6. Os efeitos do lugar
p. 153-178
Texte intégral
1Os significados que as pessoas atribuem aos lugares não lhes são intrínsecos. São forjados na interação social. O mesmo sucede com certos atributos que se apõem à rua de Baixo ou à praça Nove, espaços de pertença, de apropriação, de interações e de cruzamentos frequentes. Gilberto Velho (2002 [1989]) mostrou bem como, através da hierarquia entre bairros, as pessoas percebem a sociedade e se situam dentro dela. Velho expõe, no fundo, as ligações entre as estruturas do espaço social e as estruturas do espaço físico e, nelas, a posição que o lugar assume do ponto de vista relacional. “Não há espaço”, diz Pierre Bourdieu (1997: 160):
“em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada pelo ‘efeito de naturalização’ que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta”.
2Assim, os terrenos sob análise situam-se num determinado sítio do espaço social, que é também espaço físico, e que se pode definir pela sua relação com outros e pela distância que os separa. Já tinham sido avançadas as razões que levaram a que se olhasse estas duas unidades de observação. No esforço de mais finamente as delimitar, procuro agora descrever com maior detalhe a sua posição no conjunto da cidade e a sua relação com outros lugares. Algumas metáforas teatrais podem ajudar a concretizá-lo.
6.1. Do drama e outras convicções
“Parece que era uma quadrilha que descobriu a pólvora, que aqui tinha gente e que aqui era fácil rodá.” (Inês, a propósito da série de arrastões que tiveram lugar na praça Nove, RJ)
3No início do inverno de 2008, a praça foi palco de um conjunto de assaltos muito mediatizados pela comunicação social. Em resposta, a vizinhança procurou organizar-se com o objetivo de tomar medidas capazes de inverter a situação. A circunstância em si, bem como os desenvolvimentos a que deu origem, constituiu um momento de crise que abalou profundamente a unidade social local. O enredo foi sendo elaborado em torno desses incidentes, uma série de arrastões levados a cabo por um “bando nas ruas transversais do Jardim Botânico”, como foi noticiado, aos quais se juntaram outros: os comentários tecidos pelos “bandidos” e divulgados por testemunhas através da imprensa, as observações feitas pelas forças de segurança, cujos avanços na investigação foram sendo partilhados, as reações individuais e coletivas, muitas vezes antagónicas, dos moradores. Esse enredo é suscetível de ser lido como um drama social (Turner 1978 [1974]). Os conflitos surgidos no seguimento daqueles acontecimentos terão tornado mais visíveis aspetos que, de outra forma, estariam obscurecidos pelos hábitos do quotidiano, tornando mais evidente o caráter dinâmico das relações sociais e oferecendo assim uma oportunidade de vislumbrar melhor a vida do lugar.
4Na verdade, aqueles episódios não terão estado circunscritos à praça, mas terão ocorrido também nas suas ruas mais imediatas e noutras do bairro. Porém, foi a praça que esteve no centro das atenções, constituindo-se como o símbolo último de um modo de estar ameaçado. Nem todos viveram de forma igualmente intensa esses acontecimentos. Contudo, para alguns daqueles com quem tive oportunidade de conviver, essas “invasões”, um dos termos usados para referir os assaltos, foram sentidas como uma espécie de “infortúnio” (Douglas 1996) que se abateu sobre a vida da vizinhança e ao qual foi necessário dar um sentido.
5Pela polémica, controvérsia e recriminação que o caracterizaram, esse momento crítico ocasionou cisões que não só tornaram indubitáveis como também mais prementes as disputas que já rompiam as relações de vizinhança. A par, foram sendo desvendados os valores, os interesses e as (des)lealdades que aproximam e afastam os vizinhos. A crise a que os crimes deram origem foi, como se verá adiante, antecedida pela quebra de uma norma local. A ela foi atribuída a responsabilidade pela desventura que sobreveio. Embora pesem as inúmeras transfigurações entretanto sofridas, em 2010, altura em que regressei ao terreno, alguns moradores mantinham-se ainda ativos nas suas ações e reivindicações para preservarem o lugar do comportamento predatório que diziam predominar no resto da cidade. A ordem havia sido, até certo ponto, restabelecida e as relações sociais realinhadas. Mas o perigo ainda pairava no ar.
6Os dramas sociais compõem-se de sequências de eventos que, explica Victor Turner (1978), vistos retrospetivamente, apresentam uma determinada estrutura. Eles constituem uma unidade processual isolável do processo social, capturável em sociedades de qualquer escala e complexidade. Começo por descrever como eles se encadearam e como ficaram marcados na memória da vizinhança e deixo para as páginas seguintes a análise de como, numa circunstância pública, o conflito irrompeu sob grande tensão.
7A influência recíproca entre as narrativas locais e aquelas veiculadas pelos media foi evidente. Aliás, a comunicação social integrou os canais de comunicação, primeiro, através da difusão da informação acerca do sucedido e tendo, dessa forma, um papel homogeneizador dos discursos e, depois, desdobrando-se em dois sentidos: ela foi usada como instrumento de pressão junto das autoridades, mas foi também acusada de uma quota-parte da responsabilidade pela notoriedade que a pracinha teria vindo recentemente a adquirir. A reputação da praça, ampliada pelos media, teria guiado a “quadrilha” até “àquele lugar perfeito”. Em todo o caso, não houve propriamente consenso acerca dos factos.
8Por exemplo, o número de arrastões mencionados variou enormemente. Como se dizia, nem todos viveram de forma igualmente intensa esses acontecimentos. Muitos ouviram apenas falar através dos vizinhos ou limitaram-se a tomar conhecimento através da imprensa. Uns referem a “incursão de uma quadrilha por umas oito ou dez vezes, nessas ruas daqui”, como faz Pedro, um comerciante local que veio a ter um papel protagonista no movimento organizado pelos moradores. De acordo com Rita, ele terá assumido o “papel de síndico”, a figura responsável pela administração de um condomínio. Outros, como Rafaela e o marido, referem ter sabido “de porteiro falando que foram dois arrastões” e que “depois saiu no jornal alguma coisa”. Outros ainda, como Marisa, relativizaram a sua importância ao explicar que em “Copacabana ou na Tijuca isso acontece aos borbotões e se dilui. Nessa pracinha maravilhosa”, pelo contrário, “eles ganham mediatismo”. Foram, em todo o caso, dois os arrastões que marcaram de forma mais indelével a memória coletiva, aconteceram ambos na praça e envolveram tanto vizinhos próximos como mais distantes.
