Capítulo 2 – Linhas de Emergência
p. 99-136
Texte intégral
“A explicação mecânica das funções vitais supõe, historicamente, a construção de autômatos...”
(Goerges Canguilhem, Machine et organisme)
Proveniências epistemológicas: psicotecnologia e criminologia ambiental
1 Massachussets, 1964. Liderado pelos irmãos Ralph e Robert Schwitzgebel, o Comitê Científico de Experimentação Psicológica da Universidade de Harvard elabora o primeiro mecanismo de monitoramento remoto de indivíduos considerados “socialmente inadaptados” (Schwitzgebel et al. 1964). Utilizando tecnologias de radiofrequência, o grupo de pesquisadores desenvolve um aparelho de localização à distância que possibilita o intercâmbio de mensagens entre o indivíduo rastreado e a central de monitoramento. O protótipo detectava a posição de seu portador, transmitindo informações sobre suas atividades, permitindo a troca de comunicações com a equipe de monitores e, quem sabe, modificando o comportamento de seu usuário (Harvard Law Review 1966: 403-421). Conhecido mais tarde como “a máquina do Dr. Schwitzgebel” (idem), o equipamento condensava as experiências iniciais em torno da elaboração de novas tecnologias de controle do desvio. O projeto reunia elementos técnicos e científicos com o propósito de alterar determinados padrões comportamentais a partir da interação homem-máquina. Sua concepção mobilizava um conjunto de saberes psicológicos e criminológicos, conectados aos recentes avanços no campo da telemática.
2Partindo da análise desse primeiro conjunto de experiências, este capítulo empreende uma investigação genealógica dos dispositivos de monitoramento de presos e presas e das diferentes racionalidades atreladas à sua elaboração. O objetivo central do capítulo é identificar as funcionalidades originalmente atribuídas ao dispositivo, reveladoras de sua conexão com as transformações no campo do controle do crime transcorridas a partir da década de 1960 nos Estados Unidos. Baseado na análise dos registros produzidos pelos primeiros cientistas dedicados à concepção de sistemas de monitoramento remoto e em uma revisão da literatura sobre o tema, são sinalizadas algumas das condições políticas, sociais e científicas que viabilizaram a emergência e desenvolvimento do monitoramento eletrônico na maior potência penal do planeta. Nesse sentido, o capítulo acompanha a concepção e a difusão do monitoramento eletrônico pelos EUA. Seu ponto de partida situa-se na interseção estabelecida entre a pesquisa científica e a intervenção comportamental, que faria do universo acadêmico e laboratorial o espaço de gestação de um novo dispositivo tecnopenal.
3O aparelho desenvolvido pelos psicólogos de Harvard valia-se de emissores portáteis pesando cerca de 1 quilo, que enviavam frequências de rádio a uma distância de aproximadamente 400 metros. O indivíduo monitorado portava uma pulseira transmissora e uma bateria fixa à cintura. Os sinais de localização eram amplificados por um sistema adaptado de rastreamento de mísseis que disponibilizava a posição do equipamento em uma tela situada na estação-base. Os usuários reportavam suas atividades e estados emocionais aos pesquisadores, que emitiam de volta mensagens de reforço por meio de códigos sonoros. Desenvolvido como instrumento de comunicação psicoterapêutica, o protótipo foi nomeado de Behavior Transmitter-Reinforcer e testado em uma série de voluntários que incluíam estudantes, apenados e pacientes psiquiátricos (Fox 1987; Gable e Gable 2005; Vitores 2009).
4Pouco tempo depois, elucubrava-se a possibilidade de modificação do sistema para a captação dos signos físicos e neurológicos da pessoa monitorada, tais como frequência cardíaca e respiratória, níveis alcoólicos no sangue e ondas cerebrais. Robert Schwitzgebel aperfeiçoou o modelo inicial, facilitando seu manuseio e incluindo um sensor de pulsação que captava ritmos cardíacos e demais informações fisiológicas. Para além da movimentação, a ideia era acompanhar as condições clínicas e psíquicas do indivíduo, registrando suas oscilações e intervindo sobre elas. Conforme os pesquisadores,
“a pessoa supervisionada pode levar com ela uma variedade de transdutores como contadores, gravadores, câmeras e instrumentos de medição; transdutores que podem ser acionados e/ou interrogados desde a estação central com objetivos de controle ou de investigação comportamental.” (Schwitzgebel e Hurd 1969: 7)
5O aparelho transmissor portado pelo usuário teria como função principal a interceptação imediata sobre as situações vividas pelo sujeito, influindo em suas ações através de um mecanismo de feedback comportamental. Os dados físicos e geográficos eram enviados à central de controle a cada 30 segundos, permitindo a produção de gráficos analíticos a partir dos quais se baseavam as mensagens de reforço. De sua parte, a central emitia um conjunto de estímulos ao indivíduo, verificando suas respostas e elaborando, por meio de seu registro, um quadro correlacional de probabilidades comportamentais (Schwitzgebel et al. 1964: 234).
6Segundo Ralph Schwitzgebel (1976), as experiências fundamentavam-se no conceito de condicionamento operante, formulado no início da década de 1950 pelo psicólogo comportamental Burrhus Skinner. Expoente do behaviorismo, Skinner havia investigado as variáveis do comportamento humano, baseadas nas dinâmicas de estímulo e resposta, por meio das quais o reforço ou punição às ações individuais produziriam efeitos mensuráveis. A noção de condicionamento operante explicava as formas pelas quais o repertório comportamental de um determinado organismo é modelado por alterações no ambiente em que ele é inserido. Uma intervenção externa produziria respostas cuja probabilidade pode ser predita. A conduta individual se ajustaria à emissão de feedbacks positivos ou negativos, conforme tendências verificáveis (Skinner 1998: 72).
7Todavia, ao contrário das leituras e interpretações recorrentes do clássico Ciência e Comportamento Humano, que enfatizam a mecânica castigo-recompensa como marca do pensamento de Skinner, o psicólogo acreditava que o conjunto das ações humanas pode ser “mais eficientemente controlado pela modificação das circunstâncias” (idem: 209). As constrições físicas produzem, frequentemente, disposições emocionais de contra-ataque. “O controlador não precisa ter o poder de coagir ou restringir diretamente o comportamento, mas pode afetá-lo indiretamente alterando o ambiente” (idem: 345). Os estímulos aversivos contingentes ao castigo tendem a gerar predisposições desorganizadoras, exigindo, posteriormente, outros métodos de controle para remediá-las.
8Inspirados pela teoria skinneriana, o grupo de pesquisadores de Harvard coordenado pelos irmãos Schwitzgebel desenvolveu seu sistema de controle articulando a psicologia comportamental com o que chamava psicotecnologia, ou seja, “o estudo da interação entre a tecnologia elétrica, mecânica e química e a experiência humana consciente” (Schwitzgebel e Schwitzgebel 1973: 11). Suas investigações se desenvolviam em torno de um programa de pesquisas definido como “eletrônica comportamental”, cujo escopo central consistia na aplicação da engenharia eletrônica voltada à “compreensão, manutenção e modificação do comportamento humano” (Schwitzgebel et al. 1964: 233).
9Concebida como ciência aplicada, a psicotecnologia do grupo de Harvard perseguia o aprimoramento das técnicas de observação e intervenção psicológicas mediante o uso de aparatos eletrônicos que permitissem a manutenção do paciente em seus espaços habituais. Com o auxílio de sistemas de localização e comunicação à distância, seria possível superar as limitações experimentais representadas pelos métodos de internação e desenvolver mecanismos terapêuticos de controle em meio aberto. O registro das atividades do indivíduo e o intercâmbio de sinais com a central de controle forneceria condições adequadas à supervisão e transformação do comportamento desviante. Mais do que a mera observação, a ideia era alterar a conduta individual a partir da relação entre seres humanos e sistemas eletrônicos, estabelecidos como unidade integrada (idem).
10Dentre as múltiplas funcionalidades de suas experiências – tais como o tratamento de pacientes epilépticos, geriátricos ou portadores de transtornos mentais (Schwitzgebel e Schwitzgebel 1973: 15) –, os pesquisadores vislumbravam as perspectivas que elas ofereceriam aos procedimentos de reabilitação de delinquentes:
“Nas pesquisas sobre a conduta humana realizadas até os dias de hoje, ou o indivíduo estudado se encontra sujeito a uma constante vigilância, ou deve-se confiar nas informações subjetivas fornecidas por ele a respeito de sua própria conduta. Ambas as técnicas possuem limitações óbvias e os resultados de tais pesquisas são frequentemente inadequados. Por exemplo, na penologia moderna, um dos principais objetivos é a reabilitação dos delinquentes convictos. Ainda assim, as ferramentas penológicas e as técnicas comumente utilizadas implicam ou em um grau elevado de restrição situacional (prisão) ou numa supervisão limitada através de contatos periódicos com o indivíduo (probation). A diferença entre ambas as técnicas é tão grande que, em muitos casos, a transição de uma técnica a outra pode levar a formas de estresse contra-reabilitadoras.” (Schwitzgebel e Hurd 1969: 6)
11Os psicólogos evocavam a função corretiva da pena como um de seus objetivos, uma vez que as técnicas de confinamento produziam efeitos emocionais indesejados. A prisão e suas coerções excessivas constituíam mais um “estandarte de tecnologias da vingança do que de tecnologias de reabilitação” (Schwitzgebel 1968: 34). Sua ineficácia enquanto procedimento reformador do comportamento delinquente deveria ser superada por sistemas tecnológicos de controle e predição. Segundo eles, a partir do momento em que se puder “prever ou controlar comportamentos delinquentes, o encarceramento já não será necessário como meio de controle comportamental e proteção social” (Schwitzgebel 1969: 236).
