Etnoteatro como modo partilhado de fazer mundo numa prisão
p. 151-175
Texte intégral
Introdução
1O etnoteatro é uma prática crítica e afetiva de fazer mundo que combina etnografia, conhecimento social e artes performativas. A participação de todos é horizontal e goza da qualidade das performances estéticas em fazer comum, com uma força que emana da troca entre investigador e participantes, mais em colaboração ativa e consequente do que em simples reciprocidade, quando a intenção é recolher reflexões e fazer mundo.
2Enquanto metodologia baseada na arte, o objetivo do etnoteatro é investigar uma faceta particular da condição humana com o propósito de adaptar essas observações e conhecimento a uma performance estética, e como forma de fazer observação participante. Torna-se uma dialogia performativa do encontro e uma ação reflexiva partilhada no terreno da investigação. Expandem-se as possibilidades das técnicas de trabalho de campo quando as metodologias tradicionais são limitadas pela natureza do contexto da pesquisa, como facilmente acontece numa prisão. O etnoteatro, enquanto investigação-ação, assegura o caminho para o contexto de análise com o qual queremos trabalhar, reconfigurando o enquadramento da prática de investigação, diversificando os papéis do investigador, o tipo de encontros com os interlocutores, os modos de recolha, a forma das entrevistas, os tipos de registo possíveis ou modos de documentação, constituindo-se, igualmente, como um modo epistemológico particular no seio da etnografia.
3Enquanto forma de fazer mundo, recorremos a um projeto de etnoteatro feito num estabelecimento prisional onde se procura perceber como os reclusos se relacionam e agem em relação às condições humanas problemáticas que vivem. Trata-se de pesquisar os mecanismos de resistência e controlo subjacentes a esses problemas, matéria que compõe um espetáculo teatral. Propomos discutir a ética da emancipação necessária para o mundo construído, decorrente da partilha de problemas tratados no processo de construção teatral. As questões abordadas cruzam vários sistemas de opressão e trazem à tona os possíveis efeitos da visibilidade das formas de resistência ocultas (Scott 1990): ora o potencial emancipatório, ora o enfraquecimento da sua eficácia em fazer transformar, e que se tomam como matéria para uma ética que subjaz da prática de fazer mundo.
4Fazendo uso do etnoteatro como performance da observação participante, explora-se a perceção e a experiência que jovens reclusos têm das condições de vida no interior da prisão, para fazer uma performance teatral sobre essa passagem da sua vida. No processo da observação participante, o trabalho colaborativo traz à tona condições problemáticas e modos de vida radicais face aos mecanismos de controlo envolvidos na prisão e “o que se tem de fazer para sobreviver?”, tendo em conta a lógica das regras de conduta entre reclusos e com a instituição que os pune mas que os visa reabilitar.
Enquadramento do etnoteatro como metodologia
5O etnoteatro é uma metodologia baseada na arte que conecta etnografia e teatro. É um método que propõe dramatizar observações e argumentos pessoais, culturais e sociais da vida real num determinado contexto. Trabalhando com e sobre a vida de outras pessoas, pode ser simultaneamente objeto e metodologia da prática etnográfica. Combina coleta de dados e reflexões, interpretação e análise com ações de investigação através do teatro e em conjunto com os interlocutores. Assim, como veremos, na perspetiva da antropologia enquanto modo de fazer expande-se a dimensão de ação no terreno da observação participante, enriquece-se o modo de expressão etnográfica e faz-se mundo, possibilitando a prática social da investigação-ação como uma cerimónia de definição (Myerhoff 1982), ou uma cerimónia de atualização definidora de si. Encaramos, por isso, o etnoteatro como uma prática crítica e afetiva em que a participação de todos é intensa e colaborativa, e que combina etnografia, conhecimento social e educação artística, de um modo horizontal, criativo e consequente.
6No final dos anos 1980, ocorreu um movimento na antropologia que entende a cultura como performance, mais como verbo do que como substantivo, e que caraterizou a viragem performativa do pensamento etnográfico – também cunhada como viragem reflexiva (Alexander 2005; Conquergood 1998; Turner e Turner 1982). O trabalho de campo tornou-se progressivamente um processo colaborativo (Estalella e Sánchez-Criado 2015; Finley 2005; Lassiter 2005), um conhecimento mais performativo do que informativo. Como destaca Glenn Hinson (em Lassiter 2005), a colaboração é mais radical do que a reciprocidade. No processo etnográfico, a reciprocidade “estabelece um modelo de troca em que uma coisa concedida (por exemplo, uma entrevista) produz uma resposta recíproca apropriada (por exemplo, ajuda a plantar um jardim)” (ibidem: 17, tradução livre). A colaboração implica um constante “engajamento mútuo em todas as etapas do processo” (ibidem), e é isso que diferencia a colaboração da reciprocidade.