9A primeira notícia divulgada dava conta de que “três homens armados com pistolas terão assaltado vários motoristas […]. Eles roubaram pelo menos uma moto e um Astra, além de levar bolsas, carteiras, relógios e celulares de motoristas que passavam em ruas transversais”… (O Globo, 8 de julho de 2008). Terá sido esta primeira investida o que justificou a interrupção das aulas de futebol na praça. Rita explica-o: “No dia do primeiro episódio, estava tendo aulinha de futebol pra criança. E a mãe de um dos garotos foi assaltada no carro, roubaram o carro dela aqui”. O horário, ainda cedo, no fim da tarde, e o perfil das vítimas, pais e babás, deram origem – pela ousadia dos bandidos – à maior indignação. Dois dias depois, o bairro voltava a ser notícia, agora a propósito de aquelas ruas continuarem sem o policiamento que seria “obviamente” necessário (O Globo, 10 de julho). O arrastão teria sido, segundo a mesma peça, composto por cinco assaltos diferentes em ruas diferentes do bairro. Na fala dos moradores, os assaltantes, fortemente armados, beneficiando do desenho da praça, de um só sentido para o trânsito, “embicaram o carro em que seguiam” noutro carro, impedindo-lhe a passagem, e “foram passando rodo de carro em carro. Assaltaram ainda alguns pais que passeavam com os filhos”. Quem o conta é Mário, profundamente revoltado. Ele vive numa rua contígua e o seu escritório tem as janelas viradas para a praça. O seu filho pequeno frequenta a praça durante as manhãs. A 15 de agosto, o jornal O Globo dava conta de um novo arrastão que teria agora feito mais de 20 vítimas em ruas do Jardim Botânico:
“Uma quadrilha […] bloqueou a Rua X e atacou motoristas e passageiros de quatro carros que vinham atrás. […] Esse ataque aconteceu por volta das 19h30m. Logo depois, o bando assaltou mais uma vítima, dessa vez na Rua Y. Sem contar com os casos não registrados na 15.ª DP (Gávea), esse foi o terceiro arrastão no bairro em menos de um mês. Os bandidos agem sempre da mesma forma. Saem do carro com pistolas nas mãos apontando para as vítimas e fazendo ameaças. A hora também coincide: entre 19h e 19h30m, quando o trânsito está intenso.” (O Globo, 15 de agosto)
10Matilde teve oportunidade de assistir aos “ataques” a partir da sua janela e descreve-os assim:
“Foi aqui na minha portaria. Eu vi da janela quando eu ouvi os gritos. Eles fizeram aquela coisa muito esperta: para o carro que estava na frente e os carros que estavam atrás, como é que se diz? Na rua só passa um carro de cada vez, então eles assaltaram um casal de idosos que estava na frente, pegaram o carro deles e os carros que estavam atrás, eles foram assaltando porque não tinha como escapar. Então eles assaltaram três, quatro carros. E fugiram”.
11Algumas das convicções que prevalecem entre os vizinhos acerca das singularidades do bairro são essenciais para compreender os sentimentos de revolta, a impressão de que a privacidade da vida no bairro havia sido devassada, a quebra da confiança num quotidiano tido por protegido, enfim, a sensação de que haviam sido traídos. Por um lado, a crença de que a existência da praça seria até aí desconhecida e, por outro, a certeza de que, pela visibilidade adquirida e devido ao elevado poder de compra da generalidade dos residentes, ela teria passado a integrar a rota habitual dos bandidos perigosos. Essas convicções revelam bem como a vizinhança se percebe e se posiciona na trama das relações e das hierarquias estabelecidas entre os diferentes lugares que compõem o conjunto da cidade.
12Em Copacabana, “onde ninguém se conhece”, conforme afirmava antes Matilde, ou no Engenho de Dentro, aonde Salvador não vai por receio, estes acontecimentos não surpreenderiam. O discurso acerca da perigosidade do Rio de Janeiro é acentuado, o imaginário da insegurança está povoado de figuras da ameaça e o mapa de evitamentos bem definido. O risco que a vizinhança enfrentaria é depositado além das suas fronteiras, cuja “invasão”, tão dramática, obrigaria à reformulação das representações acerca da praça, acerca dos lugares tidos como perigosos, bem como da relação elaborada entre centralidades e espaços intersticiais.
13A “tranquilidade” e a “segurança” de que gozavam estaria, pois, assente na impressão de que a praça é “desconhecida de outras pessoas. Porque uma pessoa passa ali pelo Jardim Botânico e não imagina que tem isso aqui. Não é algo assim do conhecimento de todos. Daí esse ar de roça, de cidade de interior”, descreve Pedro. Inês, amiga de Rita, que veio a ganhar um protagonismo idêntico ao de Pedro, mas na defesa de posições contrárias, descreve-a em termos semelhantes – “um cantinho escondido, o que se passa aqui não vai ser percebido lá na avenida”. Mesmo do ponto de vista das forças de segurança, o arrastão seria um episódio relativamente inédito. Seria a primeira vez que tal ocorreria no bairro, havendo, até à data, desconhecimento de “ações de bandidos naquele ponto” (O Globo, 8 de julho).
14Esse primeiro incidente encerra assim dois tempos – aquele em que a praça, sendo insondável, estaria a salvo das predações que são julgadas habituais noutras partes da cidade – e um outro, depois do protagonismo alcançado, em que o lugar teria ficado exposto a uma ameaça constante. Marisa desabafa – “os assaltantes, quando começou isso, eles devem ter pensado: porra, que lugar perfeito!” A estrutura do drama vivido organiza-se então através das relações no tempo. Grande parte dos vizinhos não estava nem passou a estar envolvido nas redes sociais que “vigiam” a praça ou, de forma geral, o bairro. Porém, constituindo-se como uma fratura temporal que demarca bem um antes e um depois e, por pouco provável que o sítio estivesse, até então, absolutamente salvaguardado de investidas criminais, o sentimento geral foi o de que, como sintetizado por Rita, “de repente, o bairro passou a fazer parte dos índices de insegurança da cidade”.
