Capítulo VII. A família burguesa do Porto: a gestão das sepulturas
p. 161-182
Texte intégral
1Tendo em vista o modelo proposto nos capítulos anteriores, compete-me agora demonstrar a sua relevância em termos etnográficos. O estudo das formas e modelos familiares da sociedade camponesa do Alto Minho feito em Filhos de Adão, Filhas de Eva representava já uma resposta a este repto. Nesse livro, porém, há um participante que ficou silencioso: a burguesia. De facto, se bem que a perspectiva de comparação regional estivesse presente, o estudo da burguesia teve necessariamente de ser adiado.
2Assim, os dois capítulos que se seguem pretendem fazer uma breve incursão no universo da vida familiar da burguesia nortenha — como exemplo, foi escolhida a classe média da cidade do Porto. Não se trata ainda, devo sublinhar, do estudo detalhado e intensivo que urge efectuar, devido à importância económica e cultural que este grupo de status detém no âmbito nacional. Pelo contrário, o que aqui apresento são apenas algumas pistas interpretativas cuja finalidade é situar a família burguesa dentro dos contextos teórico e geográfico que temos vindo a explorar.1
A relevância do tema
3Considerando a importância da burguesia no Sul da Europa é surpreendente a pouca atenção que os etnógrafos europeístas lhe têm dedicado. Em particular, e à parte alguns casos meritórios2, a riqueza do material disponível sobre a «família burguesa» tem sido largamente desprezada. Tal facto deve-se em larga medida a preconceitos profundamente radicados na história do pensamento sociológico europeu. Mais uma vez nos encontramos face à herança de Maine e Morgan.
4A burguesia é, por excelência, um grupo social moderno. Assim, segundo a perspectiva dominante, os fenómenos de natureza familiar seriam aqui reduzidos à sua elaboração mínima, ao seu essencial biológico. Para muitos sociólogos:
«A família ocupa um espaço distinto do parentesco; o da primeira é um espaço de privacidade enquanto o da última é um espaço de solidariedade comunal. Não houve um desenvolvimento contínuo do parentesco tradicional à família moderna» (Lowe 1982: 70).
5A burguesia é concebida como «um grupo onde não existem fortes laços de parentesco»3 — onde domina «a situação da família nuclear» que, por sua vez, é interpretada como uma necessidade biológica. Mesmo para antropólogos sociais como Raymond Firth, que estudaram atentamente o parentesco em contexto urbano, a identificação da família moderna com o nadir das relações de parentesco não é posta em causa. Para Firth e os seus colegas, a classe média londrina apresentaria «aquilo que de mais próximo existe com o parentesco “puro”»4. Presume-se que, por «puro», Firth quer dizer mais próximo do modelo biológico no qual, para ele, se radicam as relações familiares. No entanto, o próprio Firth reconhece que, para os seus informantes, o conceito central de «família» «é um conceito social operacional», que confunde uma unidade de parentesco com uma unidade de residência (1969: 90). Por outras palavras, a vida familiar da classe média londrina não pode ser reduzida aos laços genealógicos baseados em relações biológicas. Seja como for, como já vimos, uma vez posta em causa a noção tradicional de parentesco como ponto de referência analítico, esta visão da família em contextos urbanos modernos deve ser questionada.
6A identificação da família nuclear moderna com a «verdade» biológica traz ainda consigo um outro preconceito: a pressuposição de que os laços familiares seriam afectivamente mais sólidos entre a burguesia, pois seriam mais verdadeiros. No capítulo V já criticámos esta curiosa noção de que os laços sociais baseados em identidades colectivas (os corporate groups) são, de alguma forma, fictícios.
7Alguns autores chegam a negar a existência de amor e de afecto nas relações familiares entre os camponeses europeus (p.e. Shorter, 1984: 7-9), e é vulgar encontrar observações sobre a natureza económica dos laços familiares entre os camponeses5. Curiosamente, e apesar da notória falta de referências a fenómenos afectivos na grande maioria dos estudos etnográficos de tradição estrutural-funcionalista, tão cedo estes autores se aproximam da família burguesa, logo a importância da afectividade é referenciada. Por exemplo, Firth e os seus colaboradores afirmam que «a “família” não é simplesmente um termo de demarcação de algumas categorias de parentes. Tende a ser um termo de significado afectivo, e a inclusão ou exclusão de parentes da “família” é uma forma de classificar pessoas menos pelo seu grau de consanguinidade ou afinidade do que pela qualidade da relação afectiva para com Ego» (Firth et al, 1969: 92). Noutro local, insistem ainda que a vida familiar burguesa estaria mais independente dos interesses económicos e políticos que marcam a família aristocrata, ou da necessidade de protecção económica que caracteriza a família operária (1969: 16). Mais tarde voltaremos a esta questão. Para já, basta insistir que, com base na minha experiência entre camponeses e burgueses do Norte de Portugal, estas posições só são justificadas pelo facto de a linguagem da emoção não assumir entre os camponeses o papel explicativo central que ela detém para a burguesia. Os camponeses não impõem um tabu na explicação das relações familiares através da linguagem da propriedade, como o faz a burguesia.
8Penso que tal facto talvez explique porque é que em termos muito gerais se pode afirmar que os sociólogos e antropólogos sociais europeístas se têm interessado menos pelo estudo da família burguesa enquanto os psicólogos e psicanalistas têm dedicado menos tempo ao estudo da família entre a aristocracia e as classes operária e camponesa. Tratar-se-á de um reflexo da «clara demarcação dos espaços público e privado na sociedade burguesa» (Lowe 1982: 71), da insistente separação entre o domínio económico e o domínio do familiar e afectivo que, pelo menos no Norte de Portugal, é um dogma central da visão do mundo burguesa? (Pina Cabral, 1989: 65-66). A linguagem da emoção6, que permeia as relações familiares burguesas7, apareceria então aos cientistas burgueses como uma área preferencial do estudo da «nossa» sociedade, enquanto as implicações socioculturais, políticas e económicas da vida familiar se imporiam no estudo dos «outros» europeus (a aristocracia, o operariado e o campesinato).