“Uma pessoa liberada dessa maneira seria menos propensa do que o habitual a cometer delitos se um registro de sua localização fosse gravado em uma estação base. Se, além disso, for incluído um sistema de comunicação com essa pessoa por tons em via dupla, poderia se estabelecer uma relação terapêutica, na qual a pessoa em liberdade vigiada fosse premiada, avisada ou informada de outro modo, de acordo com um plano terapêutico.” (Schwitzgebel 1969: 598)
12As finalidades atribuídas ao sistema alinhavam-se às premissas que marcavam o pensamento penológico à época de seu desenvolvimento. Os propósitos terapêuticos e reabilitadores imputados ao monitoramento vinculavam-se aos preceitos correcionalistas predominantes na década de 1960. O descrédito da prisão enquanto método corretivo havia se espraiado pelos círculos jurídicos, políticos e criminológicos estadunidenses ao longo da primeira metade do século XX, fomentando os debates a respeito da necessidade de elaboração e estruturação das chamadas penas alternativas (Cohen 1985; Wacquant 2001; Garland 2008). O crescimento dos índices de reincidência criminal evidenciava a ineficiência do cárcere como técnica reformadora. As medidas penais aplicadas na comunidade adquiriam a preferência dos especialistas e operadores de um sistema de justiça criminal essencialmente orientado pelo ideal reabilitador (Garland 1985, 2008).
13Nesse contexto, os saberes psi gozavam de especial relevância no interior do arcabouço científico que fundamentava teoricamente os sistemas penais norte-americanos e europeus dos anos 1950 e 1960. Os problemas centrais que mobilizavam a pesquisa criminológica hegemônica residiam na compreensão da personalidade delinquente e nos aspectos patogênicos do criminoso individual. Da psicanálise criminal de orientação freudiana, interessada nas motivações causais que levavam os indivíduos a tornarem-se delinquentes – traumas de infância, conflitos do inconsciente, causalidades subjacentes profundas – à psiquiatria forense, dedicada à identificação das origens neurológicas da inadaptação social – psicopatia, transtornos de personalidade antissocial, incapacidade de autodeterminação e entendimento –, a razão criminológica reabilitadora sustentava-se em grande medida pelas ciências psi, cuja atenção voltava-se às características do indivíduo, decifrado e tratado a partir da diferenciação binária entre o normal e o patológico (Canguilhem 2011). O tratamento penal focava-se sobretudo nas predisposições do infrator e na reforma de seu comportamento social, psicológica ou neurologicamente desviado (Garland 2008).
14No âmbito das preocupações correcionais, o estudo e avaliação dos impactos representados pelos diversos tipos de intervenção penal constituía um dos eixos orientadores da pesquisa criminológica. Mecanismos de autoavaliação e reflexão interna às instituições de controle do crime atraíam investimentos governamentais em países como Estados Unidos e Inglaterra, com o objetivo de analisar os efeitos das medidas penais sobre os criminosos e a redução de suas propensões ao crime (Garland 2008). Nesse sentido, as penas comunitárias tais como probation e parole1 apresentavam resultados aparentemente favoráveis à recuperação do delinquente, quando comparadas ao encarceramento (Dodge 1975).
15Entretanto, a ausência de fiscalização contínua sobre os regimes em meio aberto tornava questionável sua capacidade de controle e prevenção à reincidência, exigindo métodos mais estritos de supervisão penal. Era necessário desenvolver formas efetivas de substituição à prisão que garantissem um controle rigoroso, individualizado e moderador exercido sobre o infrator (Cusson 1997). As pesquisas do grupo de Harvard perseguiam esse objetivo, ao desenvolverem os primeiros mecanismos de monitoramento remoto de indivíduos tidos como delinquentes.
“Sistemas como esse podem monitorar a localização geográfica e as variáveis psicossociológicas, além de permitir uma comunicação codificada bidirecional com pessoas em seu ambiente social natural. […] Seria conveniente, por exemplo, que se oferecesse aos criminosos a opção de escolher entre o encarceramento ou a liberdade condicional com monitoramento eletrônico.” (Schwitzgebel e Schwitzgebel 1973: 15)
16O programa de experimentações desenvolvido em Massachussets oferecia à justiça uma forma intermediária de controle penal que eliminaria os inconvenientes do cárcere ao tratar do infrator em seu “ambiente natural”. A estruturação e o monitoramento das atividades cotidianas do criminoso em sua própria comunidade, mediada pelo intercâmbio de mensagens comunicacionais e situacionais, constituiria um método mais eficiente de supervisão penal.
17A proposta reunia os elementos discursivos organizados em torno das tradicionais finalidades reabilitadoras, incorporando, contudo, os novos conteúdos teórico-programáticos elaborados pelas correntes criminológicas então emergentes. Se, por um lado, as finalidades científicas do grupo de psicólogos concentravam-se na reforma e transformação do comportamento delinquente, por outro, seus idealizadores apostavam na atuação preditiva e situacional transcorrida no ambiente social do criminoso como técnica eficaz de controle do crime.
18A psicotecnologia dos irmãos Schwitzgebel articulava-se à gênese epistemológica da chamada criminologia ambiental, formulada entre os anos 1960 e 1970 e sustentada pela hipótese central de que o crime é uma manifestação natural da conduta humana e a tendência de sua ocorrência deve ser coibida mediante intervenções situacionais. Mais do que a transformação individual do sujeito delinquente, os teóricos ligados às novas linhas de pensamento criminológico preocupavam-se com a prevenção espaço-temporal da ocorrência infracional. A eficiência no combate à criminalidade dependeria de atuações ambientais que fariam da ação delituosa um empreendimento arriscado (Jeffery 1971; Brantingham e Brantingham 1981). O alvo principal de interesse científico se deslocaria do indivíduo delinquente ao evento criminoso.
19O próprio behaviorismo de Skinner já havia elaborado alguns dos elementos basilares que seriam agora incorporados pela escola criminológica ambiental. A ideia de que a conduta humana seria condicionada pelo ambiente externo constituía o núcleo principal das teses comportamentalistas, voltadas à compreensão e ao aperfeiçoamento das técnicas de controle. Alterações ambientais e intervenções situacionais consistiam, para Skinner, os procedimentos mais adequados de manipulação das condutas.
20A nova razão criminológica absorveria tais premissas, direcionando-as à elaboração de estratégias renovadas de controle do crime, a partir de um conjunto de postulados e matrizes teóricas. Reunindo aspectos da psicologia comportamental, do pensamento social urbano e da microeconomia, a criminologia ambiental, identificada também como “criminologia situacional” ou “criminologia da vida cotidiana”, fundamentava-se em três principais vetores teóricos: a) Teoria das atividades de rotina; b) Teoria geométrica do crime; e c) Teoria da escolha racional (Brantingham e Brantingham 1981).
21O primeiro vetor ressaltava a necessidade de organização das ações cotidianas tanto de infratores quanto de vítimas, de maneira a evitar os riscos representados por “situações criminogênicas”. A atenção prioritária dos especialistas residia na análise, coordenação e predição das atividades individuais e coletivas, criando condições para o gerenciamento dos fluxos populacionais no interior do espaço urbano a partir do cruzamento das informações demográficas com os dados relativos à incidência criminal. A análise recaía sobre a identificação dos espaços e tempos de circulação: por onde passam as pessoas; quanto tempo permanecem nos ambientes de trabalho, lazer e descanso; quais os ritmos de deslocamento, entrada e saída nos diversos locais que frequentam e qual a sua relação com a frequência de eventos criminosos nas áreas observadas. Ritmo, tempo e frequência constituíam os conceitos principais sobre os quais se baseava a pesquisa criminológica, cuja matriz teórica recuperava os fundamentos da ecologia humana (Cohen e Felson 1979).2
22O segundo vetor, designado como teoria geométrica do crime ou geometria do crime, explicava os padrões da ocorrência criminal a partir do estudo dos aspectos geográficos da atividade humana, conferindo atenção especial às oportunidades do crime oferecidas pela estrutura espacial. Ancorados em uma certa geografia comportamental, seus teóricos ressaltavam a influência do espaço urbano sobre as escolhas individuais de potenciais vítimas e infratores. O problema central a ser analisado relacionava-se ao fato de que os pontos nodais e trajetos de passagem frequentados por criminosos poderiam se cruzar ou sobrepor com aqueles pelos quais atravessam vítimas e cidadãos comuns. Um trajeto seguro seria, portanto, aquele que evitasse a interseção com os nódulos ou distritos identificados como zonas de risco, por concentrarem em seus limites altos índices de criminalidade (Brantingham e Brantingham 1981).
