Capítulo 1 – Interface corpo-máquina
p. 49-97
Texte intégral
“Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!”
(Álvaro de Campos, Ode Triunfal)
Curto-circuito
1“Ela vibra, só vibra. E a luz muda de cor. Se ela começar a vibrar, vai acender uma luz vermelha ou roxa. É pra avisar que eu tô fora da área, ou que tá precisando carregar a bateria. Porque a luz é só verde, pisca verde”.1 Sérgio descreve o sistema de alertas emitidos pela tornozeleira eletrônica que controla o cumprimento de sua Prisão Albergue Domiciliar (PAD). Uma combinação de alarmes luminosos e vibratórios que sinalizam o bom ou mau uso do equipamento, detectados por sua presença ou ausência no interior de um perímetro delimitado em decisão judicial. Thaiane, monitorada enquanto cumpria pena no regime semiaberto, explica: “Você tem um raio. Um raio invisível, que você pode circular. Passou daquilo lá… se fudeu, colega, se fudeu. Por quê? Porque a luz lá fica vermelha, daí você se fudeu”.2
2Em caso de violação das condições impostas, as possíveis consequências são várias e difíceis de se prever. Deivid relata que foi espancado e isolado por um mês na cela do castigo quando retornou da saída temporária de Natal para a Penitenciária II de Sorocaba, no interior do estado de São Paulo. Sua pulseira havia acusado “afastamento”. Depois de 30 dias trancado no poço,3 regrediu do regime semiaberto para o fechado. Sérgio, por sua vez, habituou-se aos alarmes emitidos pelo aparelho acoplado à sua perna. Mora na zona oeste do Rio de Janeiro e estuda no centro da cidade. Conforme as orientações do Sistema de Inteligência Penitenciária, Sérgio não pode se ausentar do município. “Mas acaba acontecendo de você violar. Eu violo. Vou pra Friburgo, vou pra qualquer lugar. Nunca sofri nenhuma sanção por isso. De todo modo, dizem que se pegar dá ruim. Mas eu vivo isso”.4
3O software de monitoramento pressupõe a programação e edição de zonas de controle, customizadas para cada usuário monitorado. As áreas de inclusão/exclusão são definidas por agentes penitenciários, junto aos técnicos da empresa contratada, a partir das determinações da justiça penal. Computadores pré-cadastrados acessam o software via interface web por meio da utilização de login e senha pessoais, permitindo a configuração do zoneamento conforme os casos particulares. “O sistema é bem personalizado, eu posso configurar de acordo com a decisão que foi feita pra aquele monitorado específico” (supervisor técnico da Spacecom).5
4As áreas de inclusão geralmente compreendem a residência do indivíduo (nos casos de cumprimento de prisão domiciliar ou em saída temporária), a unidade prisional (para presos em regime semiaberto) e seu local de trabalho ou estudo. A partir desses pontos geográficos e do trajeto que os conecta, uma determinada zona é definida, delimitando o perímetro no interior do qual a pessoa poderá circular. A distância entre os pontos do trajeto e o limite espacial tolerado forma o raio invisível mencionado por Thaiane. As áreas de exclusão podem abranger bares, casas noturnas, aeroportos, rodoviárias, regiões demarcadas como zonas de risco ou locais onde habitam “vítimas em potencial”, tais como ex-companheiras de indivíduos em cumprimento de medida protetiva de urgência, no âmbito da chamada Lei Maria da Penha (Lei n.o 11.340/2006). Nos casos de medida protetiva, a vítima também porta um equipamento de localização, do qual a tornozeleira do agressor deve manter certa distância.
5Aos perímetros espaciais pré-programados correspondem horários de circulação. Cada usuário possui um itinerário próprio, definido de acordo com sua rotina de trabalho, estudo e recolhimento. Um horário é estipulado para a entrada no local de trabalho/estudo e outro para a saída, reservando-se um intervalo de tempo para os deslocamentos necessários. Um período é fixado para permanência no local de detenção, seja ele a casa do usuário ou a unidade prisional em que cumpre sua pena. As áreas de inclusão vinculam-se, portanto, a uma grade horária específica, convertendo-se em áreas de exclusão conforme o período do dia e da semana. O lugar de trabalho torna-se território proibido nos horários de recolhimento domiciliar, por exemplo.
6Desse modo, as zonas de controle são móveis, moduláveis e obedecem a uma dinâmica espaço-temporal programável, imprimindo velocidades variadas que oscilam entre pontos de parada e regimes de aceleração. É o cruzamento relacional espaço-tempo que viabiliza a produção e a regulação dos circuitos, e não a independência das grandezas tempo e espaço (Virilio 1996).6 O domínio compreendido pelos interstícios entre castigo e controle não escapa a uma microfísica das velocidades, sendo antes um campo privilegiado de experimentações, emaranhado político no qual se entrecruzam múltiplas tecnologias de poder indexadas ao par movimento-pausa.
7O conjunto das condições relativas à execução penal institui dinâmicas de progressão e regressão, celeridade, morosidade e pausa, por meio de diferentes composições de acessos e bloqueios, sejam eles virtuais ou atuais – o atual e o virtual sendo compreendidos aqui como formas correlatas de produção do real (Deleuze 2009; Lévy 1995).7 As leis de execução penal são leis de velocidade, ainda que seus efeitos não sigam o ritmo programado – observe-se a evolução progressiva de regimes penais, qualificados e quantificados pela relação entre o tempo e o lugar de cumprimento da sentença proferida pelo juiz, entremeados pelos intermináveis lapsos temporais durante os quais o sentenciado aguarda a liberação para os regimes semiaberto e aberto,8 ou mesmo pelas regressões, decorrentes de faltas disciplinares, que fazem endurecer o regime e reiniciar o ciclo.
8Além ou aquém dos códigos de execução, a penalidade contemporânea é concebida a partir de estratégias voltadas ao controle dos trajetos, procedimentos de inserção dos corpos em um espectro segmentado de circuitos possíveis (Cunha 2008; Godoi 2015; Mallart 2019). A trajetória diária e semanal de Anderson, preso e monitorado enquanto cumpria pena no regime semiaberto na Região Metropolitana de São Paulo, é dirigida por uma combinação de diferentes mecanismos de incitação à mobilidade, intervalados por paradas induzidas. O registro a seguir descreve o seu itinerário:
“Todos os dias da semana, Anderson acorda às 5:30, na cela 29 da galeria térrea do ‘Castelinho’, como é conhecido o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Franco da Rocha. Antes de sair para trabalhar, verifica se a bateria de sua Unidade Portátil de Rastreamento (UPR) está suficientemente carregada. Junto à tornozeleira acoplada ao seu corpo 24 horas por dia, a UPR compõe o sistema de monitoramento eletrônico que controla sua permanência no interior de uma área de inclusão, durante suas saídas diárias para estudar e trabalhar. O equipamento emite as informações relativas à sua localização para o terminal de controle instalado na própria unidade prisional. Às 7:00, Anderson inicia sua jornada no escritório da Fundação ‘Dr. Manoel Pedro Pimentel’ (FUNAP), onde trabalha como faxineiro até as 16:00. Por volta das 16:30, toma o trem sentido estação da Luz. Desce na Barra Funda e pega o metrô até o Largo Santa Cecília, onde fica a faculdade que frequenta. Suas aulas no Curso Superior de Gastronomia vão das 19:00 às 22:30. O mais tardar, às 00:00, Anderson é esperado de volta ao CPP. Aos domingos, impedido de deixar a prisão, toma dois comprimidos de Rivotril e dorme em sua cela.”9
9 Em agosto de 2012, Anderson foi enquadrado no art.º 33, da Lei n.o 11.343, após ter sido flagrado com êxtase e cocaína por agentes do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC), em uma boate na região central de São Paulo. Condenado a 5 anos e 10 meses de prisão, com regime inicial fechado, hoje ele trafega pelos ambientes ambíguos constituídos pela interseção entre o interior e o exterior dos muros prisionais, permanentemente monitorado. Sua pena já não tem espaço fixo, é cumprida no circuito prisão-trabalho-faculdade-prisão e gerida pelo quadro administrativo do Castelinho junto ao “parceiro privado” que desenvolve o sistema e fornece os serviços de controle eletrônico à distância – nesse caso, a empresa Spacecom Monitoramento.
