Apresentação
p. 27-33
Texte intégral
“Me entortaram. Eu tava quase morta, eu não andava, eu não sabia mais escrever, tinha perdido a fala, tava morta. Eu rastejava igual a uma cobra”.
“Continua apresentando evolução muito tumultuada, com frequentes intercorrências, com exacerbação da sintomatologia alucinatória, inadequação contínua, crises de suicídio, ameaças de agressão, confusão mental, agitação psicomotora. Vem sendo contida inúmeras vezes com necessidade do uso de medicação injetável”.
“Eu não me alembro…”.
“É uma molecada que tá vindo pra cá. Uma boa parte deles vem da cracolândia, tanto é que eles saem e voltam pra lá”.
“E aí senhor, lembra de mim? Antes mesmo que eu pudesse responder… da Fundação!”.
“O espaço assemelha-se a um buraco fétido, calorento e composto por um grude no chão. No interior, um homem sem palavras, por vezes, até parece tentar dizer algo. A tentação é a de virar o rosto, evitando que a cena se transforme em pesadelo. Pergunto se ele está bem, mas logo me dou conta de que tal pergunta é estúpida! Não há razão para perguntas, não há palavras que deem conta da situação. Olhamo-nos calados”.
1Os fragmentos descritos acima – pedaços de entrevistas, conversas, documentos e relatos de campo – são estilhaços do arquipélago. Por ora, não se sabe ao certo ao que se referem e nem mesmo quem os proferiu. Também não é possível identificar, ainda que se possa imaginar, os espaços aos quais concernem. Certamente, permitem entrever movimentos e fixações, desde a menção que revela o lugar onde se estava, passando pela enunciação que sugere o retorno ao local de onde se veio, até a referência à imobilização via medicação injetável. Alguns excertos parecem apontar para estados de definhamento, decomposição, cujas imagens que os ilustram são o corpo que rasteja feito uma cobra (“eu tava quase morta”), o olhar calado em meio ao buraco fétido, a recordação de não conseguir andar e falar, além da baba que escorre pela boca.
2Nas páginas que se seguem, esses estilhaços se somarão a outros tantos fragmentos. Somente no decorrer da leitura se tornará evidente a potência que os envolve, o terror que os atravessa, o abominável que os caracteriza, os sentimentos de repulsa que suscitam e o ímpeto de luta que alimentam. Porém, é imperioso dizer que há pedaços que jamais virão à tona, seja porque não fazem mais parte da memória – “eu não me alembro” –, seja porque não podem ser enunciados, ou pelo simples fato de que aqueles e aquelas que poderiam falar submergiram. Quanto a isso, será preciso meditar sobre o que não tem lugar nas bibliotecas do dito, por exemplo, acerca do som disforme e soturno que Primo Levi (2010) teve a audácia de tentar escutar.
3De partida, vale sublinhar que o arquipélago sobre o qual me debruço é constituído por múltiplas ilhas – abertas, ressoantes e porosas. Se a imagem é instigante, é justamente porque não designa porções de terra fechadas em si mesmas, e sim uma continuidade entre espaços que remetem uns aos outros; eles ressoam. O primeiro passo, portanto, consiste em suspender certas concepções por demais arraigadas, até porque nem mesmo os arquipélagos que brotam na imensidão do mar figuram como um conjunto de ilhas completamente isoladas. Prisões, Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (conhecidos como manicômios judiciários), unidades de internação para adolescentes, regiões periféricas, zonas urbanas como a chamada cracolândia, Centros de Atenção Psicossocial, instituições de acolhimento para crianças em situação de rua, hospitais psiquiátricos, entre outros tantos lugares e aparatos governamentais, quando apreendidos do ângulo do arquipélago, emergem em suas conexões e ressonâncias, esboçando um continuum entre punição, repressão e controle; saúde, assistência e cuidado.
4Nessa direção, assim como se movem as correntes marítimas, veremos uma miríade de espaços sendo atravessados por enunciados, tecnologias, práticas, cheiros, políticas criminais e estatais, evocações e linhas de vida, o que não os converte em uma espécie de massa indistinta, afinal, ressonância não significa igualdade, mas variação-continuidade. Se nesse ponto nos deparamos com uma das dimensões constitutivas do arquipélago, é o movimento das linhas de vida, as quais lançam luz sobre internações, prisões, alvarás de soltura, mandados de captura, fugas, pareceres psiquiátricos, laudos psicológicos, decisões administrativas e judiciais, que explicita uma outra face do mesmo, a saber, os processos de circulação-confinamento. Ademais, são os fragmentos dessas mesmas vidas, enquanto linhas que serpeiam uma multiplicidade de ilhas, que revelam a inter-relação entre diversos aparelhos estatais (sem desconsiderar os laços que os ligam a determinadas zonas urbanas), bem como a segmentação desses mesmos aparatos.