9Na verdade, por detrás desta visão da família urbana moderna, jaz uma oposição implícita entre «tradicional» e «moderno», «camponês» e «industrial», «rural» e «urbano», «eles» e «nós». O pólo «moderno/nós» é assumido sistematicamente como correspondendo a uma realidade uniforme e conhecida. Ora tanto essa uniformidade como esse conhecimento são duvidosos. Uma breve comparação da família burguesa do Porto com as famílias da alta burguesia catalã estudadas por McDonough ou com a família das classes médias de Londres (Firth et al, 1969) ou de Chicago (Schneider, 1980) não deixa margem para dúvidas. Qualquer um destes casos refere-se a sociedades «urbanas», «industriais» e «modernas» e, no entanto, a diversidade é significativa.
10Alguma justificação é devida ao leitor pela utilização que aqui é feita do termo «burguesia». Na verdade, Firth e Schneider, autores a que recorremos frequentemente nas páginas que se seguem, preferem o termo «classe média». Por outro lado, na literatura etnográfica europeísta recente, o termo burguesia tem sido aplicado sobretudo à alta burguesia industrial e terratenente (cf. McDonough, 1986; Le Wita, 1985), que não é o objectivo do presente estudo. Tal como em Filhos de Adão, Filhas de Eva, a opção por «burguesia» em vez de «classe média», exprime uma posição teórica: pretendemos descrever um grupo de status8 e não uma classe social. Assim, burguesia é aqui apresentado como um conceito émico ou, como diria Firth, «um conceito social operacional». No Porto, local ao qual se referem as observações que se seguem, o termo «burguês» é reconhecido por todos como descrevendo uma camada social particular e distinta, apesar de não ser muito frequentemente utilizado como termo de auto-referência por implicar privilégio e, por extensão, discriminação.
11Não é este o local de voltarmos à discussão das características particulares da identidade burguesa, sobre as quais já falámos no capítulo I. Nem sempre é claro quando uma pessoa ou, mais justificadamente, uma família se torna burguesa ou deixa de o ser. No caso da alta burguesia, por muito rica que seja, a família só deixa de se considerar burguesa quando assume os sinais físicos da aristocracia, em geral através da aquisição de propriedades fundiárias — uma «quinta» com solar antigo (cf. Dias, 1963) — ou quando ocorre um casamento com uma família nobre. Já no caso de famílias da baixa classe média, e muito particularmente no Porto, o assumir de um estilo de vida burguês não é necessariamente suficiente. A pertença a uma família burguesa, isto é, a manutenção deste estilo de vida durante mais do que uma geração, é um factor frequentemente tomado em conta. Em termos da sua inscrição socioeconómica, os informantes a que recorri pertenciam na sua grande parte a uma classe média baseada nas profissões liberais, no ensino, no comércio e no mundo de negócios (gestores, bancários, etc.).
Famílias e túmulos
12Quando se visitam cemitérios urbanos no Norte de Portugal é frequente encontrarem-se campas ou jazigos com inscrições do género Família de Joaquim Antunes9.
13Esta inscrição funciona como uma rubrica genérica, pois noutros lugares do túmulo são indicados, separadamente, os nomes, datas e, por vezes, fotografias das pessoas sepultadas. Inscrições deste tipo são particularmente frequentes nas sepulturas mais sumptuosas das classes médias abastadas.
14Embora o terreno do cemitério pertença à municipalidade, o direito de uso das parcelas específicas é vendido a residentes locais. Este direito é herdado conjunta e equitativamente por todos os herdeiros do comprador original e pelos seus respectivos herdeiros, desde que estes o reclamem à data da morte de cada co-proprietário sucessivo. Como as campas só têm, geralmente, uma ou duas posições de sepultura, que são ocupadas por um corpo por um mínimo de cinco anos, os problemas de uma gestão conjunta do espaço, tanto em termos da decoração da campa como de quem nela é sepultado, são ocasiões ideais para observar o funcionamento das relações familiares e de parentesco. Nos jazigos em forma de capela, apesar de estes terem mais lugares, a situação não é necessariamente distinta, até porque tais jazigos são mais raros e concedem mais prestígio.
15Em contextos camponeses a situação é diversa (cf. Pina Cabral e Feijó, 1989). Actualmente, com a subida do nível de vida, a maioria das casas camponesas possui uma sepultura com uma lápide de mármore; só os mais pobres continuam a ser sepultados em campas rasas municipais. Mas, embora a lei seja a mesma para todos, a sua interpretação em contexto camponês diverge do contexto burguês num aspecto significativo: se bem que os que saem da casa original mantenham o direito legal de serem enterrados no túmulo, a gestão real deste último fica a cargo dos que ficam a residir na casa. Os túmulos rurais são locais associados a casas e não a famílias.
16Vejamos agora a utilização das sepulturas burguesas. Como regra, estas são construídas ou pela pessoa cujo nome designa a «família» (no nosso exemplo, Joaquim Antunes) tendo em mente o seu próprio enterro, ou pelos membros da sua família mais próxima imediatamente depois da sua morte. O indivíduo em questão é normalmente um homem abastado que morreu com idade avançada e deixou filhos. Na altura da sua morte, alguns destes filhos/as já terão provavelmente estabelecido as suas próprias unidades residenciais independentes. Por vezes, até alguns dos netos estão já estabelecidos independentemente. Neste contexto, qual é o significado do termo «família» da inscrição funerária?
17As respostas que recebi a esta pergunta foram unânimes: em primeiro lugar, neste contexto, o termo família refere-se aos membros da família conjugal ou famílias conjugais que estava, ou estavam, centradas em torno a Joaquim Antunes. A expressão frequentemente usada era «casa», por exemplo «são os da casa do Joaquim». Contudo, a expressão cobre tanto os que ainda coabitavam com Joaquim no momento da sua morte, como os que já tinham saído da casa.