10Mais do que um espaço de clausura e exclusão, mas sem deixar de operar mediante o confinamento, o Castelinho incide no trajeto de Anderson como aparelho regulador de sua circulação: ponto de parada e inspeção ao estilo pit stop. É lá que ele passa suas noites e finais de semana. É lá também que seu equipamento de monitoração é instalado, vistoriado e supervisionado, através de um pequeno computador situado em uma das salas do setor administrativo. O aspecto arcaico e imponente do prédio, construído no início da década de 1930 com base nos padrões da arquitetura clássica, rendeu-lhe o apelido irônico que remete à combinação ambivalente de lar suntuoso e monumento da agonia.10 Pelas escadarias estreitas e corredores escurecidos do Castelinho, presos caminham de um lado a outro, de cima a baixo, convivendo com o inevitável cheiro fétido que toma conta do lugar, decorrente da superlotação e do escasso fornecimento de água. Em uma cela projetada para 50 pessoas, mais de 110 homens improvisam barracas de lençol e compartilham colchões dominados por percevejos. “A vida lá é insuportável”, afirma Anderson.
11Todavia, a maior parte de seu tempo corre do lado de fora da unidade, nas idas e vindas entre o município carcerário de Franco da Rocha11 e o centro da metrópole paulista. Nesse trânsito, seus movimentos são rastreados pelo dispositivo que integra seu corpo à malha tecnológica formada pelo terminal de controle instalado no CPP, pela Central de Monitoramento da Spacecom e pela rede de satélites que compõe o Sistema de Posicionamento Global (GPS). Um complexo sociotécnico constituído por hardwares, softwares, satélites artificiais, agentes prisionais, técnicos de monitoramento e usuários monitorados. Anderson é inserido em uma engrenagem penal e comunicacional na qual ele próprio converte-se em componente, roda dentada entreposta no agenciamento maquínico (Deleuze e Guattari 1997, 2014) que conecta tanto elementos técnicos quanto políticos e econômicos, cristalizados em programas governamentais, codificações jurídicas e demandas de mercado.
12Conforme exposto, o circuito sofre ainda a interferência provocada pelo consumo semanal de ansiolíticos e tranquilizantes nos dias de descanso e recolhimento na unidade prisional – espécie de desativação psicotrópica, parada forçada que, mais do que uma chave de desligamento, constitui outro conector que atravessa seu organismo tornando-o ponto de convergência entre práticas e saberes punitivos e psiquiátricos, regulando as atividades de seu sistema nervoso central nos momentos de pausa confinada: circulação molecular, neuroquímica e intracorpórea como alvo de intervenção e objeto de governo.
13De todo modo, a experiência penal de Anderson, marcada pelo fluxo pendular prisão-monitoramento, é conduzida e atravessada por uma série de tecnologias de poder cujos efeitos vinculam-se aos processos de subjetivação implicados pelas técnicas atuais de punição e controle. Do flagrante policial à expectativa para a liberação de seu regime aberto, passando pela lenta e progressiva evolução da execução penal, por cada beco sem saída do labirinto processual, o encadeamento entre criminalização, encarceramento e monitoramento é composto por toda uma maquinaria de produção e aniquilação do sujeito. A construção do homo penalis, do homem penalizável e penalizado, torna-se apenas uma parte de um procedimento mais amplo e capilar de individuação e desindividuação, subjetivação e dessubjetivação, operado pela composição e sobreposição de diferentes dispositivos de poder.
14Por ter nascido pobre e pardo, Anderson é imediatamente classificado no recorte biossocial que habilita sua entrada e permanência no aparato punitivo.12 Sua propensão ao crime é dada de antemão, pelo perpétuo cruzamento de determinismos antropológicos que a ele imprimem uma raça, uma classe e uma qualificação moral correspondente, sendo o simples porte de narcóticos insuficiente para a fabricação do criminoso. A aplicação da lei penal, ainda pautada em grande medida no Brasil pelo arcabouço criminológico de inspiração italiana – notadamente pelos autores da chamada Escola Positiva, tais como Lombroso, Ferri e Garofalo, que oscila entre a anatomia política da delinquência e a sociologia criminal (Alvarez 2003) –, atua aqui como instrumento de validação de uma verdade construída previamente, mobilizando o binarismo legal-ilegal como meio de ratificação das marcações identitárias que definem os critérios de seleção do sistema de justiça penal. O dispositivo jurídico é posto em funcionamento como aparelho de sujeição social, orientado pela qualificação valorativa das raças e das classes (Foucault 1999; Deleuze e Guattari 1997; Misse 2014).
15A partir da ilegalidade demarcada pela lei e sentenciada pelo juiz, a conversão de Anderson em sujeito delinquente é operacionalizada no interior do sistema carcerário. Os regimes disciplinares da cadeia, fixados seja pela administração da unidade, seja pelas codificações estatutárias de “movimentos” ou “facções”, seja ainda pela mediação espiritual de igrejas e organizações religiosas, seguem tendo por efeito a transformação do criminoso em delinquente, convicto ou arrependido, ainda que esse processo de conversão fuja ao controle das autoridades penitenciárias e eventualmente se volte contra ela. A prisão massificada, tornada aparelho de distribuição e administração de grandes contingentes populacionais (Wacquant 2003; Godoi 2015), continua sendo, contudo, o espaço por excelência de individuação da delinquência.
16Após dois anos e meio no regime fechado, a transferência de Anderson para o semiaberto de Franco da Rocha mobiliza novas subjetivações produzidas pelo monitoramento eletrônico de seus passos. Se, por um lado, a fixação de um dispositivo de controle em seu corpo confere a Anderson a tarefa individual de gerir a própria pena, por outro, sua inserção no agenciamento maquínico que constitui o sistema de controle eletrônico promove um desmantelamento do elemento individuado, agora tornado peça, fragmento ou ponto de conjunção instalado na composição sociotécnica que conforma o dispositivo de monitoramento e que necessita de seu corpo como feixe de ligação e conexão do circuito. Anderson é subjetivado como agente prisional de si mesmo ao passo que se torna elemento componente da máquina penal. É também no regime semiaberto que seu sofrimento passa a ser administrado por meio dos comprimidos de Rivotril que um parceiro de cela lhe fornece.
17Nessa medida, sua trajetória no sistema penal é realizada mediante um conjunto de mecanismos que atuam sobre e a partir de sua circulação, regulando suas intensidades, definindo suas frequências, demarcando seus trajetos e tendo seu corpo como principal veículo e ponto de incidência. Seja por meio do acoplamento de um dispositivo eletrônico de monitoração em sua perna, seja pela medicalização periódica via psicofármacos, seja ainda pelo encerramento noturno e dominical na unidade prisional, as diversas técnicas mobilizadas na execução penal de Anderson dependem, antes de mais nada, da intervenção sobre seu corpo. Têm necessidade de seu corpo.
18É no corpo e com o corpo que a máquina penal exerce seu poder sobre os indivíduos, fazendo máquina de seus corpos. É o corpo enquanto substrato biológico que veicula e viabiliza exercícios de poder (Foucault 1987, 1988). Malgrado as significativas transformações pelas quais atravessam hoje as tecnologias de punição, seus procedimentos fundamentais parecem guardar uma dimensão biológica cuja atual mecânica de funcionamento requer maiores investigações.
19A noção foucaultiana de biopoder oferece aqui um campo vasto de pistas e problemas. A emergência de uma estratégia política que se realiza no corpo, pelo corpo, desenvolveu-se, conforme Foucault, através de dois polos correlacionados. De um lado, os mecanismos de controle social estiveram ligados, a partir do século XVIII na Europa Central, à elaboração de técnicas disciplinares voltadas ao adestramento do corpo individual. Das casas de instrução aos estabelecimentos de correção, dos espaços de produção aos locais de tratamento, a vida individual era perpassada por um conjunto de práticas e saberes voltados aos atributos e utilidades do corpo humano, à extorsão sistematizada de suas forças, possibilitando a extração de um lucro econômico-político a partir do corpo do indivíduo confinado; toda uma rede interconectada de dispositivos disciplinares erigidos sob configurações político-diagramáticas semelhantes, cuja mecânica operacional era dada pelo duplo vigilância-punição (Foucault 1987). O corpo-máquina nasce com as disciplinas.