7Essa mudança para um trabalho mais participativo, como veremos, é uma consequência do teatro dito devised, o teatro coletivo ou colaborativo, e que se desenvolveu no movimento teatral de vanguarda, nos longos anos sessenta (período que se estende dos anos 1960 a 1980) (Salgado e Vieira 2015). Neste período, a vanguarda teatral da arte da performance alcança várias mudanças:
A autoridade do texto dramático chega ao fim. Agora existe um espaço para as questões sociais contemporâneas governarem o processo de dramaturgia;
O intérprete liberta-se da personagem que o texto definiria e embarca na criação de uma persona. Persona e personagem ganham, por isso, novos contornos, situando duas formas distintas na arte da performance. Nos estudos teatrais, sabemos que o intérprete se liberta da personagem que o texto definiria e embarca na criação do que Pavis (2005: 287) denomina uma “interpersonagem”, já que há desdobramentos que quebram a “visão mítica da individualidade do caráter” (ibidem: 287), pelo facto de a personagem ser sempre produzida por um ator ou uma atriz. Também Erika Fischer-Lichte (2019), seguindo George Simmel, dá conta da falta de eficácia em caraterizar a personagem como um conceito essencializado, dizendo-nos: “Ele explica como a encarnação de uma dramatis persona por um ator não pode ser compreendida nem explicada como transmissão de significados constituídos linguisticamente através de um medium expressamente orientado para esse fim, ou seja, através do corpo descorporizado do actor, o seu corpo semiótico” (ibidem: 184).
8O que proponho é que a ideia de personagem evoca uma suspensão da descrença (suspension of desbelief), própria de dramas em que o texto dramático governa de alguma forma a construção que o ator faz, e que a ideia de persona evoca um assumir da crença (assuming belief), em que prevalece a biografia, ou uma espécie de autoetnografia do real, mesmo que igualmente ficcionalizada (embora já não tão dependente do texto dramático para lhe dar forma), como também Saldaña (2011: 24) propõe para o etnoteatro quando faz uso de autoetnodramas. Teresa Fradique (2014, 46-47) aborda o tema, a propósito de um trabalho dirigido por Mónica Calle, com o que chama “atores não-atores”, em que eles “oferecem o seu corpo biográfico e a geografia da sua vida tornando o palco – e o espaço teatral – duplamente liminar”, mas não se desvincula do termo “personagem”. Penso que esta distinção é útil para situar um novo tipo de performance que interessa ao etnoteatro, e que ressoa com o trabalho do antropólogo, como Fradique também argumenta, ou como sistematizo num outro texto (Salgado 2016). Uma persona será, então, aquela que se deixa passar por alguém que não é ele próprio (a ideia de personagem) e pratica uma projeção de si mesmo, um aspeto ou fragmento de si mesmo, como uma semente da qual a persona surge, parcialmente ficcionada (Rosenthal, citado em Lampe 2002: 296-297).
A performance é um evento mais democrático e participativo, como nas criações coletivas ou no trabalho colaborativo. Quando aplicado à investigação, há uma diluição do papel do investigador como “especialista credenciado” – de acordo com a categorização de Snow, Benford e Anderson (2001). Ao ativar o público como performer há uma tendência para quebrar a quarta parede e realizar dramas sociais reais, confrontando o público, em última instância, com ação direta. Esse tipo de trabalho implica uma pesquisa anterior sobre os temas e problemas abordados, nutridos pelo espírito de colaboração como, por exemplo, a metodologia do teatro do oprimido (Boal 2005) tão bem ensinou.
9Na academia, a viragem performativa acompanha o surgimento dos estudos de performance. Victor e Edith Turner (1982) propõem uma postura pedagógica aos seus alunos, a dramatização da descrição etnográfica dos rituais. Esta visão implicava o desenvolvimento de roteiros teatrais, juntamente com textos etnográficos, a serem executados para fins pedagógicos. Eugenio Barba desenvolve a ISTA (International School of Theatre Anthropology) para pesquisar os fundamentos da performance e trabalhar com os mestres de várias tradições teatrais de todo o mundo, em que a prática partilhada dos diferentes saber-fazer ativa a teoria. Outros – como Della Pollock, Howard Becker e Michal McCall (Denzin 1997) ou Dwight Conquergood (1985) –, em vez de lerem os artigos científicos, começam a performar guiões extraídos das suas etnografias. Podiam performar-se a si próprios ou usar partes do encontro com os seus interlocutores, ou até dramatizar rituais observados. Paralelamente, na passagem para o século XXI, nas áreas disciplinares do teatro, da educação (Cranston e Kusanovich 2016; Finley 2005), da saúde (Mienczakowski 2001; Mienczakowski 2009; Gray e Sinding 2002) e da história oral (Pollock 2005), o etnoteatro começa a ser trabalhado e conceptualizado como forma de fazer mundo (Mienczakowski 2001; Saldaña 2011). Foi este o habitat para o surgimento do etnoteatro como prática e como metodologia.
Modo partilhado de fazer mundo numa prisão
10Entramos num estabelecimento prisional de jovens depois de cumprida toda a burocracia e recebidas as autorizações para realizar uma investigação-ação junto dos reclusos. O objetivo do projeto, intitulado “Formas de resistência e marginalidade nas prisões: a construção de mundos possíveis no limiar da exclusão”,1 consiste na realização de uma oficina de teatro que visa o desenvolvimento de um projeto teatral com reclusos do estabelecimento prisional de jovens (até 25 anos), como forma de realizar observação participante sobre as formas de vivência e adaptação dos reclusos ao mundo regrado da prisão. Procuramos perceber não tanto as práticas formais, com as suas regras perante os códigos de conduta, mas sobretudo as práticas informais, nomeadamente as formas de resistência que criam para sobreviver naquilo que também é um mundo regrado: o mundo relacional dos reclusos que se configura como uma espécie de código simbólico e prático (e que agora posso dizer tácito), embora oculto, porque circula na esfera privada dos reclusos, uma “transcrição oculta” (Scott 1990) com a qual qualquer um que se apanhe a entrar na prisão terá de saber lidar.
