Précédent Suivant

5. A rua e a praça

p. 123-151


Texte intégral

1A rua de Baixo faz uma costura entre a zona histórica e a Baixa portuense. É um espaço marginal (Fischer 1994) e fronteiriço, que se situa no limite, na interseção, na articulação de dois universos sociais. O movimento das pessoas, do comércio e dos carros que costuma animar o centro da cidade parece extinguir-se ali. Dependendo do acaso do momento, ela é suscetível de ser percebida como uma vizinhança pacata e silenciosa ou, pelo contrário, como lugar em que tanto os conflitos como os lazeres – a música, o relato do futebol, a discussão entre um casal – são facilmente encaminhados do domínio privado para o público. Trata-se de uma tranquilidade que desdiz, muitas vezes, a vida intensa que aí se desenrola. Relativamente ignorada pelos poderes, encontra-se em declínio, visível na edificação oitocentista degradada, devoluta, encerrada. É estreita, de pendor muito íngreme e tem para o trânsito motorizado um sentido único, ascendente. É uma rua escura. De dia, pela distância exígua que separa os seus dois lados e também pela altura dos edifícios, que variam entre os três e os cinco andares. De noite, pela fraca iluminação dos lampiões. Quando chove, a circulação complica-se. Os passeios são acanhados e o pavimento destinado aos automóveis é feito de paralelos desgastados e macios que fazem escorregar.

2Este seria, numa topografia do medo, “um lugar do imaginário de perigosidade portuense” (Rodrigues 2003: 125) e foi através de um espaço de trabalho, alugado inicialmente por estudantes de arquitetura, a que depois se juntaram outros, que o comecei a frequentar. Chamaram-lhe entre si o “estaminé” e aos seus elementos os “estaminenses”. Passei a intencionalizar esta presença de modo a poder realizar o trabalho de campo, assegurando a necessária permanência continuada no terreno, requisito da etnografia.

3Entretanto, a praça Nove, na zona sul do Rio de Janeiro, ou simplesmente “a pracinha”, como é tantas vezes referida localmente, remete para um ambiente bucólico ou, pelo menos, para a promessa de um refúgio ao estribilho constante que a urbe suscita. Se “Nova Iorque nunca dorme”, dizia Mário, a pessoa que primeiro me abriu caminho ao terreno, o “Rio de Janeiro não deixa ninguém dormir”. Mas ela, a praça, reproduz essa impressão de recolhimento que, em certas circunstâncias, a rua de Baixo também protagoniza, escondida dos olhares dos utilizadores ordinários da cidade. Descrevi-a assim numa das minhas primeiras visitas:

“Um ar ligeiro que varia entre o abandono e o cuidado. Ouvem-se algumas pessoas a conversar animadamente nos jardins das casas sem gradeamento. Passarinhos também. Uma senhora passeia dois cães pequenos. São três horas da tarde e os transeuntes são raros, ainda que, com frequência, um ou outro morador assome à varanda com ar descontraído. Vejo dois homens que parecem estar a consertar um poste de iluminação pública. Lá em cima, à direita, já muito próximo, o Cristo Redentor. Com exceção daquelas figuras da manutenção, vão circulando por aqui três ou quatro pessoas – aparentemente residentes da praça ou próximos – com os seus cães pela trela. Um deles, um homem de meia-idade, traz um rottweiler com açaime posto.” (Excerto do diário de campo, 10 de agosto de 2008)

4Conforme o horário e o dia da semana, a praça é o lugar, nas imediações, onde as crianças são levadas a brincar e os cães a passear, onde alguns idosos aproveitam para esticar as pernas, onde grupos de adolescentes conversam ou, em par, namoram. É espaço de celebração – do Carnaval e com os seus diversos blocos; por vezes, dos aniversários das crianças que a frequentam, das festas juninas – ou de reunião, em momentos de maior gravidade, quando são discutidos assuntos sérios do interesse geral.1 É onde acontecem certas atividades regulares (como o sebinho nas canelas, uma troca de livros usados que acontece aos sábados) e outras mais pontuais (como o mutirão que serviu para reabilitar uma velha escadaria).2 É enfim um lugar onde se faz cidade. O debate em torno dos repetidos episódios de violência que ali ocorreram no verão de 2008 é disso exemplo.

5Na rua ou na praça, a ameaça é vivida de maneira idiossincrática. Enquanto uns poucos dizem sentir-se “enclausurados” pelo medo, outros garantem que circulam sem qualquer inquietação, embora os cuidados a tomar variem de acordo com a hora do dia e do contexto em que os trânsitos acontecem. Em sintonia, são também desenvolvidas estratégias próprias e únicas para lidar com o perigo. Elas podem implicar sair sempre acompanhado à noite ou regressar a casa de táxi. Podem significar mudar de hábitos, como, na rua, o de deixar de fumar um cigarro noturno à janela, para que um “traficante” vizinho não se sinta, equivocamente, “espiado”. Ou que, ainda na rua, a Nossa Sr.ª da Silva, santa padroeira numa capela das proximidades, deixe de ser enfeitada com o ouro que lhe tem sido oferecido. Num ou noutro cenário, entre as tarefas mais difíceis que se colocam ao etnógrafo, diz Gilberto Velho (2003: 13), está a de “transmitir o clima, o tom, do que está descrevendo”. É o que sucede, e não será excessivo lembrar, como já tinha advertido Ulf Hannerz (1970: 15), que esta é, mais do que uma perspetiva antropológica, a perspetiva de um antropólogo, a quem caberá fazer uma interpretação ordenada das complexidades algo desordenadas da vida.

6Os percalços colocados pela vontade de utilizar nos estudos acerca da vida nas cidades “os mesmos pacientes métodos de observação despendidos” pela antropologia clássica (Park 1973 [1916]: 28) estão bem descritos na literatura (Foster e Kemper 1974; Eames e Goode 1977; Agier 1998; Magnani 2002; Cordeiro 2003). O principal risco seria o de retalhar num universo amplo, complexo e articulado, unidades “etnografáveis” e acreditar que elas funcionariam de facto como uma ilha isolada nesse universo (Velho 2004). A rua e a praça foram escolhidas como os lugares da observação. A primeira porque mimetizaria certas problematizações que vinham a ser formuladas em torno da insegurança portuense; a segunda porque ali estariam, à data, a congeminar-se processos sociais que poderiam lançar luz sobre alguns dos sentimentos e práticas desenvolvidos em torno do crime e da violência carioca. Porém – porque a identificação das “entidades observáveis” é já “parte substancial do próprio processo de investigação etnográfico” (Cordeiro 2003: 3) – a sua delimitação foi sendo efetivamente construída à medida que a investigação foi avançando.

7Quando se fala da rua ou da praça, não se lhes refere em termos rigorosamente espaciais, mas às relações de vizinhança para que elas remetem. Estas primeiras páginas servem o propósito de as recortar como lugares antropológicos (Augé 2005) nos significados nativos, sendo gradualmente explicitadas as suas dimensões identitária, relacional e simbólica.