20De outro lado, Foucault investiga a edificação, já no século XIX, de um aparato governamental direcionado à gestão da população enquanto corpo orgânico sobre o qual se desenvolvem técnicas de regulação. Os fenômenos relacionados à proliferação da espécie humana, sua reprodução, os índices de mortalidade e natalidade, os níveis de saúde e higiene pública, passavam a ser inseridos em planejamentos urbanos, sanitários, médicos e sobretudo securitários, cuja regulamentação era direcionada por uma estratégia de governo voltada à população tomada como corpo-espécie (Foucault 1988). O biopoder recobriria, dessa maneira, tanto uma anatomopolítica do indivíduo quanto uma biopolítica da população. Duas frentes a partir das quais emerge, entre os séculos XVII e XIX, essa estratégia geral de poder que se incumbe da vida em seu conteúdo político.
21As leituras e releituras das noções de biopoder e biopolítica são inúmeras e seria impossível recuperá-las aqui.13 Das análises sobre o racismo de Estado e campanhas de extermínio (Agamben 2002; Mbembe 2003; Esposito 2010) às investigações a respeito do avanço da engenharia genética (Rose 2007; Lemke 2011), passando pelos estudos acerca das reestruturações do capitalismo contemporâneo e sua correspondente produção de subjetividades (Hardt e Negri 2000; Lazzarato 2014; Dardot e Laval 2016; Pelbart 2009), as contribuições de filósofos, sociólogos, cientistas políticos, geógrafos e antropólogos são tão valiosas quanto múltiplas. Alguns desses trabalhos serão retomados ao longo deste livro, na medida em que fornecem instrumentos para o estudo dos impactos do monitoramento eletrônico sobre a vida das pessoas monitoradas, implicados pelas interações e integrações entre o corpo individual e o aparato penal, alterando substancialmente os modos pelos quais os castigos são empregados e os controles difundidos.
22Tomando como referencial analítico algumas investigações a respeito das reconfigurações nas táticas e estratégias biopolíticas na atualidade, interessa investigar como o biopoder se insere nas transformações pelas quais atravessam as tecnologias de punição, já que apesar dos expressivos deslocamentos e redimensionamentos que elas implicam, o poder de punir parece manter o corpo como sua matéria-prima. Como se realiza hoje um governo do corpo que ultrapassa a anatomia política individual e tampouco se atém a uma macrogestão populacional? Que espécie de corpo é produzido pelas técnicas atuais de punição e controle, já distante do corpo adestrado pelos dispositivos disciplinares, porém cada vez mais próximo da maturidade de um corpo-máquina que eles fizeram emergir?
23Tais indagações orientam os próximos movimentos deste livro, fornecendo repertório instrumental para a análise dos efeitos produzidos pelo controle telemático georreferenciado sobre aqueles e aquelas que a ele são submetidos. De imediato, interessa sublinhar que alguns dos procedimentos e princípios de funcionamento biopolíticos são indispensáveis para a viabilização do monitoramento eletrônico como forma de controle penal, sustentado por práticas regulatórias da circulação dos corpos, orientado por uma nova economia política da pena e instrumentalizado como tecnologia de gestão da população prisional. São esses, portanto, os principais eixos de investigação desta pesquisa: os impactos do controle eletrônico na administração da superpopulação carcerária brasileira; a transversalização da racionalidade econômico-política que orienta a elaboração de novas técnicas penais; e a relação entre o corpo penalizado que circula e a máquina que conduz essa circulação.
24Este capítulo organiza alguns dos principais questionamentos suscitados pelo trabalho de pesquisa, relacionados aos três eixos de investigação. Nele, são apresentados o conjunto de camadas e o emaranhado de linhas que constituem o dispositivo estudado, para que se possa instalar em cada uma delas nos capítulos subsequentes. A principal via de entrada reside, contudo, no corpo monitorado. É a partir da interface estabelecida entre o corpo e a máquina que as diversas camadas do dispositivo em questão são identificadas e analisadas. Sendo assim, os próximos itens levantam algumas hipóteses a respeito dos efeitos dos dispositivos de monitoramento relacionados à condução dos corpos, sua conversão em peça maquínica e sua marcação pública. O trabalho de campo, a pesquisa bibliográfica e a análise documental realizados durante esta pesquisa indicam que o corpo monitorado é, a um só tempo, corpo conduzido, corpo-conector e corpo marcado.
O carcereiro de si mesmo
“Art.º 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres:
I – receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações;
II – abster-se de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça;
[…]
Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa:
I – a regressão do regime;
II – a revogação da saída temporária;
[…]
VI – a revogação da prisão domiciliar;
VII – advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas no incisos de I a VI deste parágrafo.” (Lei n.o 12.258/2010)
“Equipamento TZPR01 (1 peça)
Se a luz roxa piscar, ligue para 0800 643 5510;
Você é fiel depositário destes equipamentos;
A sua liberdade depende do cumprimento destas regras;
Recarregue por pelo menos 3 horas por dia;
Não quebre e nem mexa neste aparelho.” (Instruções de utilização ao monitorado, Spacecom)
25O primeiro documento acima compõe a Lei n.o 12.258 de junho de 2010, que alterou a Lei de Execução Penal (Lei n.o 7.210/1984), autorizando a aplicação do monitoramento remoto em pessoas condenadas ao regime semiaberto ou prisão domiciliar. Trata-se da primeira lei federal que aprovou a modalidade eletrônica de cumprimento de pena no Brasil. O segundo excerto foi extraído da folha de instruções, entregue aos condenados à Prisão Albergue Domiciliar no estado do Rio de Janeiro, referente à utilização da tornozeleira de geolocalização que integra o Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 horas (SAC24), desenvolvido pela Spacecom. Ambos os textos ressaltam os cuidados e responsabilidades do usuário monitorado para com o equipamento, especificando ocasiões de contato com os agentes responsáveis pela operacionalização do sistema.
26A monitoração eletrônica é também monitoração humana, na medida em que requer o trabalho de agentes, públicos e privados, encarregados de sua supervisão. Alguns estados brasileiros contam com equipes de psicólogos e assistentes sociais voltados ao acompanhamento das pessoas monitoradas. É o caso do Acre, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Roraima e Santa Catarina (DEPEN 2017). No restante do país, o trabalho de monitoramento é realizado exclusivamente por agentes penitenciários e funcionários da empresa contratada, restringindo-se à verificação se a pessoa rastreada está ou não cumprindo as condições judiciais determinadas e à execução das sanções decorrentes de possíveis descumprimentos.
27O artigo 146-C da Lei n.o 12.258/10 especifica tais sanções: regressão de regime; revogação da saída temporária para presos no regime semiaberto; suspensão da prisão domiciliar ou advertência. Cada um dos incisos guarda, contudo, implicações subjacentes, irredutíveis à codificação legal, na medida em que são aplicados a partir do critério dos operadores diretamente responsáveis pelos serviços de rastreamento. No limite, a qualidade das sanções será efetivamente definida pelos agentes encarregados de fiscalizar a execução penal, tendo a lei como contorno normativo. O dispositivo de monitoramento é composto, dessa maneira, pelas conexões que se fazem entre a lei, os servidores públicos e privados envolvidos, o sistema eletrônico de rastreamento e os próprios usuários, sem os quais o sistema não se fecha. Essa malha sociotécnica (Latour 2013), como qualquer outra, não é imune a imprevistos, interferências e falhas de comunicação, cujas consequências serão determinadas pelo juiz, intermediado pelas equipes de monitores. Nesse sentido, não são raros os percalços técnicos e sociotécnicos relatados por presos monitorados e seus familiares. É frequente a ocorrência de falhas nos equipamentos, que acarretam em sanções regimentais ou extrarregimentais aos indivíduos rastreados. O destino de Deivid diz um pouco sobre isso.
28Durante os primeiros dias de 2016, em ocasião da saída temporária para as comemorações de Natal e Ano Novo, Deivid enfrentou problemas com seu equipamento de monitoração, composto por duas peças: uma tornozeleira e uma Unidade Portátil de Rastreamento (UPR). Os equipamentos comunicam-se entre si via radiofrequência. Conforme as orientações do Diretor de Reintegração Social da Penitenciária II de Sorocaba, onde o rapaz cumpria pena no regime semiaberto, a tornozeleira não pode ultrapassar uma distância de 30 metros da UPR. Caso contrário, o aparelho acusaria “afastamento”, sinalizado, nesse caso, por um LED de luz branca. Por conta disso, Deivid permanecia com a UPR na mão, ou em uma mochila, enquanto mantinha a tornozeleira fixa no corpo. Quando saía de casa, levava sempre os dois aparelhos.
