Capítulo 4 – Trocas administrativas e trocas normativas
p. 149-170
Texte intégral
1Como as considerações anteriores indicam, os efeitos desta troca desigual – como assim se define a relação administrativa – não param no guichê. As interações que ocorrem neste espaço reúnem agentes em posição de concretizar o que eles mesmos decretam e beneficiários que são em maioria e ao menos parcialmente cativos. Ou seja, as “condições da palavra autorizada” são amplamente reunidas no guichê (Bourdieu 1982).1
2Direcionadas a uma população de maneira geral muito desprovida, as prescrições identitárias, assim como as prescrições para um bom comportamento diante da instituição, não são somente válidas na instituição, mas também para além dela, no mundo social de uma maneira geral. Assim, de um lado, a aplicação de uma categoria administrativa toma a aparência de uma atribuição de status e, do outro, a aprendizagem da relação administrativa parece ser uma (re)aprendizagem das normas da vida social.
Controle de identidades
3A identificação burocrática constitui um caso exemplar do exercício prático da violência simbólica (Bourdieu 1982, 1997), uma vez que se considera tal identificação como sendo a construção de uma identidade individual fora do indivíduo concreto por meio de três processos: o primeiro de uma não-consideração de algumas características que são vistas pelo indivíduo como importantes, o segundo de uma seleção de outras características individuais que são para ele secundárias ou pouco pertinentes, e o terceiro de uma imposição desta construção identitária sobre o indivíduo em troca de direitos. Produto de uma relação de dominação que ela ajuda a perpetuar, essa identificação impõe aos indivíduos uma leitura de sua existência social.
4Tal imposição é ainda mais eficaz no caso dos mecanismos distribuidores do Estado-providência, no qual é o próprio indivíduo quem vai atrás da identificação burocrática (Noiriel 1991).
5Se em certos casos pode haver desacordos sobre a qualificação de uma situação – como quando um agente de atendimento em Béville diz para duas pessoas que o contestam “Vocês são, sim, um casal, apesar de não admitirem”, ou por exemplo nos casos de casais homossexuais, estes não previstos para a concessão do auxílio moradia –, na maior parte do tempo as categorias administrativas produtoras de identidade são aceitas e fortemente interiorizadas.
6A maior prova disto é, sem dúvida, a frequência com a qual os indivíduos utilizam uma dada categoria administrativa para se autodefinirem, mesmo que esta seja estigmatizante: “Eu sou RMIsta”, “Eu sou mãe/pai solteira/solteiro”, “Eu sou SDF (sigla para as pessoas sem domicílio ou mais conhecidos no Brasil pelo termo ‘sem teto’)”. Assim, o fato de os indivíduos mais distantes da norma social mobilizarem as convenções criadas para e pela ação pública para se autodefinirem mostra a que ponto as categorias identitárias administrativamente construídas podem ser atualmente profundamente interiorizadas.
7No entanto, é preciso evitar uma leitura única da identificação burocrática. Esta não se reduz a uma imposição de percepções vivida de maneira passiva pelo administrado.2 E do mais, tal identificação traz certos benefícios para o administrado: “A tradução de vidas heterogêneas em categorias homogêneas [...] é também a condição para que a sua palavra (a do indivíduo identificado) seja ouvida quando ele quer que ‘os seus direitos sejam reconhecidos’” (Weller 1990: 84; Weller 1994a; Weller 1999).
8Os benefícios podem também ser de ordem simbólica: o administrado pode obter ganhos consideráveis de identificação individual e coletiva dentro da relação administrativa (Pizzorno in Leca e Birnbaum 1991 [1986]).
9As modalidades de controle das identidades no guichê oferecem um prisma privilegiado para tratar deste processo de identificação, desta violência a qual ele, o guichê, traz consigo assim como das nuances que ele exige.
10O controle das declarações e das práticas dos visitantes ocupa um lugar indeterminado no trabalho dos atendentes. Um pouco como no caso dos motoristas de ônibus estudado por Isaac Joseph (1992), a atividade de controle não é diferente das outras, mas mais do que no caso do transporte coletivo, ela vem permanentemente à tona no guichê.
11Praticado de maneira diferente de acordo com as disposições dos agentes – como nós o veremos adiante –, o controle é feito por meio de pequenas práticas, pequenos gestos. E o mais incisivo dentre eles é o controle das informações contidas no sistema e consultadas pelos agentes por meio do computador.
12“Eu olho para eles e vejo mais ou menos a idade que aparentam ter, verifico no computador a data de nascimento para ver se corresponde ou não. Se não corresponde, eu peço a carteira de identidade” (Lionel Picard). Deste modo, o sistema de informática do guichê permite uma grande regularização de dossiês quando uma situação conhecida pela CAF – pois registrada no sistema – não corresponde à situação que o agente encontra no cara a cara do atendimento e a qual ele pode controlar.