18Esta observação sugere uma questão interessante. No contexto da etnografia ibérica dá-se por adquirido que, em situações tais como a da burguesia do Porto, estamos perante o que é conhecido por «situação de família nuclear»: pai, mãe e filhos vivendo numa casa independente em que a família desaparece por morte dos pais. Devo sublinhar que esta visão da família não é muito distinta da expressa pelos meus informantes. Quando interrogados em abstracto sobre a forma como organizam a sua vida familiar, a resposta obtida é semelhante à sintetizada por Pitt-Rivers na citação que apresentámos no capítulo anterior quando falávamos do princípio da conjugalidade nos sistemas familiares de esquema segmentário. No entanto, a utilização da palavra família nas inscrições tumulares parece negar esta concepção. Para fins de enterro, consideram-se como membros da «família de Joaquim Antunes» pessoas que, coabitando com Joaquim Antunes na sua unidade residencial, não fazem parte da sua família conjugal nem nunca fizeram: por exemplo, uma tia residente, o pai ou a mãe de Joaquim ou da sua mulher. Os seus filhos estabelecidos independentemente são também considerados membros da família. Aliás, o estatuto da sua separação da casa paterna permanece muito ambíguo, pelo menos até ao momento das partilhas que, por oposição ao que é frequente em contextos camponeses, só se realizam à altura da morte de um dos membros do casal paterno (e apenas se o cônjuge vivo estiver próximo da idade de reforma).
19Não obstante, os informantes são bem explícitos no sentido de que o significado central da expressão «família de Joaquim Antunes» (ou seja, o seu protótipo) é a família conjugal de Joaquim, anterior ao casamento dos seus filhos. O conceito é necessariamente sujeito a uma expansão para cobrir uma categoria mais ampla de indivíduos. O túmulo sobreviverá aos membros originais (sendo mesmo construído com essa finalidade): os netos de Joaquim ainda aí serão enterrados, identificando-se, assim, como «família de Joaquim Antunes». Mas os informantes insistem que nem todos os parentes são abrangidos por esta categoria. Por exemplo, os irmãos de Joaquim estabelecidos independentemente e os seus descendentes não têm qualquer direito de enterro neste túmulo.
20Ao todo, para além de Antunes e a sua mulher, são concedidos direitos de enterro a três tipos de pessoas10. Em primeiro lugar, os parentes lineares de Antunes — mãe, pai, filhos, netos, etc. Em segundo lugar, consortes de parentes lineares — mulher do filho, marido da filha, etc. E, em terceiro lugar, parentes lineares dos consortes que, sendo solteiros ou viúvos sem filhos, tenham residido durante um período relativamente prolongado numa unidade residencial chefiada por um membro linear.
21Dois aspectos desta lista merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar, a bilateralidade é estritamente mantida. Em segundo, os laços de parentesco são prolongados e alterados a todos os níveis por laços de co-residência e de afinidade. Não são só os parentes lineares que têm direitos sobre as sepulturas mas também os seus cônjuges e os parentes lineares co-residentes destes últimos11. Nesta análise, enfatizei a noção de parentesco propositadamente. Ao contrário do que poderia acontecer num contexto camponês, os criados de longa data e os amigos co-residentes só raramente chegam a adquirir plenos direitos de participação no uso do património familiar num contexto burguês. Em particular, os colaterais co-residentes, tais como primos/as ou sobrinhos/as (desde que não sejam eles os herdeiros), permanecem sempre numa posição ambígua por relação ao resto dos membros da casa. Os seus direitos a sepultura são sempre muito discutidos. Casos há, no entanto, em que a participação em momentos-chave da reprodução familiar é de tal forma forte que ela leva ao reconhecimento de direitos de utilização de túmulos. Num exemplo que me foi relatado para uma família burguesa de uma vila de província, um grupo de irmãos já adultos e casados insistiu fortemente em enterrar no jazigo da família uma governanta que, entretanto, se tinha casado e deixado filhos. Estes últimos, apesar de pouco satisfeitos por esta exigência, não tiveram, porém, peso moral para se opor.
22Em termos gerais, a noção favorita de D. Schneider «blood is thicker than water» (o sangue é mais denso que a água) (1984: 165-177) aplica-se aos modelos a que as famílias burguesas nortenhas recorrem para descrever a sua vida familiar — sendo aí expressa pela locução proverbial «A voz do sangue», que se diz, metaforicamente, ter falado quando se encontram inesperadas similaridades ou afinidades entre os parentes. Camilo Castelo Branco põe a seguinte frase na boca de um personagem: « [...] hás-de ter ouvido dizer que um filho conhece o seu pai, e o pai seu filho, por um secreto impulso de sangue.» Logo se segue um comentário característico da agudeza com que Camilo se apercebia da duplicidade implícita na falta de correspondência entre a linguagem que justifica a acção social e a própria acção social: «O dinheiro é sangue. Um filho só pode ser filho de quem é seu pai, quando não herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe!12»
23É típico dos fenómenos desta natureza que os comentários dos informantes não sejam completamente coerentes de um ponto de vista lógico — a coerência que, de facto, existe entre estas representações colectivas é mais de natureza simbólica. As seguintes afirmações, retiradas de uma única entrevista de grupo (tipo focus group) organizada com burgueses do Porto (homens e mulheres de mais de 50 anos) no contexto do projecto de investigação do Grupo do Noroeste, elucidam bem a elasticidade típica destes fenómenos, assim como a natureza da crença na «voz do sangue»:
Nas situações graves a voz do sangue activa-se e toma posição e obriga-nos a não ter dores de dentes [sic, i.e. desculpas fáceis]; portanto os parentes... passam a ser bem tratados e bem recebidos e algumas atitudes [são] esquecidas... o que é muito importante.
A voz do sangue também falha... Uma atitude negativa da família dói bastante, por isso eu também dou muita importância à amizade sem atender à voz do sangue.
A voz do sangue parece-me efectivamente que é um dado, conhecido e testado por todos, mas eu diria que isto só é válido numa linha directa, de pai para filho, de filho para pai e não mais que isso. Tanto quanto eu entendo aqui a voz do sangue não tem nada que ver, penso eu, com situações de hereditariedade, questões de doenças. Não. É a voz do sangue no sentido da ligação da pessoa uma à outra. Penso que isto só é válido numa linha restrita.
