando o seu trabalho de atendente um pouco depois do fim desta pesquisa. “A minha motivação é ajudar as pessoas, dar apoio, ajudar nos seus processos administrativos. Os controles, isso aí não é do meu feitio [...]. Não é esse tipo de contato com as pessoas que eu buscava.” Carole Fleury está no atendimento apenas como agente de reforço; as outras dimensões de seu trabalho permitem que ela saiba da importância do controle burocrático que já é exercido por meio dos dossiês e dos documentos requisitados.
24Do mais, a sua posição de exterioridade permite que Carole veja o atendimento essencialmente sob o ângulo de uma missão de assistência e de ajuda às pessoas. Consequentemente, compreende-se que ela possa enxergar a detecção de fraudes como um aspecto anexo, quiçá negligenciável, do trabalho no guichê.
Quando eu atendo alguém, eu nunca penso “atenção, ele pode estar te enganando, fraudando”. Eu não fico pensando nisso. É difícil identificar uma fraude. Isso não entra muito no... Bom, é verdade que se um auxílio de pai/mãe solteiro é concedido e se a pessoa vem com um senhor aqui, a gente vai pensar “olha só...”, e então vamos tentar questioná-la para saber quem é esse senhor com ela [...]. Não, as fraudes, eu não penso muito nisso não [...]. Mas a gente pede bastante documento, bastante comprovante. Nossa, o que é pedido para as pessoas não está escrito! Então, tudo isso que é pedido limita a fraude. Quando um caso não me parece claro, eu peço comprovantes. Eu falo “o senhor me traga então tal prova...”.
25Christine Duval, com muito mais tempo e muito mais fortemente investida no trabalho de atendente, o qual ela exerce há sete anos em uma importante filial da CAF de Béville, não vê a detecção de fraudes como uma das prioridades ideais de seu papel: “A gente está aqui para ajudá-los, primeiramente [...]. E também, nós não podemos suspeitar de todo o mundo.” Ela se recusa, no entanto, de ser enganada por mentiras que ela possa detectar: “Nós estamos aqui em primeiro lugar para acreditar nas pessoas, mas até um certo ponto [...]. Não pode se deixar levar também, não.”
26Para resolver esse tipo de problema, ela reativa os princípios da divisão do trabalho administrativo, deixando a outras pessoas, as quais têm por incumbência de trabalho tal controle – os fiscais – os cuidados de detectar e resolver os casos litigiosos.
É verdade que eles (os beneficiários) nos falam o que eles querem [...]. É verdade também que quando eu tenho alguma dúvida, eu ligo às vezes para os assistentes sociais para saber o que eles acham [...]. E também é da responsabilidade dos fiscais ver se há fraude ou não. A nós cabe fazer o nosso trabalho. Precisa tentar ser justo, estudar os direitos e não pode ser muito rígido, não. É preciso dizer como as coisas são, apenas isso, simplesmente isso: nós estamos aqui para isso.
27Agnès Coubertin, quanto a ela, tem vinte anos de experiência do guichê. Se para ela a predominância da dimensão de ajuda à pessoa é igualmente importante, a sua posição de responsável de atendimento a conduz, ao mesmo tempo, a se referir de maneira mais geral aos princípios de justiça social da instituição e a ver nas fraudes um elemento que contraria este princípio: a trapaça penaliza as pessoas honestas. Agnès Coubertin também está dividida entre uma recusa em dar um tom muito coercitivo ao atendimento e a preocupação de preservar o ideal de justiça que funda a instituição.
Não se trata de delação, mas é também o nosso papel tentar identificar as fraudes. Bom... claro, sem que isso seja uma ideia fixa. Não é todos os dias. Mas ficar atenta se as pessoas são mesmo solteiras ou se as crianças estão mesmo na França [...]. Mas também não é para ficar obcecado pela fraude.
28Mas nem todos se incomodam com as buscas por fraudes. Sylvie Véra vê na detecção de fraudes um elemento que apimenta uma atividade geralmente mais rotineira: “Eu não escondo que eu gosto bastante de descobrir algo que está errado.” Thierry Courtecuisse, por exemplo, tornou-se atendente depois de não ter conseguido o trabalho de fiscal. Ele espera conseguir o cargo um dia e, enquanto espera, se empenha em identificar eventuais trapaças. Lionel Picard também não titubeia, ele coloca o respeito à norma antes de qualquer coisa. A denunciação de toda forma de desvio da norma, a preocupação em fazer a ordem e a lei serem respeitadas e, por conseguinte, a atenção dada à fraude, assim como a implementação de uma verdadeira técnica para detectá-la, são evidenciadas como disposições, as quais Lionel Picard resume nas seguintes palavras: “Eu pessoalmente tenho um pouco alma de policial [...]. A fraude, é preciso ir atrás dela.”