23Por fim, a teoria da escolha racional admite que a ação criminosa é o resultado de uma sequência de julgamentos individuais do infrator, baseados em seus próprios cálculos de riscos e benefícios. Se o criminoso considera que os riscos do crime são inferiores aos benefícios por ele oferecidos, a infração é tomada como uma ação vantajosa. Nesse sentido, o potencial infrator atua como agente calculista de seus atos, tendo por objetivo extrair do crime uma vantagem pessoal. Aqui, não se trata apenas de prognósticos financeiros, mas de cálculos e julgamentos internos que tomam a intervenção penal como um prejuízo ou um risco a ser evitado. A projeção utilitária de vantagens e desvantagens orientaria o infrator em suas escolhas individuais. Outrora tratado como elemento patológico a ser corrigido e tratado por meio de técnicas reabilitadoras, o criminoso passava a ser visto como agente racional, calculista de suas ações e empreendedor de sua própria conduta (Becker 1974; Clarke e Cornish 1985).
24O repertório teórico que constituía as novas correntes criminológicas atravessou e atravessa os programas de monitoramento eletrônico nos diversos países em que o dispositivo foi implementado (Kaluzinski e Froment 2003; Gable e Gable 2005; Vitores 2009; Cotter e Lint 2009). A estruturação das atividades cotidianas de indivíduos considerados infratores, com base em horários de circulação e recolhimento; o planejamento geométrico de seus deslocamentos no interior de zonas de inclusão e exclusão; e a compreensão de que a intervenção penal deve ser estabelecida como um risco a ser inserido no cálculo individual que conduz o criminoso compõem os princípios orientadores das práticas de monitoração eletrônica, centradas no gerenciamento dos fluxos de apenados no ambiente social.
25As pesquisas dos irmãos Schwitzgebel situavam-se no intervalo temporal entre a crença hegemônica na funcionalidade corretiva da pena e a emergência de uma nova razão criminológica que daria o tom das políticas penais e de segurança pública na passagem do século XX para o XXI. O avançar das décadas de 1980 e 1990 assistiria a transformações significativas nas práticas e saberes penais tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, em direção a uma epistemologia institucional gerencialista e neutralizadora de indivíduos e populações tidos como indesejados, em detrimento aos velhos princípios correcionalistas (Feeley e Simon 1992; Wacquant 2001, 2003; Garland 2008). O escopo norteador dos programas penais passaria a oscilar entre a gestão situacional do crime e a aniquilação das capacidades de ação do criminoso. E os sistemas de rastreamento de presos seriam então alinhados a esse novo paradigma, particularmente ligados às correntes situacionais.
26Todavia, como veremos mais adiante, os atributos reabilitadores conferidos ao controle eletrônico não serão abandonados pelos operadores e legisladores envolvidos em sua implementação. Ao contrário, serão inseridos em um emaranhado heterogêneo e multifacetado de formulações discursivas que conformaram um dispositivo polivalente, capaz de adequar-se a contextos políticos variados e a epistêmes penológicas multiformes (Cotter e Lint 2009).
27De qualquer maneira, a análise das propriedades políticas e dos impactos do controle eletrônico sobre as pessoas monitoradas exige o estudo das diferentes racionalidades que constituem suas condições de emergência, seu desenvolvimento não linear e suas atribuições difusas. A investigação das diversas linhas de enunciação que costuram as práticas de monitoramento de presos permite que se identifique, de um lado, os esquemas táticos e cognitivos de controle do crime mobilizados em torno de sua implementação e, de outro, a composição de forças sociais, políticas e econômicas que possibilitaram a sua difusão inicial. Para além do saber científico, o desenvolvimento do dispositivo seria alavancado por práticas discursivas variadas que permeavam o processo de constituição da racionalidade penal neoliberal e a própria ficção científica popular.
Imaginário ficcional e penalidade neoliberal
“Quão cômico eu era quando era apenas um fantoche!
E como sou feliz agora, tendo me tornado um garoto de verdade!”
(Carlo Collodi, Le Avventure di Pinnocchio)
28Alguma incógnita há de permanecer subjacente ao poder da ficção em enformar a realidade; em sua capacidade de produzir a verdade. Não se saberá ao certo os níveis de inspiração dos agentes públicos e privados, políticos e empresariais, extraídos do imaginário ficcional na concepção de seus projetos de construção do concreto. O que se pode saber são as potencialidades da produção cultural em se fazer pensar o que seria impensável e delinear assim as virtualidades do porvir.
29David Kirby (2000) observa a importância da indústria cinematográfica e sua interação com a realidade social na construção de imagens e discursos acerca do avanço das pesquisas em engenharia genética e seus impactos na sociedade atual. A rápida expansão das ciências biotecnológicas é frequentemente projetada pelo cinema com requintes fantasiosos e sobrevalorizações estéticas a respeito da manipulação do material orgânico hereditário. O inverso, no entanto, é também verdadeiro, na medida em que uma série de produções no campo da ficção científica anteciparam realidades que, à época, pareciam bem distantes da realidade concreta. É o caso do cinema futurista produzido no início do século XX, cujos enredos se desenvolvem em torno de experimentações genéticas que só viriam a se realizar a partir da década de 1970. Técnicas de eugenia baseadas na manipulação do genoma humano aparecem em filmes exibidos por uma incipiente produção cinematográfica dos anos 1910,3 o que leva Kirby a investigar os efeitos da ficção científica sobre a configuração social.
30Sua Sociologia da Ficção, apoiada em autores ligados à fenomenologia do cinema e à literatura futurista, levanta questões a respeito da influência do universo cinematográfico no desenvolvimento de um certo determinismo genético: o redimensionamento do racismo levado a cabo pela combinação laboratorial de genes humanos. Kirby elabora uma reflexão analítica sobre a erradicação da dicotomia entre ciência e ficção e seus mecanismos complementares de reprodução das relações humanas. Mas ressalta também a capacidade da produção cultural em lançar luz aos piores pavores da sociedade a respeito da ciência como força social. Tal como observa o sociólogo português Flávio Ferreira (2016), discutindo o trabalho de Kirby, o caráter incerto dos rumos a serem tomados pela pesquisa biotecnológica torna difícil a conclusão valorativa a respeito de seu conteúdo ético e moral. De todo modo, alguma atenção à espreita há de ser necessária “quando a ficção nos incomoda de tão realista e a realidade parece-nos beirar o ficcional” (Ferreira 2016: 115).
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31No ano de 1983, o juiz estadunidense Jack Love, de Albuquerque, Novo México, inspirou-se em uma história em quadrinhos do personagem Homem-Aranha para realizar a primeira aplicação jurídica de um mecanismo de controle eletrônico penal. O magistrado ficara particularmente intrigado com um episódio do popular personagem da série Marvel Comics, no qual o vilão da história acoplava ao braço do herói um equipamento de localização que perseguiria seus passos por onde estivesse. O rastreamento do personagem permitiria que seu rival se colocasse em condições de vantagem, já que se manteria sempre um passo à frente do super-herói (Lilly e Nellis 2013: 24-25). Entusiasmado com a ideia do cartunista, Jack Love tomou a iniciativa de reproduzi-la para o rastreamento de presos na árida Albuquerque.
32Desde o final dos anos 1970, o juiz se interessava por possíveis formas de monitoramento de jovens detentos da penitenciária local, coletando informações sobre sistemas eletrônicos de localização, tais como cartões antifurto utilizados em supermercados e tecnologias de rastreamento de cargas e animais. Os quadrinhos do Homem-Aranha, publicados em 1977 em uma edição do jornal da cidade, estimularam Love a procurar fabricantes interessados na elaboração de um mecanismo semelhante. Foi então que encontrou um pequeno empresário da área de informática, Michael Goss, que aceitou empreender a iniciativa. Goss investigou as patentes dos equipamentos desenvolvidos pelos irmãos Schwitzgebel e seu grupo de pesquisas, concluindo que, com a utilização de componentes tecnológicos reduzidos, agora disponibilizados pelo mercado de eletrônicos, seria possível desenvolver algo próximo à encomenda do juiz. O empresário produziu um aparelho que denominou de Gosslink, em referência ao seu próprio nome (Burrel e Gable 2008; Lilly e Nellis 2013).
33As primeiras versões do artefato eram compostas por um transmissor que emitia sinais de rádio a cada 60 segundos e um receptor conectado a um computador e a uma linha telefônica. O modelo já não incluía a possibilidade de intervenção direta e intercomunicação bidirecional entre o portador do equipamento e a central de controle, tal como se dava nos sistemas desenvolvidos pelos psicólogos de Harvard. Basicamente, o mecanismo elaborado por Michael Goss consistia em um sistema de detecção da proximidade do usuário em relação à central e sinalização de alarmes em casos de violação das áreas delimitadas. Em abril de 1983, depois de experimentar o equipamento em si mesmo durante três semanas, Jack Love determinou sua aplicação em cinco indivíduos sob regime de probation em Albuquerque (Rodríguez-Magariños 2007; Burrel e Gable 2008; Lilly e Nellis 2013).