8As relações de vizinhança e, nelas, os nós vicinais mais circunscritos adquirem sentido no plano microssocial do quotidiano e podem ser bem capturados nas práticas ordinárias que compõem a vida local. Eles são feitos, como se verá adiante, de relações de amizade e de inimizade, de cooperação e de segregação, de entreajuda e de conflito. António Firmino da Costa (1999: 297) chamou a esses planos intermédios entre o indivíduo e a cidade “quadros de interação local”, fundados nas características morfológicas, relacionais e simbólicas dos sítios, uma ponte entre as estruturas sociais e as práticas que lhes correspondem. Do cruzamento entre o espacial e o nternacional, Michel Agier (1998) propõe ainda duas definições de lugar urbano. A primeira, externa, mais cartográfica, que toma a cidade inteira como referência, coincide com a região moral de Robert Park.3 A segunda, a partir de dentro, toma a pessoa como uma “série de mediações sociais”. Tanto na rua como na praça foram usadas as duas coordenadas, embora em percursos de investigação distintos.

9A rua começa num dado ponto e termina noutro. Foi a partir da sua aparente simplicidade morfológica que ela foi inicialmente abordada. A praça colocava outros desafios. A vizinhança que ela representa revela-se grande, ao contrário da pequenez da rua, de enorme complexidade em termos das fronteiras “naturais” que se lhe poderiam precisar e, talvez mais importante, não necessariamente relevante como um todo para os temas sob análise. Depois, a disponibilidade de tempo foi exígua se comparada com aquela de que se dispunha para o Porto. Havia que localizar “experiências suficientemente significativas”, suscetíveis de serem circunscritas simbolicamente (Velho 2004: 16), e havia também que fazer refletir as suas relativamente pouco estruturadas redes sociais (Mitchell 1969).4

10O que estava em causa era a identificação de um campo abstraído da vizinhança mais ampla, composto por pequenas tramas, onde se desenrolassem e se pudessem reconhecer diversas situações distintas de envolvimento individual e, por consequência, de assunção de papéis relevantes no quotidiano local. Como se veio a verificar, essas nodosidades moldariam uma determinada relação com a praça. Focado mais nas ligações estabelecidas entre os vizinhos do que propriamente nos atributos individuais, foi assim circunscrita uma rede de interação entre pessoas que, tomada como um todo, serviu para iluminar melhor o seu comportamento coletivo. A unidade já não estaria então definida por limites espaciais, mas pelos limites definidos pela situação (Mitchell 1969). Acabou por suceder algo semelhante na rua. A permanência longa no terreno permitiu identificar-lhe diversas ruas dentro da mesma rua – desde logo a parte de baixo e a parte de cima –, revelando fronteiras de grande plasticidade, sobretudo sentimentais, e a etnografia transformou-se, enfim, numa etnografia de “meia rua”.

11Como tinha sido dito anteriormente, o trabalho não se confinou à rua e à praça e estendeu-se aos territórios adjacentes, primeiro à Baixa portuense e à zona sul carioca e, posteriormente, ao eixo Foz-Boavista, embora tenha sido naqueles dois lugares, na rua e na praça, que um conjunto de relações se revelou especialmente acessível ao investigador. Fui seguindo as redes de interconhecimento que as primeiras pessoas com quem travei conhecimento me proporcionaram. De resto, o trabalho etnográfico – intensivo e proximal, por definição – assentou na observação dos quotidianos (Jenks e Neves 2000), tendo sido operacionalizado através da observação participante, com recurso à realização de entrevistas abertas e informais, cuja condução procurou respeitar o mais possível as condições naturalistas de registo que o método aconselha.

12As pessoas com quem tive oportunidade de conviver (jovens, adultos e velhos, numa média de idades em torno dos 60 anos) encontravam-se, numa sensível maioria, estabelecidos na rua há várias décadas (cerca de 40 anos, em média), formando uma espécie de núcleo duro da rua. Detêm educação formal ao nível do primeiro ciclo, estão reformados ou, tendo idade para se reformar, mantêm-se em atividade no comércio e/ou serviços locais. Como em Winston Parva (Elias e Scotson 1994 [1965]), os estabelecidos – os antigos – constituem-se, até certo ponto, como os agentes da normatividade, definindo por essa via parte da história oral da rua.

13A rua e a praça constituem universos muito diferentes e são-no sob diversos pontos de vista. A rua é definida à cota baixa pelo largo dos Cónegos e, à cota alta, pelo largo da Coudel, e é marcada por um conjunto de artérias que compõem seis pequenos quarteirões. A rua Engenheiro Edgar Cardoso tem o efeito de a dividir em duas – é próximo desse cruzamento de ruas que se situa o estaminé. A rua dos Madeireiros, que se adensa no sentido da zona histórica, acompanha-a a sul e mantém com ela uma relação familiar, facilitada pelas duas minúsculas travessas que abrem passagem entre elas e que fazem assim os quatro quarteirões interiores. A rua do Clero acompanha-a a norte, exceto por um troço curto, a rua da Elevação.

14A rua de Baixo funciona então como uma espécie de fronteira invisível entre os dois espaços-tempo (Pereira 1994; Rodrigues 2003) que aquelas duas outras ruas também ilustram, Madeireiros e Clero: um que é interior, intramuralha, de malha urbana antiga, labiríntico, cujo fechamento a rua de Baixo bem ilustra; o outro, extramuros, é favorecido pela sua elevada visibilidade social. O contraste faz-se com a Baixa e a monumentalidade dos espaços contíguos que distam dali menos de dez minutos a pé: a torre dos Clérigos, talvez o de maior carga simbólica na cidade, a cadeia da Relação, a avenida dos Aliados e a Câmara Municipal do Porto, a praça dos Leões, onde está instalado o principal edifício da Universidade do Porto, a estação de São Bento, o Palácio da Justiça, o café Piolho, um dos mais populares entre os estudantes e os boémios.

15A mancha vulgarmente designada de centro é aqui formada pela zona histórica ou centro histórico, que, desde 1996, é Património Mundial da UNESCO, e pela Baixa. Esta permanece associada a um imaginário que é, por um lado, comercial – é o espaço tradicional dos cafés, das lojas, das pastelarias, das compras e, mais recentemente, da diversão noturna e do turismo – e, por outro, epicentro da sociabilidade coletiva – quando ela se manifesta em concentrações de protesto ou em comemorações, como quando o Futebol Clube do Porto é campeão. De limites mais imprecisos – toda a gente sabe onde é, mas ninguém é capaz de dizer exatamente onde começa e acaba – a Baixa circunscreve-se naquele mapa, a norte, pela praça da República, a sul, pela Ribeira, a ocidente, pelo jardim das Virtudes e, a oriente, pela praça da Batalha.

16A Vitória distingue-se de outras freguesias que tinham já sido alvo de investimento mediático, turístico e/ou patrimonial anterior, como São Nicolau (a Ribeira), cuja frente ribeirinha faz o cartão-postal da cidade, ou o bairro da Sé, o seu berço original, ambas mais intensamente calcorreadas pelos turistas que visitam o Porto. Ainda que “espaço emblemático da identidade portuense”, onde é “reputado habitar uma população fortemente enraizada e com um estilo de vida muito próprio” (Santos 2003: 32), um território transformado em “objeto ‘típico’”, onde supostamente a vida se pautaria pela “entreajuda e as vizinhanças fortes” (Pereira 1994: 248), traços que pressupõem grande homogeneidade nos estilos de vida e nas sociabilidades, não obstante ainda a sua posição central, a rua de Baixo, pode dizer-se, é um espaço razoavelmente oculto no panorama geral da urbe. Trata-se de mais uma rua “invisível no coração da cidade” (Cordeiro 1997: 76).

