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Os dois corpos do atendente
p. 173-178
Texte intégral
1Em um primeiro período histórico, o Estado – em sua fase embrionária – incarnou-se na própria pessoa do rei, o qual é conduzido a viver em dois corpos: o seu próprio e o da pessoa que carrega em si o Estado em fase de gestação (Kantorowicz 1995: 209 em diante).1
2Tendo atingido um nível de desenvolvimento até agora inédito, o Estado incarna-se atualmente em regras abstratas e em instituições. Mas ele também sempre se incarna em indivíduos concretos: homens e mulheres políticas, funcionários e funcionárias de alto escalão que assumem “a responsabilidade” do Estado e que, no sentido forte da palavra, representam o Estado; mas tal realidade é também o caso dos street-level burocrats ou os “pequenos burocratas” (Lipsky 1980; Hoggart 1970: 117-120) que são considerados pela maior parte da população como pontos privilegiados de contato com o Estado.
3Exemplos desta segunda categoria, os atendentes dos organismos sociais são de uma certa forma dotados de um corpo duplo, à maneira do monarca estudado por Ernest Kantorowicz. De um lado, para aqueles que lidam com esses agentes, estes são a encarnação do Estado tanto em suas práticas quanto na identidade que eles projetam.
4Simples titulares de um cargo definido longe da apreciação da população geral, eles são encarregados de aplicar de maneira standard as normas que se pretendem universais (Weber 1995: 290 em diante).2 Ao mesmo tempo que eles reduzem as situações que se apresentam a eles a um “caso” modelo, eles abdicam de suas próprias personalidades; ou, mais precisamente, eles são conduzidos a “cristalizar [sua] própria personalidade a partir de um modelo impessoal” (Merton 1997 [1953]: 195). E se atualmente eles não vestem atributos oficiais (uniformes, capacete ou distintivo) que identificam aqueles que o portam à função que eles simbolizam, os atendentes não deixam de usar objetos (siglas, jargão administrativo) que acabam por apagar a sua pessoa por meio de um pertencimento a um grupo institucional.
5Além disso, ao se despersonificarem, eles personificam de uma certa forma a instituição para a qual eles trabalham. Eles se unem à instituição, fazendo de dois, um; instituição para a qual tais agentes são apenas um entre tantos avatares. Não são eles que falam, mas a instituição que, por meio deles, faz prescrições, explicações e justificativas aos usuários. Não é a eles que os beneficiários se dirigem, mas sim à instituição. É a ela que se faz perguntas, fornece documentos, que se reclama ou que se faz confissões.
6Por outro lado, trata-se claramente de indivíduos concretos que fazem com que o cargo de atendente exista. Esta evidência não pode ser esquecida e, sobretudo, pelo fato de que são duas pessoas que se encontram fisicamente no guichê. Assim, toda uma série de elementos são investidos no cargo, elementos estes que não são oriundos da definição administrativa de tal cargo. Mais do que um funcionário, trata-se de uma mulher ou de um homem relativamente adulto e cujas características físicas são inevitavelmente e imediatamente engajadas na relação. O indivíduo que exerce o papel de burocrata porta ainda mais uma experiência pessoal e disposições socialmente constituídas pelo fato de que tais experiências e disposição aparecem inevitavelmente na confrontação com o público – de uma forma ou de outra.
7Neste caso, as características individuais do atendente podem ser ativadas de forma mais ou menos consciente pelo visitante, como quando o porte físico do atendente desencoraja um dado usuário a se dirigir a ele de maneira agressiva ou quando uma beneficiária utiliza táticas de sedução diante de tal atendente.
8Tais características são igualmente ativadas pelos próprios “pequenos burocratas”. E isto de forma amplamente inconsciente, como quando ele atualiza esquemas de percepção interiorizados anteriormente ou fora do exercício de suas atividades profissionais ou como quando ele exprime afeição, como emoção ou nervosismo; e isto ocorre de maneira mais explícita quando, por exemplo, certas competências pessoais adquiridas fora da instituição são mobilizadas no trabalho feito dentro da instituição. E sem mesmo falar dos casos de proximidade construída entre certos agentes e usuários fora do encontro administrativo, trata-se aqui de forma geral de um indivíduo concreto que fala e que age, e de uma relação interpessoal que se estabelece dentro de um contexto institucional.
9A duplicidade do agente de atendimento (seu corpo duplo) e as tensões que a acompanham geram efeitos sobre as práticas profissionais e sobre as relações tecidas no guichê. Instituição-feita-humano versus instituição humanizada, personificação da instituição versus personalização do atendimento: o atendente navega entre dois polos opostos.
10Isto constitui uma limitação forte do cargo. A duplicidade é de fato geradora de tensão e estresse. O completo desapego e o conforto do anonimato rotineiro não são possíveis e especificamente quando o agente é diretamente confrontado com os problemas que os beneficiários expõem a ele, individualmente. E muito menos um forte engajamento pessoal na resolução de tais problemas é algo que seja considerado pelos agentes para o exercício do cargo.