34 Anos depois, o próprio juiz manifestaria sua preocupação com os aspectos invasivos do mecanismo, quando empresas japonesas lhe ofereceram a possibilidade de acoplar ao equipamento um controle televisivo. Na ocasião, o magistrado afirmaria que a “nova tecnologia estava facilitando a violação dos direitos básicos das pessoas” (Love apud Rodríguez-Magariños 2007: 61).
35Já era tarde. A partir de sua experiência, os sistemas de monitoramento iniciaram sua difusão pelos Estados Unidos. Alguns meses depois da iniciativa de Love, um programa de rastreamento de apenados foi inaugurado em Palm Beach, na Flórida, incluindo 415 pessoas entre 1984 e 1989 (Burrel e Gable 2008). Ainda em 84, um projeto semelhante teve início no condado de Kenton, Kentucky, direcionado ao controle de probationers.4 No ano seguinte, 21 estados já adotavam o monitoramento eletrônico no país (Lilly e Ball 1992). Em 1998, a quantidade total de pessoas monitoradas nos EUA ultrapassava as 95.000, de acordo os dados apresentados pelo National Law Enforcement and Corrections Technology Center (1999). Pouco mais de uma década havia sido necessária para que o desenvolvimento do dispositivo atingisse essa marca.
36Os anos de 1980 são tidos como marco inicial da propagação dos sistemas de monitoramento eletrônico de presos e presas nos EUA. O equipamento desenvolvido em Albuquerque é apontado pelos analistas como a versão inaugural dos mecanismos atuais (Vitores e Domènech 2007; Burrel e Gable 2008; Lilly e Nellis 2013). Jack Love e Michael Goss são reconhecidos por terem estimulado a elaboração de um modelo operacional do sistema e viabilizado sua primeira utilização prática. A inspiração proveniente do universo ficcional converteu-se em realidade concreta ensejada pelo empreendimento jurídico e comercial de seus inauguradores. A partir de então, o controle eletrônico se disseminaria pelo sistema penal norte-americano e seria exportado para a Europa ainda em 1988, quando a Inglaterra realizou seus primeiros projetos-piloto (Mair e Nellis 2013).
37A genealogia do dispositivo é dotada, contudo, de um certo número de descontinuidades. Seu desenvolvimento não obedece a uma mecânica histórica unívoca e tampouco a uma destinação penológica prévia. As funções do monitoramento e os elementos propulsores de seu progresso vinculam-se aos diferentes deslocamentos histórico-políticos que marcaram o campo do controle do crime ao longo dos últimos decênios do século XX. Suas condições de emergência seriam dadas por transformações agudas que atravessariam o universo penal em parcelas significativas do globo.
38Vinte anos haviam se passado entre o início das pesquisas do grupo de Ralph e Robert Schwitzgebel e a iniciativa de Jack Love. O programa de experimentações transcorrido em Massachussets não havia obtido adesão das autoridades estaduais ou federais estadunidenses. As poucas menções ao projeto apresentavam críticas aos potenciais abusos que seu emprego acarretaria. Seus próprios protagonistas também haviam ponderado sobre as ameaças que os equipamentos de controle eletrônico poderiam representar às liberdades coletivas e individuais. “O abuso do equipamento telemétrico comportamental na prevenção do crime levanta uma grande ameaça às liberdades civis essenciais do grande público”, ressalvava o Dr. Ralph Schwitzgebel (1969: 611). Durante toda a década de 1970, um relativo esquecimento fora reservado à ideia de se monitorar apenados com rastreadores eletrônicos (Burrel e Gable 2008).
39Quais seriam então as razões para o sucesso dos programas de monitoramento desenvolvidos nos anos 1980? Que motivos fariam com que um conjunto de experiências cientificamente embasadas e psicologicamente fundamentadas não obtivesse êxito enquanto programa político aplicado e uma ideia impulsionada por uma história em quadrinhos infanto-juvenil fosse, ela sim, o ponto disparador do período de deflagração de um novo dispositivo de supervisão penal?
40Quatro processos básicos e inter-relacionados podem ser apontados aqui como fatores explicativos, reunidos em torno da chamada guinada punitiva (Wacquant 2001, 2003; Garland 2008) que reconduziu as estratégias de controle do crime nos EUA durante as três últimas décadas do século XX: a) a absorção massificada – e racialmente seletiva – de volumosos contingentes populacionais pelos sistemas penal e penitenciário a partir de meados dos anos 1970; b) a intensificação da participação do capital privado no sistema de justiça criminal estadunidense; c) a compreensão de que o combate à criminalidade exigia a modernização e a informatização dos recursos destinados às agências penais e de segurança pública; e d) a consolidação de uma racionalidade penológica essencialmente orientada por parâmetros econômico-políticos de custo-eficiência.
41O encadeamento entre estes quatro elementos constitui, de um lado, uma espécie de berço socio-histórico de uma nova tecnologia de controle punitivo e, de outro, a composição parcial e localizada daquilo que se convencionou designar, entre alguns autores, de penalidade neoliberal (Foucault 2008a, 2008b; Wacquant 2001, 2003; Harcourt 2008, 2009).5 O vultuoso incremento da quantidade de pessoas submetidas a controles penais, particularmente concentrado na população negra; a gestação e o desenvolvimento de uma proeminente indústria de controle do crime; a tecnicização dos instrumentos mobilizados pelas agências penais e securitárias; e a virada do pensamento criminológico hegemônico em direção a uma racionalidade de tipo econômico e eficienticista perfazem alguns dos processos basilares que constituem a face penal do governo neoliberal. Dessa forma, um breve olhar às conexões estabelecidas entre estes quatro pontos específicos permite que se detectem os principais vínculos passíveis de serem estabelecidos entre a emergência dos dispositivos de monitoramento eletrônico e a formulação de um lastro político e epistemológico no campo da penalidade, enquadrado no interior das análises sobre o neoliberalismo.
a) Explosão demográfica e racialmente seletiva da população sob controle penal
42O último quarto do século XX assistiu a um crescimento demográfico sem precedentes no sistema carcerário estadunidense, alavancado pelas campanhas de reafirmação da hierarquia etnorracial no país, tal como assinalado por Angela Davis (2003) e Louïc Wacquant (2003). No decorrer dos anos 1960, a estratificação entre negros e brancos havia sido abalada pela luta política dos movimentos negros pró-direitos civis. A erupção dos guetos do Norte, que concentravam os descendentes de escravos nas áreas pauperizadas das grandes metrópoles, e a erradicação do “sistema de Jim Crow”, que estabelecia a segregação racial legal nos estados do Sul, teriam como resposta a desproporcional reação estatal em direção à criminalização sistemática e à penalização massiva da população negra ao longo das décadas subsequentes (Davis 2003; Wacquant 2003). À sucessão legislativa que declarava “guerra ao crime”,6 associada à hiperatividade performativa das instituições de segurança pública e à condenação agressiva dos crimes de rua, subjazia a atuação racialmente dirigida das instituições penais e securitárias (Davis 2003; Alexander 2010). Cristalizadas na doutrina de lei e ordem e nos programas de tolerância zero, as medidas de recrudescimento penal e policial deflagradas nos EUA entre os anos 1970 e 1990 impeliram a disparada abrupta dos níveis de encarceramento (Wacquant 2001, 2003).
43De 1975 a 1985, a população prisional do país praticamente dobrou, saltando de 380 mil para mais de 750 mil presos e presas. Destes, 45% eram negros, quando a população negra perfazia 12% da demografia total estadunidense. Em 1995, a quantidade de pessoas encarceradas nas prisões federais, estaduais e locais ultrapassaria 1,5 milhões. No ano 2000, esse número já se aproximava dos 2 milhões, levando um de cada dez homens negros entre 20 e 29 anos ao cárcere, enquanto a taxa de homens brancos presos desta mesma faixa etária era de 1 para 100. Em 25 anos, a quantidade de indivíduos trancados nas instituições carcerárias da “terra da liberdade” cresceu a mais de 400%, ao passo que a população total do país subiu a uma taxa de 30%.7
44A impossibilidade física e pragmática de ampliação do parque carcerário na velocidade exigida pela rápida produção de condenados impulsionava também a expansão da população sob medidas penais comunitárias, já numericamente superior à quantidade de indivíduos encarcerados. Simultaneamente ao dramático aumento do público prisional, o número de pessoas em regimes de probation ou parole acumulava contingentes ainda mais expressivos. Em 1981, mais de 1,5 milhões de pessoas cumpriam pena em algum destes dois regimes. No ano de 1990, já eram mais de 3,1 milhões. Em 2000, esse total ultrapassava os 4,5 milhões, perfazendo uma taxa de um a cada 54 adultos residentes nos EUA, e um a cada 14 adultos negros.8 Longe de ser coadjuvante, a massa populacional sob sanções em meio aberto representava a camada mais espessa de um expansivo bloco demográfico sob a tutela punitiva estatal, cujo alvo prioritário tinha raça definida.