17A praça Nove, no bairro do Jardim Botânico (JB), está engastada no sopé do Corcovado. O acesso àquele pequeníssimo semicírculo faz-se a partir da rua do Herbolário, de tráfego muito intenso. Também de sentido único, as duas artérias que lhe dão passagem começam desde logo a antecipar o recato do sítio, uma para chegar e a outra para sair. Um acesso alternativo, interior e pedonal, é tornado possível por uma escadaria, a mesma que foi referida a propósito do mutirão, que plagia, no colorido dos azulejos, uma outra – a escadaria do Selarón, na Lapa – conduzindo a outras duas ruas, cujos cumes dos condomínios podem ser avistados a partir da praça, e que, encostando à floresta da Tijuca, a acompanham pelo lado superior.5

18O espaço está organizado através da disposição do equipamento urbano (um parque infantil, um pequeno campo de futebol). Os prédios elevados em altura, que ocupam em quase exclusividade as ruas residenciais da envolvente, rareiam na praça, sendo substituídos por uma maioria de habitações de dois e três andares. O comércio, exceto no início de uma das ruas de acesso, é inexistente. Os bancos de jardim a toda a volta e um arvoredo denso conferem-lhe aquela tonalidade bucólica de que falava.

19O primeiro arrastão que, em 2008, teve lugar na praça coincidiu com um jogo de futebol entre crianças que aí decorria semanalmente.6 Entre as vítimas, contaram-se pais, mães e babás (amas) que aguardavam o fim do jogo. Desde então, por questões de segurança, as aulas de futebol foram interrompidas.

20As diferenças não se esgotam nas condições ambientais. As suas circunstâncias sociais, designadamente o estatuto de um lugar e de outro no contexto alargado da cidade – sendo o “modo de morar” (Velho 2008a) uma expressão da diversidade urbana – são também muito distintas. Refiro-me à visão “dualista” que distingue “dois níveis de cultura dentro de uma sociedade, relacionados não só à desigualdade económica e política, como, de um modo geral, a visões de mundo e experiências sociais peculiares” (Velho 2003: 64). Assim, o grupo constituído a partir da rua de Baixo seria formado por uma franja “popular” e o grupo formado na praça Nove por uma franja de “elite”. De sublinhar que não se considera que aqueles grupos sejam estanques ou homogéneos. Pelo contrário, eles estão dotados de dimensões relacionais e interativas, recobrindo-se de diversos matizes. Por outras palavras, ou não fosse a sociedade complexa feita de um “intenso processo de interação entre grupos e segmentos diferenciados” (ibid.: 38), estes segmentos poderiam desdobrar-se em inúmeros outros.

21Reputada como razoavelmente segura, a praça é apontada como um “lugar adequado a crianças e a babás”, o que é confirmado pelos inquéritos de vitimação que comparam os bairros da zona sul com outras partes da cidade (Azevedo, Pinto e Dirk 2004). Entre os atributos indicados pelos residentes está a qualidade de vida proporcionada, o que não impede que a violência seja apontada como o maior problema da região (ibid.).

22Excluindo os que mantêm com a praça uma relação assente no trabalho, a esmagadora maioria dos participantes nasceram e cresceram na zona sul, e quase metade no JB. E, ainda que mais de um terço tenha vivido fora do Brasil durante algum tempo, a maioria é morador de longa data. São mais jovens do que os participantes da rua de Baixo (média de idades a rondar os 44 anos) e o tempo de permanência é menor (19 anos em média), mas ainda assim elevado. Os mais jovens, quando emancipados da família, às vezes por questões de conveniência, estabeleceram-se nas proximidades. Em todo o caso, grande parte mantém com a praça uma relação estreita – porque a frequentam regularmente, porque a frequentam os seus filhos, porque estão ou estiveram envolvidos em movimentos de preservação do bairro.

23São sobretudo profissionais liberais – designers, arquitetos, tradutores, jornalistas, professores, gestores, artistas. O perfil pode ser definido por um conjunto de critérios que vão além da dimensão puramente económica: a qualidade da habitação, a capacidade de empregar terceiros ao seu serviço para tarefas domésticas, certos hábitos de lazer que incluem a participação na vida cultural e social da cidade, a possibilidade de viajar para fora do país, deter formação superior e/ou uma ocupação intelectual. O que distingue estas pessoas não é tanto o rendimento, mas um estilo de “consumo sofisticado”.7

24Não se trata propriamente de um lugar “habitado por ricos no sentido que aqui damos a rico”, foi-me explicado. A reserva parece ser consensual e generalizada quando se trata de manifestações exteriores de riqueza, embora se possa dizer que se trata de um universo intelectualizado, abonado, bem relacionado e com prestígio social. Alguns têm ali casa alugada e não casa própria, ocupam apartamentos cedidos pelos pais ou dizem ter encontrado no JB uma alternativa aos bairros de Ipanema e Leblon, mais dispendiosos. Em todo o caso, os participantes tendem, de forma geral, a integrar uma elite, se não em termos dos rendimentos, em termos de capital social e cultural, o que os coloca em posição, ao contrário da circunstância em que se encontram os moradores da rua de Baixo, de influenciarem as instâncias produtoras de discurso.

25Numa circunstância quase diametralmente oposta ao enumerado para o JB, as freguesias que compõem o centro histórico do Porto são descritas como uma área desertificada, predominantemente feminina e envelhecida, onde se destacam fragilidades sociais que refletem desvantagens acumuladas nos indicadores da educação formal e dos rendimentos. Tratando-se de um contexto caracterizado por “múltiplas desigualdades” (Daly 2003), o sentimento de insegurança teria facilidade em instalar-se.

26Entre os estabelecidos, a entrada na rua fez-se quase sempre através de familiares que já haviam encontrado ali instalação, frequentemente através do trabalho ou através do casamento – para aprender um ofício, o de sapateiro ou o de alfaiate, somando-se à teia de relações de vizinhança uma outra tecida pelas relações familiares. Os que vieram para trabalhar, chegaram muito novos, entre os nove e os 16 anos. Parte dos que saíram da rua, alguns familiares das pessoas que entrevistei, foi porque casaram e não encontraram na zona habitação adequada à família. Vivem agora, a maioria, noutras ruas da zona histórica ou adquiriram habitação própria nas cidades próximas do Porto, ainda que mantenham a ligação com a rua, seja pela família seja pelo trabalho. Alguns, por um ou outro motivo – por questões económicas, por ruturas familiares, porque receberam uma herança – regressaram.

27Como dizia, do ponto de vista da (in)segurança, a rua e a praça são muito distintas. A primeira, localizada no coração da cidade, tida como uma zona “vulnerável”, é assinalada por um conjunto de sinais de desordem que variam entre o edificado degradado e devoluto e marcadores tipicamente associados ao desvio. A praça, um espaço “privilegiado” e mais periférico, no sentido geográfico do termo, é sinónimo da qualidade de vida da zona sul do Rio de Janeiro. Num e noutro caso, em sintonia com os resultados habituais dos inquéritos de vitimação, as ruas familiares das imediações inclinam-se, independentemente dos episódios criminais que vão sendo relatados, a ser sentidas como razoavelmente seguras. O perigo prende-se então com uma dispersão de elementos que mistura o anonimato, a estranheza e a diferença para definir a ameaça que o Outro inspira. Enfim, os elementos que têm sido apontados, de Simmel e Park a Jane Jacobs, a Lyn Lofland e outros, para distinguir precisamente a originalidade da vida nas cidades. Mas estas deambulações dizem ainda pouco sobre como a (in)segurança é localmente vivida.