13E mais ainda, a informática faz com que o agente possa ter elementos sobre o beneficiário que não lhe foram dados pelo próprio – e este pode nem mesmo saber que o atendente detém tais informações sobre ele. Inclusive, este sistema facilita amplamente as táticas de blefe por parte dos atendentes. “Por exemplo, se o beneficiário afirma: ‘Eu escrevi para vocês tal dia para dizer isso’, agora, com o sistema eletrônico, a gente pode falar ‘Não, o senhor na verdade escreveu isso aqui e em tal data’” (Agnès Coubertin).
Uma jovem de origem magrebina entrega um envelope cheio de documentos para Thierry Courtecuisse.
“Eu posso abrir? Eu pergunto por que a gente nunca sabe se têm coisas confidenciais dentro.
[A jovem:] - No dia 2 de novembro eu fui convocada pela CLI e eles cortaram o meu RMI porque eu já recebia os ASSEDIC.
- E você recebeu no mês de julho?
- Não, nada.”
Thierry mostra-se reticente:
“Mas como a senhora fez? A senhora ficou sem dinheiro? Eu gostaria de dar uma olhada nas suas atestações e nos documentos recapitulativos da ASSEDIC.”
A jovem olha para baixo e fica em silêncio. Após o término do atendimento, Thierry me diz: “É melhor controlar, porque senão as pessoas acabam recebendo a mais. Com as informações que aparecem na tela para nós, a gente pode controlar de maneira bem precisa. É um primeiro nível de verificação. De nada serve fazer um dossiê com informações que não são as corretas. É um pouco estúpido.”3
14Além do sistema de informática, os atendentes dispõem de todo um arsenal de pequenas técnicas que controlam a identidade e as declarações dadas pelos usuários. As formas leves de controle consistem em lembrar de maneira sutil, como se fosse óbvio para todos ali – agente e usuário – que existem regras elementares para o funcionamento institucional.
15E tal lembrete é feito de maneira particular em caso de eventual desrespeito de uma dada regra: “Se a senhora não mora mais sozinha, é preciso nos avisar, não é mesmo?” Por vezes, a conversa se transforma em um interrogatório, com as perguntas sendo feitas uma atrás da outra e sem haver muita conexão entre elas: “Qual é o status do proprietário? Qual é o tipo de habitação? Qual é a idade do senhor? O senhor mora onde? O senhor nos depositou um caução? E a sua nacionalidade?”4
16Uma das táticas é repetir a mesma pergunta diversas vezes. Alguns agentes também fazem os usuários preencherem sistematicamente certos formulários, mesmo não sendo necessário do ponto de vista do regulamento ou do ponto de vista do tratamento do dossiê, para que a pessoa eventualmente declare elementos de sua vida pessoal e profissional que não são conhecidos da instituição.
O que eu faço é fazê-los repetir várias vezes a mesma coisa. É um pouco um lance meio policial [...]. Por vezes, eles soltam um detalhezinho e então a gente insiste para ter mais informações [...]. Uma vez, uma moça que recebia o API... ela não me passava muita confiança. Eu perguntei para ela onde ela morava, e ela me disse que com os pais e aí ela me informou o seu endereço: “Rua tal.” E depois, quando ela já estava indo embora eu lhe disse: “E se nós precisarmos contactar a senhora nós iremos até o seu endereço então, na rua...” e aí ela me disse: “Sim, pode ir ao endereço da rua Tartempion”. E então não deu outra, eu reagi na hora: “Espera um pouco, esse endereço que a senhora está me dando não é o mesmo que a senhora mencionou no começo. Sente-se, por favor, nós vamos verificar isso.” O atendimento já estava quase acabando quando ela deixou escapar essa informaçãozinha besta que me fez descobrir que, na verdade, ela morava com alguém, maritalmente. (Lionel Picard)
17Algumas situações mais comuns e já conhecidas dos agentes – como o trabalho no mercado informal para os RMIstas ou ainda quando uma mulher declara viver sozinha – fazem com que eles implementem uma série de pequenas verificações para atestar a veracidade das declarações.