45Não obstante, a dúvida em relação à eficácia das medidas comunitárias como técnicas de controle e prevenção à reincidência criminal provocaria mudanças no caráter funcional das penas em meio aberto, tradicionalmente associadas ao ideal reabilitador (Garland 1985, 2008). A conclusão mântrica e relativamente consensual de que “nada funciona” em matéria de correção do criminoso, difundida entre criminólogos e administradores públicos a partir da década de 1970 (Martinson 1974), conduziria os serviços de probation a finalidades de puro controle, intensificando seus métodos de supervisão e condições de cumprimento penal (Wacquant 2003; Garland 2008). Avaliações de conduta, exames toxicológicos, contatos telefônicos periódicos e relatórios a respeito da execução penal ganhariam ênfase dentre os procedimentos que caracterizavam o trabalho das agências de probation (idem; idem). No âmbito de um novo paradigma das penas comunitárias, o monitoramento eletrônico se inseria como técnica ideal, permitindo ao Estado um acompanhamento estrito do itinerário de seus probationers e parolees (Kilgore 2012).
46Entretanto, o poder público já não seria mais o único agente encarregado de sua atribuição punitiva elementar. A produção massificada de condenados passaria a exigir e ser ela mesma exigida pela estruturação de um vasto complexo industrial penal (Lilly e Knepper 1993), tanto no meio fechado quanto no aberto. E aqui se passa ao segundo ponto, condicionante do sucesso do monitoramento eletrônico a partir das décadas de 1980 e 1990 nos EUA: o florescimento do mercado do castigo e a potencialização da função lucrativa do sistema penal.
b) Participação crescente da iniciativa privada no sistema de justiça criminal
47O papel da indústria da punição na concepção do monitoramento eletrônico foi inaugurado por um processo de retroalimentação em via dupla do sistema penal estadunidense. De um lado, o impulso punitivo promovido pelas autoridades públicas demandava a multiplicação de agentes capacitados a lidar com o rápido influxo de sentenciados. A velocidade corporativa e os baixos custos com os quais as empresas privadas eram capazes de erguer estabelecimentos penitenciários e fornecer serviços de provisão e controle seriam suficientes para que elas adquirissem a confiança do Estado (Christie 1998; Garland 2008; Mason 2012). De outro lado, a formação de um amplo mercado da punição estruturado pela iniciativa privada requisitava seus meios de manutenção e crescimento, economicamente dependente da produção em larga escala de presos e presas. A acumulação de condenados tornava-se fator necessário ao desenvolvimento produtivo dos empreendimentos penais que tomavam seus criminosos como “mais-valia humana” (Davis 2003).9
48No ano de 1980 ainda não havia nenhuma prisão para adultos gerida por agentes privados nos EUA. Dez anos depois, já eram 67 unidades, abrigando um total de 7.000 presos e presas. Até 2009, esse número chegaria a 129.000, constituindo um crescimento de 1600% em menos de duas décadas. Companhias como a Corrections Corporations of America (CCA) e a GEO Group protagonizaram o desenvolvimento do que veio a se tornar um dos mais lucrativos ramos da economia estadunidense, tomando as políticas de encarceramento em massa como motor de seu crescimento. Ao todo, cada uma destas empresas obtinha receitas próximas a 3 bilhões de dólares no ano de 2010, conforme documentado em relatório publicado pela American Civil Liberties Union (ACLU 2011).
49Correlacionada ao programa de construção de presídios privados, a elaboração de novas técnicas de supervisão de apenados oferecia perspectivas promissoras ao (re)emergente mercado da punição.10 Ainda na primeira metade da década de 1980, uma série de empresas e organizações comerciais passaram a desenvolver suas próprias versões dos chamados ankle bracelets. O empresário Michael Goss, que ao lado de Jack Love concebera os equipamentos testados em Albuquerque, abriu sua própria companhia especializada no ramo, a National Incarceration Monitor and Control Services. Tratava-se da primeira empresa dedicada ao desenvolvimento e comercialização de tornozeleiras eletrônicas. Em 1987, 10 grupos comerciais já forneciam equipamentos de monitoramento eletrônico nos EUA (Renzema 1992). Em 1996, já eram 20 empresas estadunidenses atuando no ramo (Gable e Gable 2005: 1). No avançar das décadas seguintes, a produção e comercialização de mecanismos de controle eletrônico se tornaria um negócio internacionalmente difundido (Paterson 2013).
50Para além do domínio penal, o criminólogo Craig Paterson sublinha a importância da indústria da segurança privada sobre a ascensão do mercado de sistemas e serviços de monitoramento remoto. Grandes companhias de segurança, tais como a G4S e a Serco, obtiveram um papel relevante na implementação de políticas de monitoração de presos tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, beneficiando-se de seus vínculos formais ou informais com instituições governamentais (idem). Incitando imaginários tecnológicos, os empreendedores do ramo encorajavam políticos e órgãos do governo a modernizarem suas práticas e estruturas de supervisão. Mais do que as capacidades de reforma ou prevenção à reincidência criminal, a ênfase recaía sobre as especificações técnicas e possibilidades quiméricas que seus produtos ofereciam ao Estado (Lilly e Nellis 2013).
c) Informatização tecnológica das agências penais e de segurança pública
51As campanhas pela informatização dos sistemas penal e securitário que tiveram lugar nos anos 1980 e 1990 nos EUA baseavam-se na interface estabelecida entre os setores público e privado, alimentadas pela ideia de que a “guerra ao crime” haveria de ser vencida através da tecnologia. Seria esta a arma principal por meio da qual os entusiastas de programas como o tolerância zero erradicariam as incivilidades urbanas – das mais insignificantes às mais expressivas, conforme as premissas propagadas pela teoria das janelas quebradas.11 O enfoque nas admiráveis capacidades dos sistemas técnicos de punição e segurança consistia em uma poderosa tática de lobby utilizada por representantes de empresas de eletrônicos (Lilly e Nellis 2013).
52O desenvolvimento dos equipamentos de monitoramento de presos se inseria, portanto, em um conjunto de medidas tecnogerenciais que seriam adotadas pelas instituições de polícia e de justiça (Froment 2011; Paterson 2013). Sistemas de videomonitoramento do espaço urbano; tecnologias de identificação biométrica; fichamentos genéticos; mecanismos analíticos e informacionais sobre ocorrências criminais; e projetos de policiamento preditivo passariam a compor o arsenal estratégico direcionado ao combate à criminalidade nas grandes metrópoles. Durante a década de 1980, sistemas de CCTV instalados em espaços públicos se espalharam pelas cidades estadunidenses. Em 1993, a DARPA (Defense Advanced Research Products Agency) iniciou seu programa de reconhecimento facial, posteriormente disponibilizado às empresas de segurança. Em 1998, o FBI inaugurou um banco de dados forense que armazenava os perfis de DNA de centenas de milhares de condenados e amostras de sangue e saliva coletadas pelas administrações penitenciárias em todo o país (Wacquant 2001).
53Mais do que meros instrumentos, os novos sistemas de controle do crime ativavam com eles uma série de formulações teórico-discursivas baseadas na securitização do ambiente urbano como parâmetro do aumento da “qualidade de vida” (Wilson e Kelling 1982). A ordem pública e a boa circulação nos bairros e comunidades estariam condicionadas à capacidade das autoridades de reunir informações de identificação geográfica sobre os índices e frequências de eventos criminosos, tal como previam as correntes criminológicas ambientais, descritas no primeiro item deste capítulo. O icônico CompStat, sistema de processamento informacional encomendado pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque e inaugurado em 1994, sintetizava alguns dos preceitos fundamentais da criminologia ambiental, na medida em que permitia, mediante o uso de dados estatísticos sobre ocorrências criminais no espaço urbano, a distribuição georreferenciada das atividades das patrulhas, baseadas nos princípios táticos da intervenção situacional.
d) Racionalização econômica do sistema penal
54O quarto e último elemento compreendido aqui como agente propulsor do monitoramento eletrônico refere-se à formulação léxica e política de uma nova racionalidade penal orientada por propósitos gerenciais, conforme descrito por Michel Foucault (2008a, 2008b) e uma série de autores baseados nas leituras a respeito do que o filósofo francês chamou de governamentalidade neoliberal. As abordagens criminológicas emergentes na década de 1970 e o intercâmbio de práticas e expertises entre os setores público e privado levariam as agências de polícia e de justiça a adotar um modelo administrativo espelhado na forma empresa e pautado por parâmetros de custo-eficiência (Garland 2008; Aviram 2016). Atualizando as premissas do utilitarismo liberal elaboradas por Jeremy Bentham (2008) e Cesare Beccaria (2005) – que traduziam os fundamentos do livre mercado ao pensamento jurídico-penal –, a governamentalidade neoliberal perseguia a otimização das técnicas de controle, concebendo as práticas punitivas e preventivas a partir de critérios econômicos voltados à análise de riscos, contenção de custos e maximização da eficiência no combate à criminalidade (Foucault 2008a, 2008b; Harcourt 2008). Para além ou aquém da privatização stricto sensu da justiça criminal, os intercâmbios público-privados nas atividades de gestão e elaboração da pena vinham compor um processo específico de governamentalização do sistema penal (Foucault 1979).