Esta voz do sangue, e até dum sangue que porventura até já não é nada de comum, porque pode já lá não haver genes comuns... Mas que é qualquer coisa de importante na minha experiência pessoal, é. [O informante referia-se ao simples facto de duas pessoas partilharem do mesmo nome de família.]
24A visão do mundo burguesa, portanto, insiste no conceito de «sangue» (isto é, o parentesco bilateral) como sendo uma base fundamental para o estabelecimento de laços de proximidade social. A simbolização do conceito através da gestão de sepulcros, porém, demonstra claramente que ele não pode ser compreendido isoladamente. Ele só se torna um princípio de acção quando relacionado com os princípios da casa e da conjugalidade de que falámos anteriormente. A ideia de Schneider e de Firth de que nos EUA e em Londres o parentesco está «o mais próximo possível da sua forma mais pura» (Firth et al, 1969: 10; Schneider, 1980 [1968]: VIII) não faz sentido quando aplicada aos actos dos burgueses do Porto. Por exemplo, assisti a uma discussão familiar na qual os membros mais jovens da casa insistiam em que a sobrinha uterina do dono da casa, que era co-residente há muitos anos, teria direito a ser enterrada na campa do pai da dona da casa. Esta última e a sua irmã mantinham que, caso a sobrinha morresse, não teria este direito, e manifestavam uma repulsa que se exprimia por um vago sentimento de poluição. No entanto, embora esta sobrinha não pudesse ser enterrada na campa do pai, elas aceitavam teoricamente que os seus maridos ou as mães destes (caso tivessem sido co-residentes), assim como os filhos que os maridos pudessem ter tido de casamentos anteriores (desde que tivessem crescido na casa), poderiam ser candidatos aceitáveis para utilização de espaço no túmulo do pai delas, apesar de qualquer um destes também não possuir direitos legais de co-propriedade. Assim, a razão pela qual os colaterais tendem a ser excluídos, enquanto os afins lineares são normalmente incluídos, parece consistir no facto de os últimos estarem ligados aos membros originais por laços de identificação resultantes, por um lado, da conjugalidade e, por outro, da pertença de pleno direito de uma casa «geneticamente» relacionada com as dos presentes proprietários13.
25Embora a casa constituída por uma família conjugal neolocal14 seja um ideal nesta sociedade, os sentimentos de união e de comunhão de interesses que resultam da participação conjunta numa destas casas são prolongados no decurso, e mesmo depois, da dissolução da casa original. Em termos práticos isto significa que mesmo quando a casa dos pais já foi dissolvida, as casas dos filhos participam de uma identidade comum pelo facto dos seus membros centrais terem sido membros de pleno direito de uma casa que hoje, formalmente, já não existe. A esta identidade chamaremos «identidade continuada».
26Consideremos agora as possíveis razões subjacentes à necessidade de fazer uma inscrição tumular que afirme especificamente a pertença a uma família; em vez de, por exemplo, inscrever simplesmente o nome e datas de nascimento e morte das pessoas enterradas. Coloquemos a questão de uma forma mais directa: para que serve a inscrição do nome de família no túmulo?
27Joaquim Antunes não era o único a querer preservar a memória da unidade social primária centrada nele e na sua mulher; em alguns casos as inscrições foram gravadas por ordem da mulher e dos filhos. Para estes últimos, a inscrição funciona como uma lembrança de uma identidade anterior que, concomitantemente, ajuda a preservar algo dessa identidade — nomeadamente os sentimentos de união e de comunhão de interesses e, em particular, o prestígio de Joaquim Antunes. No aniversário da morte de Joaquim, no Dia dos Fiéis Defuntos e sempre que os parentes visitem o cemitério, por ocasião de algum enterro ou para olhar pelas campas familiares, essa união é relembrada através de uma oração conjunta, em silêncio.
28A inscrição e o jazigo operam simultaneamente como algo que recorda e que reproduz uma identidade anterior, que se mantém viva como sentimento de união e de comunhão de interesses. Nessa medida, o jazigo e a sua inscrição não são muito diferentes dos outros objectos que o falecido Antunes e a sua mulher deixaram: terra, casas, jóias, livros, fotografias, etc., ou, em especial, firmas sociais. Apesar de, ao contrário dos túmulos, estes outros legados serem divididos entre os herdeiros (em princípio de forma igualitária, mas frequentemente recorrendo a ponderações de ordem sexual como, por exemplo, com o tipo de jóias ou de louças), a sua presença funciona igualmente como uma forma de preservar uma identidade anterior. Tal como entre as classes médias de Londres, «dir-se-ia que esses objectos herdados funcionam como lembranças concretas dos parentes mortos, apesar do que a sua presença nas casas pareceu-nos ser um factor directo não tanto da preservação do conhecimento dos parentes como do reforço dos laços de sentimento entre parentes» (Firth et al, 1969: 132).
29É importante compreender que, tal como E. P. Thompson já assinalou (1976: 238), a propriedade sobre objectos herdados nunca é absoluta. Os parentes preservam um sentimento de propriedade conjunta sobre estes objectos, mesmo depois das partilhas e apesar desses sentimentos não se apoiaram em qualquer direito real. Se a casa ou a terra herdadas forem vendidas, há um sentimento geral de que se deve conceder direito de primeira opção aos co-herdeiros. Aliás, tal é muito frequente noutras regiões da Península onde se encontra um esquema semelhante de reprodução da unidade social primária. Por exemplo, em Belmonte de los Caballeros (Aragão), Lisón-Tolosana diz-nos que «as pessoas tendem a favorecer a sua parentela quando vendem parcelas ou casas; dão-lhes prioridade de escolha» (1983: [1966]: 156). Os sentimentos de continuação de uma identidade anterior são prolongados na utilização dos objectos. Se a mobília que pertenceu à «sala da avó» for maltratada ou colocada num local considerado pouco apropriado (como, por exemplo, numa casa de praia, onde estará mais sujeita a maus tratos), os outros irmãos vão decerto ofender-se e protestar. Dependendo das relações, podem mesmo chegar ao extremo de se oferecerem para a comprar. Por vezes, até primos chegam a assumir atitudes deste género.
