Capítulo III. As categorias de comparação regional: uma crítica à noção de Mediterrâneo
p. 69-89
Texte intégral
1Um outro dos contextos da antropologia nos ocupará neste capítulo: o das categorias de comparação regional. Para lançar a discussão, resumirei o meu argumento numa pergunta e numa resposta. Será uma forma um pouco simplista, mas tem o benefício de ser clara e directa.
2A pergunta: serão os algarvios mais parecidos com os marroquinos que com os minhotos? Serão os andaluzes mais parecidos com os tunisinos que com os galegos? Serão os sicilianos mais parecidos com os líbios que com os piemonteses? Serão os gregos mais parecidos com os egípcios que com os croatas ou os sérvios?
3E a resposta: a noção de Mediterrâneo como «área cultural» é mais útil para distinguir os cientistas anglo-americanos das populações que estudam, do que para fazer sentido das homogeneidades e diferenças socioculturais que caracterizam a bacia deste mar interior.
Aspectos ideológicos da noção de Mediterrâneo
4Na introdução a uma recolha de ensaios publicada recentemente, David Gilmore formula em termos peremptórios uma defesa do Mediterrâneo como uma «área cultural»:
«A bacia do Mediterrâneo representa uma unidade cultural; (...) ela revela uma coesão interna em termos morais e cognitivos e uma clara delimitação espacial de traços culturais [traits]. Adicionalmente, há um consenso geral de que o síndroma da honra e vergonha é diacrítico em relação a esta coerência e diferenciação» (Gilmore, 1987a: 3).
5É importante notar que, nem mesmo os colaboradores da colectânea que Gilmore organiza estão de acordo com esta formulação central. Brandes e Giovannini, embora mantendo uma posição muito mais moderada, parecem concordar com a maior parte das conclusões centrais de Gilmore; Davis parece manter a posição ambígua, que assume há já algum tempo, de que «o Mediterrâneo (...) não é, em nenhum sentido, uma área cultural homogénea» (Davis, 1977: 255); outros, no entanto, como Marcus e Herzfeld, estão abertamente em desacordo. Este último, termina mesmo o seu ensaio com um desafio: «Chegará um dia em que poderemos olhar para trás, para a “antropologia mediterrânica”, (...) como um discurso localizado, cultural, política e historicamente» (Herzfeld, 1987: 88).
6Ora a voz de Herzfeld não é isolada: há uma crescente consciência de que algo está errado com a noção do Mediterrâneo como área cultural. Referindo-se, em 1983, ao que denomina o «síndroma da miséria-familismo amoral» nos estudos mediterrânicos, Fernandez adverte-nos que «não podemos perder a consciência de quão odienta [...] é a forma como esta série concordante de traços culturais [traits] exalta os países ricos do Norte, justificando a condição subordinada das periferias meridionais» (1983: 168). O ataque de Llobera (1986) é bastante mais violento, e embora eu próprio não partilhe da maior parte das suas opiniões (vide Pina Cabral, 1987b), estou de acordo com ele quando afirma que:
«Foi em grande parte devido às necessidades dos departamentos anglo-saxónicos de antropologia que se construiu a ideia do “Mediterrâneo” como área cultural. As tentativas para justificar o Mediterrâneo como uma unidade não são convincentes por uma série de razões, mas fundamentalmente porque os denominados traços típicos desta área (o dualismo de escala agrário, as relações patrão-cliente, o síndroma da honra e vergonha) estão longe de existirem em toda a parte» (Llobera, 1986: 30).
7É claro que não concordo quando afirma que os mediterranistas têm «mentes febris» (ibid.: 33), embora reconheça que se fica extremamente tentado a pensá-lo depois de se ler o que Gilmore escreve sobre os «espampanantes complexos de virilidade dos machos mediterrânicos» (1987a: 16).
8Com Michael Herzfeld esta aproximação crítica assume o aspecto caracteristicamente ambivalente que é porventura a sua principal contribuição para este campo de estudos.
«Não há dúvida que aqueles que vendem as imagens desta quintessência [mediterrânica] aos turistas da Europa Ocidental e da América do Norte raramente hesitam em explorar a imagem uniformemente romantizada da “cultura mediterrânica”. Os etnógrafos podem ter contribuído inadvertidamente para a criacão deste estereótipo [...], que, simultaneamente, serve os interesses das nações industrializadas que protegem as terras mediterrânicas; o código de honra, aparentemente primitivo e homogéneo, engloba as delícias de uma hospitalidade unilateral» (Herzfeld 1987: 76).
9Como foi sustentado por Herzfeld em relação à Grécia, a ambígua «europeidade» de algumas das nações do Sul da Europa durante a maior parte do século XX é um factor a ter em conta (cf. Herzfeld, 1986: cap. 1; Herzfeld, 1987: 85). A incerteza que estas nações tinham sobre a sua identidade europeia, explica que tenham aceite a vulgarização da categoria de Mediterrâneo e até que tenham colaborado na sua utilização. Toda a indústria do turismo contribui para esta ambiguidade: como exemplos temos o Club Méditerranée ou a última versão jugoslava do Volkswagen Golf que se chama Mediterran. Para os promotores turísticos o dolci far niente, torna-se um instrumento económico valioso. Há, no entanto, um preço ideológico a pagar por isto: neste mito do «Mediterrâneo», o subdesenvolvimento económico é explicado em termos morais, pela inexistência de uma «ética de trabalho». Os antropólogos têm a obrigação de estar conscientes desta função ideológica do «síndroma da miseria-familismo amoral», de cuja criação e reprodução foram largamente responsáveis.