29Certo dia, no entanto, Deivid e sua esposa, Irene, notaram que a mencionada luz branca havia acendido na UPR. Pouco tempo depois, o equipamento passou a emitir um beep sonoro. Preocupados, Deivid e Irene telefonaram para a unidade prisional, dizendo o que se passava. Foram orientados pelos agentes penitenciários a manter os equipamentos próximos um do outro e retomar suas atividades normalmente, já que, segundo eles, o software de monitoramento instalado na penitenciária não apontava nenhuma irregularidade. O casal seguiu a orientação. No dia de retorno da saidinha,14 contudo, Deivid foi surpreendido ao ser recebido na unidade prisional sob socos, algemas e empurrões. Foi imediatamente colocado no castigo, onde o mantiveram por um mês, sob a justificativa de que tinha se afastado da UPR. Na carta a seguir, ele relata o ocorrido:
“Eu, sentenciado Deivid Matias Nascimento, no momento me encontro na unidade Penitenciária II de Sorocaba. Quero relatar o que ocorreu no dia 3 de janeiro de 2016 às 13 horas, quando eu voltava da saidinha de natal. Quando eu cheguei aqui os funcionários vieram para cima de mim, me algemando, me batendo e dizendo que eu ia descer pro castigo. Eu perguntei o que tava acontecendo. Eles disseram que tinha dado problema no UPR da pulseira, que eu tinha afastado e tava dando fora de área. Por causa disso eu fiquei 30 dias trancado no poço e depois regredi pro fechado. Antes, quando eu tava na minha casa na saidinha, deu problema na pulseira. Começou a apitar e acendeu a luz branca. Deu afastamento, mas eu tava em casa. Aí logo minha mulher ligou pra unidade. Eles disseram que tava normal. Eu perguntei se ia dar problema aquilo. Eles disseram que ‘não, pode voltar, normal’. Quando eu cheguei de volta pra unidade, me mandaram pro castigo. Aqui a gente só tem 3 horas de sol, ficamos o dia todo trancado. Tem um monte de gente na mesma situação que se encontra no Raio 1. A comida é pouca, tem preso passando fome e quase não tem atendimento médico pra gente. O castigo tá cheio. Qualquer coisa eles colocam no castigo. Fico muito agradecido pela atenção. Deus abençoe.” (Deivid, P-II de Sorocaba)15
30 Deivid aguardou por dois anos no regime fechado até que o “benefício” do semiaberto fosse novamente concedido. Durante o mês em que esteve isolado, Irene pouco sabia sobre suas condições e tampouco os motivos do isolamento. Como é de praxe nos casos de sanção disciplinar, suas visitas eram proibidas enquanto ele era mantido no castigo. Evandro, preso na Penitenciária de Presidente Prudente, no interior de São Paulo, também regrediu de regime quando, segundo ele, seu equipamento de monitoração passou a vibrar e apitar sem que houvesse motivo claro. Permaneceu por mais de 15 meses no regime fechado.
31 A respeito das falhas nos sistemas de monitoração, Maurício, agente prisional no Centro de Progressão Penitenciária do Butantã, relata: “Tinha vez que a central ligava aqui na unidade às 3 da manhã dizendo que tinha acusação de rompimento da tornozeleira. Quando ia ver, a presa tava dormindo na cela. Tava com o aparelho e fez algum movimento, sei lá”.16 Tanto o equipamento quanto a leitura humana das informações emitidas por ele são passíveis de erro, como todo sistema de comunicação. Monitorada em 2011 na capital paulista, Maria reitera: “É uma pegadinha. Você pode se dar bem, não ter problema nenhum, ou o aparelho falha e você se dá mal. Acontece muito. É um aparelho que dá defeito, como qualquer outro”.17 Todavia, as implicações decorrentes de “problemas técnicos” são, nesse caso, bastante particulares a um dispositivo conectado ao aparato penal e penitenciário. Na ocasião relatada por Deivid, um suposto defeito no equipamento, atrelado à intransigência do juiz e à truculência dos agentes penitenciários, resultou na regressão ao regime fechado e nas agressões mencionadas. Maria acrescenta: “A verdade do aparelho é a mentira nossa. Nunca a falha vai ser do aparelho, vai ser sempre do preso”.18
32Associado ao descrédito prévio nas explicações e depoimentos fornecidos por presos e presas, a aposta na eficiência e objetividade da tecnologia confere às informações emitidas pelo equipamento a qualidade de verdades incontestáveis. Artefatos não mentem. A suposta neutralidade tecnológica garante a veracidade do sistema. Nesse sentido, a percepção de Maria é clara. Os agenciamentos entre as máquinas e seres humanos que compõem os sistemas de monitoração eletrônica desencadeiam os mais variados efeitos ligados à produção da verdade. Uma verdade codificada por LED, beeps e alertas vibratórios, transmitida à equipe de monitores, retransmitida ao juiz de execução e recodificada pelo enquadramento na lei penal. Uma verdade produzida no interior do agenciamento maquínico que constitui os mecanismos de controle eletrônico e que será então contraposta à verdade do preso. No caso de Deivid, prevaleceu a verdade do aparelho, convertendo alarmes luminosos em espancamentos na cela do castigo.
33De todo modo, as ligações entre os dispositivos de monitoramento e o dispositivo carcerário se fazem também mediante os alarmes falsos, os erros de leitura, as “falhas técnicas” que trazem de volta ao interior dos muros os que tiveram a má sorte de portar um equipamento defeituoso. Se o controle eletrônico permite uma flexibilização da constrição espacial fixada pelos limites rígidos da prisão-prédio, essa flexibilidade é qualificada por uma certa elasticidade (Augusto 2013), cuja tendência de reposicionamento reafirma a centralidade da prisão com suas torturas, espancamentos e agressões subjacentes. As relações de conexão e complementaridade entre a prisão e suas atuais modulações eletrônicas são estabelecidas inclusive a partir dos bugs. Não se trata, portanto, de enxergar nas falhas a inoperância do sistema, mas detectar o seu funcionamento também a partir dos erros, dos distúrbios, das comunicações interrompidas. Furtar-se à conclusão rápida de que o dispositivo não funciona porque é falho e indagar como, a partir de sua falibilidade, uma certa funcionalidade é produzida.
34Para além do erro, inerente aos aparatos técnicos, importa considerar os aspectos políticos inscritos nos projetos, programas e protocolos que compõem uma determinada tecnologia. Aparatos tecnológicos não são neutros e a sua utilização implica em direcionamentos nas formas pelas quais se pretende mediar e ordenar as relações sociais (Winner 1986). Projetado como componente de uma estratégia específica de controle penal e inserido nos procedimentos de gestão penitenciária, o sistema de monitoramento eletrônico dificilmente pode ser apartado de sua dimensão política intrínseca, distante, portanto, de uma neutralidade presumível. Seu caráter político é dado desde a sua concepção até a sua operacionalização, através das interações com os diversos agentes dos quais o seu funcionamento depende (Latour 1994). De ponta a ponta, intencionalidades se materializam. Relações de poder se inscrevem em aparatos técnicos e aparatos técnicos se inscrevem nas relações de poder (Winner 1986; Latour 1994).
35Interessa, portanto, investigar quais as relações de poder mobilizadas sob o invólucro dos discursos, práticas, leis e tecnologias que constituem os programas de monitoramento de presos e presas. A que tipo de racionalidade esses dispositivos obedecem e retroalimentam? Quais os efeitos dessa racionalidade quando ela se materializa na vida e no corpo das pessoas monitoradas? Não se pretende aqui buscar uma única resposta ou modelo explicativo, mas explorar possibilidades analíticas suscitadas pela aproximação junto a indivíduos monitorados e suas percepções.