5Tendo em vista essas breves palavras, já é possível entrever alguns deslocamentos que proponho, entre os quais a existência de um continuum que faz com que a prisão seja tomada como um ponto em um circuito, como uma ilha de um arquipélago, mas, concomitantemente, a asserção de que o cárcere figura como espaço fragmentado e de múltiplas dimensões – repleto de dutos, subterrâneos, passagens, degraus e curvas. Em síntese, porosidade das muralhas, mas também do espaço intracarcerário. Como se tornará evidente, se a adoção de um outro plano para abordar a instituição prisional, reflexão que pode ser prolongada para as outras ilhas do arquipélago, parece-me frutífera, é porque permite deslocamentos não só analíticos, mas também políticos, afinal, dinâmicas locais – nos presídios, nos hospitais psiquiátricos ou em zonas urbanas como a estigmatizada cracolândia – extrapolam os supostos limites físicos desses espaços. De tal prisma, não só é possível flagrar práticas, tecnologias e políticas em suas especificidades e extensões, mas também se constata a importância de que as lutas transbordem e se acoplem.
6Antes de prosseguir, é preciso deixar claro que os deslocamentos, as inquietações e as reflexões aqui propostos não decorrem de um passe de mágica subjetivo. Nesse sentido, vale sublinhar que os movimentos adotados no decorrer da escrita não espelham propostas autorais concebidas individualmente, mas, ao contrário, refletem formulações erguidas – em diferentes tempos e lugares – por outros pesquisadores, sobre outros cenários e problemas. De certa forma, trata-se de se instalar nas linhas de pensamento de outros autores e autoras para prolongá-las, mas também para torcê-las, reafirmá-las ou fazê-las mudar de direção.
7Se, por um lado, o texto situa-se em um campo de problemas teóricos, metodológicos e epistemológicos, diálogo que não se conduz por certo provincianismo disciplinar, cujo efeito principal é a defesa de fronteiras entre saberes, por outro, importa sublinhar que este livro foi concebido como uma peça em um campo político. Longe das supostas divisões entre pesquisa e intervenção, as ponderações que recheiam as páginas subsequentes resultam de experiências coletivas de ação e pensamento. Desde já, é bom que se diga: não se trata de alternar instantes de engajamento e de distanciamento, mas, a partir de uma posição situada, atuar e pesquisar em contextos políticos sensíveis. Do mesmo modo, não há um período dedicado exclusivamente à pesquisa e outro no qual o pesquisador se engaja às ações locais, mas movimentos cruzados. Desse ângulo, o texto possui menos importância pela interioridade do significado do que pela maneira como funciona, isto é, se articulando ou se afastando de outros tantos instrumentos de batalha. Com o passar dos anos o livro envelhece, é reformulado, engorda, incha, ganha novas partes. Por vezes, é tomado pelo meio, identificado por um único fragmento. Pode ser que seja sepultado, permanecendo à espera de que alguém o desenterre. De toda maneira, não há como determinar o seu destino (Deleuze e Guattari 2011). Ainda assim, cabe ao autor refletir sobre o lugar que ele pode ocupar – com o que ele se conecta; combate contra o quê?
8Essas reflexões, principalmente as que concernem aos nexos que articulam pesquisa, militância e política, compõem o primeiro capítulo, no qual, além de apresentar o percurso da investigação, teço algumas considerações sobre as escolhas metodológicas. Partindo de meus próprios trânsitos pelo arquipélago, desde o ingresso nas unidades de internação da Fundação CASA, em 2004, até as visitas ao interior de prisões e manicômios judiciários – essas últimas enquanto agente da pastoral carcerária –, cruzo o traçado por mim esboçado às linhas de vida de alguns de meus interlocutores, no caso, Jorge, Sueli e Joana. O ponto alto de tal cruzamento é o nosso encontro, entre 2014 e 2015, do lado de dentro das muralhas manicomiais, mais precisamente, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico I de Franco da Rocha. Ainda que todo o percurso etnográfico dos últimos anos tenha sido fundamental para o delineamento dos problemas de pesquisa, reivindico a adoção de um prisma para fitar o arquipélago, cujas bases são as prisões e os manicômios judiciários. Tais espaços não apenas se conectam entre si, mas permitem vislumbrar um universo muito mais amplo de modos de operação, repertórios e tecnologias de poder. Ao invés de tentar abarcar o todo, o que não seria possível, haja vista os distintos circuitos que constituem o arquipélago, busca-se lançar um pouco de luz sobre os “fins de linha”, o que não inviabiliza a prospecção de traços que o cortam ao meio, afinal, o sabor do mar pode ser conhecido num único gole de água (Soljenítsin 2017). Se o movimento das linhas de vida, assim como a reposição de traços arquitetônicos, práticas e políticas, criminais ou estatais, nos guiam por diversas ilhas, o cheiro também figura como um fio condutor – chave etnográfica para a compreensão das ressonâncias materiais e simbólicas entre distintos espaços. “Pelo cheiro”, daí o título do primeiro capítulo.