10Já em 1971, Cutileiro defendia que, na própria escolha das áreas de trabalho de campo antropológico, estava implícito um elemento de dominação: «É curioso que não haja um número semelhante de estudos [...] sobre comunidades holandesas e suecas, por exemplo. Só os povos subdesenvolvidos parecem capazes de aguentar, com paciência e tolerância, a presença indiscreta, aparentemente ociosa e sempre um pouco paternalista do antropólogo» (1971: X).
11É altura de repensarmos a noção de Mediterrâneo — um repensar que veja os antropólogos também como manipuladores de poder informal, nem mais nem menos do que os camponeses italianos, gregos e espanhóis que eles estudam. Neste caso, é o poder académico que está em causa, mas não nos podemos esquecer que este assume também uma importância política e económica central para os antropólogos e que, finalmente, está também claramente sujeito a relações patrão-cliente.
12No entanto, quero deixar bem claro que não considero que este facto seja suficiente para sustentar a invalidade científica da antropologia social. A sujeição do conhecimento científico a um constante escrutínio crítico e reflexivo não é um argumento contra a sua validade, mas sim a condição fundamental do seu estatuto privilegiado.
13A «versão oficial» da história da antropologia mediterrânica, feita por John Davis em People of Mediterranean (1977), continua a ser uma contribuição valiosa, apesar de ser excessivamente anglocêntrica. Em particular, a importante influência dos antropólogos americanos com interesses na América Latina, como Foster e Redfield, é injustamente esquecida. Contrariamente a outras áreas regionais, o Mediterrâneo sempre foi uma área onde existe uma grande colaboração e diálogo entre os cientistas sociais americanos e britânicos. Apesar de tudo, porém, as condições para o surgimento do mediterranismo britânico e do mediterranismo americano no período do pós-guerra, foram diferentes, tanto de um ponto de vista teórico como de um ponto de vista político, pelo que os tratarei aqui separadamente.
O Mediterrâneo na antropologia britânica
14O crescente interesse na Inglaterra dos anos 50 pelo estudo do Mediterrâneo estava associado a um progressivo distanciamento da antropologia social por relação ao projecto colonial britânico1. A guerra motivou um número considerável de jovens a trabalhar na Europa mesmo que, para os seus professores africanistas, tal escolha fosse concebida como uma «opção fácil» — segundo se diz, até Evans-Pritchard chegava por vezes a zombar dos seus estudantes que trabalhavam no Mediterrâneo. Acusações de que o trabalho de campo na Europa não era trabalho de campo a sério (cf. Davis, 1977: 7), eram ameaças graves às carreiras destes jovens antropólogos. A antropologia colonial marcara indelevelmente a disciplina: a antropologia era o estudo dos «povos primitivos», ou seja, não europeus, sem escrita e, (nessa altura) consequentemente, sem história. Nos textos de Evans-Pritchard deste período, por exemplo, está ainda muito presente uma ênfase legitimadora sobre a noção de primitivo (cf. Evans-Pritchard, 1965). Aqueles antropólogos cujo terreno se situava na Europa estavam numa posição semelhante aos que iam para o Médio Oriente islâmico ou para o Norte de África: as sociedades que estudavam eram sociedades letradas com uma longa tradição histórica, não eram visivelmente primitivas. Unindo forças com os islamitas, os brilhantes europeístas que estudaram em Oxford no final dos anos 50 conseguiram demarcar um campo de trabalho e legitimá-lo como antropologia social. Assim, a ênfase sobre a história não era tanto uma questão de método, como John Davis queria que fosse (1977: 239-258), mas uma questão de definição do objecto.
15Uma característica interessante dos mediterranistas britânicos é o facto de não se sentirem muito à vontade com a ideia do Mediterrâneo como «área cultural». Falavam do «mundo mediterrânico» e de «povos mediterrânicos» mas, como nota Jane Schneider no seu famoso ensaio de 1971 (p. 1), não se encontram facilmente nos seus escritos argumentos a favor da uniformidade. A fórmula vaga com que John Campbell introduz o seu estudo sobre pastores gregos é sintomática:
«As formas sociais que aqui são descritas têm muitos paralelismos interessantes noutras partes do mundo mediterrânico, e é particularmente como uma contribuição para os estudos das estruturas sociais nesta área que eu vejo o meu estudo» (1964: V).
16Também na introdução de Peristiany a Honra e Vergonha, ou em qualquer outra parte deste livro pioneiro, pouco é dito em defesa da unidade mediterrânica. Ficamos com a distinta impressão que os autores estavam mais interessados em apresentar um novo «estilo de argumentação antropológica» (Davis, 1987: 22), do que em fundar um novo campo de especialização regional. De facto, Pitt-Rivers e Caro Baroja declaram até que os seus trabalhos são sobre a Europa Ocidental e a Europa do Sul, respectivamente, negando assim, de uma forma implícita, a unidade mediterrânica. Trata-se, sem dúvida, de um reflexo das posições de Evans-Pritchard sobre o método comparativo em antropologia social. Valorizando a metodologia do trabalho de campo, o mestre insistia que as diferenças têm maior relevância sociológica que as semelhanças. Curiosamente, o exemplo que escolhe para ilustrar o seu argumento é precisamente o Mediterrâneo:
«Se estamos a estudar os povos mediterrânicos talvez devêssemos estar menos preocupados com a semelhança entre eles, cuja explicação pode ser racial, geográfica, psicológica ou histórica; mas sim com as diferenças que apresentam, entre si, para as quais uma explicação sociológica é provavelmente mais relevante. Perguntamos em que é que um Grego difere de um Espanhol ou de um Italiano, ou um Espanhol de um Italiano ou Grego; e depois perguntamo-nos porquê?» (Evans-Pritchard 1965: 25).