“O atendimento é uma questão de instinto”
29As disposições pessoais dos agentes não se expressam somente nas reflexões tidas durantes as entrevistas e as conversas informais entre colegas. Elas impactam igualmente as modalidades concretas da prática profissional. O olhar da sociologia espontânea: tal é o principal recurso que permite que os agentes de atendimento se ajustem instantaneamente e “naturalmente” ao público. Questionados sobre a maneira como eles se adaptam ao público, eles normalmente encontram dificuldades para responder, pois tais recursos em matéria de conhecimento do social são tão profundamente incorporados, quiçá – como para os estereótipos raciais – indizíveis.
30Ora, eis aqui um elemento crucial do papel da burocracia de “base” na produção das políticas. Se seguirmos Michael Lipsky (1980), a mobilização dos estereótipos e preconceitos utilizados, entre outros, pelos street-level burocrats para economizar energia e reduzir o estresse é, de fato, o fundamento das diferenças que separam os objetivos iniciais e oficiais das políticas públicas de sua produção concreta feita pela administração.
31Julien Arthaud o nota: “Com um pouco mais de tempo de carreira, a gente coloca o engraçadinho no seu devido lugar. Em dois minutos, eu coloco o engraçadinho no lugar dele, viu? É o comportamento dele, é...” Frédéric Galopin baseia-se no código de vestimenta: “A gente vê alguém que está na miséria e alguém que é rico pela maneira que ele se apresenta. A roupa não é tudo, mas quando alguém chega e está imundo [a gente repara]!” Christine Duval e Marie Annaud revelam ainda uma bateria de indicadores sociais mobilizados em situação:
De toda a maneira, a gente vê muito rápido se uma pessoa é de um meio social abastado ou não. Tem beneficiários que não moram longe daqui, são esposas de engenheiros, etc., a gente vê na hora a difer... de toda a maneira, elas nem precisam abrir a boca. A gente vê a diferença. Isso porque estamos acostumados com o público: você vê a pessoa na hora, vê em qual mundo ela vive, qual o nível social dela e você percebe também como deve falar com ela. Tem pessoas que você precisa explicar tudo, é preciso escrever tudo, com outros você fala uma vez e pronto, está resolvido.
- A senhora faz como para vê-los, para saber como é preciso falar com eles?
- Isso se vê na hora! [Risos.] A gente pode falar de intuição. Quando se está habituado ao público, a gente consegue identificar. Você vê alguém que chega bem vestido, as crianças, a maneira como eles se comportam, a maneira com que ela fala com as crianças, o vocabulário utilizado, você vê na hora. Quando são pessoas estrangeiras, primeiro são pessoas que têm pouco do linguajar francês, e é preciso fazer atenção aquilo que nós vamos falar e como vamos explicar. De maneira geral, a gente não se engana nunca. É o hábito. A gente acaba se habituando, é um habituar-se ao público. (Christine Duval)
Não é que a gente testa as pessoas, mas quando a gente chama uma pessoa no guichê e que a gente vê a sua maneira de ser, antes que se fale qualquer coisa, a gente vê o que se deve esperar de tal pessoa. Eu me preparo antes, porque de acordo com a maneira da pessoa de chegar no guichê, a gente pensa “Ela está com uma cara nervosa”, “Ela parece calma”. É fazer um pouco da psicologia, a gente aprende a se adaptar às pessoas. No olhar, na maneira de caminhar, a gente vê quando alguém está nervoso ou calmo, sua maneira de entrar na box, como ele pega os seus documentos... Tem uns que jogam os documentos no guichê e aí a gente vê na hora. (Marie Annaud)
32Menos intelectual do que a “psicologia” de Marie Annaud, mais forte do que a simples “intuição”, mais profundamente ancorado do que o “hábito”, é “o instinto” que guiará o ajuste da conduta do atendente às características do visitante. Sistematicamente operante, esse ajuste se aplicará de maneira bem particular quando uma antecipação de comportamentos agressivos se fizer necessária.
“Como é a sua relação com os beneficiários? Você atende regularmente pessoas com comportamento agressivo?
- Tudo depende da pessoa que está sendo atendida. Com algumas, o atendimento é muito bom. Já com outras...