15A ausência de favelas nas imediações – tornando “o bairro mais seguro” – é a principal razão avançada pela maioria para justificar os (percebidos) baixos níveis de criminalidade na região. “O bairro é um dos poucos, ou mesmo o único, que não tem morro, que não está cercado. É um diferencial. É uma zona privilegiada por não ter comunidade”, acrescenta Rita. Esta impressão, a de que as favelas e as suas imediações constituem os espaços mais perigosos e, em simultâneo, a impressão de que as zonas de maior poder aquisitivo são as mais atingidas, prende-se com uma autoatribuição. Os moradores identificam-se como alvo preferencial para a vitimação. Os seguranças e zeladores partilham da mesma posição – “aqui, só por ser uma área onde o metro quadrado é caríssimo, é uma área muito visada”.
16É assim que o bairro emerge como um espaço ameaçado, embora inusitadamente, referido apenas por aqueles que lá moram. Vivendo a cidade “uma crise de desigualdade”, tratar-se-ia da ameaça dos desafortunados que, atentos a uma espécie de geografia do alvo fácil, desceriam ao asfalto e definiriam as suas vítimas em função do seu poder aquisitivo. A declaração de um dos assaltantes – “um dos bandidos teria dito inclusive que, como aqui no Jardim Botânico não existem favelas, ele só ia encontrar gente com dinheiro” (O Globo, 8 de julho) – contada por uma testemunha, frase que eu ouviria repetidamente no terreno, tê-lo-á confirmado, apontando em definitivo o motivo da eleição daquele lugar.
17A sofisticação do modus operandi do bando combinaria com a sofisticação do bairro – “não era uma quadrilha qualquer” –, refere Pedro, acentuando, por um lado, a dimensão da ameaça e, por outro, fazendo descobrir as fragilidades do sistema de vigilância em funcionamento. Trata-se de “uma quadrilha especializada em roubo de rolex”, prossegue, “em roubo de produtos caros. Para tal, eles têm que ter esses conhecimentos. Qualquer um pode usar um rolex, mas para você saber se de facto é um, tem que ter um certo conhecimento”. Na mesma linha, Mário sublinha que não se trata de “pivetes”, mas de “três caras armados e com carro”. Os “vigias” da rua assistiram, impotentes, ao sucedido, o que revela o “caráter muito amador” do esquema em vigor e um deles terá gritado – “assalto, assalto” – de maneira a prevenir a vizinhança. Os bandidos ripostaram – “queima ele” – com a intenção de o matar. Volvido quase um mês, O Globo noticiou, a par de outras ocorrências na zona sul, informação que permite enquadrar melhor o sucedido:
“Desde que a pracinha virou ‘point’, com várias atrações no fim de semana, como festas, desfile de blocos e atividades infantis, o número de assaltos a pedestres e furtos de carros aumentou nas proximidades. Segundo levantamentos dos próprios moradores, em 50 dias, pelo menos quatro pessoas foram assaltadas quando chegavam em casa.” (O Globo, 6 de agosto)
18A publicidade feita em torno da praça teria desencadeado as investidas criminais. Em menos de dois meses, as estatísticas da criminalidade teriam, segundo a perceção dos moradores, aumentado. Aparentemente, as diversas atividades organizadas pelos vizinhos, a forma que haviam encontrado para dinamizar o lugar ou, como dizia Rita, o facto de “as crianças” terem passado “a tomar conta da praça”, motivo de orgulho, teriam tido o efeito contrário ao esperado. Mas “eles tomaram conhecimento da praça como?”, insistia ainda Pedro. A resposta já se encontrava elaborada. A generalidade dos moradores com quem conversei, sobretudo aqueles que estavam ligados às organizações locais, como Matilde, Pedro, Mário, Rita ou Inês, fazem parte de grupos distintos e, em alguns casos, em pouca harmonia, mas participam das mesmas redes de interação e, assim, acedem aos mesmos canais de informação. Eles partilham uma teoria razoavelmente consensual que organiza aquele emaranhado de acontecimentos de acordo com uma causa e certas consequências e, sobretudo, distinguem a culpa (Douglas 1996) a atribuir.
19De acordo com Mário, na primeira versão dos acontecimentos que me foi dada a ouvir e que depois veria repetida com poucas variações, teria sido uma festa junina, organizada por um dos vizinhos, a responsável pelo sucedido. Esse morador teria, cerca de dois anos antes, “registado o evento na Prefeitura” e “vendido lotes na praça”. O acontecimento local tornou-se num “negócio da cidade”, passando dos inicialmente cerca de 150 participantes, na maioria residentes e amigos, para a participação massiva de cerca de duas a três mil pessoas. A praça, antes quase privada, ter-se-á transformado num lugar “participado e partilhado” pela restante cidade. Pedro resume-o assim:
“Devido a uma reportagem que foi feita no ano retrasado, devido à festa junina. Foi feita uma reportagem com esse organizador da festa falando que aqui era maneiro, que era lindo, que era área valorizada, que só moravam artistas e pessoas intelectuais e que apartamento de dois quartos ficava na média de 500 a 600 mil reais. Então, de posse dessas informações, acredito eu, essa quadrilha foi… Um mês depois começaram os assaltos. Foi por causa dessa propaganda até certo ponto enganosa e negativa. Uma área valorizada, é, mas também não tem só milionário. Não é assim, entendeu? Mas o cara foi falar assim”.
20Os media não teriam feito mais do que ampliar a dimensão do evento. A questão que indignou a vizinhança não foi propriamente a organização da festa junina. Muitas outras festas haviam sido organizadas antes. A quebra da norma local prende-se mais exatamente com os fins essencialmente comerciais que lhe estiveram subjacentes, aspeto que estaria em franca contradição com a preferência por atividades de “resgate cultural” – é a expressão utilizada por Rita – de que o sebinho nas canelas seria o melhor exemplo. É “pura exploração comercial”, acusa ainda Rita, que adianta, na linha do que foi sendo dito por outros, que “começou uma coisa pequena, virou uma coisa grande”. O brio que se pôde observar a propósito das descrições que os moradores fizeram da vida no bairro, a modéstia com que procuraram caracterizar as questões de estatuto, o resguardo com que mencionaram temas de ordem financeira, a par dos cuidados que colocam na preservação do modo de estar local, protegendo-o das transformações que atravessam o resto da cidade, está em sintonia com o pudor que agora exteriorizam acerca da possibilidade de usar o espaço da praça com fins mercantilistas.