11Por “transcrições ocultas” (ibidem) entenda-se expressões linguísticas, gestos, práticas que se omitem da ação pública e que derivam naturalmente de um espaço de liberdade produzido, um espaço de relativa segurança onde podem ser reproduzidos, e em que se subverte, critica e se opõe ao poder vigente. São formas de insubordinação a que Scott (ibidem) chama infrapolítica dos grupos subordinados. Distingue-se, deste modo, as formas de resistência públicas, abertas e declaradas no espaço público, das formas low-profile, disfarçadas, off-stage, não declaradas ou reveladas, as formas escondidas da esfera pública, enquanto estratégia particularmente ativa em contextos de risco ou de perigo, como num regime ditatorial sujeito à censura ou numa prisão sujeita a regras estritas de comportamento amplamente vigiadas. Essas formas de resistência são invisíveis publicamente e reservadas a redes informais sem liderança precisa. De notar que também os grupos de elite terão as suas transcrições ocultas enquanto instrumento de exercício do seu poder e que operam fora da esfera pública, contrastantes com as formas públicas de expressar esse mesmo poder. Assim, transcrição oculta é o lugar privilegiado para a manifestação de um discurso ou prática contra-hegemónica, dissidente, de oposição à norma existente.
12Diferentes metodologias teatrais podem elicitar diferentes tipos de dados e foi este estudo que começámos a fazer numa primeira oficina de teatro, feita também para seriar os interessados em integrar a peça teatral propriamente dita. Não iremos aprofundar aqui este tópico. Convém, contudo, perceber que existem metodologias teatrais ou coreográficas que podem não ser tão produtivas na elicitação de reflexão ou na pesquisa dos vocabulários vernaculares que se visam estudar, tal como, por exemplo, o ballet, com o seu vocabulário rígido, poderá não ser a melhor forma de perceber a géstica dos corpos dos interlocutores, se esse for o intuito da investigação (Blumenfeld-Jones 2008). Assim, no âmbito do estudo das formas de resistência, uma determinada metodologia teatral pode ser considerada pertinente para elicitar dados como, por exemplo, a metodologia do teatro do oprimido (Boal 2005), que permite uma abordagem das formas de opressão de uma forma direta e evidente, com grande eficácia para a observação da resistência. Mas, na verdade, demonstrou-se que a metodologia força um determinado tipo de reflexão que nucleariza (em certa forma limita) um tipo de resistência (aquela existente entre opressores e oprimidos). Observámos, contudo, que o uso de uma outra metodologia aparentemente desprovida de uma forma óbvia dessa potencialidade de explicitar fenómenos de resistência, como a metodologia de improvisação de viewpoints (Bogart e Landau 2005), permitiu abordar as transcrições ocultas de uma forma até mais subtil e eficaz. Não forçando o tratamento da resistência, as improvisações visibilizaram situações que transportavam subtextos que conduziram à perceção das transcrições ocultas entre os reclusos. O que quero dizer é que uma metodologia teatral ou coreográfica mais evidente para estudar determinado fenómeno pode não ser a única a proporcionar reflexão de qualidade para o estudo em mãos.
13Com esta primeira oficina de teatro percebemos, entre outras coisas, que houve reclusos a instrumentalizarem a sessão de teatro como forma de satisfazerem os requisitos formais do seu plano individual de reabilitação, que privilegia a inclusão em atividades educativas e culturais e que contribui para, entre outras coisas, terem sucesso na forma como a instituição e o juiz avaliam a sua conduta. No entanto, estes participantes não estavam verdadeiramente interessados em fazer teatro, a sessão servia apenas para poderem sair do confinamento da cela e terem contacto com outros reclusos, revelando-se participantes desestabilizadores da sessão mas também, como veremos, revelando práticas de resistência que enquanto antropólogo perseguia.
14Para se ter uma ideia do tipo de trabalho metodológico realizado, permitam-me um exemplo prático que resume bem a lógica que se imprimiu ao trabalho de campo. Serve igualmente para explicitar como se foi fazendo a recolha das várias formas de resistência que os reclusos criam no seio da sua vivência na prisão, explorando a lógica das regras do estabelecimento prisional e a das regras informais construídas pelos reclusos no interior da cadeia. O tipo de reflexão recolhida será discutido enquanto ética de emancipação, decorrente da partilha de problemas que situam os sistemas de opressão trabalhados, e pensando estes factos como matéria para a criação de um espetáculo público que é, por si só, uma forma de fazer mundo.
15Na primeira fase do projeto, decidiu-se realizar uma primeira oficina de teatro com a duração de três meses e com dois grupos distintos (um de presos preventivos, outro de condenados) com vinte participantes em cada grupo. O primeiro grupo tem reclusos em detenção preventiva e o segundo grupo tem reclusos a cumprir pena. Um dos primeiros exercícios que realizei com eles, como forma de entender a sua coesão enquanto grupo, foi o seguinte: o objetivo do exercício consiste na autocontagem do número de participantes na sala (eram vinte). Cada pessoa tem de se contar em voz alta (de um a vinte, neste caso), apenas uma vez, e ninguém pode falar simultaneamente. Quando todos tiverem dito um número sem se sobrepor (no caso, de 0 a 20), alcançamos o número de pessoas na sala e o objetivo do jogo é cumprido.