30As explicações que nos são dadas pelos informantes para este tipo de comportamento são invariavelmente procuradas na linguagem da emoção. Mesmo reconhecendo que não têm direitos legais sobre esses objectos, os parentes afirmam que estão «presos a eles». Num certo sentido, o proprietário legal actual não é senão guardião de uma propriedade que continua a pertencer à casa original — mesmo quando esta já não existe. Segalen e Zonabend verificam algo de semelhante quando afirmam que «a genealogia é relembrada tangivelmente através dos objectos cuja origem, história e futuro são conhecidos» (1987: 117). Discordo delas, porém, quanto a tratar-se de «genealogia» — isto é, laços de parentesco biológico ocorridos no passado. Aquilo que as pessoas se relembram é a história passada de laços de identificação social. Ora estes raramente se identificam com a genealogia de uma pessoa, mas antes com os sentimentos de união e comunhão de interesses que resultam da pertença conjunta a unidades sociais primárias. Esta observação torna-se particularmente relevante nos casos em que as pessoas «foram criadas» fora da casa dos seus pais.
31Nem todas as casas são lembradas com a mesma força ou sequer preservadas através da inscrição do nome do chefe da casa num túmulo. Em geral, tal só ocorre quando «entraram na família» novas fontes de riqueza que servem como dispositivos mnemónicos, ou novos sinais de prestígio («nome»). Os dois factores, aliás, tendem a conjugar-se. Assim, um homem que sente que foi bem sucedido na vida, tendo adquirido prestígio que beneficiará a sua descendência, deseja geralmente preservar o seu nome, construindo um novo túmulo. Como o sentimento de família é muito forte, porém, é frequente encontrarem-se casos em que o lote escolhido é próximo daquele em que o seu pai ou o seu avô construíra um túmulo de família, que continuará a ser usado por outros parentes menos prestigiados.
32Contrariamente a esta situação, a tradição oral marca também os casos em que as pretensões de prestígio social de uma pessoa não correspondem a um real bem-estar económico e não são, portanto, plenamente justificadas, dizendo que «ele não tem onde cair morto». Se bem que, hoje, a expressão seja utilizada num sentido geral, o seu significado original é baseado na ideia de que, uma tal pessoa, sejam quais forem as suas prosápias, não conseguiu assegurar a continuidade do seu prestígio posterior à sua morte.
33Chegou a altura de introduzirmos um outro critério de classificação cuja importância nas opções de vida e de relacionamento dos burgueses do Porto é central, implicando uma certa assintonia entre os direitos que uma pessoa sente que tem a ser enterrado num certo túmulo e os direitos que lhe são reconhecidos por outros. Trata-se do prestígio social (que se associa tanto à reputação moral de uma pessoa, ou de uma casa ou de uma família, como à sua inserção socioeconómica, como ainda à existência de descendentes). Tanto a pertença a uma unidade residencial como os laços de parentesco genealógico podem ser preteridos devido a considerações relacionadas com a reputação ou com a estratificação socioeconómica. Devo sublinhar que a recusa de permitir a alguém a utilização de um túmulo desocupado só raramente é feita de forma absoluta — seria uma ruptura demasiado marcada com o ideal de caridade cristã (veja-se o exemplo de Maria e Antónia, mais à frente). Frequentemente, as famílias detêm direitos sobre mais do que um túmulo. Perante a necessidade de enterrar um parente solteiro sem grande prestígio é provável que se escolha um túmulo correspondente a uma identificação já bastante antiga, em situação de progressivo abandono ou, alternativamente, uma campa herdada de colaterais sem filhos. No entanto, há menor consideração para com aqueles que não reclamaram os seus direitos participando nos sucessivos enterros («abandonaram a família»), ou para com quem a família quebrou laços, mesmo mantendo eles direitos legais.
34Um outro aspecto da maior relevância é a própria utilização dos nomes de família. Por lei, o nome de Antunes é transmitido como apelido principal aos filhos dos filhos de Joaquim e como apelido secundário aos filhos das filhas. Os seus bisnetos por via agnática também o receberão, enquanto os seus bisnetos por via uterina não deverão usar o nome Antunes. Assim, seria de esperar que uma parte significativa dos herdeiros do túmulo da família de Joaquim Antunes não usassem o seu nome. Há nisto algo de contraditório, não só porque são em geral as mulheres que olham pelos túmulos, dessa forma mantendo mais vivos os seus direitos de uso, como a tendência para a maior mobilidade masculina, significa que muitas vezes os homens se distanciam, perdendo os seus direitos. Dito de outra forma, passadas uma ou duas gerações, poucos dos membros do grupo de parentes que usa o túmulo de Joaquim se deveriam chamar Antunes. Este facto é fortemente sentido, pois o prestígio familiar está mais associado a nomes — «o bom nome» — do que a túmulos. Isto explica, em parte, um dos aspectos mais fascinantes da identidade familiar entre a burguesia do Norte: a saber, a manipulação de apelidos. E um fenómeno fascinante porque ocorre em surdina sem que os informantes a quem falei estivessem conscientes do facto. Todos presumem que as leis do Registo Civil são normalmente seguidas nas práticas reais de nomeação de crianças. Todavia, uma análise atenta de práticas reais de nomeação demonstra que, se Antunes e os seus irmãos deixarem um nome prestigiado (isto é, se for uma «boa família»), o mais provável é que as filhas das filhas das suas filhas ainda usem o apelido de Antunes. Não só é prática corrente no Porto que as pessoas (e os homens em particular) sejam conhecidos pelos seus amigos e colegas pelo nome de família da mãe como é ainda frequente que, quando esse nome é mais prestigiado que os outros, seja esse o que é passado aos netos que, por sua vez, o usarão como referência principal na sua vida pública. Apesar do tema ser bastante melindroso, e as pessoas não gostarem muito de falar sobre ele, para cada manipulação sucessiva, cada um encontra uma desculpa na linguagem da emoção: «o meu pai morreu quando eu era muito nova», «nunca gostei da família do meu avô», «como fomos praticamente criados em casa dos meus avós (maternos)», etc. (cf. Le Wita, 1985: 19-25).