Eu aproveito sempre para checar a situação da pessoa na hora de preencher um formulário. Por exemplo, se eu tenho uma situação de alguém desempregado ali na minha frente na tela do computador, eu pergunto para a pessoa: “Qual é a sua situação profissional?” “Eu estou desempregado.” “Desde quando?” E aí ela não se lembrava de jeito nenhum, sendo que normalmente quando a pessoa está em uma situação difícil porque está desempregada, ela sempre se lembra desde quando ela está nessa situação. E então eu lhe disse: “Você está fazendo uns bicos?” “Sim, sim.” Ou ainda as mães que recebem o API (auxílio para mãe ou pai solteiro) e chegam aqui com o filho pequeno e aí dá umas palmadas nele e ele diz: “Eu vou dizer tudo para o papai” e dois dias depois ela volta sem a criança, que falou demais no último encontro. É o que a gente sempre fala, as fraudes são inúmeras. (Sophie Delvaux)
18O agente torna-se, assim, atento para “desatar nós de coisas que não parecem ser muito coerentes”, como por exemplo quando se utiliza o verbo na voz passiva ou o “nós” no lugar do “eu” para ser o menos preciso possível (“foi pago tanto de aluguel”, “o APL não foi depositado” ...) ou ainda quando um homem acompanha uma beneficiária de um auxílio para pai/mãe solteiro/isolado, mas aguarda na sala de espera. Tal situação fez com que uma das agentes, Cécile Peugeon fizesse a requisição de um inquérito interno sobre o caso de uma mulher que se declarava mãe solteira, mas chegou acompanhada de um homem.5
19Porém, as coisas não são sempre tão simples assim; ao contrário, normalmente as interações requerem um alto grau de controle por parte do agente. O caso a seguir é um bom exemplo de como as relações no guichê parecem com as situações goffmanianas de dissimulação recíproca: o usuário dissimula a sua situação ao agente, e este, ao perceber tal dissimulação, não mostra que percebeu e isto a fim de pegar o autor de tais declarações falsas “no pulo”. Quando o usuário é “pego”, o agente faz então como se ele tivesse acreditado no visitante desde o começo (“Ah, agora, eu não posso responder ao senhor porque, na verdade, o senhor está separado...”); eis pois a melhor maneira de mostrar, sem dizê-lo (evitando assim a confrontação conflituosa), que a mentira foi descoberta.
Uma jovem de 25 anos anuncia, com um tom de voz grave e bem preciso: “Eu estou aqui para declarar que eu abandonei o domicílio familiar no dia 24 de junho.
- A senhora já sinalizou?
- Sim, eu escrevi uma carta. [Maria consulta o computador.]
- Uma separação ocorrida no dia 24 de julho foi registrada.
- Ah sim, é isso mesmo.
- E qual foi o motivo?
- Bom..., por causa do pedido de RMI, eu queria que ele fosse feito no meu nome porque ele bloqueou todas as minhas contas.
- E as crianças estão sob a sua responsabilidade?
- Não, elas estão com ele, e ele não quer me entregar as crianças.
- Neste caso, não têm como separar os recursos porque a conta é conjunta.
- E como eu vou fazer para comer, com que dinheiro?
- Será preciso obter um comprovante de conta bancária.
- Eu não posso.
- Por quê?
- Bom, porque eu só me locomovo pedindo carona, e a conta bancária é em Aix-les-Ablettes.
- Então seria o caso de ir aos Correios, lá eles abrem conta bancária sem precisar de dinheiro.
- E sobre as prestações, elas não foram depositadas... ontem, hm... eu vi o meu marido e... ele disse que não tem nada.
- Eu não posso informar nada à senhora porque você e o seu marido estão separados. É a ele de vir aqui.”
Depois de sua partida, a agente diz: “Eles não estão separados, eu tenho certeza. Ela deixou isso escapar, percebeu e tentou desfazer o erro, falando que viu o marido ontem. Um pouco antes eu tinha visto os dois juntos, na entrada do prédio. Eu sei que era ele o marido, eu já os atendi antes. De qualquer maneira, eles serão pegos uma hora ou outra. Eu vou pedir a abertura de um inquérito. Eles são bem confusos e é só puxar pelos detalhes e pronto, a gente pega.”6 No dia seguinte, durante a entrevista conosco, Maria retoma tal episódio. “Ela se traiu quando disse: ‘Sim, na verdade eu queria saber para informar o meu marido’, e depois ela veio toda vermelha, me olhou e disse: ‘É porque, na verdade, a gente se viu ontem’, sendo que ela tinha me dito antes que eles estavam separados. E ainda mais eu os tinha visto antes, eu os conheço desde a época em que eu era agente de pré-atendimento. Chegar com essa história de ‘separação’ não cola. Mas se bem que mesmo que eles venham juntos agora, ela parece um pouco incomodada, então pode ser verdade que não estão mais juntos. É por isso que vamos abrir um inquérito interno, para averiguar.”
20Na maioria dos casos, não é preciso fazer uso de todo este arsenal tático. Numerosos são os visitantes que mostram boa-fé e boa vontade diante da instituição, declarando sistematicamente eventuais mudanças de situação. Ou, ao menos, numerosos são os que dizem fazê-lo.