16Neste jogo, os participantes têm de estar concentrados e, em certo sentido, conectados entre todos, para que não se sobreponham na contagem. O primeiro grupo, de reclusos preventivos, em várias tentativas não passou do número cinco. O segundo grupo, de reclusos a cumprir pena, instantaneamente, ainda estava a explicar as regras do jogo, já eles organizavam sub-repticiamente uma forma de jogar. Porque estávamos em círculo, eles concordaram num ápice em contar os números da esquerda para a direita, a partir da minha posição dentro do círculo. Então, a pessoa que estava à minha direita disse o número 1 e a que estava à sua direita o número 2, e assim sucessivamente até ao final do círculo. Fiquei estupefacto. Nunca me tinha acontecido ter um grupo que conseguisse cumprir o objetivo à primeira tentativa. Imediatamente, adicionei outra regra. Agora não poderiam dizer os números sequencialmente como fizeram. Mais uma vez, enquanto criava esta regra (que é rápida de verbalizar), eles já tinham uma solução. O da minha direita começou e o da minha esquerda disse o próximo número, para o segundo à minha direita dizer o número seguinte, e assim por diante.
17Este é um exemplo da explosão de conhecimento metacomunicativo vernacular (Briggs 1986) que pode aparecer sem necessidade de se perguntar e da importância da escuta por parte do antropólogo, neste encontro muito diferente de uma entrevista formal. A diferença entre o primeiro e o segundo grupo foi que o primeiro grupo de presos da ala dos preventivos ainda não tinha nenhum líder esclarecido e estavam livremente a improvisar. No segundo grupo, sem perguntar, fiquei a saber quem era o líder. Tendo consciência disso poderia, então, estudar essa dimensão do grupo noutras ocorrências. Este é um modo de aceder ao repertório metacomunicativo vernacular. O encontro etnográfico emerge da “efervescência coletiva” (como diria Durkheim) ou da “communitas” (como responderia Turner) (Olaveson 2001) fornecida pela prática do jogo dramático. O ambiente do encontro etnográfico reconfigura-se de maneira lúdica. Nesse ambiente, há liberdade para conhecer as transcrições ocultas de uma determinada comunidade de práticas (Lave e Wenger 2009), entendida no seu sentido alargado. Isso pode acontecer tanto na improvisação quanto na fase de comentários provocada após qualquer improvisação, na qual todos analisam o que aconteceu no palco. É o espaço onde as opções dramatúrgicas são justificadas e é também uma oportunidade para a multivocalidade.
18Num terceiro grupo de reclusos com que trabalhei na segunda fase do projeto, começámos por assistir à série Orange Is the New Black, baseada no livro de Piper Kerman (2016) que foi adaptado para a Netflix por Jenji Kohan, Sara Hess e Tara Herrmann em 2013. A série televisiva dramatiza a passagem de Piper pela prisão correcional feminina de Danbury, no Connecticut (EUA), detida durante 15 meses por transportar uma mala com dinheiro proveniente do tráfico de droga. “Durante este período, Kerman aprende a viver neste estranho mundo, ladeado de insólitos códigos de conduta e regras tão restritivas como arbitrárias” (ibidem: contracapa). Abordando o ciclo de vida da experiência numa prisão, dá conta de inúmeras transcrições ocultas (Scott 1990) que ajudaram metodologicamente a abordar todas as questões levantadas nas sessões de visualização da série, inspirando-nos para a escrita do etnodrama que construímos em conjunto. Enquanto vídeo-elicitação, serviu de gatilho metodológico para perceber o que é viver no estabelecimento prisional em que realizei a pesquisa que aqui debato.
19Os participantes estão cientes do meu papel de especialista credenciado, mas enquadram-me mais como o professor de teatro que a metodologia do etnoteatro convoca. Ofereço-lhes blocos e canetas para que tomem notas de tudo o que lhes ocorra para a peça. Com esta atitude, libertei-me para escrever à sua frente o que me ia ocorrendo a todos os níveis do trabalho. Um dia, um recluso diz-me a sorrir que gostaria de saber o que eu apontava no meu bloco. Disponibilizei-me para lhe dar o bloco e disse-lhe que também ele havia de registar ideias para o espetáculo que íamos fazer. Riu-se meio envergonhado e desistiu de ver o meu bloco, e nunca mais ninguém se questionou sobre o que eu estaria a escrever. Tal facto diz-nos muito sobre as possibilidades de registo enquanto se participa no interior de um encontro etnográfico.