55 Consagrada pelo economista Gary Becker (1974) e pelos expoentes da Escola de Chicago, a racionalidade penal neoliberal empregava como método analítico uma série de cálculos econômicos que contrapunham os custos do crime aos investimentos necessários à intervenção punitiva, de maneira que os dispêndios ocasionados pelas políticas penais não excedessem aqueles representados pela criminalidade. Os instrumentos utilizados pelas agências de controle do crime seriam agora fundamentados por uma razão aritmética que converteria a pena em mecanismo de mercado, voltado à redução da oferta do crime a um determinado nível que faria de sua demanda uma demanda negativa. À diferença do utilitarismo de Bentham e Beccaria, o objetivo central dos criminólogos neoliberais já não residia na conversão moral do indivíduo criminoso, interpretada como lucro político extraído da pena reformadora, mas em uma ação sobre o mercado do crime que tornaria o ato infracional um empreendimento de risco (Foucault 2009). Agente derrotado no jogo do mercado formal regido pelas leis da livre iniciativa, o infrator se inseria no mercado do crime como empreendedor individual que pagaria o preço da resposta penal como consequência natural de suas próprias escolhas (Hamann 2012).
56 Às leituras jurídicas e disciplinares sobre o crime e o criminoso sobrepunha-se uma epistemologia penal voltada ao gerenciamento econômico-político da criminalidade. O próprio infrator seria então tomado como um agente de mercado, subjetivado como capital humano, empreendedor de si mesmo e indivíduo responsável pelos riscos que corre. Se a governamentalidade neoliberal constituía-se a partir de uma certa configuração de tecnologias de poder, sua efetividade estaria condicionada à ativação de uma série de tecnologias de si, concebendo o criminoso a partir da mesma chave de análise pela qual compreendia a política criminal (Foucault 2008a; Lemke 2012). E o ponto de contato entre uma escala de atuação e outra seria dado pela racionalidade econômica. A razão de mercado constituiria o saber global e fluido que estabelecia a conexão entre as estratégias de governo de si e dos outros; entre as técnicas de poder e seus módulos correspondentes de subjetivação.
57É nessa medida, portanto, que o controle eletrônico de indivíduos condenados ou processados pelo sistema de justiça respondia às exigências colocadas pela penalidade neoliberal. A elevação dos gastos públicos com o sistema prisional faria com que a questão penitenciária fosse gradativamente percebida como um problema orçamentário. Pesquisas de impacto financeiro começavam a ser divulgadas, enfatizando a carestia dos sistemas penitenciários. Era preciso desenvolver técnicas de supervisão menos custosas do que a prisão e mais eficientes do que as penas comunitárias tradicionais. Às virtudes tecnológicas dos mecanismos de controle à distância se somariam suas vantagens do ponto de vista econômico (Paterson 2013). No mesmo sentido, a transferência das tarefas de controle penal ao próprio sujeito penalizado possibilitava o desencargo estatal dos custos representados pela provisão de serviços e estrutura às instalações penitenciárias. O sujeito punido tornava-se mais um agente imbuído da função compartilhada do exercício punitivo.
58O conjunto de transformações constituído por estes quatro processos descritos acima compõe alguns dos elementos basilares do que se compreende aqui por penalidade neoliberal, fornecendo as condições elementares para a consolidação e desenvolvimento dos programas de monitoramento eletrônico nos EUA. Outros processos históricos poderiam ser tomados como fio condutor da gênese do dispositivo, uma vez que o surgimento de sistemas tecnológicos de rastreamento georreferenciado remonta ao início do século XX, ainda no âmbito da navegação militar. Entretanto, o recorte histórico aqui proposto baseia-se em um interesse específico pelas metamorfoses técnicas, políticas e epistemológicas das estratégias de punição, cristalizadas no monitoramento de presos. É nas recentes transformações operadas pelo poder de punir que esta pesquisa encontra seu maior objeto de interesse.
59Da mesma forma, cumpre destacar que o que se entende aqui por penalidade neoliberal não se organiza como uma grade política e analítica estática, estabelecida de modo inalterado no tempo e no espaço. Tampouco se compreende a penalidade neoliberal à imagem de um sistema teórico e político hermético ou total, mas como uma composição móvel de vetores flexíveis capaz de adaptar-se e modificar-se conforme os diferentes cenários sociais e políticos, tal como os dispositivos de poder por ela engendrados (Lemke 2018). Outros vetores a ela se acoplam, acrescentando, justapondo ou contornando suas formações táticas. Outras linhas de força atravessam a racionalidade penal neoliberal, desviando, redirecionando ou retroalimentando suas práticas.
60Entretanto, os quatro vetores destacados neste item são tomados aqui como linhas consideravelmente estáveis, a partir das quais se mobiliza a noção analítica de penalidade neoliberal e sua vinculação com a emergência do monitoramento eletrônico. A revisão da literatura sobre o tema fornece elementos suficientes para apontar a relevância destes quatro fatores na genealogia do dispositivo, quais sejam: a massificação dos contingentes populacionais submetidos a alguma forma de controle punitivo; a participação crescente de agentes privados no sistema de justiça criminal; a informatização do aparelhamento destinado às agências penais e de segurança pública; e a definição da racionalidade econômica como eixo orientador das políticas de combate ao crime e controle do criminoso.
A guerra produtora do sistema penal: GPS
“Satélites militares desenvolvidos para guiar mísseis nucleares estão sendo usados para monitorar indivíduos em livramento condicional em um sistema tecnológico avançado, elaborado para reduzir a disparada astronômica da população prisional nacional.” (Fields 1999: 1)
61Era esse o lead da reportagem publicada no dia 8 de abril de 1999 pelo periódico USA Today. Um texto breve e sintético a respeito da mais recente inovação realizada pelo sistema de justiça criminal estadunidense. A matéria descrevia o mecanismo, especificava os custos e situava os debates em torno da utilização de uma nova tecnologia de sensoriamento remoto que redimensionaria as capacidades de alcance dos mecanismos de monitoramento de presos: o Sistema de Posicionamento Global. A constelação de satélites administrada pelo poder militar dos Estados Unidos estava agora disponível ao sistema penal. Já não era necessário ater-se aos recursos limitados das comunicações por radiofrequência, cuja cobertura de sinais restringia-se aos perímetros próximos da residência do apenado. Já não seria preciso, portanto, obrigar o preso a permanecer nas imediações de sua casa por questões de restrição técnica. Agora, em qualquer ponto do planeta, a rede de 24 satélites que compunha o GPS seria capaz de detectar sua localização.12 A chamada 2.a geração de dispositivos de monitoramento era lançada ao mercado.
62 Foi na Guerra do Golfo Pérsico que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos inaugurou seu sistema de navegação, formado, na época, por 16 satélites. A estreia do GPS deu-se em 1991 com o objetivo de ampliar a precisão dos mísseis AGM-86C lançados contra as tropas iraquianas no Kwait. O projeto integrava os programas de desenvolvimento de “armamento inteligente” realizados pelas forças armadas estadunidenses, que consistiam na perfectibilidade da ofensiva militar, ensejada pela ideia de “ataque cirúrgico” (Siqueira 2012). Orbitando a mais de 20.000 quilômetros da superfície da Terra, os satélites calculavam, em tempo real, a latitude, longitude e velocidade do artefato bélico e traçavam a rota que o direcionava às coordenadas de seu alvo. Além disso, viabilizavam a localização de tropas, tanques e aeronaves das forças aliadas e minas terrestres plantadas pelo inimigo (idem; Siqueira e Campello 2018).
63Considerada a maior operação militar desde a Guerra do Vietnã, a invasão à região do Golfo foi tida como laboratório de aperfeiçoamento de tecnologias de ponta que seriam largamente empregadas na condução de conflitos internacionais dali em diante (idem; idem). O uso de armamento inteligente era parte de um amplo processo político de reconfiguração da guerra contemporânea que passava pelos esforços de eliminação do embate frente a frente entre tropas militares. Em detrimento à troca de baixas nos territórios de batalha, os novos “estados de violência” (Gros 2009) passariam a ser caracterizados por seu enfoque em competências tecnocientíficas voltadas à distribuição da morte calculada. E o GPS seria um dos principais meios de sua efetivação. Terminada a intervenção no Golfo, o relatório final de avaliação da campanha estadunidense emitido pelo Departamento de Defesa ressaltava a importância da nova tecnologia de sensoriamento: “O GPS foi utilizado mais extensivamente que o planejado e supriu as necessidades de navegação e localização. Deve-se considerar a incorporação do GPS a todos os sistemas de armas e plataformas” (US Department of Defense 1992: 877).