Da boa vontade administrativa à boa vontade social
21Porque o importante, como afirma Goffman, não é tanto atualizar as normas, mas sim encenar tal atualização (Goffman 1973a).7 Mas mesmo que se trate apenas de aparências, o simples mostrar que se respeita a norma já é o suficiente para contribuir a reforçá-la. Deste modo, os visitantes demonstram uma boa vontade administrativa quando eles se submetem às regras, antecipando as demandas e mesmo por vezes se passando por “usuários modelo”. Eles estampam então o seu zelo pelo respeito às regras, reafirmando-o e dizendo que eles, efetivamente, as respeitam: “É preciso colocar isso na declaração. Eu prefiro que tudo esteja em ordem. Eu entrego todos os papéis necessários quando venho aqui no guichê. Eu sempre trago tudo comigo.”8
22Em caso de equívoco ou de erro, eles afirmam ter agido de boa-fé, como é o caso desta mulher de 40 anos desempregada que não declarou um estágio efetuado: “Eu não declarei, mas não foi intencional, de jeito nenhum. Na minha cabeça, era preciso declarar o estágio na hora da declaração de recursos, no 1.º de julho.”9
23É um pulo para se passar do usuário modelo, respeitoso das regras burocráticas, para o “cidadão modelo”, respeitoso da lei e da ordem social. E este pulo pode ser dado de diversas maneiras. Primeiramente, existem os visitantes legalistas que aceitam as coisas “porque é a lei” – ou que, em todo o caso, manifestam conformidade invocando tal motivo.
Uma jovem vai até o guichê porque ela nunca mais recebeu nenhuma correspondência da CAF: “As crianças do meu HLM (sigla em francês para um tipo de moradia popular) arrancaram a minha caixa de correio.” Ela recebe atualmente o auxílio de pai/mãe solteiro. “A situação da senhora mudou?”, pergunta Thierry Courtecuisse.
“- Sim, meu divórcio passou para um procedimento de não-conciliação.
- E a senhora trabalhou?
- Sim, eu já trouxe todos os documentos.
- A senhora não declarou nada no mês de abril...
- Eu devo ter esquecido; não é do meu tipo... eu sempre declaro tudo.
- Eu não estou suspeitando da senhora.
- Não, não, não... o senhor tem razão de perguntar. Porque tem pessoas que fazem, viu [subentendido: que fraudam]. Se eu não mencionei é porque eu esqueci [ela repete diversas vezes]. Eu não quero roubar ninguém, não. Se não foi declarado, é um esquecimento da minha parte. Ou um erro. [Thierry faz uma ratificação no sistema] Pronto, assim tudo fica esclarecido e arrumado. Eu tenho a consciência tranquila. E os meus direitos, vai dar um total de quanto exatamente? Porque eu gosto de saber exatamente...
- Vai diminuir. Precisa ver, o API pode ser cortado...
- É normal, eu trabalhei. Se está na lei, está na lei. É preciso dizer as coisas como elas são. Eu sempre falei tudo para a CAF, sempre declarei tudo certinho. Se diminuir será algo normal mesmo porque, afinal, eu trabalho. De toda maneira, eu já esperava. É normal.”10
24Assim, o elo entre o conformismo institucional e a conformidade às normas sociais se faz por meio da atualização dos papéis que os usuários pensam que a instituição espera que eles adotem. Uma boa amostra de tal atualização é a frequência com a qual os usuários se passam por “bons pobres” ou “bons imigrantes”.
Uma pessoa magrebina por volta de seus 45 anos vem questionar a quantia de seu auxílio moradia (APL): ela tem encontrado problemas para pagar o aluguel. Para facilitar as operações no guichê, ela dá espontaneamente o seu número de usuário – o qual ela memorizou. Frédéric evoca um eventual atraso no pagamento de sua parte. O homem então contesta: “Ah, não. Nunca! Eu sempre sou assim [ele faz um gesto diretivo com a mão indicando retidão]. Faz vinte e sete anos que eu venho aqui, eu nunca tive problemas. Meus filhos são bem-educados. Eles não fazem nenhuma besteira. Eles são casados.”11
25Terceira maneira de mostrar que o “bom usuário” é também um “bom cidadão”: declarar “aquilo que já é sabido sem precisar falar”, ou seja, reafirmar os princípios fundamentais das prestações, deduzir as boas maneiras de os utilizar e mostrar que esses princípios são obedecidos.