20Durante a visualização dos episódios, ação que os entusiasmava muito, ouviam-se, aqui e ali, intervenções espontâneas sobre a realidade: simples interjeições ou comentários, risos ou uma piada em crioulo. São factos que acontecem na série que desencadeiam a potencial revelação de reflexões vernaculares, coisas simples da rotina do dia a dia, mas que começam a compor um habitat de significado (Salgado 2013): a impossibilidade de usar certos objetos que apareciam no filme, como um espelho; o procedimento de verificar as celas; a logística para tomar banho; um conflito entre reclusas por questões de alguma dívida; o uso de drogas; a prática de cozinhar-se na cela (que é proibida na prisão em que me encontrava); uma cena sobre determinado tipo de relação com um guarda; o tipo de atividades ocupacionais que a prisão lhes proporciona; uma cena de sexo que na série se configura em relacionamento homossexual; ou a simples existência de um telemóvel dentro da prisão. Foi nestes momentos de reação a cenas da série que ativei entrevistas informais, por vezes até pausando o filme para conversarmos a partir do feedback espontâneo dos reclusos, ora em diálogos individuais, ora em focus-group.
21A vídeo-elicitação demonstrou ser uma metodologia promissora para ativar questões vernaculares e alimentar a análise desses assuntos em conjunto. Foi desta forma que emergiu parte dos tópicos que viemos a incluir no guião do etnodrama. A partir da visualização da série, também eu destaco temas, espaços ou cenas que vou achando inspiradoras para a nossa peça teatral e que uso como ferramenta para fazer entrevistas. A segunda cena do etnodrama foi extraída da série e aborda a questão dos recém-chegados, e que na série são apenas jovens com comportamentos sociais de risco que são postos pela polícia a visitar uma prisão. Na nossa cena, um grupo de reclusos, sentados relaxadamente numa divisão da área comum da prisão, aguarda a chegada dos “entrados” (reclusos acabados de entrar na prisão), os denominados “fresquinhos”. Acende-se uma luz picada que simboliza a presença de um guarda. Por detrás aparecem os novos reclusos que logo fazem uma fila indiana. Ouve-se a voz-off “Atenção! Cumprimentem os novos reclusos…” Mas ninguém reage. Até que a voz-off fala, agora em tom de ordem: “Digam olá, reclusos!” Num impulso, os reclusos condenados saltam das cadeiras e dirigem-se, um a um, a cada um dos reclusos entrados, para lhes darem as boas-vindas. A cena vive da opressão declarada e evidente que os reclusos condenados fazem aos acabados de chegar à prisão, evidenciando aquilo a que estão sujeitos no mundo oculto dos estabelecimentos prisionais.
22O etnoteatro revoluciona o conceito formal de entrevista, acentuando a relação num diferente “como”. Revolucionamos a entrevista porque facilmente acedemos ao repertório metacomunicativo local. Mesmo sem existir um focus-group muito estruturado, há sempre alguém que comenta sobre a realidade vernacular mais ou menos oculta em dado momento. No intervalo ou no fim da sessão, alguns reclusos começaram a ter conversas privadas comigo, tendo em conta o grupo de trabalho como dimensão pública, sobre certas histórias que, de alguma forma, enformavam o lado mais obscuro das relações entre reclusos, histórias que entendiam não ser apropriado estar a contar junto dos outros. Colocavam-me assim a responsabilidade de debater sobre a permissibilidade ou não de fazer incluir essa história na lista de matérias que tínhamos para a peça teatral, tendo em conta a ética que esse interlocutor confidente compunha como recluso no interior da prisão e a ética que eu compunha como responsável pela investigação, nomeadamente no que diz respeito à proteção de dados no interior da cadeia. Fui assim envolvido na discussão coletiva de estabelecer os limites para o que seria ou não razoável, ou pertinente, fazer expressar no guião do espetáculo. Envolviam-me, por isso, nas transcrições ocultas mais marginais no seio deste meio prisional, por si só cruzamento de múltiplas marginalidades. Vejamos algumas questões abordadas e que consumaram o guião que escrevemos juntos.
Questões da identidade de recluso
23Estamos a trabalhar na primeira cena do guião, intitulada “estórias” o que, por si só, pretende já fazer sobressair a componente ficcional da peça etnoficcionada, uma forma estratégica de contribuir para a proteção de identidades. Sob uma música de fundo retirada do filme Down by Law, de John Lurie, a ação começa com um foco de luz sobre um dos atores que está sentado numa cadeira, no escuro, de frente para o público. Começámos, por isso, a fazer improvisações com o ator sentado numa cadeira. As estórias que selecionámos trabalhar abarcam momentos de vida na prisão e são elas que acabam por concretizar a dramaturgia de toda a peça teatral ou etnodrama. Assim, cada recluso partilhava um dos seguintes momentos: o primeiro telefonema a partir da cadeia; o momento em que é apanhado pela polícia; uma lista de objetos na cela; uma lista de compras na “cantina” (ou na loja oficial da prisão, lista que é feita uma vez por semana por encomenda); uma lista de objetos proibidos na cela; uma história com um guarda; um momento de aperto ou tensão na prisão. A cena faz-se da dinâmica das várias estórias que vão sendo contadas por cada ator. Quando um termina de contar, apaga-se imediatamente a luz que logo se acende sobre um outro que dá início à sua estória. No guião, a cena serve para apresentar as personagens e introduzir os enredos que vão ser interligados nas cenas seguintes, o que consuma a dramaturgia do etnodrama.