17People of the Mediterranean de John Davis é uma das primeiras tentativas de legitimar o Mediterrâneo como uma área de especialização dentro da antropologia social britânica. Seguindo a tradição britânica, o autor recusa propor uma homogeneidade cultural para o Mediterrâneo — insiste em usar um m minúsculo e manifesta-se contrário à ideia de uma «área cultural homogénea» (1977: 255). Pelo contrário, para ele, é o «contacto cultural» que define esta área, daí resultando a sua «unidade»: «Os povos do mediterrâneo estiveram durante três milénios envolvidos uns com os outros em conquistas, comércio, colonialismo, conúbio e diálogo; é impossível imaginar que durante todo este período não tenham criado instituições comuns» (Davis 1986: 22-23). Se a bacia do Mediterrâneo fosse uma ilha e se cada povo mediterrânico não tivesse contactos tão próximos durante esses mesmos três milénios com muitas outras culturas e civilizações talvez esta afirmação de Davis fizesse mais sentido. Mas tal não se passa. Para dar um exemplo: poder-se-á afirmar que na cultura portuguesa actual, a influência islâmica anterior ao século XIII é mais importante que as influências africana ou asiática que foram operativas desde então? Não creio.
18Não nego que algumas áreas do Sul da Europa foram profundamente influenciadas pela cultura islâmica (nomeadamente as que pertenceram ao Império Otomano), e que as áreas islâmicas da bacia do Mediterrâneo foram, por sua vez, muito marcadas pela cultura europeia. Para o estudo destas regiões, este contacto é um factor importante a ter em conta. O que não consigo compreender é porque se torna necessário desenvolver um ramo subdisciplinar específico em antropologia social para lidar com este caso particular de contacto cultural e não para lidar com todos os outros. Para responder à reivindicação de Herzfeld de que a noção de mediterraneidade não é válida, John Davis defende que isso teria de ser provado através de mais investigação empírica (Davis, 1987: 23). Pessoalmente penso precisamente o contrário: Davis e os seus seguidores é que têm de provar a existência de uma qualquer razão válida pela qual, na análise do comportamento social nestas áreas se deve sobrevalorizar o contacto cultural entre as duas margens do mar Mediterrâneo, em relação a outros contactos.
O Mediterrâneo na antropologia americana
19Do ponto de vista da antropologia cultural americana os problemas da comparação regional apresentam-se de uma forma bastante distinta. A noção de área cultural foi central ao desenvolvimento desta tradição (cf. Herskowits, 1967: 102-121).
20Neste sentido, é interessante ver como a explicação de Ernestine Friedl para a razão do estudo antropológico da bacia do Mediterrâneo difere das posições britânicas já expostas. O seu ponto de partida é o mesmo: os antropólogos especializaram-se no estudo dos povos «primitivos». Mas a sua posição muda logo em seguida: a definição que dá de «primitividade» é a de que «as culturas destes povos [primitivos] não receberam recentemente influências significativas de qualquer dos dois primeiros centros de desenvolvimento cultural do continente eurasiático» (Friedl 1962: 1). No entanto, continua o seu argumento, «devido à convicção de que as técnicas e os conhecimentos que se desenvolveram através do estudo das sociedades primitivas são úteis para a descrição e análise de todas as sociedades» (ibid: 2), os antropólogos começaram a interessar-se pelo estudo «dos co-herdeiros da sua civilização».
21Num artigo mais recente (1983), James Fernandez fornece uma explicação para a continuação deste interesse. Segundo ele, nos Estados Unidos, um país de imigrantes, o ímpeto mediterranista corresponde a uma necessidade de autoconhecimento — de procura das razões para os diversos comportamentos das várias populações imigrantes por referência às suas terras de origem. Este argumento, aliás, talvez permita explicar porque é que tão poucos antropólogos americanos se têm dedicado a estudar Portugal por oposição à Espanha. Tal diferença pode ter a ver com o facto de os emigrantes portugueses nos Estados Unidos não serem classificados como «hispânicos»2, uma etiqueta étnica que está associada a imagens de marginalidade.
22Não nos surpreende, portanto, que a maior parte dos argumentos explícitos a favor de uma unidade mediterrânica tenham vindo dos Estados Unidos e que haja uma certa insatisfação entre os nossos colegas americanos face à reticência britânica neste campo: «Aqueles que começaram a autodenominar-se mediterranistas3 não definiram claramente o seu campo de estudos, nem forneceram as bases teóricas suficientes para definir a especificidade deste. Os cépticos não se impressionaram» (Gilmore 1982: 176). Dentro da atmosfera de grande competição e especialização que caracteriza a academia americana, esta preocupação com a identidade do Mediterrâneo também deve ser vista como um reflexo das opções estratégicas de antropólogos que, como Gilmore, pensam que há alguma vantagem em ser denominado «mediterranista». Aspecto para o qual, aliás, este autor nos chama repetidamente a atenção (1982: 176; 1987a: 17).
23Quero insistir em que não creio que estes exercícios de legitimação da autoridade académica devam necessariamente ser evitados a todo o custo. Estou consciente de que todos os textos científicos têm uma componente de legitimação de autoridade; uma reivindicação de direitos de paternidade científica. O aspecto que me parece inaceitável é que se continue a utilizar «o síndroma da honra e vergonha» e «o complexo da área cultural mediterrânica», apesar de estes se terem revelado ser mais úteis como instrumentos de legitimação da autoridade académica do que como instrumentos de compreensão antropológica. Penso que, embora não se possa evitar a primeira função, se deve dar prioridade indiscutível à segunda.