36A ideia de que os propósitos da monitoração eletrônica vinculam-se à reiteração da sensação de vigilância pelo usuário, relembrando-o permanentemente de que seus movimentos estão sendo observados e que o descumprimento das determinações judiciais acarretará em uma punição mais severa (Nellis, Beyens e Kaminski 2013), provoca reverberações que conformam as experiências vivenciadas por aqueles que são sujeitos ao controle eletrônico a distância. “Pra mim, a pulseira mexe com a cabeça tanto quanto a cadeia”, afirmava Anderson durante os meses em que foi monitorado. “Eu vou pra rua, mas eu continuo preso. Parece que eu tenho um guarda do meu lado o tempo todo, me olhando em todo canto”.19
37A interiorização da vigilância na mente do preso é um dos aspectos do modelo panóptico de disciplinarização intramuros (Foucault 1987). A máquina benthamiana, projetada no tardar do século XVII, já transferia a inspeção centralizada para cada elemento inspecionado, subjetivado como vigia de si mesmo. “Tratava-se de um novo modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em um grau nunca antes demonstrado”, dizia Jeremy Bentham a respeito de sua invenção (2008: 17). Entretanto, o exame do comportamento do indivíduo e sua respectiva transformação no interior de espaços fechados é redimensionado e reconfigurado pelas atuais tecnologias de punição mediante a transposição dos procedimentos de observação e controle para ambientes a céu aberto, ao nível e alcance de sistemas de sensoriamento remoto e geolocalização. A ultrapassagem da mecânica disciplinar é efetivada por um movimento de desterritorialização das técnicas de vigilância (Froment 1996; Bogard 2006), convertidas em monitoramento móvel, modular e ininterrupto.
38Mais do que o sequestro das liberdades, o que está em jogo aqui é a produção, a concessão e o gerenciamento de liberdades sob medida. O poder inclui a liberdade como elemento indispensável ao seu exercício, mobilizando mecanismos que não bloqueiem as possibilidades de circulação dos indivíduos, mas regulem essa circulação, garantindo uma margem de segurança através de medidas que atuem como contrapesos às liberdades concedidas pela justiça criminal sob a forma de benefícios. Nesse sentido, os princípios operativos do monitoramento eletrônico respondem a uma racionalidade política orientada por práticas de governamentalidade, cuja efetividade supera a dominação baseada na constrição comportamental em instituições de encerramento. “Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros” (Foucault 2009: 244). Ao conceder uma liberdade de circulação ao indivíduo monitorado no interior de zonas de controle mais ou menos restritas, vinculadas a horários de entrada, saída e permanência, o juiz de execução penal estabelece a demarcação do campo de condutas possíveis do condenado, abdicando de uma intervenção excessiva fundada em técnicas de adestramento.
“Não se trata tanto de corrigir e moldar o sujeito, mas de criar um padrão de vida de baixo risco, com hábitos, rotinas e um estilo de vida seguros para a sociedade. […] Um posicionamento ilícito faz disparar o alarme não porque implique necessariamente que a pessoa tenha cometido um novo delito: implica o risco de que ela o cometa.” (Vitores e Domènech 2007: 13-15)
39A análise de riscos futuros deve orientar as políticas penais, pautadas pelo cálculo que equaciona liberdade e segurança na formulação e otimização de técnicas de controle, concebidas em termos de eficiência e utilidade. As atuais tecnologias biopolíticas atuam “por antecipação de ações, na previsão dos próximos movimentos, operando e agindo nos limites da variação da incerteza” (Kanashiro 2011: 66).
40O objeto de intervenção passa a ser menos a individualidade do sujeito do que a sua conduta, entendida aqui, a partir da definição de Michel Foucault, como “a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades” (2009: 243). É a conduta do usuário em seu “ambiente natural” que se deve controlar, governar e conduzir por meio das tecnologias de monitoramento eletrônico (Schwitzgebel 1969). Para isso, invertem-se os termos: ao invés de inserir o corpo do indivíduo em um dispositivo de controle, instala-se o dispositivo de controle no corpo do indivíduo. Do corpo na prisão passa-se à prisão no corpo.
41Essa inversão técnica e procedimental não ocorre sem maiores implicações nas maneiras pelas quais o criminoso é subjetivado. O imperativo do autocontrole, ancorado no paradigma neoliberal da responsabilização individual, encontra aqui sua expressão prototípica, a níveis impensáveis à distopia benthamiana. O sujeito submetido ao monitoramento remoto deve projetar, por sua própria conta, o risco ao qual se expõe caso decida violar as condições impostas pelo juiz. Nenhum impedimento físico lhe é imposto senão a virtualidade da prisão. Onde quer que esteja, o indivíduo deve ser capaz de conduzir a si mesmo, a partir das possibilidades que as condições judiciais lhe oferecem.
42A respeito das regras de seu regime semiaberto sob monitoramento, Anderson explica:
“Não posso estar em lugares que oferecem algum risco pra mim. Perto de um ponto de droga, balada, bar… Mas na real, tem umas barreiras aí que eu mesmo crio. Às vezes eu acho que eu sou muito correto. Às vezes até dava pra extrapolar, mas eu penso mil vezes.”20
43Mais do que fixar limites estabelecidos por muros e estruturas arquitetônicas, a ideia é fazer com que o indivíduo crie ele mesmo seus próprios limites, mediados pelo acoplamento de um dispositivo de controle em seu corpo. A prisão e sua iminência permanecem no horizonte próximo ao qual o sujeito monitorado deve se livrar por meio de uma conduta segura, distante dos circuitos de ilegalidade que o conduziram a ela. Se não se trata de moldar o comportamento do indivíduo por meio de mecanismos disciplinares, uma certa modulação subjetiva é operada pelo monitoramento remoto.21
44Sobre as condições relativas à execução de sua PAD eletronicamente monitorada, Sérgio pondera:
“Eles falaram que eu não posso frequentar lugar que vende bebida, por exemplo. Mas se eu tiver que entrar num bar, eu vou entrar. Não me privaria de ir. Agora qual é a questão? Se rola uma briga no bar e eu tô ali, eu tô lascado. Se eu sou pego pra testemunho, mesmo se eu for vítima no fato ali, no caô, eu vou pra delegacia. Posso ser vítima nesse processo, mas eu não deveria nem tá ali. Eu vou preso. Então tem que avaliar, pensar bem.”22
45A ameaça da regressão penal aparece como o risco a ser avaliado e evitado. O indivíduo monitorado deve analisar os riscos que corre com a violação das regras judiciais, contrabalanceando-o aos benefícios que poderia obter com seu descumprimento. O cálculo íntimo que opõe as vantagens de uma conduta “livre”, que negligencie as regras judiciais, aos riscos da regressão penal deve servir de parâmetro para que o sujeito monitorado conduza a si mesmo, a partir de seus próprios julgamentos, orientados por avaliações e prognósticos de perdas e ganhos.
46A racionalidade utilitária que equaciona vantagens e desvantagens converte-se em parâmetro orientador das formas de condução de si do sujeito monitorado, vinculando os dispositivos de monitoramento ao conjunto de técnicas de poder que constituem a governamentalidade neoliberal, compreendida como uma forma específica de condução das condutas pautada pela transversalização dos fundamentos da economia de mercado sobre as esferas jurídicas, políticas, sociais e subjetivas (Foucault 2008a). A grade racional pela qual se governa as relações econômicas torna-se o princípio de concepção e inteligibilidade da política penal, associando a liberdade ao lucro e a intervenção punitiva ao prejuízo.
47Nessa medida, a governamentalidade neoliberal não apenas assume que todos os aspectos da vida social e política podem ser reduzidos a cálculos de utilidade, mas desenvolve programas e tecnologias de poder sustentados por práticas e discursos que ratificam essa visão, produzindo individuações pautadas pela balança que pesa e contrapesa prognósticos de riscos e benefícios (Brown 2005).23 “O risco tornou-se um microrrisco personalizado” (Aubrey 2000: 101). “O indivíduo deve governar-se a partir de dentro por uma racionalização técnica de sua relação consigo mesmo” (Dardot e Laval 2016: 350). A pena é vista, antes de mais nada, como uma dívida social a ser paga e administrada pelo próprio condenado.
48Vinculados ao imaginário criminológico que toma o infrator como um agente racional e calculista que empreende o crime como um investimento qualquer – tendo como único parâmetro de diferenciação a quantidade e a qualidade do risco implicado pelo investimento (Becker 1974) –, os efeitos mobilizados pelo monitoramento eletrônico relacionam-se à transferência das tarefas do agente prisional para o próprio prisioneiro, reposicionando as atividades de vigilância para o campo do autogoverno. A abordagem econômica do fenômeno criminal encontra sua eficácia no sujeito concebido pela política penal. O indivíduo monitorado torna-se tecnicamente orientado, analista dos riscos que corre e gestor individual de sua própria pena.