24Uma das questões que surgiram foi se, no guião, as estórias haviam de ser contadas na primeira ou na terceira pessoa. De notar aqui que quando falamos em “estórias” falamos do que mais circula na cadeia, num diz que disse ou que aconteceu constante. Basta um qualquer movimento invulgar logo circulam, por um sistema rápido de transmissão, versões do que é conhecido, em contínua atualização. Se contassem a estória na primeira pessoa tal iria, de alguma forma, expor com evidência a identidade do interlocutor-ator (para ser mais preciso: interlocutor-persona), e expô-la aos outros reclusos – alguns, eventualmente, implicados naquelas estórias. Se contassem a estória na terceira pessoa, iríamos fazer dissipar a propriedade de quem eventualmente as viveu, mas configurávamos agora uma espécie de atitude reprovativa na prisão que é a de “bufo”, ou aquele que conta uma informação a quem não deve contar. Também porque permite um exercício teatral bastante diferente, optámos aqui por fazer prevalecer a ética da proteção das identidades, acentuando a componente ficcional do drama etnográfico e permitindo aos atores que construíssem uma espécie de personagem, a partir da ficcionalização dada pela performatividade da terceira pessoa.
Questões de orientação sexual e homofobia
25De forma inédita, dois elementos dos reclusos que ingressaram nas sessões de teatro apresentaram-se, pública e assumidamente, na prisão (e na sessão de teatro) como homossexuais. O facto de serem brasileiros, população muito diminuta neste estabelecimento prisional, ampliava a sua marginalidade, uma vez que não tinham um grupo de identificação que em muito ajuda para um senso de comunidade de proteção no seio da população de reclusos. O facto de assumirem a homossexualidade permitiu desde logo que abordássemos a questão com frontalidade, sem temer estarmos a impor um tema fortuitamente. Na verdade, este tópico também é abordado na série televisiva e os comentários que as cenas de homossexualidade geraram nas sessões de visualização, por si só, justificavam o tema de discussão. É mais um exemplo da horizontalidade que se imputa à etnografia e à dramaturgia de um etnodrama. Esta situação apareceu como uma rutura em relação ao que parecia constituir um tabu dentro da prisão, uma vez que a homossexualidade, pelo menos publicamente, é altamente estigmatizadora entre os reclusos, como também verifiquei nas reações às cenas homossexuais da série. Estes reclusos brasileiros, à entrada da prisão, foram alvo de impropérios e ofensas públicas por parte de muitos outros detidos, e revelaram-me na altura como isso estava a ser perturbador. Nas prisões brasileiras, a homossexualidade parecia não ser tão estigmatizada, talvez porque mais banalizada no interior das prisões.
26A cena quatro do guião aborda esta questão. O recluso, assumidamente homossexual, entra de toalha à cintura pelo fundo do palco para tomar banho e atravessa a quarta parede, fraturando o papel do público, convocando-o para o espaço liminar que o palco produz. Enquanto dispositivo teatral possível para interagir com os espectadores (o público-alvo são os reclusos do estabelecimento prisional), a passagem pela quarta parede é uma performance de afirmação justa com uma questão que os reclusos trouxeram ao debate no processo colaborativo de construir a peça. E assim cumpre a função de documentar uma realidade, para além do facto de ser um tópico etnográfico. Irrompendo de cuecas e toalha pelo palco e pelo público, todos somos convocados de forma direta sobre uma realidade social abordada de forma oculta na prisão, mas enquanto oportunidade para quem a vive a encarar ou abordar de forma pública e frontal.
27É esse transporte da situação teatral que se releva nesta cena e é um exemplo do etnoteatro fazer mundo. Dessa forma constitui-se, simultaneamente, enquanto modo epistemológico (porque antropologicamente etnográfico) e pedagogia social radical. Expande as possibilidades do modo de a etnografia produzir conhecimento e interagir com a componente de reabilitação da instituição prisional. Mal este performer desaparece pelo fundo da plateia, ouve-se apenas a água do chuveiro a cair e o que se vê na cena são as reações de quem entra na casa de banho e reage à presença deste pressuposto nu. Ouvem-se bocas, apupos, assombro, indiferença, ou um simples cumprimento. Nesta cena irá, também, passar-se um empréstimo secreto de um telemóvel entre dois reclusos que irão protagonizar a história do telemóvel que constitui a estrada dramatúrgica do guião que fizemos.
28Na segunda entrevista individual que realizei aos participantes do projeto, um dos interlocutores brasileiros fala-me numa nova perspetiva sobre o assunto, o que explicita as vantagens de uma metodologia multimodal concorrer para uma abordagem das transcrições ocultas de que Scott (1990) fala. O interlocutor tem já um namorado dentro da prisão, um companheiro assumido publicamente como heterossexual, e que passa a assumir a sua nova orientação publicamente furtada no seio da prisão. Quando o interlocutor me revelou isto parecia estar a falar de um outro mundo que não aquele de opressão da homossexualidade abordado à chegada e na primeira entrevista. A posição pública perante a homossexualidade ainda era de reserva, mas parecia ter outros contornos na esfera oculta dos reclusos e por isso justifica a inclusão deste tema no etnodrama. As revelações plasmam-se nas palavras do interlocutor em entrevista: “As mesmas pessoas que me chingaram, me ameaçaram, ou que ainda hoje fazem isso, são as mesmas pessoas que me convidam para um momento a dois entre quatro paredes. Só que à frente dos seus amigos são os maiores machos que existem.”