5.1. Vizinhanças: os olhos da rua e o compromisso na praça

“Eu considero o Jardim Botânico o melhor bairro que tem. Porque ele é perto de tudo, ele é perto do mar, da lagoa, tem essa beleza que eu nem preciso falar. Ele ‘tá colado ao morro do Corcovado, tem esse verde todo exuberante, aqui, dessa beleza infinita. A minha casa ‘tá a cinquenta metros de uma pracinha pequena bucólica, linda, onde as crianças brincam à vontade. A qualidade de vida do Jardim Botânico é muito boa. Não tem mendigo.” (Matilde, 65 anos, a propósito do bairro JB e da praça Nove, RJ)

28As relações de vizinhança são uma entre as diversas formas de interação que tomam lugar nas cidades e, em moldes muito distintos, elas animam a vida social da rua de Baixo e da praça Nove. À parte delimitações administrativas, vizinhos são aqueles cujo local de moradia, ou mesmo de trabalho, é próximo; não apenas no sentido em que o território é partilhado, mas no sentido em que as pessoas – os vizinhos – se reconhecem mutuamente como tal e reconhecem igualmente a ligação ao lugar (Hannerz 1980). Para o seu funcionamento concorrem inúmeros fatores: as circunstâncias materiais do espaço, onde se incluem possibilidades para a delimitação de fronteiras, bem como o grau de fechamento da área, a permeabilidade à participação de outros, o grau de compromisso em empresas comuns e/ou o investimento que é feito naquele e noutros lugares (ibid.). Esses são elementos que integram, por um lado, o jogo que se joga entre a privacidade e o anonimato, entre o que é público e o que é do foro íntimo, fazendo, em suma, a convivialidade dos sítios. Por outro, eles são suscetíveis de influenciar a maneira como a insegurança é vivida na medida em que ora favorecem ora embaraçam o exercício das funções naturais de vigilância que caberia às redes de vizinhança exercer.

29É nesse sentido que Jane Jacobs (1993) atribuiu às ruas um papel protagonista na vida das cidades. É nelas que vão sendo geridas as relações anónimas, é nelas que se desenrola o “drama que opõe a civilidade à barbárie” (ibid.: 37). A cidade bem-sucedida seria aquela em que as pessoas se sentem seguras. O “medo das ruas” não pressupõe um número especialmente elevado de eventos violentos, mas uma vez que elas são temidas, as pessoas usam-nas menos, o que as tornaria efetivamente menos seguras. A paz social é, então e sobretudo, mantida através de uma rede intrincada de vigilância informal, mais ou menos inconsciente, posta em marcha pelos seus “proprietários naturais”. Quando essa paz só pode ser garantida por mecanismos mais formais, como as forças de segurança, a impressão, prossegue Jacobs, seria a de se viver numa “selva urbana”. A oportunidade de vigiar o que vai sucedendo é, por consequência, reflexo das redes de interação que vão sendo definidas e, especialmente, da intimidade e da confiança que lhes assiste, mecanismos que estão, por várias razões, mais facilitados na rua. A sua estreiteza favorece a intensidade emocional das trocas e o estabelecimento dos laços vicinais, numa densidade que se alimenta dessa proximidade espacial e dos cruzamentos frequentes. A malha urbana na envolvente da praça é, pelo contrário, mais aberta, nada labiríntica, mais penetrável, e a vigilância adquire aí um caráter mais intencional, em contraste com a espontaneidade que prevalece na rua.

30A expressão ouvida com frequência tanto na rua como na praça – “isto é uma aldeia” – remete para as relações de interconhecimento desenvolvidas ao longo de um período alargado de tempo. Essa circunstância começa por contrariar a ideia da cidade como palco privilegiado da diversidade social, do anonimato, da liberdade e do encontro com o Outro e também a ideia de que, numa época marcada pela individualização, desterritorialização e globalização, os lugares tenham encolhido em termos de importância, o que, de resto, já tinha sido refutado por Crow, Allan e Summer (2002). A “cidade” seria, em oposição à “aldeia”, o lugar onde cada pessoa poderia melhor controlar a disponibilidade de informações acerca de si, ou seja, de regular a sua exposição ao olhar alheio. Mas a impressão de “todos se conhecerem”, bem como a forte tonalidade afetiva que acompanha as manifestações de apreço pelo local de moradia, são comuns num lugar e noutro, contrariando a hipótese do declínio da sua relevância na vida quotidiana.

31São aspetos apontados com insistência tanto pelos mais velhos como pelos mais novos, apreciados como sendo oportunos de sítios onde “todo mundo se conhece”, onde “você fala com os vendedores na rua”. Sem excluir a presença de conflitos, as sociabilidades são descritas como sendo próprias das que se desenrolam numa “cidade pequena” ou “interiorana”, ou entre os elementos de uma “família”, em contraste com “Copacabana [onde] todas as pessoas são estranhas, você nem conhece o vizinho que mora no prédio ao lado”. Quem o diz é Matilde, 56 anos, uma médica reformada, que vive num apartamento a cerca de 50 metros da praça Nove.

32Estando entre os sócios fundadores de uma das associações de moradores do bairro – chamo-lhe associação JB – tem cavalgado muitas batalhas na defesa dos interesses do lugar. Com subtileza, ela vai fazendo nota de que nem todos os vizinhos contribuem de igual forma para as qualidades excecionais do bairro. Por outro lado, este distingue-se de outros, como Copacabana – que irá surgir adiante, não só como lugar destacado na hierarquia dos espaços perigosos da zona sul do Rio de Janeiro, mas também enquanto símbolo da sua decadência –, lugar onde ninguém se conheceria.

33Estes discursos são feitos, muitas vezes, a partir de exercícios de oposição. O contraste estabelecido com outros territórios, cujas convicções locais asseguram ser tão distintos, ajudam a acentuar as características tidas por únicas, demarcando, primeiro, temporalidades e fronteiras externas. Depois, eles deixam emergir fronteiras internas e, por último, descortinam mesmo conflitos. Por vezes, geram-se clivagens profundas e a interação está envolvida em climas de tensão acentuada. Ser morador coincide, até certo ponto, com ser de dentro, embora esta não seja uma garantia de pertença. Entre os moradores, como se verá, encontram-se linhas divisórias e, em situações mais extremas, “traidores desleais” (Douglas 1996) também.

34A vontade de preservar a vida do bairro, bem como alguns dos seus edifícios, das transformações que atravessam o resto da cidade, nomeadamente a sua gigantização e respetivas consequências, coisa que terá sucedido com Copacabana, encontra-se entre os vários objetivos da associação JB. A sua missão é preservar a qualidade de vida da região, que está implicitamente associada a um tempo antigo. Salvador, também um morador de longa data, embora tenha vivido dois anos em Paris, gestor de profissão, sócio fundador da mesma coletividade, crescido na zona norte, Engenho de Dentro, região que, por motivos de segurança, atualmente evita, explica com afetuosidade que “apesar do crescimento, [o bairro] ainda guarda assim alguma coisa do passado”. Essa mesma vontade está bem patente, por exemplo, num traço relevante que as casas da praça, mas não as das ruas contíguas, apresentam na generalidade – elas não estão protegidas pelo gradeamento ostensivo que é a tendência em grande parte da cidade. Esta constitui uma marca distintiva da vizinhança.