24Não voltarei aqui à já velha e cansada polémica sobre se «o síndroma de honra e vergonha» é exclusivo dos terrenos mediterrânicos ou se é mais difundido (cf. Herzfeld, 1980). Na colectânea de ensaios editada por Gilmore, há um desacordo quase total entre a maioria dos ensaístas sobre este tema. A tentativa de Gilmore de definir o mundo mediterrânico em termos de «um sistema moral baseado no género4 e na honra e vergonha» (1987a: 17) necessita de uma reflexão, pois trata-se, na minha opinião, de uma posição singularmente etnocêntrica.
25Qualquer tentativa para explicar fenómenos associados a um regionalismo cultural, em termos do desenvolvimento psicológico individual, está condenada ao fracasso. Como os processos psicológicos afectam todos os indivíduos (homens e mulheres) de uma forma semelhante, torna-se uma questão de opção determinar quais características devem ser atribuídas a que cultura. Como assinalou Fernandez «existe actualmente uma já longa tradição de procurar manifestações mediterrânicas para os nossos mais profundos impulsos psicológicos» (1983: 170). Assim, Gilmore termina o seu ensaio sugerindo a existência de factos sociais tais como «os espampanantes complexos de virilidade dos machos mediterrânicos», «cultos mediterrânicos de masculinidade», «ideologias sexuais mediterrânicas», «códigos mediterrânicos de castidade feminina». Mas, quais são exactamente os referentes empíricos destas noções?
26Quanto às suas opiniões sobre a especificidade mediterrânica da «erotização» e «libidinização» da reputação social, não consigo encontrar nelas qualquer sentido. A especificidade de género dos valores morais, isto é, a sua aplicação diferenciada a homens e mulheres, parece-me ser aplicável a toda a Europa prémoderna, continuando ainda a aplicar-se a largas áreas do chamado mundo ocidental. Será que Gilmore desconhece que em toda a área de influência linguística inglesa os testículos são uma metáfora para a coragem? Qual pensa ser o significado das indumentárias de cowboy típicas do Texas? E o que há de tão especificamente mediterrânico na ausência de ritos de iniciação masculina? Será que o fascínio pelo simbolismo fálico é de alguma forma específico ao Mediterrâneo (Delaney, 1987: 39)? Quanto às características estruturantes que «impedem a existência de uma sólida identidade do género masculino» e encorajam uma forte associação com a mãe, mesmo que esse tipo de argumento fosse válido ao nível do indivíduo, não consigo ver como poderia caracterizar de igual forma todas as culturas mediterrânicas porque, se assim fosse, poderia ser aplicado a quase todo o mundo ocidental. A associação que elabora entre «o mundo masculino mediterrânico» e os travestis e a violação homossexual parece-me estranha: será que nunca ouviu falar de violações de caserna noutras partes do mundo? Ou será que estas apenas ocorrem no Mediterrâneo? Não leu o romance de William Golding, Ritos de Passagem (1980) — a história inesquecível da violação de um padre durante uma viagem marítima? Ou será que os navegadores ingleses do século XVIII eram mediterrânicos?
27O mais estranho com todas estas lucubrações é que, quando Gilmore desce à terra para descrever os andaluzes, entre os quais fez trabalho de campo (1987b: 90-103), não consegue encontrar nenhum dos fantasmas que tinha previamente construído. Como Davis, defende que tal facto apenas revela a necessidade de mais investigação e que, apesar de as tendências em causa estarem presentes, elas se encontram «obscurecidas» (ibid.: 101)! Mas, não estão elas igualmente presentes na Inglaterra ou na Alemanha, onde os comportamentos nos cafés e nos bares são muito mais agonísticos e violentos que na Andaluzia? Muito perto de onde trabalhou Gilmore, do outro lado da fronteira portuguesa, Cutileiro faz a seguinte observação: «Nas tabernas e cafés os grupos de homens não estão numa permanente competição de “mais valer”; existe um elemento agonístico é certo, mas atenuado pelas considerações a que o sistema de amizades obriga. O fanfarrão ou o homem com a honra à flor da pele, não tem lugar nesta sociedade ou tem lugar como delinquente e como caso patológico» (1971: XXIV). Em suma, somos tentados a pensar que uma das principais razões pelas quais estes jovens etnógrafos anglo-americanos oriundos das classes média ou média alta ficam tão profundamente impressionados com as práticas agonísticas do universo masculino dos camponeses do Sul da Europa é por serem tão desconhecedores do comportamento das classes trabalhadoras dos seus próprios países de origem.
Os chamados traços distintivos da área cultural mediterrânica
28Retomemos agora a questão inicial: serão os andaluzes mais parecidos com os marroquinos que com os galegos? Não haverá uma «libidinização» da honra entre as populações do Noroeste da Península Ibérica? Porque se há, porque é que os bretões e os irlandeses não são também incluídos? Apesar de tudo, eles são muito parecidos com os galegos e os minhotos. Bem sei que não os podemos incluir sob a denominação de mediterrânicos, pois a palavra perderia totalmente o seu significado. Tudo indica, no entanto, que a vida cultural andaluza é bem mais parecida com a dos seus vizinhos portugueses e castelhanos que com a das populações muçulmanas do outro lado do Mediterrâneo. A «libidinização» da honra não me parece ser um traço distintivo satisfatório. Em primeiro lugar porque é impossível defini-lo com a precisão suficiente para se determinar se está ou não presente; em segundo, porque pode ser encontrado em muitos outros locais; e em terceiro, porque os seus supostos efeitos num contexto cristão e islâmico são muito distintos.