26Tais posturas são bem frequentes entre os que se sentem em uma situação de dever justificar a obtenção de uma prestação, como aqueles cuja renda principal vem dos auxílios sociais ou, como neste exemplo, aqueles que pertencem à classe média e que não têm uma necessidade vital de tais ajudas:
Um jovem casal, cujo domínio do francês e vestimentas são superiores aos da maior parte dos visitantes, chega no guichê para perguntar sobre o auxílio moradia. Ela: “Eu não sei se a gente tem direito a alguma coisa, mas a gente tenta ver se sim.” Claude consulta o sistema. “O que o senhor acha? Tem alguma chance de aceitarem?” Claude faz os cálculos: “Vocês têm direito a 172 francos por mês. – Com isso eu vou ficar rico!” Todos os três começam a conversar. A mulher começa a falar sobre a sua própria situação pessoal, sobre assuntos mais gerais de economia, justiça social. “Vendo a situação econômica, não é prudente ter filhos, não. Mas agora, com uma criança, eu recebo [em auxílios] o mesmo que eu receberia trabalhando. Mas, psicologicamente, me incomoda viver às custas da sociedade. Mas eu tenho medo de que eles me tirem [o auxílio parental] depois das eleições.”12
27Quando esta boa vontade indissociavelmente administrativa e social não vem espontaneamente, os agentes vêm lembrar da necessidade de adotá-la. “Assistidos”: essa palavra aparece constantemente na boca dos agentes como um leitmotiv para designar, com um certo desgosto, o que muitos usuários da CAF são – e para falar daquilo que eles, agentes da instituição, não querem que os visitantes se tornem.
28“O correto seria fazer o possível para que eles se achem de novo, que eles se tornem novamente cidadãos, com direitos e etc., e que eles não sejam assistidos” (Frédéric Galopin). As abstrações do discurso das políticas sociais (responsabilizar, desenvolver a autonomia) se concretizam nas práticas adotadas no guichê. Nas missões locais voltadas para a empregabilidade de jovens – que foram estudadas por Azziz Jellab (1997) –, estas normas se inscrevem nas práticas impostas, como a assiduidade, a pontualidade ou a manutenção regular de um calendário de procura de trabalho. Tais práticas são, de forma indissociável, modos de inculcação de posturas a adotar dentro (e para) a instituição, mas também são recursos úteis para o controle de jovens desempregados, além de serem vistos como supostos vetores da ressocialização destes jovens.
29Práticas parecidas com estas podem ser observadas no guichê da CAF. Elas têm a aparência, antes de tudo, de sanções. Lionel Picard chega até a reivindicar para si um suposto poder de conceder ou não um auxílio de acordo com a atitude do usuário no guichê.
30“Se fosse da minha alçada, eu pararia o dossiê até que ele [o usuário em questão] fosse menos sem noção. Mas a gente não tem o direito de fazer isso. E eu digo que deveríamos poder fazer isso, não temos muito poder para falar ‘chega’ para algumas pessoas.”
31Tais práticas, que são tanto de aprendizagem quanto de controle e socialização, consistem igualmente em conselhos dados aos visitantes. “É preciso aconselhar algumas pessoas, sobre a maneira de... não de se comportarem, mas... às vezes, eles esperam o último momento. Falar para eles tentarem antecipar um pouco, não fazer as coisas no último minuto. [...] Eu falo para eles não esperarem estar à beira do precipício para fazerem alguma coisa a respeito disso” (Carole Fleury).
32A principal forma de “responsabilizar” as pessoas é, em um primeiro momento, fazer com que elas preencham seus próprios formulários e dossiês. “Tem uns que não têm nem ideia de como preencher um documento, não é culpa deles. Mas também tem uns que a gente tenta dar um empurrãozinho, fazer com que eles façam algo por conta própria: ‘Bom, senhora, a cada três meses é a mesma coisa... selecione aqui esta casa, coloque a data e assine, pelo menos isso.’” (Sylvie Véra)
Eles são cada vez mais assistidos. Você tem uma atestação trimestral para o RMI e o API, eles chegam até você, eles sabem o que tem dentro, mas o envelope não fora nem aberto. Depende de quem é, mas normalmente eu peço para que eles mesmo abram o envelope. O RMI é questão, como se diz, de inserção, porque é a renda mínima de inserção para ajudá-los a se inserirem na sociedade. Então, que eles comecem ao menos por abrir o envelope, é preciso fazer o mínimo de esforço. E então eu os digo sorrindo: “Abra o envelope pelo menos.” Os questionários sobre os recursos recebidos são a mesma coisa. Não tem nem mesmo uma linha alterada, é exatamente como nós daqui da CAF enviamos para o centro fiscal. Nós somos obrigados a fazê-lo e como nós temos os números memorizados e em mãos..., mas não, os usuários não querem se enganar com os números de auxílio desemprego, etc. Eles vêm aqui mesmo para que nós façamos, para não se enganarem. É bom que eles venham, normalmente é melhor assim. Mas eles não escrevem nem o nome deles na nova declaração, nem mesmo a data de nascimento. É um pouco inacreditável! (Claude Ligeot)
33Quando os agentes fazem os beneficiários preencher seus formulários não é para se desfazerem de um trabalho suplementar, pelo contrário, porque quando eles o fazem, o atendimento toma claramente mais tempo. Este pequeno gesto é pedido aos visitantes depois que se avaliou cuidadosamente o número de pessoas na sala de espera e a capacidade do usuário de preencher o tal formulário. O motivo para tal pedido é, de acordo com os atendentes, uma maneira de fazer com que os usuários “sejam responsáveis de si mesmos”.