21Norbert Elias (2006) menciona, a propósito, a disposição que os estratos médios e altos da sociedade têm de se “distinguirem”. O caráter cultural das atividades constituiria a sua marca distintiva e a festa junina, de caráter popular, não encontraria aí espaço. A norma reguladora da interação entre as várias pessoas e grupos, mais tácita que explícita, foi quebrada num contexto social relativamente estável e, como antecipa Turner (1978: 38), notada e apontada como “um símbolo óbvio de dissidência”. Mas há mais de inconveniente nessa festa. Matilde conta que, anos antes, ela era organizada pela associação JB e, muito em especial, por si própria, que tinha a função a seu cargo:
“Nós fazíamos festas belíssimas. Chamávamos quadrilheiros profissionais, até que nos vendiam cachorro-quente. Cada um dava uma coisa e a gente vendia com um preço muito baratinho e revertia para a associação. Isso faz muitos anos atrás. Passado um período, a rapaziada que trabalhava na associação cresceu e a gente não fez mais isso. E, de uns anos para cá, uma pessoa que mora no bairro e que eu prefiro não dar o nome, passou a fazer isso e passou a divulgar na imprensa. Aí é que tomou uma repercussão na cidade. Não era mais, como acabei de falar, uma festinha de bairro. Então a pracinha foi invadida por uma quantidade de gente, de estranhos que não tinham nada a ver, não só com as nossas festinhas pequenas, como com as pessoas que a gente conhecia. Foi literalmente uma invasão. E a pracinha que era um lugar escondido da cidade porque para chegar você tem que entrar por essa minha rua que é uma rua pequena de uma quadra só, uma pracinha totalmente escondida, entrou no mapa da cidade e deu no que deu”.
22Howard Becker (1991) explica nas primeiras páginas de Outsiders que as regras sociais definem as situações e o tipo de comportamentos apropriado a elas. Determinadas iniciativas são adequadas, outras não. Quando uma regra é desafiada, a pessoa que (alegadamente) a transgrediu é vista como alguém que não é de confiança e tida como sendo de fora. Os moradores sentiram necessidade de justificar e de se afastar do “modo de estar” desse outro morador que, aproveitando as qualidades do bairro, as quis fazer reverter em dinheiro, explorando a praça comercialmente e colocando em risco toda a vizinhança. Naturalmente, como havia avisado Mary Douglas (2008 [1966]), esse morador, o morador desleal, que nunca tive oportunidade de conhecer, já seria impopular e o seu comportamento considerado “fora do lugar, perigoso, poluído”. O seu estatuto é ambíguo e a sua posição intersticial. “É uma pessoa que mora no bairro e que eu prefiro não dar o nome”, referiu Matilde. Rita disse não conhecer “essa pessoa. Nunca vi mais gordo ou mais magro. Ele é morador no bairro, mas é outro envolvimento”, prossegue, mostrando como a moradia não é garantia de pertença.
23Os vizinhos não se detiveram a refletir sobre o peso que as atividades por si organizadas tiveram na notoriedade da praça. Pelo contrário, essas iniciativas constituiriam, como dizia Inês, uma forma de tomar “conta do seu território”. Também não se detiveram muito em acusações aos assaltantes que seriam, com razoável prontidão, capturados pelas forças de segurança. Pedro contou-mo e, posteriormente, com maior detalhe, Benedita, a delegada da PM responsável pela região, confirmou-mo. O trabalho levado a cabo pelas forças de segurança foi descrito por Pedro como “intenso”, “interessante” e de “inteligência”:
“Diante de algumas informações, chegaram a essa quadrilha. Um foi morto, se não me engano, na [rua] Maria Angélica numa tentativa de assalto. Falaram que ele se matou. Porque a dona do carro que ele ia assaltar, disseram que o carro era blindado. Aí, ela não quis parar e ele ficou dando tiro no carro. Uma das balas, reza a lenda, voltou nele. Agora, ali é uma região que tem muito restaurante e o… Assim, o que é ventilado mais fortemente é que foi uma reação de seguranças dessa área. Esse cara morreu, o comparsa dele conseguiu fugir e mais adiante o irmão foi preso. O que foi preso, foi preso na Glória com a família indo pró dentista. Vê o nível do bandido!”
24As notícias posteriormente publicadas foram dando conta tanto da ação da polícia como dos esforços dos vizinhos que, entretanto, se haviam organizado, procurando estratégias que devolvessem a normalidade ao seu quotidiano. O Globo foi relatando como a vizinhança se uniu “para adotar informalmente praças maltratadas e próximas de suas casas” (23 de agosto). Essas informações surgiram muitas vezes misturadas com outros episódios que davam conta da ação de moradores em diversos outros pontos da zona sul. Em 2010, o caso ainda era motivo de notícia – “após arrastão, moradores querem transformar a rua Faro e mais sete vias do Jardim Botânico em condomínio” (O Globo, 1 de novembro). Embora as fissuras criadas pela festa junina tenham sido prontamente resolvidas pela expulsão simbólica das redes de interação do “culpado” e a ação dos assaltantes contida, pela morte de um e pela prisão de outro, a forma como a coletividade procurou, ainda em 2008, gerir a crise redundou noutros tantos conflitos.
6.2. Entre os bastidores e o estigma
“Isto no estrangeiro é muito conhecido. No mau sentido, claro.” (Amélia, a propósito da má reputação da rua de Baixo, Porto)
25Em parte sustentada pelo anonimato proporcionado pelas ruas mais abertas da Baixa, a rua de Baixo – central, mas oculta – tem sido uma espécie de bastidor (Goffman 1993), uma área reservada que serve os palcos da cidade, esses onde a vida se faz muito dos cruzamentos entre desconhecidos de passagem. Quer o seu relativo fechamento quer a sua fácil acessibilidade o facilitam. O comércio é local. Não faz parte do itinerário dos transportes públicos e o trânsito rodoviário é escasso. Apesar da sua localização contígua a bens valorizados, não conta com monumentos relevantes, nem oferece vistas especiais que justifiquem o esforço de a percorrer. Conta, pelo contrário, com uma série de fachadas cegas e com um ambiente social que tende a suportar mal os olhares de fora.1 A sua invisibilidade interrompe-se, porém, pelo estigma (Goffman 1986) que a torna, então, visível. Ela está associada ao desvio e é, para alguns, não só um lugar de “má fama”, mas também de evitamentos.