35Outro contexto onde as relações familiares estão tipicamente sujeitas a manipulação surge quando o ideal de unidade conjugal da unidade social primária não é atingido, o que pode ocorrer tanto em casos de viuvez sucedida por um novo casamento como em casos de divórcio. Em tais situações, os direitos legais de herança podem chocar violentamente com os sentimentos de identidade social criados pela participação conjunta numa unidade social primária, mostrando assim como o parentesco, a co-residência e a dependência comum num fundo de subsistência são factores que contribuem igualmente para a criação dos laços através dos quais a unidade social primária é definida e reproduzida (vide secção «Sangue, casa e lareira» do capítulo V).
36Já referi anteriormente que, se considerarem haver sido criados juntos, os irmãos reconhecem ao meio-irmão do primeiro casamento do pai ou da mãe, plenos direitos de sepultura no jazigo do avô materno ou paterno, respectivamente. Tais situações podem, no entanto, dar origem a confrontos com outros parentes, pois esse meio-irmão não detém direitos legais sobre esse túmulo. Enquanto um grupo de meios-irmãos criados juntos partilha frequentemente de fortes sentimentos de identidade, recusandose a dar qualquer sinal de que estão conscientes de que as suas relações divergem de alguma forma (cf. Segalen, 1984: 139), os outros co-herdeiros (primos, tios, sobrinhos) não recebem igual consideração. Eles não partilham de nenhum sentimento de identidade resultante da participação conjunta numa unidade social primária, passada ou presente. O mais provável é que se oponham, talvez sugerindo que se use uma outra campa em vez de verem ocupado por cinco anos um espaço do qual eles próprios ou os seus pais poderão vir a necessitar.
37O caso que relatarei em seguida foi escolhido, tanto porque ele confirma o argumento acima exposto sobre os efeitos da complexidade conjugal como porque ilustra bem o potencial de discórdia inerente à gestão de túmulos15. Joaquim Antunes casou duas vezes. Maria, a sua única filha da segunda mulher, era a única herdeira ao túmulo do seu avô materno. Detinha também direitos sobre o túmulo do pai de Joaquim, sobre o túmulo de Joaquim, sobre o túmulo do pai do seu marido e, finalmente, o túmulo de uns colaterais sem herdeiros dos quais fora a única herdeira legal. Os membros da sua casa não tinham, portanto, falta de espaço de sepultura. Mas, Antónia, a filha do primeiro casamento de Joaquim, está numa posição diferente. Os pais do seu marido, sendo pobres, não tinham túmulo. Na altura da morte destes, os túmulos de Joaquim e do seu pai estavam ocupados. Abordada por Antónia, Maria sentiu que não podia recusar que o casal fosse enterrado no jazigo do pai da sua mãe, nomeadamente porque se sabia que ela não tinha particular afecto a estes antepassados, que não eram muito prestigiados, mas sobretudo porque era a sua própria irmã que lhe pedia esse favor.
38A situação começou a complicar-se para Maria e para a sua família conjugal quando se descobriu, numa visita ao cemitério, que o marido de Antónia começara a manifestar pretensões simbólicas à propriedade desse túmulo, pois tinha construído uma nova cobertura de mármore, vistosa e permanente, onde estavam proeminentemente inscritos os nomes dos seus pais. As opiniões dividiam-se, ninguém conseguia decidir-se sobre se Antónia tinha pedido licença para a construção, como a sua família conjugal mantinha, ou se, como Maria se lembrava, tivera havido uma vaga referência à possibilidade de a fazer, que Maria, para evitar conflitos, tinha simplesmente deixado sem resposta. A família conjugal de Maria preocupava-se que, de um momento para o outro, outros membros e associados da família de Antónia fossem aí enterrados. Em termos reais, tal significaria que eles perderiam todos os direitos morais ao túmulo, apesar de ninguém lhes poder disputar os direitos legais. A verdade é que, pela abundância de túmulos de que dispõe, a família conjugal de Maria não está em condições morais de exigir os seus direitos legais. Quando a história me foi contada, discutia-se a possibilidade de vender os direitos sobre o túmulo a terceiros, já que o espaço nos cemitérios urbanos tradicionais começa a ser valioso, e eles não previam que viessem a ter necessidade de voltar a utilizar o túmulo.
Identidades continuadas
39Algo sobre o qual os informantes insistem repetidamente é que a propriedade legal dos túmulos nem sempre é o factor principal no referente à sua utilização. E frequente, sobretudo no caso dos jazigos-capelas ou das campas mais sumptuosas, que um membro da família (em geral feminino) se encarregue de olhar pelo túmulo familiar — guardando as chaves, organizando a limpeza regular, mudando as flores, substituindo mobília ou adereços antiquados ou deteriorados. Tarefas de que, tipicamente, se encarregaria a filha solteira de Joaquim Antunes. Por virtude desta actividade esta pessoa adquire direitos, tanto para o seu próprio enterro como para ter uma voz activa na gestão dos túmulos em favor dos parentes que mais estima. A guardiã do túmulo tem frequentemente muito peso decisório.