35De forma idêntica, a rua é descrita como um sítio onde as pessoas “notam a falta dos outros”, qualidades que são destacadas por oposição aos subúrbios do Porto, “dormitórios onde ninguém se conhece”, ou aos seus bairros sociais, onde “cada qual está metido no seu canto”, refletindo a apreciação que é feita de outros endereços que se oferecem como prováveis. Amélia, nascida e criada na rua, proprietária de um edifício oitocentista que herdou do marido da mãe, explica que, ao contrário de outrora, não gostaria de morar ali. Considera que já não se trata, como antes, de “uma família”. “Nós conhecíamos as pessoas, entrávamos e comíamos nas casas uns dos outros. Conhecíamos toda a gente.” Agora, acusa que “metem-se muito na vida das pessoas. Não podem ver as pessoas com nada, percebe?”. O prédio, que vai alugando em pequenas frações, permitiu-lhe comprar um apartamento em Rio Tinto, fora da cidade, para onde se mudou há cerca de cinco anos com o marido. A vida passada na rua é, em geral, lembrada como pacífica, segura e harmoniosa, mas o conflito está igualmente subentendido nas suas palavras e prende-se, neste caso, com a sua saída, uma possibilidade que se coloca com frequência no horizonte de expectativas dos moradores, contrariando, se não mesmo ameaçando, a estabilidade da biografia residencial da maioria.

36As fracas condições de habitabilidade, a exiguidade dos espaços, as rendas que consideram elevadas, a progressiva degradação do edificado e, mais recentemente, a especulação imobiliária obrigam as pessoas a ponderarem outras opções que não se afiguram simples. As mais comuns são precisamente os bairros de habitação social e as cidades dos subúrbios, como Rio Tinto, Vila Nova de Gaia ou Gondomar. No primeiro caso, eles são sinónimo, quase sempre, de mobilidade social descendente. No segundo, tratando-se de uma oportunidade de comprar casa própria – uma alternativa mais económica aos preços praticados no Porto –, é sinal de mobilidade ascendente e, portanto, do sucesso económico da família em causa. Essa circunstância é suscetível de gerar “as invejas” de que Amélia se queixa, obrigando a um intrincado jogo de justificações para sair ou para ficar.

37A deslocalização para os bairros periféricos é vivida, na generalidade, com preocupação. Uns aceitam-na, ainda que contrariados, como forma de conseguirem melhores condições. É o caso de Luísa, que vive na rua desde que casou, mas que é originária de uma freguesia rival, o bairro da Sé. Ela ocupa, com o marido e os netos, um apartamento exíguo. Outros rejeitam-na violentamente. Os “bairros” são tidos como produtores da desviância – porque “a população acaba por se degradar a ela própria, ou degradar a família, porque é muito difícil controlar-se uma família em determinados bairros”, explica Óscar, que defende o investimento público na região. Oriundo de uma freguesia periférica, Paranhos, chegou há 37 anos, “encantado” por uma mulher com quem se viria a casar.

38Sofia, que também veio quando casou, viu as suas filhas nasceram e crescerem ali. Atualmente, uma delas mora com a família também na zona histórica e a outra num bairro. Ela “morava aqui nos Madeireiros, a casa dela estava a cair e mandaram-na para o bairro pior que podia haver. Aquilo é só tiros, ela não pode ir à rua com o cão, que até as próprias crianças andam armadas”. E afirma que, “para sair da sua casa antiga para um bairro e não ter segurança nenhuma e ir à rua e acontecer alguma coisa”, acha “que não vale a pena”. Sofia faz nota de uma representação generalizada acerca daqueles espaços – a perigosidade. A CMP também procurou realojar num bairro Gustavo, de 80 anos, morador da rua desde os nove. Veio com essa idade para aprender o ofício de sapateiro. Conta que resistiu, que contratou um advogado e ganhou. Foi transferido para uma outra rua da freguesia, para uma casa tradicional, bem recuperada.

39Em casos mais excecionais, as rendas elevadas, que não se justificariam atendendo à falta de qualidade das habitações, são o motivo apontado para sair – “as casas não merecem; não têm privacidade nenhuma. Dá-nos uma dor de barriga e não temos um quarto de banho ali” – explica Josefina, inquilina de Amélia. Viveu mais de 40 anos na rua e está de mudança para o bairro da Pasteleira. A observação é uma censura subtil à sua senhoria. O que é lamentado é a impossibilidade de comprar casa no centro, por ser demasiado caro, ou o facto de a CMP não recuperar os prédios devolutos, de que é, na convicção local, muitas vezes proprietária. A crítica estende-se dos senhorios, que não recuperam o edificado, às instituições, ilustrando o conflito com os agentes protagonistas da transformação da cidade. Luís, que nasceu e cresceu na parte de baixo da rua, foi, juntamente com a mãe com quem vivia, recentemente realojado num bairro camarário, e resume-o assim:

“A CMP quer desalojar as pessoas daqui do centro e fazer do centro uma zona ex-líbris, uma zona fenomenal, uma zona maravilhosa. A lógica do costume: desalojar do centro; com o centro preocupam-se, fazem obras, fazem aquilo tudo, fica tudo muito bonito, e quem é pobre está nas periferias; então, estão a comprar o centro porque quem é rico não está na periferia”.

40A essa malha intrincada, que vigia quase inconscientemente, Jane Jacobs (1993) chama os “olhos da rua”. Entre as pistas que podem descrever a experiência que a rua de Baixo infunde, a mais imediata é a que se prende com as sensorialidades, a profusão de estímulos que apelam aos vários sentidos: a sonoridade, os cheiros, as imagens que transportam para um lugar distante do frenesim da Baixa. Os cães com coleira que circulam livremente e que depois se encontram – os mesmos cães – a deambular noutros lados, como nos Aliados ou em S. Bento. Os estendais e a música que sai pelas janelas, o palavrão no fim de cada frase, vernáculo típico, as pessoas nos peitoris, as que se sentam na soleira das portas, os vasos de flores nas varandas, o barulho agora mais distante dos carros, o cheiro a fritos vindo das tascas, o cheiro a “ganza” no cimo da rua. Enfim, uma panóplia de marcas de apropriação (Taylor 1989) físicas e simbólicas que sugere, ao contrário do que sucede com o edificado, que o lugar é de pertença.8

41Os desconhecidos dificilmente passam despercebidos. Paulo, estaminense, diz que, “como é fechadinho, mais pequenino, toda a gente que entra aqui [na rua] normalmente conheces ou percebes as intenções”. Dina, nascida e criada na freguesia, mas recém-instalada na rua, expressa a mesma ideia – “nota-se logo o tipo de pessoa que vem para aqui passear e que não é daqui. No tipo das pessoas se vestirem, a andarem, falarem… não é? Só a presença, vê-se logo que a pessoa não é daqui”. Vizinha “porta com porta” do estaminé, é utilizadora de drogas e encontramo-la frequentemente em zonas de animação noturna a angariar fundos para o produto. Volto à história de Dina e da sua cunhada, Bia, adiante.