9No segundo capítulo – “Vidas em trânsito” –, a partir da convivência prolongada com Jorge, Sueli e Joana, mas também levando em conta o que os seus parceiros de confinamento e os agentes institucionais narram sobre eles, reconstruo alguns fragmentos de suas linhas de vida. Nessa empreitada, os seus processos de execução de medida de segurança figuram como peças centrais, registrando movimentos e fixações, demonstrando a operação de mecanismos que acionam passagens e produzem paradas. Ao seguir os rastros delineados por essas linhas, o que não impossibilita a mobilização, ao longo de todo o livro, de retalhos de outras tantas vidas, nos deparamos com as engrenagens do arquipélago e, como resultado, com os efeitos para aqueles e aquelas que são geridos em meio aos processos de circulação-confinamento. Por mais que algumas recordações possam ter sido apagadas, os registros dos trânsitos e enclausuramentos restam vivos na carne de meus interlocutores. Sueli, por exemplo, os carrega nos braços, pulsos e tornozelos. Se as vidas desses sujeitos evidenciam as múltiplas passagens por aparatos estatais (também por determinadas zonas urbanas), desembocando nos manicômios judiciários, mesmo quando estão confinados, eles não param de circular, revelando a existência dos subterrâneos. De um lado, ressonância entre ilhas ou, em outros termos, uma certa reposição das formas de fazer, sentir, regular e administrar “quase vidas; quase mortes”. De outro, as circulações e os confinamentos não só entre elas, mas também por dentro delas.
10Uma vez que outros arquipélagos – em outros mares, tempos e locais – foram tateados por outros autores (Soljenítsin 2017; Foucault 1987), no terceiro capítulo, intitulado “O Arquipélago”, ao inspirar-me nessas análises, procuro estabelecer os pontos da diferença. Antes de operar tal deslocamento, em virtude da constatação de que a prisão emerge como um ponto em um circuito, estando conectada a uma miríade de outros aparatos e espaços urbanos, retomo alguns trabalhos que refletiram sobre a porosidade do cárcere ou, noutros termos, acerca das relações entre o intra e o extramuros (Cunha 2002, 2015; Combessie 2002, 2009; Bony 2015; Wacquant 2007a; Barbosa 2005; entre outros). Por mais que tais estudos sejam inspiradores, sobretudo porque questionam a imagem da prisão como “instituição total” (Goffman 1974), demonstro que essas análises, de modo geral, repousam sobre um circuito que articula somente prisões e bairros populares, prisões e guetos, prisões e favelas. Do ângulo aqui proposto, argumento que é necessário alargar essas críticas, conectando o cárcere às áreas periféricas, mas também a uma infinidade de aparelhos estatais, além de algumas zonas urbanas. Ao seguir as reflexões de Michel Foucault, que se apropria da noção de arquipélago cunhada por Aleksandr Soljenítsin, veremos como o primeiro reflete sobre o “arquipélago carcerário”, encravado no seio da sociedade disciplinar (Foucault 1987). Seguindo as pistas deixadas pelo autor, sugiro que nos tempos que correm o desafio colocado às instituições que conformam o arquipélago sobre o qual me debruço é de outra ordem. Em tempos de governamentalidade neoliberal, não se trata de ajustar as multiplicidades aos aparelhos de produção, e sim, de gerir grandes contingentes populacionais, em suma, gestão de populações. Nessa chave, demonstro como a região estigmatizada como cracolândia pode ser pensada à luz do arquipélago, afinal, nesse recorte do urbano – que se move e se concentra, que é pulverizado e confinado – observa-se a reposição de lógicas, práticas, cheiros, corpos e políticas que atravessam outros lugares.