26A proximidade de espaços que alimentam a circulação intensa de uma massa anónima de gente (a estação de caminhos de ferro, a extinta central de camionetas no largo da Coudel, o também extinto mercado do Anjo, numerosas pensões das quais resta apenas uma, a mancha de animação noturna que se tem vindo a constituir) tem assegurado, sobretudo no passado, a confiar na memória local, muitas das visitas à rua, parte delas certamente em busca de um “consumo marginal”, como lhe chama Paulo Castro Seixas (1999: 148), referindo-se ao trabalho sexual e ao consumo de álcool e de drogas ilegais naquela região. Essa circunstância faria a desconfiança das classes médias. A toponímia refletiria a metáfora das “traseiras” da cidade, espaços que resultam do fechamento mais ou menos súbito aos espaços abertos das ruas centrais, enfim, toda uma cidade que se desenrola fora das vistas mais imediatas do transeunte.
27A rua ilustra outros fenómenos que, correndo a par, interligados, integram a agenda mediática e sociopolítica sempre que a cidade é problematizada. Nesse sentido, ela constitui um analisador de dinâmicas urbanas recentes. Desde logo, a da dinâmica populacional. A Vitória vive, em empatia com o resto da cidade, a mesma tendência de perda de habitantes (de acordo com a Pordata, o Porto tinha, em 1981, 328 7888 habitantes; em 2011, 233 061 habitantes; e em 2020, 216 747 habitantes). José Alberto Rio Fernandes (2003) já tinha descrito, a propósito, a fuga para a periferia, os sinais de agonia comercial da Baixa, o desaparecimento da sua vertente residencial, a degradação da construção, a diminuição do valor do solo e o aumento do sentimento de insegurança, fenómenos, entretanto, contrariados pela gentrificação, pelo turismo e pela especulação imobiliária que, não obstante, têm servido para adensar as dificuldades, pelo menos no que toca à habitação (ver Queirós 2016; ver Queirós, Rodrigues e Pereira 2020).
28Entre 1960 e 2001, a freguesia da Vitória perdeu aproximadamente 66% da sua população (Pereira 2003), ainda que mantendo uma densidade populacional elevada. De acordo com os censos de 2011, a freguesia contava, no ano anterior, com 1901 habitantes. Os moradores dão-lhe expressão quando insistem que a “rua está morta”. Entre os mais velhos, alguns ainda testemunharam diretamente os principais movimentos migratórios que marcaram a cidade e lhe densificaram a malha urbana. A tendência vem de oitocentos, mas manteve-se, ainda que com fortes variações, ao longo da primeira metade do século XX (Pereira 1994).
29Num segundo momento, a população assistiu a um processo que ainda se continua a registar: a retirada das classes populares para os bairros periféricos e o esvaziamento do núcleo central. Esse movimento refletiria tanto “a preocupação do regime fascista em conter os perigos da concentração operária” como o “aprofundamento da apropriação capitalista do centro da cidade” (Queirós 2007: 92), posteriormente consolidada. Assim, se o processo de urbanização, fortemente intensificado a partir da revolução industrial, trazia vagas de gente, o atual processo de metropolização deslocaliza-as dos centros e recoloca-as em rede pela área metropolitana, criando novas centralidades e complicando imensamente a leitura dos espaços urbanos.
30Depois, o processo de emblematização (Santos 2003) em curso, a par do de gentrificação, que João Queirós (2007) descreve, está em sintonia com o peso que os centros históricos e a patrimonialização assumiram recentemente no discurso em torno das cidades (Peixoto 2003).2 A expressão zona histórica ou centro histórico generalizou-se entre os seus habitantes depois da classificação da UNESCO (Santos 2003), embora de forma paradoxal. Acompanhando a nova fase nos esforços de reabilitação do Porto antigo, em que aquela designação e, depois, a Porto 2001, Capital da Cultura, terão tido um papel catalisador, a zona tende então a comportar dois significados, só aparentemente contraditórios: o de espaço marginal (Fischer 1994), por um lado, e o de espaço de crescente valor social, por outro. Em todo o caso, estes processos têm contribuído – através, por exemplo, da substituição do arrendamento de longa duração pelo alojamento local, com fins turísticos – para o agravamento das dificuldades relacionadas com a habitação.
31As transformações ao nível do estado do edificado serão, inicialmente, apenas pontuais. Entretanto, assiste-se à recuperação do imaginário boémio e à constituição de um party district (Rodrigues 2013) na zona central do Porto, que tem vindo a trocar “a retórica da desertificação e da insegurança por uma retórica de retorno à cidade e ao seu uso noturno” (ibid.: 5). Estes processos não são incompatíveis com uma notoriedade que mistura a ideia da pobreza, do perigo, do desvio, mas também a da centralidade, da genuinidade, do valor social e urbanístico.
32O conglomerado de expressões da desordem, que serviram de mote ao discurso sobre a deterioração do edificado, constituiu o lado visível de uma certa topografia que tem aliado as pistas contextuais já identificadas antes por Carla Machado (2004) à insegurança. É, nesse sentido, que a rua é aqui tomada como analisador. A estabilidade da sua condição enquanto espaço “desfavorecido” é, como em tantos outros casos (ver Sampson 2009), notável. Quando um espaço como a rua de Baixo, e esta é exemplificativa de muitas, disfuncionaliza, desvitaliza, desertifica, e só lá permanece determinado tipo de grupos sociais vistos como desfavorecidos, pode gerar-se uma espécie de evitamento da zona.
33Vasco, um morador de longa data e funcionário da Junta de Freguesia, conta por que razão chamavam “índios” aos habitantes da freguesia – “vinham para aqui praticar assaltos e isso, e depois havia um certo receio de se passar na Coudel porque diziam que eram os índios… que eu saiba aqui não há índios”. Vasco levanta uma ponta do véu que recobre os significados atribuídos à rua. A identidade dos lugares pode ser alvo de um estigma que a deteriora. O termo é utilizado por Erving Goffman (1986 [1963]) a propósito de pessoas ou de grupos a quem é outorgado um atributo profundamente desacreditador, mas que é suscetível de ser estendido aos sítios também. Luís Fernandes (1998b), a propósito do Aleixo, e Gilberto Velho (2002) a propósito de um prédio de conjugados em Copacabana, mostram-no bem. Loïc Wacquant (2006) chama-lhe estigmatização territorial. Partindo precisamente da proposta de Goffman, Wacquant reporta-se àqueles que, estando identificados como portadores do estigma residencial e relacional, se veem condicionados por uma relação com a cidade que reduz o seu campo de oportunidades.