64Ao final da década de 1990, a rede de satélites passaria a ser utilizada para monitorar indivíduos sob a tutela da justiça. Seu uso civil já era disponibilizado para o rastreamento de automóveis, planejamento de viagens e localização de telefones móveis (Lilly e Nellis 2013). Era só uma questão de tempo para que a tecnologia fosse incorporada aos sistemas de monitoramento de presos. No ano de 1999, nove estados americanos utilizavam o GPS para o controle de um público que variava de “criminosos sexuais” em Chicago a jovens considerados infratores em Nova Jersey (Fields 1999). Em 2001, a Florida iniciou sua utilização, integrada a softwares de identificação georreferenciada de ocorrências criminais, com a finalidade de reunir informações estatísticas sobre crimes e compará-las aos dados referentes aos fluxos de apenados (Lilly e Nellis 2013). Ao longo dos anos seguintes, o sistema passaria a ser utilizado no monitoramento de presos em todo o país.
65O uso do GPS transformou as práticas de supervisão eletrônica ao propiciar às autoridades penais o acompanhamento permanente dos deslocamentos do indivíduo monitorado. Suas vantagens técnicas sobre os antigos mecanismos residiam em sua capacidade de detecção de movimento. Enquanto os aparelhos baseados em radiofrequência sinalizavam tão-somente a presença ou ausência do indivíduo em um espaço determinado (geralmente sua casa), os equipamentos dotados de transmissores GPS capturavam sua movimentação em qualquer ambiente que fosse. Se antes a localização de pessoas monitoradas só era constatada nos momentos de recolhimento domiciliar, agora se poderia ter ciência de seu itinerário completo de maneira contínua. A partir do GPS, não apenas a execução penal deixava de exigir um espaço fixo, mas as próprias capacidades de supervisão se desterritorializavam.
66Durante os anos de sua inauguração pelos sistemas de justiça, a incorporação de um mecanismo de rastreamento ilimitado nos equipamentos de monitoração de presos dividiu opiniões e posicionamentos no campo jurídico. Por um lado, celebrava-se a perspectiva de retirar da prisão determinados criminosos que não representavam um “real perigo” à sociedade, evitando-se os “efeitos criminógenos” do encarceramento e as despesas elevadas por ele implicadas. “O sistema oferece ao juiz uma opção para manter pessoas fora da prisão, distantes de todas as suas influências negativas. É também um corte de gastos ao contribuinte”, anunciava o presidente da Faculdade Judicial Nacional da Universidade de Nevada, Percy Luney. “O problema do sistema antigo é que quando os infratores saem de casa, você já não tem ideia de onde se encontram ou do que estão fazendo”, completava (Luney apud Fields 1999: 2).
67Por outro lado, advertia-se a respeito das possibilidades de expansão dos controles penais, facilitada pela generalização do emprego do GPS. O professor de Direito da Universidade de Georgetown, Paul Rothstein, sublinhava as transformações nas técnicas de controle do crime relacionadas à utilização dos novos mecanismos de rastreamento, ressalvando: “Pode-se terminar com a maior parte da população submetida a alguma forma de vigilância por parte do Governo” (Rothstein apud Fields 1999: 2). As ameaças relacionadas ao redimensionamento das capacidades de controle estatal pairavam sobre as discussões e análises críticas que se davam em torno do monitoramento eletrônico e suas inovações. Atentava-se, em particular, às virtualidades do dispositivo em impulsionar os processos de net widening: fenômeno definido por Stanley Cohen (1985) e compreendido pela ampliação e intensificação das redes de controle penal, efetivadas pelo incremento da população carcerária, simultaneamente ao crescimento dos contingentes populacionais submetidos a regimes em meio aberto – multiplicam-se os volumes demográficos submetidos aos órgãos penais do Estado, cujas técnicas de controle tornam-se progressivamente mais abrangentes, ao passo que novas agências e serviços, supostamente desenvolvidos para substituir as velhas instituições prisionais, passam a estabelecer para com o cárcere uma relação de complementaridade e controle suplementar.
68De fato, o desenvolvimento da primeira geração de dispositivos de monitoramento já havia sinalizado para a expansão da malha penal representada por seu avanço. A difusão inicial do controle eletrônico nos EUA durante as últimas décadas do século ocorrera em paralelo à expansão do sistema prisional do país. Nenhuma tendência de recuo ou contenção das taxas de encarceramento havia sido verificada com a implementação do dispositivo. Ao contrário, seu desenvolvimento reforçava a dimensão e densidade da rede punitiva do Estado que, ao lado de seus parceiros privados, absorvia um número crescente de pessoas e tornava cada vez mais estritas as condições de cumprimento penal, agora mediadas por mecanismos de localização à distância (Kilgore 2012). Tendo em vista o fortalecimento do poder de controle viabilizado pela utilização do GPS, Paul Rothstein observava que o potencial dos novos sistemas estaria em vias de “criar um monstro” (Rothstein apud Fields 1999: 2).
69Alarmista ou não, sua ressalva tinha propósito. A 2.a geração de sistemas de supervisão eletrônica contribuiu significativamente para que a medida se difundisse ainda mais. Estimulada por empresas como a Advanced Business Sciences e a ProTech Monitoring, pioneiras no uso do GPS para controle de presos (Paterson 2013), a disseminação do dispositivo fez com que a quantidade total de pessoas monitoradas nos EUA ultrapassasse o seu dobro na virada do século, subindo de 42.000 em 1997 para 100.000 em 2006, conforme as informações sistematizadas pelo boletim especializado Journal of Offender Monitoring (2006). No mesmo ano de 2006, a quantidade de pessoas trancadas nas prisões do país atingia um total de 2,2 milhões, com sua taxa de crescimento chegando ao ápice histórico de quase 3% ao ano. Concomitantemente, os índices de probation e parole permaneciam em plena ascensão, ultrapassando, juntos, 5 milhões de pessoas em 2007.13 O acoplamento entre a prisão e suas formas de modulação a céu aberto mantinha inalteradas as tendências de encarceramento, produzindo uma vasta legião de cativos, dentro e fora dos muros.
70Valendo-se, portanto, dos sistemas de comunicação via satélite, os dispositivos de monitoramento ganhariam novos vetores de desenvolvimento. Às linhas de força que configuravam o ímpeto punitivo neoliberal somavam-se agora os avanços da tecnologia militar. E os rumos tomados pelas novidades técnicas apresentadas pelo sistema de justiça ficariam a cargo do cruzamento entre as orientações políticas das autoridades penais do país, os interesses econômicos da indústria da punição e os anseios de maximização da eficiência tecnológica: fórmula iníqua que levou o monitoramento eletrônico a constituir-se como anexo virtual da instituição carcerária, distanciando-se de seus enunciados propósitos de substituição à prisão; tornando mais rígidos e onipresentes os controles estabelecidos além-muros; e redimensionando as capacidades de supervisão penal a horizontes ilimitados.
71 Global Preventive Security (Segurança Preventiva Global). É assim que Didier Bigo14 mobiliza a sigla referente ao sistema de geolocalização desenvolvido pelas forças armadas estadunidenses e instrumentalizado pela justiça penal. O autor analisa a transversalização das práticas de vigilância, atrelada aos processos contemporâneos de interseção entre as estratégias de governo do crime e as técnicas de administração da guerra. Para além do intercâmbio de tecnologias entre as instituições penais e militares, a capilarização de novos mecanismos de controle aparece como efeito e fator propulsor da simbiose tática e cognitiva estabelecida entre as políticas de segurança interna e externa. Os discursos e práticas vinculados às estratégias contemporâneas de securitização são marcados por uma “desdiferenciação” entre os domínios militares, policiais e penais: processo através do qual as forças armadas são convocadas a intervir em questões internas; as polícias se engajam em conflitos transnacionais; e os sistemas de justiça criminal passam a dedicar-se ao controle e neutralização do infrator tomado como inimigo íntimo.15 Daí a relevância analítica, sublinhada por Bigo, de se articular a pesquisa sociológica aos estudos internacionalistas.16
72Deslocando o olhar para o espaço sideral, o cientista político Leandro Siqueira (2015) investiga o desenvolvimento de sistemas de sensoriamento remoto a partir de uma análise genealógica das campanhas de ocupação da órbita terrestre, impulsionadas pela corrida armamentista ao longo da segunda metade do século XX. Interessado na rearticulação de exercícios de poder operada pelas atuais sociedades de controle (Deleuze 1992, 2014), Siqueira analisa a instalação de tecnologias de monitoramento em escala planetária, baseadas no acúmulo técnico e científico obtido a partir dos empreendimentos espaciais realizados durante a Guerra Fria.
73 Proveniente da pesquisa espacial e voltado à perfectibilidade da ofensiva bélica ao inimigo externo, o GPS era agora dirigido a alvos internos, trazendo consigo a reconfiguração diagramática das táticas de controle do crime, orientada pelos objetivos militares de identificação, traçabilidade e perseguição à distância. Precisão e mobilidade passavam a constituir atributos essenciais de um controle penal desterritorializado e munido de tecnologias siderais. As qualidades dos sistemas de 2.a geração tornavam-se mais um atrativo do dispositivo, que já havia iniciado sua deflagração pelo planeta, impulsionada pelas empresas interessadas na abertura dos promissores mercados da Europa, América do Sul e Oceania.