34“É preciso que eles sejam responsáveis de si mesmos [...]. Estamos ajudando estas pessoas quando pedimos isso [preencher seus próprios dossiês e formulários]. Tem vezes que a gente faz por eles para ganhar tempo quando a sala de espera está cheia, mas não podemos fazer isso toda a hora” (Geneviève Donné). “Não é uma ajuda para eles que querem se inserir na vida ativa, social. Eu não vejo a utilidade de fazer tudo para eles. É preciso explicar como fazer, mas é a eles de fazer” (Thierry Courtecuisse).
Eu gosto de ajudar as pessoas, preencher os documentos que precisam, mas eu gosto também de fazer as pessoas participarem quando elas podem. Mas se a gente faz tudo para elas não é bom, não. Claro, um idoso ou alguém deficiente físico, eu não vou pedir para preencher por conta própria se ele não consegue escrever. Mas alguém que sabe escrever e que pode preencher os documentos, eu vou explicar para ele como fazer, mas vou dar a caneta e o papel para ele preencher. Tem gente que precisa disso e, viu, eles até gostam que a gente fale para eles “Olha, o senhor ou a senhora pode preencher esse documento”, eles têm a impressão de participar do tratamento do dossiê. Tem uns que não querem de jeito nenhum preencher, e nesses casos eu faço eu mesmo para ir mais rápido, se não as coisas não avançam. E é verdade que os usuários não conseguem colocar um x na opção correta, então eu faço para eles, até porque se eu virar e falar “Olha, senhor, o senhor já é grande demais para que eu coloque o x para o senhor”, a coisa vai degringolar, a pessoa pode se irritar e então, para garantir a paz, eu mesmo faço. Mas tem uns que não se irritam, pelo contrário, eles gostam. Tem uns que não sabem escrever e então eu peço para eles colocarem o x na opção correta e eles até que ficam contentes de fazer isso. (Marie Annaud)
35A chamada de atenção para garantir a ordem não se limita, no entanto, a uma questão puramente administrativa do encontro no guichê. Ela se aplica igualmente à maneira de se vestir, à linguagem, à limpeza, ao comportamento de maneira geral... Essas práticas, longe de serem uma repressão voluntária e cinicamente assumida, podem ser interpretadas como reações de defesa de agentes que são massivamente expostos ao declínio social da população atendida.
36Os atendentes também interpretam tais práticas como uma maneira de ressocializar os mais marginalizados. Desta forma, os julgamentos normativos e as chamadas de atenção para que se obedeça às normas podem ser explicitamente concebidos como um dos fatores de ajuda aos “excluídos”.
37Tal alerta à obediência à ordem é também um alerta para que se obedeça à ordem social, ou seja, uma modalidade do trabalho de “reinserção”. Aplicar a norma aos indivíduos é, deste modo, mostrar que ela é aplicável a eles ou, para dizer de outro modo, como afirmam os agentes Agnès Coubertin e Lionel Picard, “[aplicar a norma] é reconhecer os usuários como seres humanos”.
O senhor sabe que quando as pessoas são reconhecidas como seres humanos, a gente sente a evolução nos meses depois do primeiro contato. O primeiro contato é sempre turbulento porque eu acho que é também uma forma de eles se defenderem. Mas a gente nota uma mudança no comportamento, no vocabulário, eles tentam se controlar mais e mesmo se eles não estão satisfeitos, mesmo se eles não estão em um estado muito bom, eles fazem um esforço também em termos de aparência. A gente sente a diferença. Eu considero que o começo da inserção é isso. Eu não sou especialista, mas aqui na nossa esfera de trabalho a gente tenta fazer alguma coisa por eles, mesmo que pequena. (Agnès Courbetin)
Por vezes é preciso dar uma sacudida neles [...]. Os RMIstas vinham aqui antes em um estado deplorável. Uma vez, um deles chegou em um estado que eu virei para ele e disse: “Olha, você primeiro vai tomar um banho e depois volte aqui para ser atendido.” Depois disso, ele nunca mais chegou aqui daquele jeito. Assim que ele vem me ver, ele está sempre limpo. Inclusive ele me diz: “Você viu que hoje eu tomei banho.” São pequenas coisas, mas que fazem a diferença. Eu considero essas pessoas como seres humanos. (Lionel Picard)
38Assim, a passagem da boa vontade administrativa à boa vontade social pode acontecer quando os atendentes concretizam as injunções institucionais, tornando-as efetivas. Ou seja, quando eles fazem de tal forma que tais injunções acabam por afetar diretamente as práticas dos beneficiários. O seguinte caso é um exemplo disto. Lembrar do “princípio” das ajudas, “das lógicas do sistema”, dar ao público conselhos personalizados é fazer com que as injunções institucionais sejam não somente aceitas, mas consideradas pelos usuários como uma escolha pessoal feita livremente.