11Se as prisões e os manicômios judiciários são as bases do prisma por meio do qual entrevejo outras ilhas, no quarto capítulo, “Prisão – Manicômio”, trato de evidenciar os canais que os conectam. Em um primeiro momento, teço algumas ponderações sobre os nexos que articulam prisões e psicofármacos, demonstrando que as substâncias psiquiátricas operam como tecnologia de gestão de populações, de espaços superlotados e de condutas individuais. Trata-se de mobilizar as pílulas para administrar os efeitos desencadeados pelo próprio funcionamento da máquina carcerária – uma espécie de gestão neuroquímica. Ademais, esses medicamentos, principalmente os injetáveis, também funcionam como instrumento de tortura, sendo utilizados, nos termos de meus interlocutores, para “quebrar” e “entortar”. Ao descrever a emergência de alas psiquiátricas em prisões comuns, a existência de centenas de presos e presas que ingerem pílulas psiquiátricas sem diagnóstico de transtorno mental, entre outros fatores, sugiro um processo de psiquiatrização da prisão e, no limite, levando-se em conta determinados espaços prisionais, de manicomialização do cárcere. De outro lado, ao enfocar os manicômios judiciários, observa-se que nos últimos anos estes têm sido pintados com novos tons carcerários. Sem perder de vista as reconfigurações que marcam o saber psiquiátrico contemporâneo, bem como o fato de que essas substâncias se disseminaram por todo o tecido social, mostro como a adoção de novos mecanismos de segurança, a aceleração do fluxo prisões-manicômios e o trânsito de repertórios prisionais apontam para um processo de carceralização dos hospitais de custódia. Desse plano, no qual constata-se composições e acoplamentos, as bases do prisma baralham.
12Por fim, no quinto capítulo – “Subterrâneos” –, vislumbra-se o fundo, ou melhor, os fundos do arquipélago. Baseando-me em determinados espaços institucionais aos quais tive acesso, bem como em alguns escritos sobre as prisões (Morelle 2013; Bouagga 2010; Foucault 2015; entre outros), demonstro que o cárcere não deve ser compreendido como um bloco homogêneo, mas como um espaço recortado e fragmentado – que consome, esmaga e tritura diferencialmente. A prisão, longe de existir como um plano de única dimensão – como se todos os internos cumprissem as suas penas da mesma forma –, configura-se como um espaço matizado, com degraus e curvas, diferenças de níveis, zonas mais quentes ou mais frias. É dessa prisão porosa, repleta de buracos e passagens, que brotam os subterrâneos, espaços de supressão e excesso, os quais conjugam o mínimo de condições de existência e o máximo de destruição. Lugares obscuros, escondidos atrás de chapas de aço ou de outros pavilhões, em que se observa a redução de luz, ar e água articulada à acentuação de psicofármacos, agressões, humilhações e terror. Zonas de indeterminação, que operam como engrenagens indispensáveis ao funcionamento das instituições de controle. É nesses locais que se concentram os corpos travados, o adensamento do cheiro, os internos pelados e excessivamente medicados, as cenas que teimam em nos fazer virar o rosto. Lugares que parecem conformar uma espécie de zona de sombra entre a vida e a morte, habitados por homens e mulheres de palavras pela metade, por vezes sem fala, gestados e geridos no limite – “quase vivos; quase mortos”. São eles e elas que evidenciam a existência de uma política do definhamento, cuja imagem aterrorizante que a caracteriza é o fazer babar.
13Com essas poucas palavras, que serão desdobradas nas páginas posteriores, não almejo conduzir a leitura do que se segue, ainda que corra o risco de fazê-lo. Fosse para mobilizar uma imagem, diria que o texto, em termos de sua estruturação, se assemelha a uma espiral, visto que determinados assuntos desenvolvidos em um capítulo podem retornar em outro, evidentemente, com outras cores e contornos. Na medida em que há inúmeros fios que os conectam, os capítulos rebatem uns nos outros, podendo ser lidos separadamente. Sendo assim, que o leitor construa o seu próprio percurso, que entre e saia por onde lhe convier.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
A Europa é o Cacém
Mobilidades, Género e Sexualidade nos Deslocamentos de Jovens Brasileiros para Portugal
Paula Togni
2022
Mouraria, Retalhos de Um Imaginário: Significados Urbanos de Um Bairro de Lisboa
Marluci Menezes
2023