74Ainda no final dos anos 1980, após a implementação do monitoramento eletrônico no Canadá (1987), a Inglaterra (1988) iniciou seus próprios programas de rastreamento, combinados ao regime de probation. Na década seguinte, Suécia (1994), Austrália (1994), Holanda (1995), Espanha (1996), França (1997), Argentina (1997), Bélgica (1998) e Nova Zelândia (1999) desenvolveram projetos-piloto que se consolidariam ao longo dos anos 2000 (Kaluszynski e Froment 2003; Leal 2011; Nellis, Beyens e Kaminski 2013). Os diversos modelos de aplicação variavam conforme as orientações políticas dos poderes executivos, legislativos e judiciários de cada país. Os níveis de participação de empresas privadas na administração e operacionalização do monitoramento também diferiam de acordo com os contextos nacionais. A Inglaterra concedeu amplos poderes de atuação às empresas, que além de fornecerem equipamentos passavam a ser as principais responsáveis pela gestão das centrais de monitoramento (Paterson 2013). Nos casos de França, Holanda e Suécia, os agentes privados desenvolviam os aparelhos, mas as centrais permaneceram sob administração estatal (Lévy 2013; Nellis 2014).
75A Argentina foi o primeiro país latino-americano a implementar o monitoramento eletrônico, tornando-se, pouco tempo depois, um dos parceiros de autoridades brasileiras que realizaram visitas técnicas ao país vizinho antes de implementarem a medida (Maciel 2014). A empresa israelense Elmotech, uma das mais expressivas do ramo, atuava na província de Buenos Aires fornecendo equipamentos e operando a central de monitoramento que mais tarde seria utilizada em alguns dos projetos-piloto realizados no estado de Minas Gerais (idem).
76 Na década de 2000, o dispositivo se estendeu a outros países europeus, se espalhou pela América Latina e chegou à Ásia, sendo adotado na Alemanha (2000), Itália (2001), Portugal (2002), México (2003), Israel (2005), Dinamarca (2005), Chile (2005), Colômbia (2005), Panamá (2005), República Dominicana (2005), Tailândia (2007), Noruega (2008), Polônia (2009), Bulgária (2009) e Coréia do Sul (2009).
77Em junho de 2010, a medida foi legalmente autorizada pela primeira vez no Brasil. Após três anos de experimentações que envolveram projetos legislativos federais, iniciativas realizadas por empresas nacionais e internacionais, testes efetuados por magistrados locais e autorizações inconstitucionais ratificadas por governadores estaduais, a Lei Federal n.o 12.258/10 autorizou o monitoramento eletrônico de pessoas condenadas ao regime semiaberto e prisão domiciliar no país. Sua incorporação no ordenamento jurídico nacional fora orquestrada por um conjunto de agentes heterogêneos e racionalidades ecléticas que reuniam as diferentes matrizes discursivas procedentes dos Estados Unidos e da Europa, organizadas, contudo, em torno das urgências colocadas pelo sistema penal brasileiro. Sua introdução no país promoveria, de um lado, a instalação de uma nova tecnologia de controle no interior do vasto aparelhamento punitivo nacional e, de outro, a formulação de um dispositivo próprio que absorveria as características endêmicas do sistema penitenciário brasileiro.
Notes de bas de page
1 O sistema de probation é utilizado pelo direito anglo-saxão e se aproxima da suspensão condicional da pena no Brasil, diferenciando-se desta pelo fato de o indivíduo ter a própria sentença suspensa, sendo então encaminhado à supervisão de agentes comunitários (probation officers). O regime de parole equivale, no Brasil, ao livramento condicional, no qual o condenado que cumpre um determinado período de pena privativa de liberdade pode concluir sua sentença em meio aberto sob determinadas condições (Bruno 1967: 171-179).
2 Desenvolvida a partir dos anos 1940, a ecologia humana considera a centralidade do espaço e do tempo sobre as formas de agir de seres humanos. Seus teóricos se interessavam pelas formas de sociabilidade estabelecidas no interior de uma comunidade, a partir de relações de competitividade e cooperação. Tais relações seriam condicionadas pela transformação temporal do espaço comunitário. A sobrevivência de indivíduos e populações no interior de uma comunidade em transformação dependeria de suas capacidades de adaptação ao ambiente, sustentadas em grande medida pelas práticas de cooperação entre os habitantes (Brantingham e Brantingham 1981).
3 Dentre as produções mencionadas por Kirby (2000), constam os filmes Eugenics at the Bar “U” Ranch (1914), Snakeville’s Eugenic Marriage (1915), Heredity (1915), The Regeneration of Margaret (1916), Their Mutual Child (1920).
4 Indivíduos submetido ao regime de probation, equiparado no direito brasileiro à suspensão condicional da pena.
5 Atenho-me, aqui, a alguns dos trabalhos que interessam mais diretamente a esta pesquisa, sem pretender apresentar uma revisão extensiva da literatura dedicada à análise da penalidade neoliberal. Tampouco empreendo a tentativa de sistematização e análise do neoliberalismo enquanto conceito global, concentrando-me em sua face penal e nos autores que fornecem instrumentos analíticos para a compreensão da emergência do monitoramento eletrônico.
6 Da qual os principais exemplos foram a lei antidrogas, assinada em 1986 por Ronald Reagan, elevando as sentenças mínimas para crimes relacionados ao tráfico e consumo de drogas, e a three-strikes law, que em 1994 previa a prisão perpétua de reincidentes habituais.
7 Dados produzidos pelo Bureau of Justice Statistics. Disponíveis em https://www.bjs.gov/index.cfm?ty=tp&tid=1 (último acesso em março de 2019).
8 Idem.
9 A ideia de mais-valia humana é mobilizada aqui, a partir de sua utilização por Angela Davis (2003: 91), como mão de obra excedente, reabsorvida pelo mercado da punição que transforma, não necessariamente o trabalho, mas a própria mão de obra descartada pelo mercado em lucro econômico extraído dos contratos estabelecidos com o Estado.
10 Os agenciamentos público-privados nas práticas penais não eram novidade na história estadunidense. Até o fim do século XVIII, cadeias administradas por agentes privados eram contratadas pelo Estado para manter indivíduos que aguardavam julgamento. A primeira prisão gerida pelo poder público fora construída somente em 1790. A partir de então, o envolvimento do setor privado no ramo penal se limitaria à prestação de serviços como alimentação, atendimento médico e transporte de presos. No decorrer da década de 1980, contudo, empresas particulares retornaram ao cenário punitivo tornando-se um importante ator do sistema penal dos EUA (Mason 2012).
11 Formulada no início dos anos 1980 por James Wilson e George Kelling (1982), a teoria das janelas quebradas forneceu algumas das principais bases para o programa de tolerância zero, inaugurado pelo prefeito da cidade de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, e deflagrado pelos EUA a partir da década seguinte. Grosso modo, Wilson e Kelling argumentavam que, se uma janela quebrada em um determinado edifício não é rapidamente consertada, a tendência das pessoas que “costumam quebrar janelas” é tomá-lo como abandonado e dar sequência à depredação. A metáfora era traduzida à questão criminal, na qual os autores defendiam a necessidade de se coibir e reprimir toda e qualquer infração, por mais ínfima que fosse, de modo a conferir aos bairros e comunidades um aspecto seguro que constrangeria os criminosos e impediria que maiores infrações ocorressem.
12 O sistema GPS é, todavia, sujeito a interferências e falhas de cobertura, geralmente provocadas por bloqueios topográficos, edifícios e montanhas.
13 Bureau of Justice Statistics. Disponível em https://www.bjs.gov/content/pub/pdf/cpus10.pdf (último acesso em março de 2019).
14 Disponível em https://www.opendemocracy.net/en/global-preventive-security-and-its-unbearable-lightness/ (último acesso em dezembro de 2018).
15 Vide as concepções teórico-discursivas fundamentadas pelo chamado Direito Penal do Inimigo, no qual o criminoso é juridicamente desprovido de sua condição de cidadão e tido como elemento a ser neutralizado pela política penal (Jakobs e Meliá 2009).
16 Movimento semelhante é operado por Stephen Graham (2006), que chama atenção para a impossibilidade de se compreender a disseminação de tecnologias de vigilância e monitoramento do espaço urbano sem que se considere a progressiva militarização das cidades como estratégia enfática de gestão pública. Retomando as perspectivas de Paul Virilio e Mackenzie Wark, que posicionam a guerra no centro da análise política, Graham discute as conexões entre os processos globais de urbanização e o repertório técnico e discursivo mobilizado pelas forças armadas estadunidenses. O emprego de tecnologias de geolocalização e de sistemas onipotentes de vigilância constitui um dos principais aspectos do redirecionamento de estratégias militares ao controle de insurgências urbanas e à gestão dos riscos representados pela criminalidade.
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