Uma mulher de 40 anos: “O que acontece se eu fizer um estágio remunerado? Seria um trabalho temporário, para uma agência de trabalhos temporários.
- A média das prestações de RMI e APL vai diminuir. [Audrey explica em detalhes.]
- Isso não me motiva muito a trabalhar... eu tenho duas crianças e essas ajudas são importantes para mim.
- Sim, mas a senhora sabe, o princípio do RMI é que ele é temporário. Tem a questão da inserção. Então, a senhora precisa fazer os estágios que aparecem.
- Sim, é verdade, viver desse jeito não é vida. Não é uma solução.
- Eu vos aconselho de fazer o estágio. Mas é uma decisão pessoal. Mas o RMI é temporário, hein? Atenção, o prefeito não ficará eternamente no cargo. Pense bem. Eu aconselho a senhora a retomar o trabalho. Quando você faz um contrato RMI, você se engaja a procurar um trabalho. E precisa pensar que é fazendo bicos, pequenos trabalhos temporários que um dia a senhora vai encontrar um trabalho.
- Sim, eu não entendo as pessoas que não se candidatam para trabalhos temporários.”13
39Vê-se que as prescrições dos atendentes não se limitam ao comportamento no atendimento nem às práticas estritamente administrativas. Primeiro, as pessoas mandatadas pela Caixa de Prestações Familiares podem pretender ser os porta-vozes das normas sociais e morais sobre as quais tais prescrições se baseiam.
40Em segundo lugar, quando as prestações recebidas pelos usuários impactam diretamente certas áreas importantes da vida privada, os atendentes ao agirem como pequenos defensores da moral se autorizam a questionar os beneficiários sobre o que eles fazem de suas vidas, assim como a dizer o que eles devem fazer.
41Tais condições particulares têm a propensão de fazer com que a relação com a administração se aproxime do que Alois Hahn (1986: 54-68) chama uma “forma institucionalizada da confissão”, esta entrega de si mesmo ao julgamento de uma autoridade superior e cuja confissão constitui o arquétipo de tal entidade. Neste sentido, o guichê poderia, de uma certa maneira, ser o substituto laico de tal autoridade. Considerar o guichê de tal modo é considerar que as condições estão reunidas para que os efeitos das estigmatizações e prescrições morais operadas no guichê vão além do simples contexto da interação administrativa.
42As normas sociais e morais que fundam a concessão das ajudas sociais autorizam a estigmatização daqueles que não se conformam a tais normais. Como acontece com os casos que concernem a orientação sexual dos usuários: todos os critérios de concessão de auxílio se baseiam em casais heterossexuais – e que são os únicos a serem considerados como um casal. “Hm... neste caso, o que é um ‘cônjuge’?; e ‘vida matrimonial’?; é a mesma coisa que ‘casados’? E é preciso declará-lo, mesmo se é uma mulher?”, pergunta uma jovem sobre um dossiê de auxílio moradia. A resposta é seca e curta: só existem casais compostos de um homem e uma mulher. “Mas tem de tudo, viu?”, afirma Jocelyne depois deste atendimento.14
43Mas as estigmatizações não concernem apenas os que se “desviam” das normas. De maneira geral, todos aqueles que se afastam da estabilidade ou que fazem escolhas julgadas como incongruentes acabam por pagar o preço. “Esses daí deram errado na vida”, dizem regularmente os atendentes.
44Um homem diz que o valor de seu APL é baixo. “Ele está sonhando. Ô, meu querido, talvez o senhor deva começar a ralar, a trabalhar sério.”15 Se, por um lado, os agentes são autorizados ao julgamento pelas regras institucionais, estes julgamentos vão muito além de tais regras. E eles também são fundados sobre os sistemas de percepção dos próprios agentes. “Seria necessário colocar um policial atrás de cada pessoa. São pessoas que começam a vida de maneira torta. Ela nunca trabalhou, ela tem um filho, vive na casa dos pais e recebe 3500 francos por mês. Nada mal, hein, para alguém de 23 anos.”16
45Na maioria das vezes, tais julgamentos não são ditos na hora do atendimento. O que pode acontecer durante a interação – e acontece raramente – é esses julgamentos serem exteriorizados em atos limitados, como quando um agente fica em silêncio mais tempo do que o habitual, ou quando ele suspira ou balança levemente a cabeça.