34Aquela condição não advém, no caso da rua de Baixo, da sua localização no mapa urbano, cartograficamente falando, mas sim do seu estatuto socialmente desvalorizado. Está-lhe subjacente uma dicotomia que coloca a rua (desviante) em relação com a urbe (normativa), sendo que a estigmatização da primeira não faria mais do que confirmar a normalidade da segunda. Não estando topologicamente distante do que representa o espaço valorizado, associa-se antes a comportamentos sociais definidos como marginais.
35É assim que Simão, num percurso acompanhado feito pela Baixa e zona histórica durante o qual o entrevistei, me pede, à entrada da rua, que desligue e guarde o gravador. Ele conhece bem o território. Em tempos, publicou um livro acerca das tascas da cidade, duas delas situadas na rua de Baixo. A informação social que a rua oferece acerca de si é, antes de mais, de ordem polissensorial. Trata-se de uma “forma de transgressão de ordem estética”, prévia à “transgressão de ordem ética” (Fernandes 1994). Ou, como no argumento de Lyn Lofland (1985), a ordem social resultaria de um processo visual que decorre, antes de mais, da categorização dos outros. As primeiras aparências jogariam um papel determinante nesse processo.
36Em todo o caso, essa primeira transgressão – a estética – seria rapidamente reconhecida, concorrendo para a identificação dos espaços potencialmente perigosos. É esse reconhecimento apressado que permite aos de fora categorizá-la, situá-la numa dada hierarquia e transformar essas antecipações em expectativas normativas. Mas a sua má reputação não é recente. Embora a pobreza e a transgressão, associadas, tenham prevalecido no imaginário urbano, constituindo-se num quase sinónimo da zona histórica, pelo menos tanto quanto os seus moradores podem recordar, diferentes categorias acusatórias predominaram em diferentes momentos da sua história recente e marcaram-lhe negativamente a identidade, como é percetível nas observações que os de fora – moradores de vizinhanças próximas e também mais afastadas – tecem a seu respeito:
“A rua de Baixo, conheço… passei lá uma única vez, e foi com gente, só para conhecer… bom, aquilo não é muito seguro. Parece que há uns anos largos atrás, aquilo tinha ali má vivência e, por conseguinte, saía dali dum bar ou dum café, não sei, muita gente já alcoolizada… dizem que aquilo nunca foi assim seguro. Mas sempre ouvi falar. Fui com o meu marido só para conhecer aquela parte porque, de resto, há certas ruas que eu evito.” (Ofélia, 76 anos, rua do Almada, Porto)
37Nos percursos que Ofélia, residente na rua do Almada há 46 anos, elege e evita vislumbra-se o isolamento a que determinados territórios estão votados. A distância social, porque não obstante a proximidade o sítio parece-lhe quase exótico, ilustra bem o contraste entre a centralidade geográfica e a condição marginal da rua que, tão longínqua de si do ponto de vista relacional, não a obrigaria a percorrer, materialmente falando, mais de 200 metros a partir do sítio onde vive. O estigma é administrado através de um duplo processo que Luís Fernandes (1998b: 122) também descreve – a “redução cognitiva” e o “evitamento experiencial” – alimentador de “representações sociais simplistas e estereotipadas em torno de realidades ameaçadoras”. O primeiro faz a identidade estigmatizada prevalecer sobre outras identidades possíveis. O segundo permite que as qualidades que lhe são atribuídas não sejam confrontadas e, dessa forma, eventualmente reformuladas.
38Ofélia visitou esse lugar unicamente uma vez, já que “há certas ruas” que evita. Quando menciona a “má vivência”, ela refere-se ao consumo de álcool e à prostituição. É um lugar “pouco seguro”, de “má fama”, de “má vivência”. O significado da ameaça que a frequência da rua prescreve é, pois, complexo e polissémico, suficientemente elástico para abarcar e misturar conteúdos que são da ordem estritamente moral com outros que se prendem com a estranheza que evoca, e com outros ainda associados à criminalidade. Ofélia toma-os como sinónimos para justificar o seu mapa de evitamentos.
39Aqueles dois fenómenos – o trabalho sexual e o consumo de álcool – são indissociáveis e compõem, de acordo com a memória local, um primeiro momento da reputação da rua. Feita à custa da fartura de tascas e das abundantes “casas do lampião”, que sinalizavam as “casas de pessoas de mau porte”, tratava-se de uma época em que era “uma autêntica romaria a toda a hora”. Óscar descreve assim as suas primeiras impressões:
“Esta rua é um bocado isso. Tu nem fazes ideia quantos tascos havia aqui. E a própria mercearia também vendia vinho a copo. É um bocado as origens que se traz da aldeia para o Porto. Quando cheguei aqui isto era muito diferente, de facto. Havia outro tipo de… vivências. Se calhar a vida era mais fácil, sendo mais difícil. Naquela altura havia os chamados barzinhos com umas miúdas e isso, parecendo que não, dava uma certa vida a esta rua. Havia… olha, aqui era um, dois, três, quatro… aquele café ali em baixo… naquela altura era só bares e parecendo que não, aquele… ‘negócio’, digamos, acabava por movimentar o resto do negócio, em termos de cafés e não sei quê. Havia sempre um tresloucado que vinha por aí abaixo à procura não sei o quê… o ambiente aqui era muito mais intenso”.
40Esse período coincide com a infância e a juventude da maioria. São memórias cheias de ambiguidade. Por um lado, havia o constrangimento de se morar ali e a necessidade de o dissimular. Amélia, a proprietária do edifício herdado do marido da mãe, conta que a irmã, quando arranjava um namorado, preferia dizer, de forma tão vaga quanto possível, que morava no Clero. Ela própria, quando saia da cidade, omitia-o, convicta de que a má fama da rua era conhecida em toda a parte – “se a menina for a qualquer lado e disser que mora na Coudel começam logo a torcer o nariz. É muito conhecido. Isto ganha uma fama. Já ninguém lha tira. Nunca mais vai sair o mau nome”. O efeito de contágio parece permanecer idêntico ao desses tempos mais remotos.
41Martins, comerciante num estabelecimento de uma rua muito próxima, abastado, proprietário de vários prédios espalhados pela cidade, que vive agora entre a Foz e a rua das Flores, num edifício de apartamentos recuperado por si, explica que as “raparigas com estudos” veem as suas oportunidades de casamento reduzidas – “quando veem que pertencem a esta rua… estou convencido de que eram capazes de arranjar outros casamentos…”. A expectativa de ser tratado com desdém está muitas vezes implícita nas conversas.