40Os sentimentos de união e de partilha de interesses que resultam de uma associação com momentos de identificação passados — isto é, com unidades sociais primárias correspondentes a momentos anteriores do ciclo de reprodução — são as identidades continuadas de que temos vindo a falar. Como qualquer outro tipo de identidade social, elas estão sujeitas a vicissitudes; podem ser mais ou menos reforçadas consoante as condições. Um papel central no seu prolongamento é assumido por uma figura a quem Firth e os seus colegas chamam kin-keepers — «parentes que funcionam como elos de ligação na estrutura de parentesco devido ao seu interesse por, e conhecimento das ramificações genealógicas» (Firth et al, 1969: 139). Apesar destas figuras poderem corresponder a vários tipos sociais, estes autores observaram algo a que chamam «uma componente estrutural»: tratar-se-ia de «pessoas que, nas franjas do sistema de parentesco e não centrais a ele, usam o conhecimento do sistema como forma de manter uma integração nele» (1969: 140). Seriam, portanto, personalidades que, dentro da rede de relações familiares, funcionam como pontos de encontro, transmitindo informações e preservando laços.
41Dois tipos de kin-keepers assumiram particular visibilidade na investigação que tenho efectuado sobre a burguesia portuense. Por um lado, um tipo masculino, que corresponde geralmente a um hobby de natureza genealógica, muitas vezes pseudoacadémico e com reivindicações de honras aristocráticas mais ou menos justificadas. São, nos exemplos que tenho encontrado, pessoas que, como Firth e os seus colegas apontaram (Ibid.: 140), se caracterizam por alguma marginalidade em relação aos membros mais activos da rede familiar: irmãos ou tios solteiros ou menos afortunados ou que passaram muito tempo no estrangeiro, tendo voltado ao seu habitat de origem num momento mais tardio da vida. Em certos casos, são mesmo afins, oriundos de famílias menos prestigiadas. Através dos seus interesses genealógicos, eles criam um bem de natureza simbólica que lhes assegura uma certa relevância e prestígio perante parentes que, com o passar dos anos, poderiam tender a desinteressar-se deles.
42O tipo feminimo, no entanto, é o mais comum, e o que merece mais atenção da nossa parte, até porque é frequente que sejam estas mulheres que assumem o papel de guardiãs dos túmulos. Estou a falar de um tipo social amplamente reconhecido pelos informantes, a «solteirona»: senhoras de família burguesa que, tendo chegado à meia-idade sem casarem, «ficaram para tias». Como diz Firth: «Estruturalmente, [o trabalho da kin-keeper] é efectuado com maior eficiência por mulheres de uma geração mais avançada, especialmente as que não estão a cargo de uma família em crescimento» (1969: 141).
43Nos casos que me tem sido possível estudar, não parece haver uma razão estrutural única para o facto de certas mulheres ficarem solteiras, continuando ligadas a unidades sociais primárias que, com a morte do casal paterno, perderam a sua existência enquanto núcleo de propriedade e fundo de subsistência: tornaram-se «identidades continuadas». As razões objectivas para o celibato variam, desde a má sorte (como a morte repentina de um noivo de longa data), à incapacidade económica dos pais de lançarem na vida tantas filhas (um factor ainda importante pelo menos até aos anos 50), ou às características físicas e intelectuais. Em dois dos casos que encontrei, a razão principal para o celibato teria sido o alto nível de educação formal e a notória inteligência de senhoras que, na sociedade portuense dos anos 30 e 40, não se compatibilizavam com os padrões de vida da dona de casa burguesa (cf. Dias, 1963: 446).
44Recorramos mais uma vez ao exemplo ficcional de Joaquim Antunes. A sua filha Julieta teria ficado solteira por qualquer das razões acima indicadas. Foi ela que «olhou pelos pais» na sua velhice. No momento da morte dos pais, quando estava a chegar à meia-idade, a vida de Julieta alterou-se radicalmente. Estando ela empregada ou não, sendo ela rica ou pobre, a vida social de Julieta, a partir desse momento, tornou-se totalmente dependente das unidades sociais primárias dos seus irmãos/ãs, que ela visita semanal ou bissemanalmente, participando tanto quanto lhe é possível na educação dos sobrinhos. Em casos de indigência, Julieta terá que escolher por um dos irmãos/ãs, com quem viverá; é frequente, porém, que Joaquim e a sua mulher a tenham recompensado um pouco na herança, pelo que ela terá uma residência independente. Mais uma vez as situações variam: um quarto numa pensão residencial ou num hospital particular, um andar da casa original dos pais, um apartamento comprado com a herança ou um andar com um arrendamento antigo e, portanto, módico. Se, por virtude das vicissitudes do processo de herança, Julieta tiver preservado controle sobre uma parte importante da fortuna familiar, ela pode ir-se tornando uma tirana, que joga com o prospecto da sua herança como forma de manipular os seus sobrinhos.
45O ideal para o qual esta senhora vive é prolongar a identidade continuada da família conjugal que se formara em torno a Joaquim. Assim se compreende que, nas genealogias que senhoras deste tipo nos forneceram, haja uma tendência para acumulação de informação sobre consanguíneos, descurando afins. De qualquer forma, é raro que a «tia solteira» não tenha preferências que podem também funcionar como um meio de mobilizar para seu serviço ciúmes e, desta forma, dar mais vida às relações familiares. Os laços de «parentesco sagrado» jogam um papel muito importante nesta gestão de favores entre sobrinhos. A relação de Julieta com os netos e, mais tarde, com os bisnetos de Joaquim, é sempre uma relação ambígua e problemática, marcada, por um lado, por um certo carinho que resulta da relação que estes tiveram em criança com Julieta e, por outro lado, por um interesse económico que tende a chocar a sensibilidade burguesa. De facto, ou Julieta é um peso económico sobre «a família», ou ela é um asset disputado pelos diferentes sobrinhos ou ramos de sobrinhos. O ideal igualitário de herança significa que, em termos gerais, a relação entre pais e filhos pode ser parcialmente protegida dos efeitos emocionais destrutivos que, num contexto burguês, resultam da competição por favores económicos; o mesmo não se passa com a relação tios/sobrinhos. Desta forma se explica a existência de vários provérbios que reflectem esta ambivalência, tais como «A quem Deus não deu filhos, deu o Diabo sobrinhos».