29Quais são, então, os «códigos mediterrânicos de castidade feminina»? Porque é que se compara uma situação como a andaluza, onde as mulheres trabalham nos campos, onde herdam e controlam as suas propriedades, onde não são encerradas para não serem vistas, onde os padrões de residência tendem a reforçar a matrifocalidade, onde podem conversar livremente com os homens; com regiões islâmicas onde há uma ênfase muito maior na castidade feminina e onde a separação dos domínios masculino e feminino no quotidiano é radicalmente estabelecida? Não seria mais adequada uma comparação da Andaluzia com o resto da Europa Ocidental e do Norte de África com as outras culturas islâmicas mediterrânicas?
30Quanto à natureza supostamente «atomística e isolada» das famílias mediterrânicas (e.g. Brandes, 1987: 132), também há que esclarecer os termos de comparação, pois ela não se apresenta nada evidente para a maior parte daqueles que tenham prestado atenção específica ao tema (cf. Handman, 1981: 102-103). O que há de «atomístico» nas patrilinhagens de certas partes dos Balcãs, do Médio Oriente e do Norte de África? O que há de «isolado» nas famílias sicilianas e nos seus complexos sistemas de associação com parentes?
31Como que se pode encontrar um modelo para descrever um único «tipo de organização familiar» que inclua as vizinhanças matrifocais de irmãs descritas por Davis, as unidades domésticas das pequenas aldeias da serra algarvia, as parentelas de Aragão, as famílias córsegas, as famílias troncais da região pirenaica (que, incidentalmente, são encontradas em Formentera no meio do mar Mediterrâneo, Bestard, 1986), os diversos tipos de família italianos e, finalmente, a Zadruga? Ora, todas estas são instâncias em que a descendência (no sentido fortesiano da palavra, vide capítulo VI) está ausente e não se pratica o preço da noiva (bridewealth) enquanto que a unidade conjugal funciona como o núcleo reprodutivo central. Se procurasse exemplos para leste e para sul da região balcânica, em áreas onde se pratica a descendência patrilinear e onde a unidade conjugal deixa de ser o núcleo reprodutivo central, então a diversidade seria ainda maior.
32A «família mediterrânica» é um estereótipo reforçado pelo facto de cada antropólogo estar apenas virado para a «sua comunidade», interpretando-a e comparando-a com outras através de modelos de comportamento ético (tais como «honra e vergonha») e dando pouca importância à comparação de características socioestruturais. Infelizmente esta tendência parece estar até a aumentar. Em The Poetics of Manhood, Michael Herzfeld (1985) escreve uma monografia de qualidade onde o papel do parentesco agnático é cuidadosamente discutido sem que, no entanto, nos sejam apresentados quaisquer dados sobre a composição da unidade doméstica, ou sobre os padrões de cooperação económica familiar.
33Grande parte da responsabilidade da difusão do estereótipo da «família mediterrânica» no mundo académico da antropologia anglo-americana deve-se ao ensaio de Jane Schneider: Of vigilance and virgins (1971). Neste texto, ela utiliza o modelo clássico de Sir Henry Maine5, adaptando-o a uma concepção ambiciosa do Mediterrâneo (que inclui tanto os Fulani como os habitantes da Somália! 1971: 12). Tal como Maine (e.g. 1885: 64-65), Schneider apresenta a passagem da pastorícia à agricultura e, posteriormente, a influência das cidades6, como sendo os factores determinantes que explicam a passagem de uma sociedade baseada no estatuto a uma sociedade baseada no contrato — ou seja, de uma sociedade onde as unidades sociais principais são grupos corpóreos a uma onde predomina o individualismo. «As condições que fragmentaram a estrutura económica e política reduzindo-a aos seus componentes mínimos, famílias nucleares, também fragmentaram a família. O familismo é, em alguns sentidos, uma máscara para o individualismo» (Schneider, 1971: 11).
34Caracteristicamente, a diferença sincrónica é reduzida à diferença diacrónica. São-nos até apresentadas algumas «sobrevivências»: «Nas ilhas historicamente isoladas da Sardenha e da Córsega e, em certa medida, nos Balcãs, permanecem rudimentos de linhagens e clãs» (1971: 8). A diferença dos modelos dominantes de reprodução familiar dentro das civilizações cristã e islâmica é também explicada de uma forma evolucionista: «O cristianismo, origem de tantas regras que governam a vida doméstica do lado europeu [do Mediterrâneo], não é “oposto” ao islamismo. Simplesmente, foi mais longe no desenvolvimento da hegemonia da agricultura, e fê-lo em regiões onde a agricultura tinha mais hipóteses de se desenvolver» (1971: 19-20). Assim, somos informados que, no Norte de África e no Médio Oriente — aquela metade do «Mediterrâneo» onde «a família nuclear» parece menos útil como modelo descritivo — ela está, no entanto, presente mas «incrustada (...) na casa extensa patrilocal e por vezes poligínica» («joint patrilocal and sometimes polygynous household», p. 7).
35Embora no período em que Jane Schneider escreveu não estivesse ainda disponível grande parte da imensa quantidade de material que hoje possuímos, um estudo mais cuidadoso dos traços estruturais das sociedades em causa teria impedido algumas destas generalizações mais excessivas.