42Os de fora distinguem-se frequentemente, como faz Sofia, entre os que, sendo “importantes”, ligam como “se fossemos do nível deles” e os que, por “estarem um bocado mais arranjados, já nem ligam às pessoas”. O estigma de que são portadores impediria os moradores da rua de aceder e de estabelecer relações sociais em círculos de interação que acreditam ser de “nível superior”, em contraste, portanto, com a posição social “inferior” dos de dentro.
43Por outro lado, e ao contrário do que sucederia agora, a rua era “animada” e “intensa”, cheia de comércio e atividade, facto que é, em parte, justificado pela prostituição, que atraía muita gente. Roberto, dono de uma mercearia local, refere que nessa época toda a gente ganhava dinheiro – “foi assim que eu também ganhei uns tostões. Foi com a ajuda desses tais bares. Porque, entretanto, eles vinham aqui às compras…”. O tom é de tolerância. Amélia prossegue contando, no mesmo registo, entre o humor e a nostalgia, que, em certa ocasião, um irmão seu terá provocado a atenção de uma “prostituta” e que ela terá ido fazer queixa à mãe deles – elas “eram muito educadas. Estavam na vida delas, infelizmente era a vida delas”. Como é insistentemente recordado, a pobreza da época misturava-se com a pobreza dessas mulheres, que “respeitavam” os moradores e eram educadas, num tempo em que, pela “necessidade”, a interajuda pautaria as relações sociais locais – “era mau ambiente, mas no fundo era tudo uma família, todos pobres, mas muito unidos”.
44Entre meados da década de 1980 e o início da de 1990, a circunstância transformou-se. A par da instalação dos mercados retalhistas de droga no Porto, a rua teria modificado a sua vocação. A venda e o consumo de drogas ilegais, estabelecidos num regime de grande visibilidade, terão transformado o caráter do trabalho sexual, até aí, aparentemente, em razoável integração, acentuando a perigosidade que lhe era atribuída. Luísa, a mesma que em páginas anteriores descrevia, através do número das portas das casas, as famílias que gozavam de um certo estatuto moral, explica-o:
“Houve uma época em que roubavam muito as pessoas; os homens, por exemplo. Foi por isso que começou a haver menos homens por ali, andavam por aí meia dúzia de meninas que começavam a falar com os homens e depois roubavam-nos. Acho que foi por aí, começou a constar que as pessoas eram roubadas e as pessoas começaram a ter medo de passar por ali. Eu acho que foi por aí que a rua perdeu. Sim, a prostituição foi uma das coisas que fez com que a rua ficasse sem ninguém, é como lhe digo, havia prostitutas que roubavam os homens e então deixaram de passar por aqui.”
45Reunindo no mesmo lugar a recolha de fundos, a compra do produto e o consumo, à “nova” prostituta-toxicodependente, bem distinta das mulheres pobres que “caíam na vida”, é imputada grande parte da responsabilidade pela “morte da rua”. O seu comportamento essencialmente predatório teria afastado muita da clientela e feito diminuir a circulação de visitantes, afetando assim o comércio geral. “Desde que fecharam os estabelecimentos, morreu e depois continuou a morrer”, explica Josefina, a arrendatária de Amélia. A condescendência com que é descrita a prostituição tradicional, em vias de extinção na rua, é substituída pelo tom acusatório dirigido às mulheres utilizadoras de drogas.
46A rotação operada não exclui, porém, as denúncias subtis ao trabalho sexual à porta fechada, mais discreto, que ainda subsiste, num plano que contrapõe a vida de trabalho e de pobreza à vida daquelas “senhoras”, como se lhes refere Sofia, que “nunca trabalharam”. As mudanças organizam-se sob grande consenso em torno daqueles hábitos de consumo marginal e de certos negócios cinzentos, como opto por os designar aqui. Trata-se de atividades que oscilam entre o ilícito, o informal, o desviante e o desordeiro. Às tascas e ao alterne, típicos de uma época em que “havia respeito”, ter-se-á seguido a constituição de um “antro de droga, de traficantes, toxicodependentes”, como descreve Vasco, um “flagelo” que lesou todos os moradores.
47A região, e a rua em particular, está estigmatizada e são-lhe dirigidas diversas acusações. É vista como um sítio de turbulência social e habitado por pessoas com poucos recursos, local de concentração do desvio, se não mesmo da sua produção. A rua de Baixo conjugaria aspetos morfológicos, da sua estreiteza à decadência do edificado, com outros, como o tipo de interação e de apropriação do espaço público, que a tornariam menos adequada. Como explica Graça (45 anos, doméstica), que mora na Foz, numa zona muito valorizada da cidade, não é um lugar apropriado para “criar uma família”. Ela conhece bem a área porque uma das suas irmãs é proprietária de uma farmácia no largo dos Cónegos:
“Quando vou àquela zona, o que eu noto, parece-me que as pessoas correm nas ruas para trás e para a frente. É tudo gente de um estrato social… a maioria, 90%, é de um estrato social pobre. É o que eu acho, a zona está decadente. […] E eu, com dois filhos, não quereria nunca que eles tivessem ali os amigos da rua de Baixo. Mas se eu fosse uma mulher solteira, eu alugaria ali uma casa, compraria ali, por exemplo, um T1. Sem medos. Até porque gostaria de estar, dentro de quatro, cinco ou dez anos no meio de gente jovem.”
48A condição social daquelas pessoas seria na convicção de alguns, como dizia, “inferior”. Aliás, seria a escassez de recursos o que justificaria a opção residencial. Pierre Bourdieu (1997: 164) sintetiza-o: a “falta de capital intensifica a experiência de finitude, ela prende a um lugar”. Os moradores da rua de Baixo manter-se-iam distantes dos bens sociais mais valorizados e estariam condenados a permanecer “ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros” (ibid.), fazendo reproduzir, dessa forma, a desigualdade e agravando a exclusão (Sampson 2009). Operaria, assim, uma forma de seleção social espontânea. Roberto ilustra como a estrutura socio-espacial do lugar se pode transformar numa estrutura mental, “naturalizando” o estigma. Ele explica que para ali só vêm pessoas “que já viveram em zonas históricas”.