49Entretanto, a conversão do condenado no agente prisional de si mesmo que transpõe o olhar do vigia para os espaços em que habita revela-se das mais variadas maneiras, dentre elas a tendência de isolamento e autoexclusão reforçada pela marca ostensiva que o aparelho de monitoração imprime no corpo. Deivid permanecia a maior parte do tempo fechado em sua casa durante as saídas temporárias em que esteve monitorado, receoso de que a vizinhança desse conta da presença de um prisioneiro no bairro. “Mesmo dentro de casa, quando chegava visita, uma pessoa que ele ainda não conhecia, ele procurava tá sempre no quarto, não saía do quarto”,24 relata sua companheira, Irene. Anderson, por sua vez, descreve a saída temporária sob monitoramento como mais um momento de recolhimento: “Dá vontade de me isolar e ficar só em casa. Acho que é medo, por causa dessa pulseira”.25
50Já a reação de Elton foi mais esdrúxula. Monitorado no Rio de Janeiro em cumprimento de prisão domiciliar, Elton ergueu um muro ao redor de sua casa para que ninguém da rua pudesse cogitar em vê-lo com uma tornozeleira, conforme conta sua esposa, Ângela: “O Elton, quando chegou aqui, a primeira coisa que ele fez foi fazer obra na casa. Levantou um muro em volta e tampou todas as frestas do portão. Todas as passagens do portão entreabertas, ele tampou tudo. Ele lacrou a casa”.26
51À vergonha de ser exposto com um aparelho que identifica o usuário como criminoso atrelam-se as ameaças suscitadas pela sensação persecutória. A prisão desterritorializada, virtualizada por meio de sistemas telemáticos de localização e comunicação que transpõem seus limites para além dos muros institucionais, se reterritorializa e se atualiza nos espaços em que habita o indivíduo rastreado, seu trabalho, seu bairro, sua casa, tornada casa-prisão em que os muros são finalmente repostos, agora pelo próprio prisioneiro. Não se trata de um confinamento voluntário, mas de um isolamento induzido, conduzido pela relação que se estabelece entre o sujeito monitorado e o dispositivo de monitoramento.
52De todo modo, a imposição de limites físicos que demarcam espaços de encerramento já não é necessária para que a condição de prisioneiro se estabeleça. O dentro e o fora atingem um tal ponto de indiferenciação em que as muralhas já não circunscrevem o espaço penal e seus controles, agora atrelados ao próprio corpo do apenado. O prisioneiro converte-se em seu próprio carcereiro, orientado pela aritmética utilitária que reitera a regressão penal como risco e virtualidade permanente. Uma nova individualidade criminosa é construída, imanente à sua linha de supressão que erradica a cisão entre o corpo e a prisão do corpo.
Ponto de conjunção
“A sujeição social nos dota de uma subjetividade, atribuindo a nós uma identidade, um sexo, um corpo, uma profissão, uma nacionalidade e assim por diante. Em resposta às necessidades da divisão social do trabalho, ela fabrica sujeitos individuados, sua consciência, representações e comportamento. Mas a produção do sujeito individuado vai de par com um processo completamente diferente, e por uma posse da subjetividade também completamente diferente, que procede através da dessubjetivação. A servidão maquínica desmantela o sujeito individuado, sua consciência e suas representações, agindo sobre os níveis pré-individual e supraindividual.” (Lazzarato 2014: 17)
53 Situado no bairro do Outeiro da Cruz, na cidade de São Luís, o prédio da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Maranhão (SEAP-MA) mais se assemelha a um edifício abandonado, com suas obras inconclusas e instalações mal acabadas. Diante do terreno utilizado como estacionamento para as viaturas e motocicletas dos servidores, localiza-se uma das dependências da Academia de Gestão Penitenciária do Estado (AGEPEN), onde são ministrados cursos de capacitação para agentes penitenciários. Ao lado, um pátio coberto armazena restos de material de construção, pedaços de madeira e pilhas de areia e pedra. Mais adiante, um galpão pouco iluminado dá acesso a dois lances de escada que levam ao piso superior. Quase não se nota movimento.
54No andar de cima, uma pequena área é utilizada para instalação, vistoria e troca dos equipamentos de monitoração eletrônica adquiridos pela SEAP. Os servidores testam os aparelhos estocados e examinam os equipamentos que apresentam problemas, enquanto os usuários aguardam nas cinco cadeiras reservadas à área de espera. Alguns permanecem com o aparelho acoplado ao corpo e plugado na tomada até que a bateria esteja totalmente carregada. Outros fazem fila, aguardando a liberação de uma tomada. A cena de pessoas mantidas por algumas horas com suas tornozeleiras eletrônicas presas ao corpo e ligadas na tomada é cotidiana. O homem monitorado ainda é o homem plugado, dependente dos pontos de eletricidade sem os quais seus aparelhos de localização indicarão violações de mau uso.
55 Adiante, um corredor estreito leva à sala que abriga a Central de Monitoramento do Maranhão. Um pequeno aposento sem janelas, com cerca de vinte e cinco metros quadrados, no qual são disponibilizados sete computadores enfileirados em duas bancadas e um aparelho de telefone. É nesse espaço reduzido que os agentes da SEAP acompanham a movimentação dos usuários, verificando sua permanência nas zonas de controle e realizando contatos telefônicos com aqueles que cometem algum tipo de violação. Um funcionário da Spacecom é encarregado da supervisão do sistema, instalação e manutenção do software, além da assistência técnica dos equipamentos. Na parede frontal, um monitor de 120 polegadas exibe um plano cartográfico composto por fotos de satélite, sobre o qual são assinalados os pontos em deslocamento que indicam as posições das pessoas rastreadas em todo o estado.
56O contraste entre a precariedade do lugar e a modernidade dos recursos utilizados chama a atenção. Os aparatos tecnológicos que equipam a central são instalados e dispostos em um espaço com pouca ou nenhuma ventilação em pleno trópico maranhense. A base do sistema de monitoramento eletrônico do estado, fixada como terminal principal de controle e sensoriamento à distância e conectada ao Sistema de Posicionamento Global, é acomodada no interior de um edifício visivelmente debilitado, cercado por ruas esburacadas e mal pavimentadas, suscitando indagações a respeito da descompassada convivência entre a alta tecnologia instituída sob discursos e projetos de modernização e a reiteração do abandono das estruturas públicas no Nordeste brasileiro – mas não só lá. A disparidade é ainda mais gritante quando se leva em consideração as instalações penitenciárias da região. Como pensar os altos investimentos direcionados ao progresso tecnológico voltado à modernização do sistema penal maranhense, em concomitância à permanência de um parque carcerário arcaico e reprodutor de violências, tal como o que se apresenta e se mantém na ilha de São Luís? Como conceber a emergência e organização de uma sociedade de controle, fundada e orquestrada sob a égide do silício (Deleuze 2014), instalada nos escombros da terra de Pedrinhas?27
57Talvez seja essa a real face do projeto modernizador deflagrado pela sociedade de controle, erigida à perpétua sombra de velhas estruturas prisionais, cenário dos mais radicais maus-tratos e palco para a mutilação enfurecida dos corpos, exibidos como suplício revisitado e espetacularizado nos ávidos canais de comunicação e nas onipresentes redes digitais que escancaram ao público atônito os inevitáveis resultados de sua política penal: fratura exposta da penalidade neoliberal que faz coexistir avançados sistemas de teledetecção e geolocalização com a prolongada agonia de suas instituições de sequestro e de suas casas de tortura, ironicamente equiparadas às masmorras medievais pelos próprios ministros responsáveis.28 Distante da assepsia presumida e vendida nos programas de aperfeiçoamento das técnicas de punição, os novos aparatos de controle são implantados em meio à poeira persistente e anacrônica do sistema prisional brasileiro cuja violência intrínseca segue, contudo, em funcionamento franco e expansivo.
58É também de se notar a introjeção de instalações high tech de controle remoto sobre corpos e fluxos ao estilo smartcities, em meio à paisagem tropical maranhense. Na Central de Monitoramento do estado, funcionários da SEAP observam os deslocamentos de usuários monitorados nos pequenos vilarejos, matagais e igarapés que constituem a zona rural do Maranhão. As matas e planícies litorâneas tornam-se cenário cartográfico digitalizado, recortado em zonas de controle sobre a movimentação de suspeitos e condenados.