- E como você faz para saber se a pessoa é agressiva ou não? Porque quando alguém entra na sua box teoricamente não dá para saber se... [Ele me interrompe categoricamente.]
- É o instinto [...]. Eu quase nunca me enganei até agora! O tipo chega aqui e ele já chega resmungando para a atendente do pré-atendimento, e então eu penso, ‘bom esse daí já é...’. E se ele tem que esperar um pouco para ser atendido, então a gente vê que ele está pegando fogo por dentro. É um grande defeito esse que eu tenho. Quando eu vou em um lugar, eu fotografo tudo. Na sala, eu já sei quem vai se irritar e quem não vai [...]. Os que vão continuar irados mesmo depois de serem atendidos, a gente vê, a gente sente. Eu tenho um faro bom, eu sinto mesmo as coisas.”
Durante uma conversa com Lionel após uma interação com uma beneficiária que se anunciava difícil desde o início, o atendente tenta me mostrar o bom uso do seu “instinto”. “Eu vi na hora. É intuição isso daí, está no gene. Eu percebi na hora que não era para eu me irritar. Ela já chegou irada me dizendo que deixavam os estrangeiros receberem três vezes mais benefícios do que os outros. Eu não disse nada. Era melhor concordar com ela. E depois ela acabou se acalmando.” (Lionel Picard)
33O “instinto” é também a tipificação altiva de indivíduos que portam estigmas de maneira mais evidente – a palavra estigma refere-se aqui ao significado dado por Goffman (1975 [1963])2 para este termo. Tais indivíduos são, neste caso, os imigrantes. Ao longo de numerosas interações observadas, nunca um estereótipo racial foi manifestadamente ativado. Mas isso não impede que tais estereótipos possam estar presentes. Às vezes, eles se expressam inclusive durante as entrevistas e, ainda mais, no decorrer de uma conversa informal.
34Declarações tais como “a gente pode esperar tudo dos africanos”, ou ainda “nunca temos problemas com os asiáticos”, são de fato recorrentes. O recurso a critérios étnicos é por vezes explícito – ainda que raro –, como quando Jocelyne Fabre, após uma interação com um visitante turco suspeito de fraude, me diz: “Eu desconfio dos turcos: eles são raposas, eles são os mais espertos.”
35Um dia antes, enquanto conversávamos sobre os resultados recentes das eleições municipais e em particular dos importantes resultados do Front National (partido francês de extrema-direita) na região, Jocelyne comenta: “Mas até que é verdade que nós estamos sendo invadidos por estrangeiros aqui.”3 Um pouco depois, após uma interação com um beneficiário cuja fraude fora confirmada, ela solta a seguinte frase, em um tom de brincadeira: “Mas esse aqui que é um bom francês!”
36As declarações de Claude Ligeot, o qual aborda tal questão de maneira espontânea, testemunham, de igual modo, a ambiguidade entre a propensão à generalização baseada em critérios étnicos (“Essas pessoas não largam o osso”) e uma discriminação não somente negada como tal, mas ainda mais ausente – visivelmente ausente, em todo o caso – no tratamento dos beneficiários.
É preciso ser prudente nas nossas reações. É claro que não se pode ter um temperamento racista, o senhor não acha? É perigoso. [Risos] Mas a gente não pensa muito nesse assunto. Mesmo se essas pessoas aí não largam o osso, mesmo se elas queiram os seus direitos, direitos estes além dos que são previstos na lei. Elas não desistem, não, mas a gente se acostuma com isso.
37A essas apreciações “instintivas” das diferenças sociais e das diferenças de comportamento correspondem os princípios de julgamento, os quais são de igual modo individualmente constituídos. Assim, as prescrições morais abordadas anteriormente4 estão ligadas a critérios outros que os das normas formalizadas nas categorias institucionais. Essas prescrições são, de fato, fundadas em sistemas de temores e aspirações, de repulsões e atrações, etc. E tais prescrições, mesmo que não sejam específicas aos indivíduos que as carregam, não deixam, porém, de trazer os resultados das histórias individuais para dentro da prática burocrática.
Notes de bas de page
1 Véribel, 19/06/1995-19.
2 Para consultar a versão em português da obra citada de Erving Goffman, referir-se, por exemplo, a Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada (Rio de Janeiro: LTC, 1981), 4.ª edição.
3 Véribel, 13/06/1995.
4 Consultar parte I, capítulo 4, “Trocas administrativas e trocas normativas”.
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