46No entanto, quando uma transgressão de regra é vista como muito explícita para que não seja criticada, os agentes vão então explicitar tais julgamentos. Ou ainda quando eles estão muito cansados ou irritados e acabam afrouxando o autocontrole. “Isso pode me acontecer de chegar e falar aquilo que eu penso a qualquer um que está reclamando. Mas depois eu penso: ‘Merda, eu não deveria ter dito aquilo.’ Mas enfim, faz parte. Mas também às vezes isso acaba acordando um pouco a pessoa. Tens uns que não lidam muito bem com este tipo de comentário” (Thierry Courtecuisse).
47A orientação natalista e familiar da instituição marcada pelo critério do número de filhos para a concessão de toda uma série de auxílios autoriza os atendentes a utilizarem a instituição para legitimar suas próprias definições do que seria um bom motivo para ter filhos. “Então eu preciso ter um filho!”, responde uma mulher que fora impedida de obter um empréstimo para comprar uma máquina de lavar porque ela não tinha filhos. A reação não tarda: “Não, você tem uma criança porque você gostaria de ter uma e não para comprar uma máquina de lavar!”17
48Os elementos do dossiê sobre a vida íntima dos usuários, assim como a possibilidade de controle que tais elementos representam para os atendentes, fazem com que não haja muita diferença entre julgamentos proferidos quanto a problemas de dossiê e julgamentos sobre a maneira pela qual um usuário leva a sua vida. “A senhora vai precisar se acalmar, porque sob este ritmo aí, a gente não consegue acompanhar!”, deixa escapar Jocelyne Fabre durante o atendimento de uma mulher que a irritava porque ela vinha repetidas vezes à CAF devido às constantes mudanças na sua vida conjugal.18
49“Meu Deus, nenhum número corresponde! É grave. Eu não sei como o senhor faz com as outras coisas, mas isso aqui foi realmente feito de qualquer jeito!”19 Um pai e seu filho, ambos magrebinos devem reembolsar uma parte do auxílio moradia recebido porque o salário do filho não foi declarado.
A partir do momento em que vocês vivem sob o mesmo teto, vocês devem participar. É normal. É normal que este reembolso seja pedido para vocês. Ele ajudou bastante o senhor, o seu filho, não? Ele te dava alguma coisa?
- Não, ele tinha as prestações do carro.
-Ah, mas não é assim que se faz não, hein? Tá escrito aqui, ó!20
50Acalmar os rancores, impor um esforço de autocontrole, de vocabulário, de limpeza, chamar a atenção para a necessidade de se responsabilizar por si mesmo, reafirmação de valores e modelos que são supostamente compartilhados universalmente... tais injunções são primeiramente produzidas no e pelo desenrolar do encontro no guichê, mas elas também têm a tendência de produzir efeitos para além da interação entre um usuário e um atendente. Colocar-nos-emos agora sob o ponto de vista dos agentes de atendimento para uma melhor compreensão da formação, das lógicas e da realização de tais práticas institucionais.
Notes de bas de page
1 A obra de Pierre Bourdieu citada pelo autor também pode ser encontrada em português, como por exemplo a publicada sob os seguintes título e edição: O Que Falar Quer Dizer: A Economia das Trocas Linguísticas (Miraflores: Difel, 1998).
2 Consultar as notas de rodapé da parte III deste livro.
3 Véribel, 12/06/1995-15.
4 Véribel, 12/06/1995-24, Thierry Courtecuisse.
5 Béville, 10/04/1995-30.
6 Béville, 8/08/1995-24, 16h30-16h38, Marie Annaud.
7 A obra citada de Erving Goffman também pode ser encontrada em português, como por exemplo sob os seguintes título e edição: Representação do Eu na Vida Cotidiana (Petrópolis, Editora Vozes, 2014), 20.ª edição.
8 Mulher, 45 anos, RMI, em CES, Crépel, 3/08/1995-9.
9 Dombourg, 21/06/1995-12.
10 Véribel, 12/06/1995, 14h-14h15.
11 Chouillet, 1/08/1995-1, Frédéric Galopin. Chouillet está localizada em uma área periférica fortemente marcada pela presença de imigrantes e de desempregados.
12 Béville, 24/04/1995, Claude Ligeot, 10h55-11h10.
13 Dubarcq, 18/04/1995-32, 14h55-15h15, Audrey Becker.
14 Dombourg, 1/06/1995-34, Jocelyne Fabre.
15 Véribel, 13/06/1995-14, Thierry Courtecuisse.
16 Dombourg, 2/06/1995-6, Josiane Delpol.
17 Véribel, 12/06/1995-16, Thierry Courtecuisse.
18 Dombourg, 7/06/1995-17.
19 Dombourg, 1/06/1995-28, Jocelyne Fabre.
20 Dombourg, 14/06/1995-13, Jocelyne Fabre.
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