Etnografia do estado social: um olhar a partir de Portugal
p. 23-28
Texte intégral
1Preenchendo uma lacuna na bibliografia sociológica disponível em língua portuguesa, a publicação de A Vida no Guichê: Administrar a Miséria, da autoria do sociólogo e cientista político francês Vincent Dubois, é um marco relevante no panorama das edições de ciências sociais em português. Doravante, o leitor lusófono poderá contactar diretamente com um livro que, sem exagero, se tornou um clássico da sociologia francesa (Dubois 1999), várias vezes reeditado e em diferentes formatos, e que conheceu, entretanto, circulação internacional significativa (entre outras edições em diferentes contextos nacionais, ver Dubois 2010).
2Estudo sociológico, sob vários aspetos, pioneiro, o presente livro está fortemente vinculado a um trabalho sociológico de construção de um olhar original sobre as modalidades de estruturação do funcionamento quotidiano das instituições do Estado social a partir dos níveis elementares, mas profundamente decisivos, em que se estabelecem as relações entre funcionários e utentes, como são os que dizem respeito ao guiché. Fruto de um questionamento analítico que dialoga com adquiridos de relevo da teoria sociológica da administração, do Estado e das identidades sociais, onde pontuam os influentes trabalhos de M. Lipsky, de P. Bourdieu e de E. Goffman, entre outros estudos marcantes, a obra em apreço funda-se num denso trabalho etnográfico desenvolvido pelo autor, em meados dos anos 1990, em duas agências locais da Caisse d’allocations familiales francesa. Tomando por referência as interações entre funcionários e utentes, observadas sistematicamente em 900 encontros, Vincent Dubois, conjugando este olhar com entrevistas a 24 agentes de atendimento e 120 entrevistas a utentes, procura objetivar, em sucessivas aproximações e sob diferentes ângulos, as propriedades sociais mais decisivas dos encontros estudados e do que neles se encontra em jogo.
3Num exercício de análise que tem tanto significado pelo que representa em matéria de inovação científica como pelo que denota se pensado a partir da transmissão pedagógica de um modus operandi, ao longo de três partes e de 14 capítulos, Vincent Dubois – sem esquecer uma conjuntura de crise económico-social em que a procura dos serviços sociais do Estado cresce e em que a agenda deste se recompõe com base em propósitos rigoristas – restitui encontros, protagonistas e ações institucionais com profundas consequências sociais e pessoais, desde logo, sobre uma população desfavorecida, que o autor revela, contudo, como sendo menos homogénea do que o comummente pensado. Tendo presente as diferenças, por vezes pequenas, mas socialmente plenas de significado, entre os utentes – as que dependem de se ser nacional ou estrangeiro, as que remetem para as diferenças de volume e de composição de capitais, ou as que passam pelo próprio capital de informações e de conhecimentos sociais que se reúnem a partir do contacto regular com a burocracia –, o autor permite-nos entrar, de um modo analiticamente seguro e fortemente motivado pela recolha e tratamento de situações sociais pertinentes, no tecido da vida quotidiana do guichê.
4Do estudo das dinâmicas da organização do encontro face a face, das suas condições e tensões, a análise evolui para um retrato do carácter desigual das relações que assim se estabelecem e define as condições práticas do controlo das identidades dos utentes subjacentes à realização dos encontros observados. A pesquisa detém-se, com detalhe, sobre a ação desenvolvida. A análise revela os processos que conduzem à definição, socialmente complexa e negociada, dos postos de trabalho de agente de guichê; reconstituindo trajetórias sociais, esta destaca o modo, não raramente fortuito, como se lhes acede e demonstra as paradoxais condições de aprendizagem de um ofício que resiste a ser ensinado e que frequentemente é pensado, por quem o protagoniza, no quadro do “instinto”. O encontro entre agentes de guichê e utentes, exigente, expondo, de modo momentâneo, mas repetido, não apenas a miséria de condição, mas também a de posição, envolve uma gama alargada de aprendizagens e a constituição de disposições práticas, progressivamente incorporadas num registo de competências, sobre o modo como se gere a distância social, o lugar da compaixão e da personalização das relações sociais. O olhar atento sobre a dinâmica dos encontros proposto pelo autor revela ainda as modalidades do questionamento da ordem institucional inerentes às “falhas do sistema”, feitas de disfuncionamentos, injustiças, violências e o modo como agentes de guichê e utentes as enfrentam e negoceiam.
5Proporcionando perspectivas multidimensionais sobre fenómenos frequentemente pensados a partir de pontos de vista unilineares, os trabalhos de Vincent Dubois no domínio da sociologia da ação do Estado, nomeadamente aquela que se exerce junto de agentes com inscrições mais fragilizadas no espaço social, têm vindo a ser publicados e seguidos com atenção em Portugal (Dubois 2007). Alguns destes trabalhos foram especialmente preparados pelo autor para iniciativas levadas a cabo no país, em que se procurou explorar e intensificar o ponto de vista sociológico sobre a estruturação das relações entre ordem interacional, ordem institucional e ordem social (Dubois 2014). Perspectivas caras ao autor e bem inscritas no presente livro, estas têm inspirado o desenvolvimento de investigação antropológica e sociológica específica e contribuído ativamente para a renovação dos horizontes de análise em diferentes projetos de investigação de âmbito disciplinar e multidisciplinar sobre a realidade social portuguesa. Versando sobre problemáticas diferenciadas, que passam pelas incidências das vivências do desemprego (Pereira 2011), pelas contradições subjacentes à definição do reconhecimento legal e social dos acidentes de trabalho (Rodrigues 2017), pelas tensões subjacentes ao reconhecimento das necessidades habitacionais pelo Estado no centro histórico do Porto (Queirós 2015), pelo modo como se estrutura o acesso à justiça (Cunha, Gomes e Duarte 2017) e a relação entre Estado penal e reinserção social no país (Pinto 2016), para salientar apenas algumas, várias têm sido as pesquisas que, em Portugal, têm procurado retirar consequências do ângulo de análise proposto e definido por Vincent Dubois neste livro. Ainda que os problemas e objetos tratados sejam muito distintos, em comum tais investigações têm a centralidade dada à exploração do questionamento sociológico das relações materiais e simbólicas mantidas por diferentes categorias de agentes sociais com as instituições, em particular, das que se inscrevem e dependem da ação do Estado, com destaque para as que relevam da sua dimensão social, mas não de modo exclusivo.