29As transcrições ocultas pareciam aqui contradizer a forma como se expressam visivelmente na esfera pública, no dia a dia da prisão, a conceção da homossexualidade, altamente estigmatizante e não consentida. Esta ideia pública parece constituir uma fachada – no sentido que Goffman (1993) lhe dá –, uma vez que, entrando na esfera privada, a lógica parece não ser tão rígida. Tendo em conta as conceções públicas que os interlocutores apresentavam em relação à homossexualidade, trabalhar com esta estigmatização parecia ser profanatório. O certo é que na componente privada tudo mudava de configuração, como este testemunho valida. Assim, abrimos o jogo em torno do tema da homossexualidade, incrementando a frontalidade para falar numa relação aberta, sem preconceitos e implicada com os reclusos dentro do grupo.
30A ética da emancipação decorre da ideia de “partilha do sensível” que “fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” (Rancière 2009: 15). Dilui-se a separação das reações afetivas e racionais e de uma certa linearidade consensual do pensamento crítico, para privilegiar o dissenso, a rutura, um saber que é mais uma busca do que uma reprodução mimética. “A emancipação intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências” (Rancière 2010: 18). Em todas as manifestações, a inteligência denota então a igualdade entre o “aprendiz emancipado” e o “mestre ignorante”, como o autor explora. A ética da emancipação é possível, portanto, a partir da procura reflexiva e afetiva de uma voz que precisa de ser escutada. Enquanto performance que estes processos de investigação-ação potenciam, concorre para o etnoteatro poder ser também uma pedagogia radical da partilha do sensível, desde logo por tornar compossível abordar a homossexualidade como tema da peça teatral e esse modo de reflexividade poder contribuir para desmistificar os preconceitos enraizados no senso comum.
Questões de economia oculta
31As questões abordadas nestes subcapítulos são atuantes transversalmente na realidade social, enquanto dimensões intersectadas da vida numa prisão que constroem as relações e os encontros entre reclusos. São camadas sociais de significação que se acumulam na experiência e no caminho quotidiano da reclusão. Mas a problemática que parece ser a maior fonte de conflitos na prisão talvez seja o funcionamento da economia paralela oculta.
32Uma das regras do código tácito de qualquer negócio informal ou ilegal no interior da prisão é a de que os juros dobram semanalmente. Quer isto dizer que todas as semanas, e assim que a rotina apertada da prisão o permita, se irão cobrar as dívidas existentes. Tal tarefa pode não ser fácil se a pessoa a quem se vai cobrar uma dívida vive numa outra ala da prisão ou se nesse dia não se tem uma justificação para sair da cela, como a inserção numa qualquer atividade formal. Os produtos solicitados da denominada “cantina”, uma lista de compras que se faz semanalmente, são entregues a cada recluso à quinta-feira. A quinta-feira é, por isso, o dia predileto para o pagamento de dívidas.
33Na cena três do guião apresentam-se cinco celas e a vivência individual de cada recluso no espaço exíguo de que dispõem. O mais caricato é um ator recluso que, pela sua estatura, não cabe na cama que lhe foi atribuída, tendo de improvisar uma extensão para poder dormir de forma relativamente confortável. A ideia desta situação é apresentar as vivências diárias de cada recluso no espaço diminuto da cela, e dar continuidade a uma estória contada na primeira cena. Um recluso vai entregar a roupa lavada às celas e tem a ajuda ocasional de um outro que não é responsável por esse trabalho mas que, naquele dia, se voluntariou para ajudar. A cena vive da tensão que um dos prisioneiros numa das celas sente, assim que sabe da presença deste recluso ajudante inusitado, a quem pressupostamente tem dívidas. Não era suposto ele ir fazer aquela tarefa e isto revela também o interesse escondido no ato voluntarioso do recluso. De notar que, apesar de também circular dinheiro (o que é proibido), as dívidas são usualmente pagas em género igual ao que se comprou (podem ser produtos interditos como droga, mas também coisas legais, como tabaco ou simples mercearia). À medida que o recluso ajudante se aproxima da cela dele, este fica cada vez mais nervoso, e o que se vê fazer é ele a começar a enrolar os lençóis e a ensaiar uma tentativa de suicídio. A cena acaba com ele a cair estatelado no chão, propondo-se uma tentativa frustrada.
34O que acaba de acontecer resume uma das estórias mais contadas na prisão. Sendo a quinta-feira o dia em que se recebe a cantina e, portanto, se pagam as dívidas, quarta-feira ficou conhecido como o dia em que as celas ardem ou acontecem as tentativas de suicídio. Os reclusos que o fazem saem obrigatoriamente daquela ala, procedimento formal de segurança, encetando uma estratégia para não pagar a dívida. A mudança de ala faz com que dificilmente se voltem a encontrar, havendo reclusos que neste adiar vão construindo um conjunto de relações conflituosas que potenciam a violência.
35A economia paralela é uma das transcrições ocultas mais problemáticas pelo que me foi possível perceber, no sentido de potenciar problemas como escaramuças, alas ardidas, até fugas da cadeia, como alguns testemunhos sugerem. O tema não poderia ser escamoteado do nosso guião e foi, afinal, o tema-chave que acabou por justificar o nome da peça teatral: O Pátio. Uma das histórias retratadas diz-nos que foi no pátio que um recluso se vingou do roubo de um telemóvel que lhe pertencia e que havia sido simplesmente emprestado (ou eventualmente “alugado”). De notar que adquirir um telemóvel, embora seja uma prática bastante banal no seio dos reclusos na prisão, é algo proibido e este pode custar várias centenas de euros a quem o adquiriu.