42A mesma dinâmica registada por Dina a propósito dos de fora prolonga-se aos de dentro. Pelo seu acanhamento, pelas portas e janelas voltadas umas para as outras, pelo comércio que se abre para a rua, ela oferece grande exposição aos movimentos dos moradores e facilita o exame recíproco das atividades que vão decorrendo. Uma velhinha postada no peitoril da sua janela, onde se deixa ficar longas horas, espreita diariamente o que vai acontecendo na sala principal do estaminé, cujas grandes aberturas, sem cortinados, se lhe oferecem à observação. A varanda que se cola à janela dos nossos vizinhos – Dina, o marido e o filho de ambos – serve muitas vezes a troca de pequenos favores, uma mortalha para o cigarro de enrolar ou uma cerveja que está a fazer falta. A oportunidade de contemplar os outros a entrar e a sair de casa, a utilizar os serviços e o espaço público auxilia o reconhecimento mútuo.

43Já a praça funciona como um catalisador das relações entre vizinhos. Remetendo igualmente para redes de interação e de pertença, ela é um símbolo e “um fator de agregação”. “As pessoas gostam e unem-se pelo bairro”, explica Rita, 38 anos, moradora das proximidades, junto ao parque Lage, jornalista de profissão e, como a própria sublinha, mãe. Matilde já o tinha antecipado quando descrevia as iniciativas da associação JB. O nome de algumas coletividades locais ilustram-no – “Os amigos da pracinha” ou “Os moradores e amigos do bairro do Jardim Botânico” – indicando que os laços são mais de natureza afetiva e convivial do que geográfica. Assim, os que se tomam por vizinhos residem em várias ruas do bairro e não necessariamente na praça, não se confinando a áreas de vicinalidade tão imediatas.

44Rita é, juntamente com outros, responsável por um site dedicado àqueles que são pais e que encontram na praça Nove um espaço de convívio. Gere ainda um dos quatro jornais locais que circulam no bairro, o JB Papel. Esse jornal funciona como “um instrumento da comunidade para pressionar as autoridades, as instituições, tem conteúdo”, explica. Os outros três são essencialmente “comerciais”. A afabilidade que caracterizaria a vida do bairro seria um dos seus aspetos singulares e a praça, mais do que um espaço de lazer, seria então “um polo cultural” em torno do qual as pessoas se organizariam.

45Mas na praça propriamente dita residem poucas pessoas. Os edifícios presentes são em pequeno número e o grosso dos vizinhos mora nas artérias das imediações. Em sintonia com a tendência de privatização dos espaços tradicionalmente comunais (Sennett 1992; Davis 2003; Moura 2006; Seixas 2003), os prédios elevados em altura, a maioria condomínios fechados, ainda que não necessariamente idênticos à lógica dos enclaves fortificados (Caldeira 2000), são pouco permeáveis e não permitem facilmente a observação das atividades dos outros. Trata-se do culminar da transferência das “funções conviviais do espaço público […] para o domínio privado, cada vez mais intimista, ao abrigo do olhar e da intrusão de estranhos” (Rodrigues 1985), uma conquista essencialmente burguesa (Sennett 1992). O sentimento de insegurança não faria mais do que o acentuar.

46Fazer uma visita a um desses condomínios envolve ultrapassar um conjunto de dispositivos que substituem a função que a janela exerce na rua de Baixo. Primeiro, tocar a uma campainha cujo acesso não é feito diretamente ao apartamento pretendido, mas ao porteiro. Enquanto é aguardada a resposta, este observa o visitante através de uma câmara. Há depois que explicar, pessoalmente ou através do intercomunicador, quem se pretende visitar e o motivo. O mesmo porteiro transporta a mensagem ao visitado que autoriza ou não a entrada ao visitante. Em todo o caso, esse processo não se observa somente no bairro. Acontece o mesmo, como tive oportunidade de verificar, na generalidade dos edifícios que visitei na zona sul do Rio de Janeiro e, ainda que mais raramente, no eixo Foz-Boavista, no Porto.

47O tipo de convivialidade dos grupos médios e elevados que habitam o JB segue a mesma lógica, particularmente no que respeita ao comportamento no espaço público. Exceto pelas trocas ocasionais e fugazes do quotidiano, a interação não é propriamente casual. A participação tende a ser bem contextualizada em atividades organizadas, como aquelas que Rita destina às crianças. Os seus objetivos e horários costumam estar bem definidos. Por exemplo, o sebinho nas canelas, uma troca de livros usados entre crianças, que decorre aos sábados de manhã, “tem hora para começar e acabar, fica tudo limpo, é infantil”. Verifica-se o mesmo com a ocupação da praça durante as manhãs dos dias da semana. As crianças chegam por volta das nove horas, acompanhadas pelas babás, e regressam a casa para almoçar. Como o bairro tem uma oferta razoável de serviços, também serve outros tipos de distração. Assim, apesar de “manter essa coisa interiorana, ao mesmo tempo você ‘tá em contato com vários outros bairros da cidade”, tem um lado “cosmopolita” porque “também tem pessoas de todos os lugares”, explica Marisa, 35 anos, que nasceu e cresceu no bairro, embora tenha vivido alguns anos em Santa Teresa.

48Ainda que no Rio de Janeiro, e no Porto também, seja bem observável a inclinação dos grupos médios e de elite a promoverem certa dose de autossegregação, de tradição antiga, o caso da praça Nove revela como, a par dessa disposição, permanecem exemplos daqueles que insistem na ocupação coletiva do espaço público. Como se verá adiante, a sua apropriação assenta em estratégias suscetíveis de o semiprivatizar. Os moradores do JB são, todavia, levados tanto pelo trabalho como pelo lazer a outras partes da cidade, restando-lhes menos tempo, se comparados com os moradores da rua, para ocupar e permanecer por longos períodos na praça. É o que sucede quando viajam em férias. Os hábitos de participação na vida cultural e social da cidade incluem a frequência de teatros, cinemas, exposições e restaurantes.

49O cosmopolitismo está quase ausente da rua de Baixo. Aí, as esferas do lazer, do trabalho e da habitação tendem a sobrepor-se. Tal não significa que a vizinhança viva fechada sobre si própria. São inúmeras as ligações estabelecidas com moradores de outras ruas da freguesia ou de freguesias próximas, bem como os elos com outros territórios. São vários também, embora em minoria, os moradores de fora. A sobreposição daquelas esferas justifica, pelo menos parcialmente, que a demarcação clara entre espaço público e espaço privado seja frequentemente interrompida, potenciando as oportunidades de contacto social, aspetos de resto bem tratados noutras etnografias portuguesas (Costa 1999; Cordeiro 1997; Fernandes 1998b).

50Não que os moradores da rua de Baixo não sejam, pelo menos na maioria, ciosos da sua intimidade. Veremos como a capacidade de regular a exposição pessoal, a privacidade, constitui um valor de peso. Mas as circunstâncias dificilmente impedem a sua devassa. Os espaços de habitação tendem a ser diminutos, por vezes insuficientes para o número de pessoas a que se destinam e o saneamento básico está, em certos casos, ausente, sujeitando alguns a recorrer a balneários públicos. Os edifícios altos e esguios possuem uma escada comum que, não raras vezes, divide a habitação em duas, obrigando os vizinhos a passar pelo apartamento do andar inferior para chegar ao seu.

51Roberto DaMatta (1997: 96) faz contrastar esses dois universos sociais mutuamente exclusivos, o da rua e o da casa, encontrando-lhes, porém, uma dinâmica complexa – a rua “pode ser vista e manipulada como se fosse um prolongamento da casa ou parte da casa, ao passo que zonas de uma casa podem ser percebidas em certas situações como parte da rua”. À eficácia que a malha urbana apertada exerce sobre a interação acrescem outros fatores que se prendem com traços socioculturais da população. Esta estaria mais propensa a fazer do espaço privado uma extensão do espaço público, circunstância que dificilmente se observa num contexto de grupos médios e altos que, libertos dos constrangimentos do edificado, preferem estabelecer uma “distância amigável” (Crow, Allan e Summer 2002).