36Grande parte do problema parece decorrer da própria noção de «área cultural». Como referem Enrich e Henderson (1968: 564), esta noção desenvolveu-se «na “era da história natural” da antropologia, em que esta estava preocupada com a descrição ordenada das culturas do mundo» e dava uma importância central à determinação geográfica e ecológica da cultura (Herskovits, 1967: 108). Ainda hoje, continua a estar associada a um tipo bastante simplista de determinismo ecológico: a preocupação com parâmetros «materialistas» ou «ambientais» (e.g. Boissevain, 1979: 83-84). Como enfatiza Gilmore, «a ecologia relativamente uniforme do Mediterrâneo é um ponto de partida seguro» (1982: 178), o problema consiste em saber para onde avançar a partir daí, como já há muito revelou Aceves (1979). Qualquer aproximação deste tipo acaba por se demonstrar dolorosamente insuficiente para lidar com a complexidade da determinação histórica e com a resultante diferenciação socioestrutural. Quem tiver ainda dúvidas, que experimente arrumar o abundante material que hoje possuímos referente a padrões familiares usando o modelo tripartido de «tipos familiares mediterrânicos» que Boissevain construiu por meio de uma correlação com «os ecótipos mediterrânicos» (1976). Verá que os resultados serão completamente destituídos de significado. Sendo útil para objectivos museológicos, a noção de «área cultural» revela-se deficiente como instrumento comparativo no momento em que considerações históricas e sociológicas assumam a supremacia. A questão de saber o que é um «traço» (trait) e que «complexo de traços» deve ser escolhido como distintivo não parece estar ainda resolvida de uma forma satisfatória. Mais do que isto, não está claro até que ponto o Mediterrâneo pode mesmo ser considerado uma «área cultural». Em primeiro lugar, e de acordo com Herskovits, uma certa homogeneidade cultural é condição essencial para uma área cultural (1967: 103). A partilha de um único «traço» não parece ser suficiente; requere-se uma certa coincidência de traços diferentes, pelo menos do ponto de vista de Herskovits (1967: 104-105). Em segundo lugar, como argumentam Benedict e Herskovits, a noção revela-se insatisfatória em regiões «onde as diferenças geográficas entre os vários povos são encobertas por uma estratificação de classes resultante do alto nível de especialização que caracteriza os grandes agregados populacionais» (1967: 119).
Em prol da comparação regional
37Tendo em conta a discussão anterior, o leitor provavelmente espera que eu assuma agora uma atitude do género que alguns denominam «particularismo cultural» — ou seja, uma recusa à comparação, olhando cada unidade de estudo como se fosse absolutamente única. Seria, sem dúvida, uma posição fácil e que, aliás, está em acordo com as propostas de Evans-Pritchard. No entanto, penso que tal posição não é mais do que um retardamento de uma tarefa que acabará necessariamente por confrontar o antropólogo. Assim, quero concluir este capítulo com um argumento a favor da comparação regional.
38Sem uma forma qualquer de comparação, implícita ou explícita, o conhecimento etnográfico seria destituído de significado. Ocorrem-me pelo menos três razões para que esta necessidade de comparabilidade conduza à produção de esquemas de comparação regional.
39Em primeiro lugar, temos que nos habituar a trabalhar sem as categorias universalistas de descrição institucional que herdámos da antropologia evolucionista — noções problemáticas como parentesco, corporativismo, magia, religião, totemismo, etc. Devemos «apoiar-nos mais directamente em categorias indígenas e pensar mais em termos delas» (Needham, 1971: XIX-XX). Isto significa que necessitamos de processos de contextualização historicamente informados e regionalmente específicos. Se Gilmore (1987a) e Delaney (1987) não tivessem começado por comparar uma cidade da Andaluzia com uma aldeia remota da Anatólia Central, com a Líbia de Kadhafi, com pastores cretenses e com tribos guerreiras de Marrocos Oriental; se em vez disso tivessem começado, de uma forma menos ambiciosa, por estabelecer a comparação entre os andaluzes e os seus vizinhos portugueses, castelhanos e catalães e do Sul de França, os resultados não teriam sido tão inaceitáveis.
40Em segundo lugar, já não é possível assumir a opção de estudar ingenuamente «aldeias», «comunidades», «tribos» ou «sociedades». Cada vez mais nos apoiamos em contextualizações culturais, sociais e geográficas para julgar da representatividade da amostra que estudamos. Para além disto, o grande aumento do número de relatos etnográficos que estão à disposição do neófito significa também que actualmente ninguém vai para o campo sem conhecimentos prévios.
41Em terceiro lugar, já não podemos deixar de reconhecer que há sempre um elemento de comparação em qualquer escolha de referências. A prática de ignorar os colegas que trabalham mesmo ao lado tem que terminar. Citar outros etnógrafos é entrar em comparação. Mas, o imparável crescimento da produção académica com que somos confrontados em antropologia social (particularmente se não nos limitarmos à língua franca que é o inglês, cf. Gilmore 1976), significa que não podemos pretender conhecer tudo e que temos de autolimitar os nossos horizontes. Como é possível continuar a defender que não se realizam suficientes investigações de terreno (Davis, 1987: 23)? Necessitamos de categorias de comparação regional que possam delimitar campos de conhecimentos; pelo menos para legitimar a nossa produção académica e para a sujeitar a controles críticos (cf. Brandes, 1987: 121).
42Estou em desacordo com Brandes quando argumenta que os cientistas interessados na «comparação controlada» «investigavam as origens de elementos particulares da estrutura social e dos sistemas de valores». Segundo este autor, eles não estariam preocupados com uma «descrição cuidadosa desses elementos, e, em particular, das relações estruturais subjacentes a estes elementos» (1987: 124.). Embora tal possa ter sido o caso com Eggan e Nadei, não o é necessariamente com Evans-Pritchard. Este último, por exemplo, afirma que:
«As circunstâncias em que as sociedades comparadas têm muito em comum de um ponto de vista estrutural, cultural e de meio ambiente, parecem oferecer a melhor oportunidade para um tratamento comparativo detalhado e controlado, que deve ser intensivo por contraste com os estudos estatísticos» (1965: 27).