36Numa outra história, um detido foi apanhado por um guarda a usar um outro telemóvel, e logo uma série de outros reclusos se aproximam conseguindo, na confusão, “desmarcar” e fazer desaparecer o telefone, sem que este fosse apreendido. Ainda noutra história, um dos interlocutores brasileiros, preso à entrada de Portugal por tráfego como correio de droga, é o protagonista. No tempo em que ficou preso a aguardar julgamento até chegar à prisão onde cumpre a pena nenhum dos traficantes, na sua terra de origem, sabia do que se tinha passado. Foi apenas quando teve acesso a um telemóvel ilegal, já na prisão, que o recluso viu no seu Facebook ameaças dos traficantes à sua família e comunicou imediatamente com eles, contando o desfecho da operação e travando assim as ameaças que foram feitas à sua família.
37Ironicamente, uma prática ilícita torna-se uma prática pública emancipatória. Estas histórias acabaram por traçar o enredo dramatúrgico da peça teatral. O Pátio é, afinal, um drama sobre um telemóvel no interior de uma prisão que integra todas estas narrativas, das muitas outras que envolviam economia paralela e oculta. Todas elas foram contadas a partir das improvisações que fizemos e integradas numa narrativa comum. Tal como todas as peripécias que se contam na prisão, nunca se sabe concretamente quem foram os protagonistas, nem quando aconteceram. Por outro lado, e essa é uma das limitações do empreendimento em estudar transcrições ocultas, a revelação das histórias e das identidades reais dos seus proponentes está no limiar do que é legalmente consentido no estabelecimento prisional. O compromisso foi, no entanto, colocá-las ao serviço da construção de um drama que se assumia como etnoficção, como forma de abordar temas que ninguém quer assumir mas que são parte da vida real na prisão.
Fazer-se à estrada
38Se podemos configurar a etnografia como um modo de ação e como um modo de expressão (Salgado 2015), o etnoteatro confere-lhe uma terceira dimensão, a capacidade de fazer mundo. Constitui-se como uma metodologia e um modo alternativo de tradução cultural e pode, no processo e através da performance, ser uma forma de se imaginarem outros mundos. O etnoteatro gera uma experiência partilhada que tem a faculdade de conferir poder aos interlocutores (Denzin 2003: 273), na medida em que, decorrente das interações dialógicas (Bakhtin 1981), se pode trabalhar o repertório metacomunicativo vernacular a partir do controlo que os interlocutores têm das representações que fazem do seu mundo e que se plasma no guião da peça teatral ou etnodrama, uma voz passível de ser escutada.
39Os interlocutores assumem-se horizontalmente como agentes da produção de conhecimento que contribui para a reflexividade entre todos, com potencial desmontagem de preconceitos imanentes das relações institucionais, ou da imagem formal que fazem de um recluso, ou ainda da imagem do investigador em ação no terreno. Quebram-se fronteiras impostas por uma voz pública truncada pelas suas condições de marginalidade e fragilidade social e ensaia-se a sua voz, pela sua forma de ver e fazer o mundo. Como nos diz Mienczakowski (2001: 472, tradução livre), “o potencial do drama reside na habilidade em demonstrar a investigação através do vocabulário, códigos e símbolos dos interlocutores abrindo, por isso, a investigação à divulgação pública e ao envolvimento comprometido dos interlocutores”. O etnoteatro, baseado na arte e na etnografia, torna-se uma metodologia expansiva e multimodal que aplica a metodologia da antropologia a uma forma de fazer mundo através da arte, com e através das comunidades envolvidas nas investigações-ação, em que todos são agentes da produção de conhecimento. Por isso, também se revela como um modo epistemológico peculiar, em que interlocutores e investigadores se fazem juntos à estrada.
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10.2307/1145429 :Notes de bas de page
1 Trata-se de um projeto de investigação realizado em pós-doutoramento no CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia), financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) e renovado após o seu terceiro ano de atividade, enquadrando-se a continuidade do trabalho já como investigador contratado pelo CRIA. O projeto integrou a formação especializada em duas metodologias teatrais (a metodologia do teatro do oprimido e a metodologia de viewpoints), metodologias que foram aplicadas no seio de uma etnografia a um estabelecimento prisional de jovens, como forma de sistematização da contaminação entre etnografia e teatro (etnoteatro). O desenvolvimento etnográfico teve várias fases: uma primeira em que se realizaram duas oficinas de teatro e que constituiu um estudo experimental preliminar das potencialidades do etnoteatro; e uma segunda fase em que se constituiu um grupo para realizar um espetáculo teatral (num subprojecto intitulado “Do pátio ao mundo: teatralidades e mundos possíveis no limiar da exclusão”), na qual se construiu, em regime de criação coletiva com os reclusos, um etnodrama intitulado “O Pátio”. Ambas as fases concorreram para o estudo da metodologia do etnoteatro, apresentando-se aqui parte das conclusões a que se chegou.
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