52As sociabilidades e apropriação apontam, no caso da rua, para um espaço intermédio entre o privado e o público, o pedaço (Magnani 2002: 32), circunscrevendo um conjunto de frequentadores de uma determinada rede de relações que é mais ampla do que aquela que distingue a rede familiar, mas mais densa, significativa e estável do que as relações formais. A maioria idosa, muitos reformados, vários desempregados, os moradores, com tempo de sobra, reúnem diversos motivos para se demorarem por longos períodos no exterior. O lazer funciona no mesmo sentido. Além daquele proporcionado pelas visitas domiciliares à família e amigos, ele está muito dependente das instituições que operam no terreno – o Terra Viva, o Centro Social e Paroquial da Vitória, ambas geridas por figuras exteriores à comunidade –, ativas na oferta de atividades dirigidas, sobretudo, às crianças, aos adolescentes e aos mais velhos. De resto, os tempos de ócio organizam-se muito em torno dos cafés da freguesia, das comemorações coletivas e da convivialidade de rua.

53As fronteiras definidas pelas suas transversais operam simbolicamente e ajudam a delimitar vizinhanças menores, funcionando o quarteirão como um programa comportamental (Taylor 1989) que emerge a partir dele e ajuda a estruturar a vida social. O principal corte é feito pela rua Engenheiro Edgar Cardoso, dividindo a rua em dois ambientes distintos. Viver na primeira ou na segunda parte tem significados e estatutos diferentes, já que, de acordo com a narrativa local, elas são diferentes e “sempre foram”. Luísa esclarece que “do princípio da rua até ao n.º 119 não se passa nada, é tudo gente que vive dentro das casas deles”. Entre o 119 e o 180 “mora lá muita gente que não devia morar. Daí para cima já é um ambiente familiar, as pessoas todas se dão bem, é uma família”. Luísa aponta redes de interação distintas que se imbuem de significados sociais e morais dissemelhantes e nas quais trata de se incluir. Os que “vivem dentro das suas casas”, de acordo com a ética local, e precisamente por não terem um relacionamento “excessivo” com a rua, são “pessoas de respeito”. Os que constituem “uma família” são, invariavelmente, os moradores antigos.

54O peso entre a função residencial e comercial contribui para aquela delimitação. A primeira predomina na parte superior, junto ao largo da Coudel, e escasseia na de baixo, junto ao largo dos Cónegos, e é visível nas marcas de apropriação, como o estacionamento dos carros. No período noturno, tratando-se de automóveis dos moradores, eles são numerosos na parte de cima e quase ausentes na de baixo. No período diurno, a situação inverte-se. O comércio segue uma lógica idêntica. Na parte de cima, ele é sobretudo dirigido ao consumo local, servindo especialmente os seus habitantes e, quando muito, os da freguesia. A funcionar em estreita associação com a rua, assegura uma observação permanente de quem passa, funcionando os comerciantes como atentos guardiões – street watchers (Jacobs 1993) – da ordem estabelecida.

55Descer a rua implica cumprimentar o sapateiro, o alfaiate, o merceeiro, a “prostituta”, os habituais das tascas. Encontrar alguém que se procure não exige mais do que uma pergunta em qualquer um destes pontos – a informação é quase sempre dada com precisão. Na parte inferior, o comércio é residual e, tal como o que existia e que desapareceu, embora persistindo na memória coletiva, destina-se a um público mais amplo, especialmente os estabelecimentos de restauração que são frequentados por utilizadores oriundos de toda a cidade. Esta circunstância facilita a atribuição de outras qualidades à parte de baixo da rua, salientadas por oposição aos atributos da parte de cima: a perceção de que aquela é “muito mais central” e muito “mais sossegada”. Essa impressão é ainda acentuada pela distância, atual e passada, de marcadores associados ao desvio – trabalho sexual, tascas e álcool, ponto de venda de drogas ilegais –, o que tornaria, de acordo com Luís:

“… o ambiente [em cima] muito mais perigoso. Culturas diferentes. E têm razão, até tenho de dar razão: eu tenho uma pistola, e quem me vier chatear eu dou um tiro de pistola… está resolvido, o gajo não tem mais palavra, morreu, acabou. Mas nós mantínhamos o respeito, era só a lei da mão”.

56O uso das janelas funciona não só como o dispositivo central na vigilância, mas também como facilitador dos laços entre os vizinhos. Na parte de baixo da rua, “não há tanta probabilidade de as pessoas virem à janela e as casas são muito mais assaltadas. Na parte de cima há sempre uma vizinha que vai à janela”, acrescenta Luísa, justificando a sensação de segurança de que goza. Nos quarteirões mais próximos do largo da Coudel é muito raro observar-se em trânsito, com exceção dos turistas ocasionais, outros utilizadores da cidade, coisa que se dilui à medida que se desce a rua. Além das conversas entre aqueles que se detêm aqui e ali por alguns momentos, as sociabilidades desdobram-se precisamente na esquina que a rua faz com aquele largo; em certa medida, um trouble spots (Hannerz 1970). Aí, podem ser identificados grupos distintos, predominantemente masculinos.

57São grupos compostos por indivíduos que estão mais ou menos desocupados. Uns arrumam carros, outros bebem e conversam, outros ainda aproveitam para petiscar com os conhecidos, como é hábito de Óscar antes de ir buscar o neto ao infantário. Entre eles, há um grupo que se destaca, constituído por jovens – os rapazes da esquina –, figuras da cena social local. Eles constituem um marcador territorial suscetível de ser lido como agressivo A sua posição à entrada na rua, a mais confortável por ser a descer, próxima dos transportes públicos, parece funcionar como um filtro, um obstáculo, à decisão de tomar este como um trajeto habitual. O grupo funcionaria como mais um dispositivo de controlo e vigilância.

58Como tinha feito notar Jane Jacobs (1993), quando os residentes não têm oportunidade de assumir o papel de “olhos” da rua, a vigilância tem de ser atribuída a outros. Porque os habitantes do JB têm oportunidade de empregar terceiros ao seu serviço, a maioria das ruas e edifícios são vigiadas por seguranças privados. Seguranças, zeladores ou porteiros, babás e outros empregados da esfera doméstica constituem uma rede diferente daquela que é sustentada pelos moradores propriamente ditos, e mantêm relações de interconhecimento que incluem outros que participam do quotidiano do lugar, nem sempre acessíveis aos seus patrões.

59A rede de vigilância é assim alongada, ainda que os arrastões de 2008 tenham vindo descortinar as fragilidades do esquema em funcionamento. Um dos seguranças, Joaquim, morador na zona da Leopoldina, contratado por um dos condomínios há quatro anos, tem por função, como descreve, “evitar que os maloqueiros entrem no mato” ou “evitar que arranhem carros”. Os “maloqueiros” são moradores de rua. Não está dentro do seu papel, contudo, evitar “um assalto à mão armada”.