46Na sua circulação entre casas de irmãos/ãs e de sobrinhos, Julieta transporta informação que é avidamente recolhida por estes. Nesse momento do ciclo de desenvolvimento da unidade social primária, estes irmãos e primos encontram-se em situação de crescente competição e distanciamento. Esta informação é um dos serviços que Julieta lhes presta, particularmente aos menos prestigiados que, desta forma, obtêm favores («cunhas») e prestígio reflectido. Mas também é uma fonte de conflitos, pois, sendo como é uma senhora idosa e preconceituada, ela utiliza os seus dons de comunicadora para reforçar a sua influência. A acusação de ser mexeriqueira persegui-la-á durante a sua velhice, assim como a desconfiança que daí advém. Contudo, no momento da sua morte, os parentes que ela interligava descobrem, para sua surpresa, a utilidade do papel que ela desempenhava.
Conclusão
47O leitor terá notado que, em todos os exemplos acima citados, utilizei como ponto de referência o nome de um homem já morto (Joaquim Antunes). Foi a forma mais fácil que encontrei de exemplificar os meus argumentos, pela simples razão de que o tema que me ocupava era a elucidação do modo pelo qual unidades de identidade social anteriores se reflectem na vivência de unidades posteriores. Não teria sido tão fácil construir estes exemplos em torno ao nome de uma mulher. Por exemplo, de Emilia, mulher de Joaquim. A razão para tal, sublinho, não se prende com o facto de a liderança de Emília sobre a sua família conjugal ser menos significativa que a de Joaquim — ela poderia bem ter sido o cônjuge dominante, como acontece frequentemente. Mas o que está em causa não é Joaquim como pessoa, como antepassado individual; antes sim, é a unidade social primária que se criou em torno ao núcleo reprodutivo que ele constituiu juntamente com Emilia. Se esta unidade é designada pelo nome masculino e não pelo feminino é porque, na civilização cristã ocidental, quando se torna necessário escolher um dos géneros, é atribuída precedência simbólica aos homens sobre as mulheres.
48Em síntese: os túmulos, assim como outros bens herdados funcionam como as marcas das cheias nas margens dos rios, que nos relembram a importância da passagem de antigas correntes. Constantemente se criam famílias e constantemente elas caem no esquecimento. Mas, enquanto são criadas de súbito, por virtude de um casamento, a sua morte é lenta, decorrendo durante duas ou três gerações. Em todos os momentos deste ciclo de reprodução da unidade social primária, os princípios do parentesco, da co-residência e da partilha de um fundo de subsistência comum, mediados pelo prestígio social, inter-relacionam-se para criar os sentimentos de associação e de destino comum, que identificam a «família burguesa».
49Assim, a polissemia da palavra «família» — que pode descrever a unidade residencial, a família conjugal, a vicinalidade de parentes, a família extensa, o grupo de pessoas que possuem o mesmo apelido e também a forma como as pessoas se unem através de uma identificação comum com unidades sociais primárias passadas e presentes — é central para compreendermos o funcionamento de algo que, apesar de tão fugidio, é sem dúvida um dos principais factores de integração social da sociedade burguesa portuense, as identidades continuadas.
Notes de bas de page
1 Parte deste material foi recolhido em conjunção com o Grupo do Noroeste composto por Caroline Brettell, Elizabeth Reis, Sally Cole, João Arriscado Nunes e Rui Graça Feijó. Estou particularmente grato aos dois últimos pelo seu apoio e colaboração. Agradeço também a Ana Brito, Catarina Alves Costa e João Vasconcelos pela utilização de histórias de família por eles efectuadas. De um ponto de vista metodológico, o material foi recolhido a partir de 1986 através de focus groups, histórias de família e entrevistas livres.
2 Veja-se, por exemplo, os recentes textos de Gary McDonough (1986) sobre a alta burguesia de Barcelona, ou de Beatrix Le Wita (1985) sobre a burguesia parisiense.
3 Mark Poster citado em Medick e Sabean, 1984: 17.
4 Firth et al, 1969: 10. Em 1968, David Schneider faz uma afirmação semelhante por relação à família da classe média de Chicago (1980: VIII).
5 P.e. Lisón-Tolosana, 1976: 179 ou Sabean, 1984: 171.
6 A Language of emotion, cf. Medick e Sabean, 1984.
7 Para um exemplo de como a linguagem da emoção funciona como discurso legitimador das relações familiares entre a burguesia parisiense, ver Le Wita, 1985: 19-21.
8 Pina Cabral, 1989: 56. Weber define status como «uma reivindicação efectiva à estima social em termos de privilégios positivos ou negativos» e «grupo de status» como «uma pluralidade de pessoas que, no seio de um grupo mais vasto, reivindica com sucesso a) uma estima especial e possivelmente também b) monopólios de status» (1978, I: 305-6).
9 O nome Joaquim Antunes, tal como os outros nomes que atribuí aos seus parentes, são imaginários e são aqui usados apenas para facilitar a exposição do argumento. Os exemplos apresentados são reais, e foram retirados de diferentes famílias do Porto, as quais não estão, no entanto, relacionadas entre si, como o texto poderia levar a crer.
10 Os direitos legais são, evidentemente, estabelecidos pelas normas de herança definidas no Código Civil. Contudo, mesmo não sendo formalmente co-proprietários, há certas pessoas às quais não seria negado o direito de enterro. Por exemplo, um filho do primeiro casamento da mulher de Antunes que tenha sido criado «como se fosse seu filho».
11 Curiosamente, algo de semelhante parece ser indicado pela participação em enterros estudada por Firth et al em Londres. 40% de todos os parentes presentes eram afins, 1969: 245.
12 Agradeço a Catarina Alves Costa ter-me chamado a atenção para esta citação.
13 Note-se que uso aqui a expressão «geneticamente relacionada» para significar as casas que se dividiram para produzir esta ou que resultaram da divisão desta (i.e. as casas parentais do marido e da mulher e as casas de procriação dos filhos).
14 Isto é, pai, mãe e filhos residindo numa casa independente.
15 Trata-se de uma situação que me foi narrada recentemente, na qual eu alterei os nomes e o sexo de alguns dos intervenientes, quando esta alteração não afectava em nada o sentido.
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