43Os cientistas que praticaram recentemente este método ou que escreveram em sua defesa, como Kuper (1982), Barnes (1985), Josselin de Jong (1985) ou Peter Rivière (1984), fazem-no com uma profunda preocupação por considerações estruturais. É de facto verdade que a antropologia estrutural e a psicanálise aplicada7 revelaram grandes proximidades entre sociedades que estão fisicamente bastante distanciadas. Mas também é verdade que não conseguiram fazer as grandes revelações que prometiam, e um crescente número de pessoas considera agora necessário voltar a métodos de comparação menos ambiciosos que salvaguardem um maior respeito pela especificidade cultural do material.
44Uma opção por qualquer tipo de aproximação que atribua uma grande ênfase à cultura em detrimento do estudo dos factores socioestruturais, revela-se pouco satisfatória. As análises devem ser construídas de tal forma que permitam revelar a complexidade da inter-relação entre a acção e a cognição (cf. Ortner, 1984). Desta forma não poderemos basear as comparações regionais em categorias resultantes da identificação de «traços» tais como «o síndroma da honra e vergonha». Em vez disso, temos que julgar da existência relativa de uma uniformidade e diferenciação sociocultural dentro de uma grelha histórica e sociológica particular. Isto é cada vez mais importante, pois vivemos hoje num mundo onde a «diferença» não é já o resultado de uma ignorância mútua, mas constantemente, e cada vez mais, recriada. Haverá melhor exemplo da «reinvenção da diferença» (Clifford 1988: 15) que o material líbio apresentado por Davis?
45Recusando eu a categoria de «Mediterrâneo», mas sendo a favor da comparação regional, então o leitor pode bem perguntar-se que redivisão regional proponho. Acontece que não tenho vocação para desenhar fronteiras e, em todo o caso, não me arrogo erudição suficiente para levar a cabo tal tarefa. Por outro lado, penso que a comparação regional deve ser um empreendimento estratificado: por exemplo, o facto de a Península Ibérica dar mostras de uma continuidade cultural considerável não invalida o postulado da uniformidade cultural da Europa Ocidental, ou mesmo da uniformidade cultural europeia, ou ainda, no limite, da uniformidade cultural eurasiática (cf. Goody, 1973). A minha sugestão é que se deve começar pelo nível da comparação sub-regional, trabalhando em direcção a níveis de comparação cada vez mais vastos. Tem de haver uma dialéctica constante entre o que generalizamos a um nível e o que generalizamos para os níveis que lhe são mais vastos e mais restritos. Não nos devemos esquecer que uma cidade pode ter muitos quarteirões, tal como um distrito pode ter muitas cidades, ou como uma região pode ter muitos distritos, etc. Por outras palavras, até a descrição etnográfica é sempre um exercício de comparação; de ínfima comparação sub-regional.
46Assim, temos que abandonar as tentativas de definição de uma área com base em interesses políticos e académicos, desafiando em seguida os opositores a provarem que não é uma «área cultural», como faz Davis. Em vez disso, devemos avançar no sentido da comparação regional. Deixemos que o nosso ethnologisch studieveld (Josselin de Jong, 1985 e Barnes, 1985) se construa a si próprio, lentamente, como resultado da acumulação dos nossos esforços conjuntos cada vez mais abrangentes.
47Penso que, para já, a tarefa mais urgente é a de comparar sociedades que existam em espaços linguísticos, religiosos, políticos, económicos e históricos vizinhos, e então, avançar lentamente para espaços de comparação mais vastos. Porque é que os antropólogos têm evitado comparar a Europa mediterrânica com a Europa atlântica, enquanto gastam tanta tinta a procurar revelar os laços mais distantes entre as margens norte e sul do Mediterrâneo? Esta estranha preferência parece ter sobrevivido a todo o género de argumentos em contrário (cf. Aceves, 1979) e apesar da óbvia incapacidade dos seus aderentes para comprovar a sua utilidade comparativa. Em 1982, Gilmore continua a sentir que «temos que saber de uma forma mais conclusiva quais são, de facto, as continuidades que tornam o Norte e o Sul [do mar Mediterrâneo] mais do que zonas culturais adjacentes que partilham um mesmo meio ambiente». Não parece haver argumentos suficientes para abalar a sua inquebrantável fé na antropologia do Mediterrâneo como uma «subespecialidade legítima» (1982: 199).
48Não faz sentido tentar definir a-historicamente qualquer homogeneidade cultural relativa. As condições de subdesenvolvimento que caracterizavam o Sul da Europa no período do pós-guerra, alteraram-se consideravelmente. As semelhanças físicas entre as aldeias marroquinas e espanholas, que eram tão aparentes aos etnógrafos anglo-americanos dos anos 50, serão com certeza menos notórias nos anos 90. Actualmente o policiamento masculino da castidade feminina na Andaluzia (e de acordo com o próprio Gilmore, não parece haver assim tanto, 1987b) será sem dúvida radicalmente distinto das práticas repressoras verificadas em Marrocos, na Líbia ou na Arábia Saudita. Tal facto pode ser interpretado de duas formas: ou as semelhanças eram apenas superficiais nos anos 50, ou as mudanças políticas e económicas que tiveram lugar a partir dos anos 60 deram origem a um realinhamento do mapa etnográfico. Pessoalmente, e já que toda a semelhança é sempre relativa, penso que ambas as interpretações podem ser correctas.