11Não importa o que ele faça, o atende será apenas um pequeno elemento de uma instituição que apenas trata problemas individuais dentro de um contexto estrito de concessão de benefícios sociais – concessões estas previstas e definidas pela lei. Assim, o agente deve cada vez mais controlar a sua duplicidade: ele deve saber até onde ir, de um lado e de outro, nem que seja para “não se deixar aniquilar” em caso de uma forte pressão pessoal ou para satisfazer as condições mínimas de convívio dentro da administração, evitando uma atitude em demasiado burocrática.
12Mas esta dupla face é também um recurso importante que permite que atendentes conservem o controle da situação e obtenham “com doçura” o consentimento dos visitantes. A “personificação” do papel burocrático permite, de fato, o agente de jogar em dois campos: a linguagem neutra da burocracia e a linguagem pessoal e familiar da existência ordinária; o se entregar à norma administrativa ou o engajamento pessoal em uma relação interindividual. À maneira dos vendedores de imóveis individuais estudados por Pierre Bourdieu (1990a: 38; 1990b: 87-88), os atendentes podem “(escolher) se aproximar e se familiarizar por meio da utilização da expressão informal ou, ao contrário, escolher se distanciar e se colocar fora de alcance utilizando o vocabulário mais ‘formal’ – ou ainda alternar entre uma ou outra estratégia dando a impressão de um controle quase que completo da situação”.
13O agente de atendimento experiente pode, de fato, chegar a controlar a parte do seu trabalho correspondendo com a rotina administrativa, com a compaixão com os casos difíceis, com a conversa “amigável” (este “pequeno tom bobo” do qual fala um agente), com o formalismo burocrático. Fazendo assim, ele acaba também controlando a identidade que os beneficiários pretendem reafirmar, assim como o registro da interação sobre o qual os usuários se colocam.
14A efusão de reclamações ou ainda os excessos de violência verbal são assim limitados pelo agente que, impondo a necessidade de voltar à rotina administrativa, contextualiza a interação cujo bom desenrolar dependeu, no momento anterior, de um deixar por um tempo tal conversa à mercê das “livres interjeições” do visitante.
15Limite e ao mesmo tempo recurso, esta “duplicidade” do agente é uma característica comum da maioria dos cargos administrativos cujos titulares são diretamente confrontados ao público – como o mostra Michel Lipsky (1980). Sem dúvida que tal jogo duplo “se inscreve, em termos de possibilidade, em toda interação burocrática” (Bourdieu 1990a: 38).
16Nós gostaríamos de mostrar aqui que a duplicidade e o jogo duplo têm uma importância particular dentro das instituições estudadas por este trabalho. Tal importância está, por um lado, ligada às pressões causadas por uma política institucional de personalização. Como outros órgãos públicos e em específico os sociais, a Caixa de Prestações Familiares engajou-se, de fato, em uma política recente de “comunicação”. Esta insiste, entre outros, em proporcionar um “atendimento humanizado”, como mostram certos trabalhos como o de Jacques Gautrat (1994a: 17 em diante). Mas tal elemento não é o essencial para nós neste trabalho; o foco aqui estará em outros elementos.
17Efetivamente, o jogo duplo está mais ligado com o fato de que o papel do agente é incerto, o que deixa uma parte não negligenciável à apreciação pessoal daqueles que exercem tal papel. E inclusive os que escolhem tal cargo – e papel – o fazem para escapar do trabalho de escritório e investem no cargo suas próprias motivações pessoais pois carecem de motivação profissional.
18Consequentemente, é possível compreender que as disposições pessoais dos agentes possam, nestes órgãos públicos e nas instituições aqui estudadas, contribuir mais do que em outros lugares da administração a definir as condições de exercício do papel burocrático.
19Essas disposições pessoais acabam tendo um peso ainda maior sobre o trabalho que é feito no guichê pelo fato de que as transformações do “perfil” do público atendido aumentaram a diferença social entre agentes de atendimento e beneficiários. O “jogo duplo” dos agentes de atendimento consiste, consequentemente, na gestão desta diferença social.
20Gerenciar tal diferença vai da compaixão para com os mais desfavorecidos (de forma paternalista ou não) até a um não se investir na relação com um dado público por motivos de inferioridade de status, passando pela identificação prescritiva em caso de proximidade entre agente e usuário ou ainda pelo rigor administrativo com aqueles que se “desviam” das normas.
21Gerador de “desgastes” tanto quanto de “vocações”, o empobrecimento da população atendida faz com que as táticas de duplicidade sejam ainda mais necessárias, pois por meio delas pode-se manter uma relação positiva com o cargo (“investir-se”) e, ao mesmo tempo, manter uma distância pessoal vista como indispensável para suportar o espetáculo da miséria (“se preservar”).
Notes de bas de page
1 Para uma versão em português da obra de Ernst Kantorowicz citada pelo autor, consultar, por exemplo, Os Dois Corpos do Rei (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).
2 A obra citada de Max Weber pode também ser encontrada em português, como por exemplo em Economia e Sociedade (São Paulo: Edições 70, 2022).
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A Vida no Guichê: Administrar a Miséria
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