59Ao todo, 987 pessoas eram monitoradas em outubro de 2016 no Maranhão, onde os serviços de monitoração encontram-se em funcionamento desde 2014, ano em que se registra uma considerável expansão da política de monitoramento eletrônico no país, impulsionada pelos convênios firmados entre as administrações estaduais e o DEPEN no final de 2013 (Brasil 2015). O estado é uma das poucas unidades da federação que iniciaram a implementação da medida direcionando-a majoritariamente para o controle de indivíduos em situação de liberdade provisória, aplicada antes da sentença condenatória, no âmbito da Lei Federal n.o 12.403/2011. Cerca de 810 usuários e usuárias encontravam-se nessa situação no Maranhão em 2016. Tratava-se de uma tentativa de redução dos altos índices de prisão provisória, que em 2014 constituía 66% da quantidade total de indivíduos encarcerados no estado (Brasil 2014). Todavia, o monitoramento como medida cautelar, aplicado sob o pretexto da periculosidade do suspeito ou da garantia do devido processo legal, não deixa de figurar aqui como pena antecipada submetida à lógica securitária. Ao invés de aguardar a sentença em liberdade, o sujeito considerado suspeito passa a ser monitorado sem que haja contra ele qualquer condenação.
60Assim como na maior parte das licitações firmadas no país, o mecanismo de monitoração utilizado no Maranhão é o SAC24. O sistema é constituído por um conjunto de hardware e software formado por diferentes modelos de equipamentos a serem portados pelos usuários e um aplicativo de monitoração disponível via web para os terminais de controle. “Com isso, a instituição tem acesso aos dados de monitoramento de qualquer terminal conectado a Internet em tempo real”.29
61O aparelho portado pelo usuário pode constituir-se de uma ou duas peças. Na versão de peça única, as informações relativas ao posicionamento da pessoa monitorada e os alarmes de violação são transmitidos pela tornozeleira ao software de monitoramento por meio de sinais GPS (Global Positioning System) e GPRS (General Packet Radio Services). O equipamento é dotado de LED de sinalização que indicam a falta de comunicação GPRS, ausência de sinal GPS, baixos níveis de bateria e chamadas para contato eventualmente realizadas pelos monitores. Além disso, a tornozeleira emite alertas sonoros e vibratórios quando registra perda de sinal GPS, bateria reduzida, contatos de monitores, ou ainda quando são detectados descumprimentos às regras relativas às áreas de inclusão e exclusão. A cinta de fixação no tornozelo é revestida por fibra óptica para detecção de tentativas de rompimento. O aparelho fixo ao corpo pesa em torno de 200 gramas.30
62Já o equipamento de duas peças é formado por uma tornozeleira que emite sinais de radiofrequência a uma Unidade Portátil de Rastreamento (UPR) que armazena a bateria do sistema, além dos transmissores GPS. Ambos os aparelhos devem ser mantidos a uma distância mínima programável, a qual, caso seja ultrapassada, um alarme de violação é acionado. Na versão de duas peças, os LED e alarmes sonoros são emitidos pela UPR que transmite as informações de localização e os alertas de violação para o software instalado no terminal de controle.31
63O software de monitoramento SAC24 permite a visualização em tempo real da movimentação dos usuários. “Os pontos de localização podem ser plotados em um mapa, em fotos de satélite, ou ainda, em um mapa híbrido (fotos de satélites com as ruas)”.32 Por meio do aplicativo são definidas as zonas de controle para cada usuário, determinando as áreas em que a pessoa deve estar localizada conforme os horários estipulados pelo juiz. Caso seja detectada alguma violação, o software aciona um alerta, especificando a ocorrência. As possíveis violações são: ausência da área de inclusão, penetração em área de exclusão, término ou baixos níveis de bateria, perda de sinais GPS ou GPRS, rompimento do lacre ou danificação do aparelho. “O sistema armazena ainda todo o histórico do sentenciado, permitindo a geração de relatórios visando municiar as autoridades responsáveis. Acessos e atividades dos usuários do sistema também são armazenadas para fins de auditoria”.33
64Conforme relatado pelo servidor da Spacecom, que atua na central do Maranhão, a ocorrência de violações não implica necessariamente em consequências judiciais, mas indica padrões de conduta dos usuários, que serão reportados ao juiz por meio dos relatórios gerados pelo sistema para futuras avaliações e tomadas de decisão relativas à execução da pena ou ao cumprimento de medida cautelar. Uma ocorrência isolada de perda de sinal GPS, por exemplo, pode não acarretar maiores consequências. Entretanto, se o software registra a frequente ausência de sinais de um aparelho, o padrão de mau uso deverá ser levado em consideração pelo magistrado responsável. Ainda segundo os operadores da central, chamadas telefônicas são realizadas pelos servidores aos usuários quando alguma desobediência às regras é detectada no sistema. “Se ele não atende, a gente emite um alerta na tornozeleira que vai vibrar e acender a luz roxa. Como o alerta de vibração perturba, normalmente ele já liga de volta aqui pra central” (servidor da SEAP, Central de Monitoramento de São Luís).34
65As centrais estaduais, assim como os terminais situados nas unidades prisionais, são interconectadas à central da Spacecom, localizada na cidade de Curitiba. Em algumas unidades da federação, o monitoramento é realizado diretamente pela central da empresa, que notifica as autoridades responsáveis pela execução penal quando um alarme de violação é gerado. É o caso do Rio de Janeiro, por exemplo, em que os equipamentos são instalados e inspecionados na base da Superintendência de Inteligência do Sistema Penitenciário (SISPEN), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP-RJ), mas as atividades de supervisão são realizadas na central da Spacecom. No estado de São Paulo, em que a monitoração é direcionada exclusivamente para o controle de saídas temporárias e a realização de trabalho externo no regime semiaberto, o controle é realizado por agentes penitenciários em computadores instalados nas unidades prisionais e supervisionado pela central da Spacecom. No Maranhão, assim como no Ceará, a monitoração é feita em uma central gerida pelo Estado, que conta com o suporte técnico de um servidor da Spacecom in loco e da própria central da empresa, em Curitiba.
66A opção pelo estabelecimento de parcerias público-privadas (PPP), em seus mais variados modelos, baseia-se no compartilhamento das atividades de controle junto aos agentes privados que fornecem equipamentos, serviços e conhecimento técnico direcionados à operacionalização do monitoramento. A participação crescente do capital privado na elaboração e gestão da pena levanta discussões a respeito do esfacelamento do Estado de Direito e da salvaguarda de seu monopólio do uso legítimo da força, em processo avançado de deterioração. Questiona-se a legitimidade jurídica, política e moral implicada pela atividade de extração de um lucro econômico mediante o exercício privatizado do poder de punir. Função secular do Estado moderno e sustentáculo fundamental de sua edificação, a punição passa cada vez mais a ser produzida e gerida por agentes híbridos constituídos pelas parcerias público-privadas. Para além do debate valorativo, o processo de mercantilização do castigo tem levado à infalível ampliação do mercado consumidor da pena, fomentada pelas exigências de um contingente populacional mínimo – que tende sempre ao máximo – submetido ao aparato penal para que se assegure um coeficiente de produtividade e crescimento econômico da indústria público-privada de controle do crime (Christie 1998; Minhoto 1997, 2002; Davis 2003; ACLU 2011).
67Isso não significa, contudo, que o Estado esteja se ausentando da tarefa de punir. O crescimento da atuação de empresas particulares no controle do crime indica mais uma readequação do que uma retração do Estado na área penal. As agências estatais assumem o papel de contratante e cogestor, definindo as diretrizes a serem perseguidas por meio de parcerias, acordos de cooperação e gestão compartilhada do aparelhamento punitivo junto à iniciativa privada. Além disso, o Estado permanece como agente encarregado da seleção e captura do público a ser encaminhado às instituições penais. Em contrapartida, além do fornecimento de estrutura e equipamentos, companhias particulares disponibilizam serviços e expertise voltada à gestão dos programas penais.