49Uma coisa parece certa, havia algo de circular no argumento dos mediterranistas que iam para as aldeias mais remotas e menos desenvolvidas procurar dados para provar que o Mediterrâneo é uma área cultural. Já nos anos 50, a ênfase ruralista da antropologia social significava o desprezo de um dos aspectos mais centrais das civilizações cristã e islâmica: as suas tradições urbanas de comércio e erudição. Como refere Brandes, «não é coincidência que todas as discussões sobre honra e vergonha decorram de observações feitas em aldeias ou em pequenas vilas. Estes eram os terrenos seleccionados pelos antropólogos para diferenciar os povos mediterrânicos de si próprios. Os habitantes urbanos fornecerão, presumivelmente, diferenças menos radicais» (1987: 126). De facto, o próprio título que Davis escolhe para o seu livro é significativo, pois é uma referência ao People of the Sierra de Pitt-Rivers — ou seja, é uma metáfora ruralista que permite que o «Mediterrâneo» seja tratado como um aglomerado de aldeias, apesar do facto de ter sido anteriormente definido por referência ao «contacto cultural» que é levado a cabo não em aldeias rurais isoladas mas em cidades, através de comerciantes, administradores e homens letrados.
50No final dos anos 80, as condições alteraram-se consideravelmente por referência ao período dos pioneiros mediterranistas. A antropologia já não é um refúgio de ruralistas (p.e. Hirschon, 1988, McDonough, 1986, Kertzer e Kenny 1983) e as alterações políticas e económicas que ocorreram na Europa significam que se está a tornar visível uma maior integração entre a Europa mediterrânica e a Europa atlântica8, enquanto o desenvolvimento das culturas islâmicas do Mediterrâneo não parece ter aderido às linhas previstas pelos defensores da modernização. Como afirma Clifford, «em todas as partes do mundo são destruídas e criadas distinções [...]. Nas últimas décadas do século XX, a etnografia parte do facto inegável de que os Ocidentais não são os únicos a singrar novos caminhos no mundo moderno» (1988: 17).
51Pelo menos no que diz respeito aos países do Sul da Europa, temos que ter em conta ainda outro factor. A antropologia mediterranista anglo-americana tem sido muito prolífica. Sejam quais forem os seus desejos, Gilmore e os seus colegas anglo-americanos não são os únicos «herdeiros deste legado intelectual» (Brandes, 1987: 121). Actualmente, os mais importantes departamentos de antropologia social dos países da Europa do Sul têm professores doutorados em universidades anglo-americanas, a maioria dos quais não só legitima a sua autoridade académica por meio de graus académicos anglo-americanos e de uma familiaridade com a antropologia mediterranista, como publica até em inglês — a língua franca científica dos nossos dias. Não devemos dar grande importância aos ataques excessivos daqueles para quem é difícil reconhecer a dívida que têm para com as tradições americanas e inglesas da antropologia (Llobera, 1987; Moreno-Navarro, 1986). Uma coisa é certa: se o etnocentrismo que exala do trabalho de antropólogos como Gilmore é detestável para os seus colegas americanos (Fernandez, 1983), ainda o é mais para os antropólogos sociais que vivem em países da Europa do Sul. Sejam quais forem os erros e defeitos que o distanciamento temporal permita revelar no trabalho dos pioneiros, semelhantes generalizações, claramente etnocêntricas e indevidamente substanciadas, não serão encontradas nos trabalhos de Pitt-Rivers, Campbell, Stirling ou Friedl.
Notes de bas de page
1 Como mantém Cutileiro, a «máquina de investigação universitária montada nos anos de Império começou a ter que se lançar sobre outras regiões. A bacia do Mediterrâneo [...] conserva, para os Ingleses, alguns dos encantos do antigo Império» (1971: IX-X).
2 Como defendeu enfaticamente o Prof. Francis Rogers, da Universidade de Harvard, durante a conferência sobre «identidades ibéricas» realizada em Berkeley (Califórnia, 1987), os emigrantes portugueses nos Estados Unidos recusaram, de uma forma firme e bem sucedida, a classificação de «hispânicos», uma vez que este termo está imbuído de um forte sentido pejorativo.
3 Leia-se Peristiany, Pitt-Rivers, Campbell, etc.
4 Optamos por traduzir literalmente a palavra inglesa gender para referir os sexos masculino e feminimo, distinguindo-os assim do significado principal da palavra sexo.
5 Para uma crítica à referência constante a este modelo nos estudos sobre os padrões europeus de família, veja-se cap. V.
6 «Sugiro que as comunidades agrícolas do Mediterrâneo podem (...) ser organizadas num contínuo, no qual uma das extremidades é dominada pela pastorícia e a outra pelas hierarquias administrativas do Estado» (Schneider 1971: 11).
7 E porque não também o marxismo? Brandes; 1987: 124.
8 As novas tendências no discurso político, nomeadamente com a expansão das instituições políticas supranacionais na Europa, parecem estar a exercer um certo efeito na antropologia europeísta, tal como tinha previsto Cuisinier (1979: 3). O reordenamento das fronteiras disciplinares com a etnologia, que está a assumir uma importante posição em toda a Europa, pode ser visto como um desses efeitos. Um outro é que o nacionalismo e o regionalismo — temas que os nossos antecessores não consideraram merecedores de interesse etnográfico ou teórico — tornaram-se objectos reais de interesse antropológico.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003