6Mas para além de enformarem investigações antropológicas e sociológicas na realidade social portuguesa sobre problemas e objetos específicos, e de inspirarem a sua análise a vários títulos, os trabalhos de Vincent Dubois têm uma outra valia ainda, mais ampla, pelo que representam e por aquilo a que se prestam. Antes de mais, num pano de fundo disciplinar em que se evidencia um enorme desequilíbrio entre as tradições de investigação etnográfica na sociologia e na antropologia social e cultural, mesmo quando tal abordagem deixou há muito de estar conotada apenas com esta última disciplina. Referimo-nos aqui, bem entendido, a etnografia no seu sentido mais lato, não limitado a um tipo de restituição escrita ou visual, mas englobando toda a pesquisa de terreno que a precede ou faz corpo com ela. Quanto à sociologia, e em contraste com o que se constata no panorama da sociologia francesa, em Portugal não deixam de ser ainda demasiado pontuais as investigações que enveredam por ela de modo equivalente, sobretudo em trabalhos de grande fôlego. Paralelamente a esta prática, pontual, mas ainda assim real em importância e alcance, banalizou-se em contrapartida a etiqueta, mas tomando a investigação etnográfica por simples sinónimo de investigação qualitativa, num equívoco que a empobrece e esvazia naquilo que tem de específico.
7Quanto à antropologia portuguesa, em que a tradição da etnografia tem mais pergaminhos, por muito internamente diversa que seja a cozinha etnográfica e por mais plurais que sejam hoje os modos de produzir e fazer sentido dos dados gerados a partir dela, não perdeu importância a ancoragem numa relação de interlocução complexa que é muitas vezes uma relação interpessoal estendida no tempo – não circunscrita, por exemplo, ao momento de uma entrevista aprofundada. Quando assim é, acontece ser na dimensão eminentemente intersubjetiva que reside, ao mesmo tempo, uma das suas maiores riquezas e um dos seus principais riscos. O risco, neste caso, não é o de fazer perigar a objetividade de imaginação positivista, de todo em todo ilusória. É antes o do psicologismo, o de não levar devidamente em conta a posicionalidade sociológica na base dessa interlocução, e o de não situar senão superficialmente tanto quem investiga quanto os seus interlocutores e interlocutoras nos respetivos atributos e disposições, estruturas e condições em que pensam, falam e agem. Neste panorama, o trabalho de Vincent Dubois é bem-vindo pelas pontes que proporciona para aproximar diferentes inscrições disciplinares, tradições e estilos de investigação etnográfica. A sua publicação não poderia, assim, estar mais alinhada pelo espírito da Etnográfica Press.
8Em nota de posfácio à presente edição, o autor convida os atuais leitores e leitoras de língua portuguesa a lê-la pelo seguinte prisma: “Nem como a apresentação de uma realidade exclusivamente limitada ao seu contexto, nem como a exposição de resultados empíricos sistematicamente transponíveis no espaço e no tempo. Antes como um conjunto de hipóteses, de questões e de propostas parcialmente generalizáveis, indo além da variação de contextos, e/ou servindo como ponto de apoio para análises comparativas.” Tem sido justamente nesta linha, ou com esta intenção, que enquanto docentes entendemos também utilizá-la a título pedagógico com estudantes, com um propósito formativo, porventura mais do que informativo: para cultivar olhares cruzados, oblíquos, recuados sobre realidades próprias e alheias, mesmo quando não se trata de comparação strictu sensu. A redução do domínio de línguas estrangeiras ao inglês limita, porém, drasticamente o leque de opções disponíveis para esse exercício com os e as estudantes, sobretudo quando se procura uma razoável comparabilidade entre contextos europeus para situar de maneira mais reconhecível semelhanças e especificidades em realidades portuguesas conexas às trabalhadas por Vincent Dubois em França. Este é, pois, um motivo adicional de regozijo por uma tradução que é, também a este título, mais do que oportuna.
9Pelo que representa em matéria de produção de um ponto de vista científico-social inovador sobre os encontros que se estabelecem entre agentes sociais e instituições, pelo que transmite sobre o modo de construir um tal ponto de vista em termos teóricos e metodológicos, A Vida no Guichê: Administrar a Miséria tem, agora, condições renovadas e atualizadas para continuar a atrair a atenção da comunidade científica lusófona e para inspirar o apuramento da respetiva razão sociológica.
Manuela Ivone Cunha e Virgílio Borges Pereira
Porto, 19 de maio de 2023
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