60A forma como as categorias que ocupam o espaço público é percebida é também distinta da dos patrões. É o caso dos jovens que permanecem na pracinha nos fins de tarde e à noite, circunstância que é, aparentemente, pouco problematizada. Cláudia, cujo filho passa ali as manhãs ao cuidado da babá, menciona que, no fim da tarde e à noite, “não tem um clima pra criança” porque “uns meninos mais velhos, assim rapazes, vão pra fumar na praça e beber”. O tom é de condescendência e a impressão é a de que a praça é razoavelmente segura. Joaquim, bem como o seu colega, Manuel, zelador e porteiro do prédio de Rafaela há sete anos, são menos benevolentes e referem-se a esses rapazes como “filhos de papai” que lhes dificultam o trabalho:

“É difícil porque hoje em dia tem muito filho de papai, aqui, que a gente vê, a gente sabe que eles fazem coisas erradas, entendeu? Só que, se você chegar e chamar a polícia pra eles, não vai dar em nada… às vezes, os filhos dos bacanas fazem esses pequenos furtos, às vezes, fazem, quer dizer… ficar vendendo droga pros outros, entendeu? Aí na praça, aí em baixo, às vezes, a gente vê o pessoal perdendo linha…”

61Na tipologia de DaMatta (1993: 93), a praça seria “uma área de encontros, uma espécie de sala de visitas da […] cidade”. E assim é no sentido em que ela é alvo de uma intensa apropriação. Parte dessa ocupação é sustentada por um conjunto de grupos relativamente informais, mas razoavelmente organizados e mantidos com um certo sentido de ativismo, elemento quase ausente na rua de Baixo, onde as atividades coletivas estão, de forma geral, nas mãos de instituições geridas por figuras externas. Certos vizinhos assumem um papel preponderante na organização dessas atividades. É o caso de Rita. Alguns, pelo contrário, não participando, como Rafaela e o marido, que se definem como sendo “pouco ativistas” no que toca ao associativismo local, conhecem, contudo, a sua existência e reconhecem-lhes relevância na manutenção da ordem. Algumas atividades são, ainda que informais, de pendor regular, como o sebinho nas canelas. Outras são pontuais, como o mutirão liderado por Rita para reabilitar a escadaria, um conjunto de eventos que contou com a participação das crianças, dos pais e, como patrocinadores dos materiais, dos comerciantes locais.

62Algumas atividades são mais formais, estruturadas e permanentes, como é o funcionamento da associação JB, enquanto certas efemérides constituem celebrações coletivas, como as que se organizam em torno do Carnaval e das festas juninas. Sucede o mesmo quando é celebrado o aniversário de uma criança. Por exemplo, Cláudia quase nunca frequenta a praça nem está envolvida nas associações locais, mas festejou aí o aniversário do filho. Outras ainda emergem em situações críticas, como o movimento que teve origem com os arrastões de 2008.

63As relações entre as diversas organizações, embora diplomáticas, não são sempre pacíficas. A estrutura e a longevidade da associação JB, de que Matilde e Salvador fazem parte, contrasta com a informalidade do grupo que Rita lidera. A associação “é composta por pessoas antigas, é difícil conciliar ideias, são superdivididos, autoritários. Lá antiguidade é posto, não há renovação”, queixa-se Rita, cuja edição do jornal começou por ser proposta à associação. Como não chegaram a um entendimento, Rita e os seus colaboradores avançaram por conta própria. A associação JB não é a única associação de moradores do bairro. Existem outras duas direcionadas para outras funções. Não obstante as diferenças entre elas e, por vezes, os antagonismos que as separam, estes grupos, bem como os seus elementos, são percebidos como sendo de dentro – usufruem do estatuto de vizinhos – e a cortesia predomina nos seus contactos.

64Pela estabilidade da biografia residencial da maioria, pelo interconhecimento denso, pela forte apropriação coletiva, pelas tramas interativas compactas, estes lugares gozam de um certo fechamento, pouco permeáveis que são à participação de outros. Esta circunstância reforça o sentido de pertença e tem, nesse sentido, muito pouco em comum com o neigborhood of strangers de Sally Merry (1981), onde os moradores de Dover Square se cruzam constantemente com estranhos. Embora se trate de espaços de transição, no sentido em que levam de um sítio a outro, tanto a rua como a praça remetem para uma atmosfera de uma quase privacidade, transformando facilmente o transeunte num forasteiro. A frequência de outros utilizadores da cidade é reduzida. A malha social é apertada, pouco porosa para o exterior, bem observável pela quase ausência de outros que não residentes, aspetos que parecem concorrer para a impressão de que são lugares relativamente seguros.

65Porque a possibilidade de as pessoas se revelarem seletivamente ao mundo é, por vários motivos, distinta num lugar e noutro, pode dizer-se que o mesmo fim – a vigilância mútua e a regulação da interação entre os residentes e entre estes e os estranhos – é alcançado através de estratégias também distintas. Como se analisará seguidamente, a (in)segurança é percebida também nesse jogo de lugares. O estatuto – ou o sítio da rua e da praça na textura social da cidade – será determinante de como a ameaça é localmente vivida.

Notes de bas de page

1 As festas juninas celebram o Santo António, o São João e o São Pedro.

2 Um mutirão é uma iniciativa coletiva, a que subjaz um fim comum, servindo para a execução de um serviço não remunerado e seguindo, por isso, uma lógica de cooperação. É muito comum na construção das habitações populares no Rio de Janeiro.

3 As regiões morais transformam a cidade num “mosaico” de mundos que se tocam, mas que não se penetram (Park 1952 em Hannerz 1980). A metáfora assente na imagem da cidade mosaico sugere a existência de identidades transparentes, traduzidas em grupos socialmente coerentes e espacializados e a sua impermeabilidade foi, entretanto, bem desafiada (ver Agier 1996 ou Hannerz 1980). São as histórias e os imaginários que criam e recriam essas regiões, redes de vizinhança que funcionariam como mundos isolados. A identidade vem-lhes do olhar externo.

4 A análise de redes é mais flexível em termos da delimitação das unidades de estudo, cujos limites são então os da interação, ao mesmo tempo que faz refletir as relações menos estruturadas da sociedade complexa.

5 Jorge Selarón, chileno, radicado no Rio de Janeiro, deu início, em 1990, por iniciativa própria, à renovação da então degradada Escadaria do Convento de Santa Teresa, adornando-a com azulejos. Em 2005, a escadaria foi tombada, ou seja, identificada como património oficial da cidade, reconhecendo-se-lhe valor artístico e cultural. Em circunstâncias pouco claras, o artista foi assassinado em 2013.

6 Um arrastão constitui uma técnica de furto/assalto coletivo, mais ou menos organizado, dependendo do grau de espontaneidade da situação. O primeiro arrastão de que há notícia no Rio de Janeiro aconteceu na década de 1980 na praia de Copacabana e o que teve maior repercussão internacional teve lugar, em 1992, na praia de Ipanema. Ver Leite (2000).

7 Para uma descrição e análise dos elementos que contribuem para a constituição de uma “classe dominante”, a “aristocracia de estratos médios”, ver Velho (2008c [1998]).

8 As marcas de apropriação são especialmente evidentes em espaços onde a territorialidade opera com intensidade. R. B. Taylor (1987) define-a como um sistema de atitudes, sentimentos e comportamentos desenvolvidos a propósito de espaços de pequena escala, bem delimitados, expressivos da vinculação ao lugar e reguladores do acesso ao local, bem como às atividades que aí ocorrem. A principal função do comportamento territorial é o controlo social. O conceito é especialmente caro às teses da incivilidade.

Précédent Suivant

Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.