49De resto, Roberto, que mantém ali a sua casa e a sua mercearia, embora tenha um apartamento fora da cidade, não vê que “pessoas de bom porte” queiram lá viver. “Qualquer cidadão que se preze, que queira levar ou ter uma vida normal, harmoniosa com os o rodeiam… eu não estou a ver gente boa a vir para viver para aqui”. As pessoas mais “educadas”, as famílias “melhorzitas”, vão-se embora e ficam as “piores”. Martins descreve o mesmo processo:
“Aquelas que não eram de um nível alto, mas que eram educadas, vão desaparecendo, os filhos casam e apesar de os pais morarem aqui, eles não gostam de morar. Se isto fosse uma rua com uma certa categoria, de certeza que os miúdos não se importavam de ficar a viver cá com os pais. Assim não, assim ficam os velhinhos, os novos vão desaparecendo. Estou convencido que sim, quer dizer, as melhorzitas é que foram fugindo daqui, porque, de resto, os piores ainda continuam cá, para mim ainda continuam.”
50Graça, note-se, não exclui a possibilidade de, sendo nova e solteira, viver na rua de Baixo. Ela adere ao discurso em torno do “regresso à cidade” que João Queirós (2007) e Cláudia Rodrigues (2010) descreviam. Esse movimento, menos preponderante do que noutras áreas, como na rua das Flores ou na rua Miguel Bombarda, é também percetível na rua de Baixo e nas suas imediações. Os moradores mais recentes, que procuram zonas económicas, mas centrais e “genuínas”, são exemplos dessa procura. Graça tem uma sobrinha, Laura, que, tendo herdado um edifício oitocentista na rua das Flores, o reabilitou. É onde mora e onde tem o seu escritório. É advogada. Mas Laura é “diferente”, expressão sua. Tem, conforme indica, um estilo de vida “alternativo” e essa circunstância determina, pelo menos parcialmente, a forma como a (in)segurança é vivida. Branca, de 24 anos, mora na rua há apenas alguns meses. Ela, também “diferente”, descreve a rua assim:
“É uma rua assustadora, o aspeto não é propriamente apelativo. Os moradores têm aquele aspeto… aquele pessoal mesmo do Porto, que nós sabemos. Sinto-me menos na cidade e, ao mesmo tempo, sinto que estou a viver o Porto, o verdadeiro Porto. É o Porto puro, pessoas mesmo, sempre gostei daquela zona velha. Claro que tinha mesmo uma reputação muito má! Aquilo era horrível, muita prostituição, muita droga, ainda existe droga, sem dúvida, mas já não é como antes. Porque aquelas pessoas são pessoas que vivem ali, podem ter o aspeto que têm, mas não são pessoas que estejam a puxar por problemas, nem a meter-se em confusão. Vivem muito lá no mundinho deles, têm os negócios deles, mas não… Os meus amigos acham estranho, comentam, como é que eu fui parar ali e não sei quantos, conversam entre eles, acham piada ao facto de ser diferente, e não ser propriamente aqueles sítios típicos onde moram os estudantes, onde de facto podemos estar a conviver com aquele tipo de pessoas.”
51Entre o pitoresco e o encantador, a imagem da vida social da rua formulada por Branca não se afasta assim tão substancialmente da perspetiva de outros que a evitam, como Ofélia. Por questões de “higiene”, não frequenta os cafés locais. Mas se a rua marca negativamente a identidade dos seus moradores, aos de fora – jovens, sem raízes nem história aí – confere-lhes um certo espírito aventureiro, de quem é capaz de, sem receios, desbravar esses territórios desconhecidos e únicos da cidade. Neil Smith (1996) chama-lhes the new urban pioneers. Branca causa surpresa aos amigos, mas a sua identidade não se deteriora por isso. Na rua, é vista pelos estabelecidos como uma jovem com “nível”, como de resto sucede com os estaminenses com quem partilho escritório. Howard Becker (1991) já tinha dito, a propósito do desvio, que diferentes grupos julgam coisas diferentes como sendo desviantes. Os moradores novos, aqueles que residem na rua por sua “opção”, e não por qualquer constrangimento económico ou da sua biografia, distinguem-se dos moradores “presos”, no sentido de Bourdieu, à experiência da rua.
52O estigma, tal como o desvio, resulta não de uma qualquer qualidade própria da pessoa ou do lugar, mas é consequência de um processo de etiquetagem. A identidade vem-lhes do olhar externo e é, entretanto, assumida, assimilada e reutilizada pelos próprios que são alvo desse processo. As regras que lhe assistem, como Becker faz notar, aplicam-se, porém, mais a uns do que a outros.
53O modo como se olha é, então, produtor de ordem/desordem na medida em que produz categorizações sociais. Mais, as imagens que se desprendem e que circulam sobre a rua, num processo que Robert Sampson (2009) sugere ser de profecia autorrealizada, concorrem para a reprodução da desigualdade. Se, por um lado, a rua é lugar físico na cidade concreta, ela é também produtora de representações que, por sua vez, alimentam as narrativas da perigosidade – efeitos simbólicos do plano material. E é também lugar simbólico do imaginário da insegurança, atraindo sobre si a produção de efeitos materiais, nomeadamente o evitamento, o abandono do edificado, a transferência da sua população para outras partes da cidade – efeitos materiais do plano simbólico.
54As centralidades geram-se, porém, a partir das margens, diz Pina-Cabral (2000). A relação entre uma e outra, entre centro e margem, não espelharia mais do que o poder de legitimação das hegemonias que trabalhariam para fomentar as primeiras e silenciar as segundas, estas, por conseguinte, com maior dificuldade em se fazer ouvir. É então aos vizinhos que cabe viver o estigma. São eles que se encontram aprisionados entre sentimentos contraditórios – entre o apego e a rejeição – e é entre os eles, como se verá, que as acusações adquirem o tom mais violento.
Notes de bas de page
1 Parte dos edifícios que compõem o quarteirão que é partilhado com a rua do Clero funcionam como armazém de apoio ao comércio daquela artéria. Porque se trata – literalmente – de uma traseira, o acesso a partir da rua (portas e janelas), na maioria destes casos, não existe e, portanto, não existe também relação entre ela e o edificado.
2 João Queirós (2007: 95) define gentrificação como sendo a reocupação dos centros das cidades por indivíduos ou famílias pertencentes a grupos sociais detentores de volumes globais de capital superiores aos dos indivíduos e famílias que tradicionalmente habitam essas áreas. Neil Smith (1996) analisa aquela dinâmica na sua vertente económica, relacionando o investimento de capitais com a produção do espaço urbano. Gentrification portends a class conquest of the city, diz Smith (ibid.: 26), acrescentando não esperar que esse seja um processo pacífico. Ver também Rodrigues (2013).
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