68No caso do monitoramento eletrônico, as diretrizes políticas de sua aplicação têm sido perseguidas, não sem dificuldades, pelo DEPEN junto às secretarias estaduais de Justiça e Administração Penitenciária. Entre 2013 e 2017, o Poder Executivo nacional procurou estabelecer padrões de gerenciamento das centrais e utilização dos equipamentos, em uma tentativa de instituir protocolos de operação. O lançamento, em 2017, do “Manual de Gestão para a Política de Monitoração Eletrônica de Pessoas” indica a investida do DEPEN na elaboração de modelos nacionalmente padronizados de administração da medida. Contudo, o fato de as políticas penitenciárias serem de responsabilidade dos estados, associado à partilha das atividades de supervisão entre os agentes públicos e privados encarregados dos serviços de monitoração, resulta em uma descentralização da política de monitoramento e em uma notável ausência de padrões operacionais nos procedimentos administrativos da medida, uma vez que cada unidade federativa possui suas próprias formas de gestão e cada empresa desenvolve os seus sistemas de monitoramento.
69No sistema SAC24, a Spacecom monitora não exatamente o indivíduo, mas o número de identificação do aparelho que ele porta. A identidade dos usuários é restrita às administrações penitenciárias. Cada equipamento é identificado por uma cifra gerada pelo sistema que codifica os dados do indivíduo, disponíveis somente nos terminais de controle acessados pelos servidores das secretarias estaduais ou pelos agentes prisionais. De acordo com a empresa, “o sistema de transmissão e armazenamento de dados é criptografado, o que garante a segurança das informações”.35 A partir do número de identificação fornecido pela Spacecom, a administração penitenciária acessa os dados cadastrados de seu usuário: nome completo; idade; foto; endereço; telefone; artigo no qual foi enquadrado; natureza jurídica do monitoramento (cautelar, penal ou medida protetiva); vara criminal onde se localiza seu processo; número de matrícula em instituição penal e o número de seu aparelho de monitoração.
70Na perspectiva do sistema, portanto, o indivíduo monitorado é constituído por seus dados pessoais e jurídicos, administrados pelo Estado, e pelo número de seu equipamento de monitoração, supervisionado pela empresa contratada. As atividades de rastreamento realizadas pela empresa são efetuadas sobre o aparelho, cuja conexão com seu portador é restabelecida nas bases de dados das agências penitenciárias estatais. Quando se fala, portanto, em “pessoa monitorada”, fala-se necessariamente no conjunto de dados relativos ao indivíduo e ao aparelho a ele acoplado. Não há monitoramento sem esse conjunto. Se a conexão é desfeita, a supervisão é interrompida.
71É nessa relação que os processos de subjetivação implicados pelas práticas de controle eletrônico concorrem com um movimento correlato de dessubjetivação, na medida em que o elemento controlado é constituído por uma composição fragmentada de informações de identificação referentes ao indivíduo e ao aparelho ao qual ele corresponde. O que faz a “pessoa monitorada” não é a sua unidade enquanto sujeito, mas a composição de dados pessoais, jurídicos e digitais relativos a ele e ao seu equipamento.
72Da mesma forma, o que constitui a sua conduta já não é apenas o seu comportamento individual, mas os circuitos de comando e controle estabelecidos entre o sistema tecnológico de supervisão e o posicionamento físico a ser supervisionado. É o intercâmbio de informações e mensagens sinaléticas entre emissores e receptores técnicos e orgânicos – alarmes luminosos, sonoros e vibratórios; percepções táteis, visuais e auditivas – que deve definir os modos de condução de si da “pessoa monitorada”. É essa a corrente que promove a sua dessubjetivação, estabelecendo a composição híbrida entre o sistema de controle e o sujeito controlado (Haraway 2009).
73Se, por um lado, o monitoramento eletrônico veicula mecanismos de subjetivação fundamentados na fabricação do indivíduo autocontrolado; por outro, um processo de dessubjetivação é efetivado pela interrupção da relação inspetor-inspecionado, vigia-vigiado, aniquilando a dicotomia sujeito-objeto que caracteriza os mecanismos de observação e intervenção fundados na alteridade entre o aparato que pune e o elemento punido. A fixação da máquina-prisão no corpo-prisioneiro desfaz a separação entre os termos “sujeito” e “objeto”, remetendo para o que Deleuze e Guattari (1997) chamaram de servidão maquínica. O usuário monitorado já não é mero sujeito fabricado, apartado da máquina que o fabrica, mas torna-se parte componente, interface de entradas e saídas que permitem as conexões de um agenciamento específico. A responsabilização individual produzida pela governamentalidade neoliberal exige o movimento paradoxal de esfacelamento do indivíduo, tornado engrenagem conectora, amálgama do acoplamento entre o sujeito-vigia e o objeto-vigiado, agora convertidos em peça única.
74A vigilância enquanto relação de observação e intervenção entre termos apartados é finalmente suprimida. Já não há mediação do vigia como elemento alheio, fixo em seu posto de inspeção. Já não há ponto central no qual o controle possa ser localizado. O diagrama panóptico é desfigurado, redimensionado em detecção móvel, fragmentada e pulverizada, sem centro, sem rosto, acoplada ao corpo do elemento inspecionado. O corpo-preso converte-se em corpo-prisão cujo agente prisional identifica-se ao prisioneiro em um processo concatenado de constituição e desmantelamento do indivíduo. Já não pode haver, dessa maneira, segregação efetiva entre o aparato punitivo e o elemento punido. O ideal da penalidade neoliberal seria, portanto, o fim da alienação entre a pena e o sujeito penalizado?
O corpo marcado
75 Em Marcados, a fotógrafa suíça Claudia Andujar expõe uma sequência de retratos de índios Yanomami com placas de registro numérico penduradas em seus pescoços. As imagens foram feitas entre 1981 e 1983, quando o território amazônico Yanomami já havia sido invadido pelos militares para a construção da rodovia Perimetral Norte, parte da campanha transamazônica iniciada em 1972 pelo governo Médici. Com a abertura da rota, as buscas por ouro, diamantes e estanho na região levaram ao desenvolvimento de áreas de exploração clandestinas e outras “não tão clandestinas” (Andujar 2016: 14). Paralelo às remoções forçadas e ao massacre de índios e trabalhadores, o contato entre as populações nativas e o homem branco desencadeou a contaminação em larga escala dos povos indígenas pelo vírus da gripe, malária e demais doenças (Brasil 2014).
76 Andujar acompanhou dois médicos responsáveis pela vacinação dos Yanomami, fotografando cada índio vacinado e registrando seus retratos em fichas cadastrais. Para fins de identificação, os homens, mulheres e crianças atendidos haviam de ser retratados com números sobre o peito, já que os Yanomami não possuem nomes próprios tal como os brancos os possuem. Os registros fotográficos eram inseridos no cadastro de saúde, junto a informações referentes à anatomia de cada indivíduo. As estranhas imagens de corpos indígenas numericamente marcados pelo trabalho de vacinação interpelaram a própria fotógrafa, cuja família também havia sido marcada por números de identificação antes de ser deportada e exterminada nos campos de concentração nazistas (Andujar 2016).
77 Na entrevista realizada com Sérgio, seu relato a respeito da marca impressa no corpo pelo aparelho de monitoração eletrônica sinaliza decorrências imprevistas que ultrapassam o estigma e o olhar discriminatório.
“A milícia36 aqui no Rio de Janeiro, se vê um cara de tornozeleira, enquadra. É bom que você nem frequente certos espaços de milícia com a tornozeleira, que aí você pode sofrer um mal. Eu já até travei uma conversa uma vez com um conhecido miliciano e ele falou, ‘Sérgio, a gente enquadra, tem que enquadrar’. Não é só que eles queiram enquadrar, mas no próprio bairro, quando veem que o cara é monitorado, tá identificado pelo Estado que ele é um criminoso. E aí, se for ladrão, vai sofrer uma represália. Se for homicídio, dependendo do caso, vai passar batido. Se for estuprador, nem pisa porque aí vai morrer. Então dependendo do crime e do contexto do crime praticado, ele pode permanecer ali ou não, ou pode até ser morto. Eu já vi uma situação dessa, de descobrir que o cara monitorado era Jack,37 estuprador, e os caras mataram. Eu vivo bem no meu bairro porque um miliciano do meu bairro foi preso comigo, é um puta amigo meu. Mas em outros espaços eu ia ter que desenrolar pra ficar. E sempre condicionado a alguém: ‘Sou amigo de fulano, de beltrano’. Cara a cara não vai. Não vai achando que tá passando batido porque não tá. A milícia vai te cobrar. Então se o cara tá de tornozeleira na área de miliciano, ele tá sujeito a uma série de coisas. Ele pode ser morto, pode sofrer esculacho, pode sofrer o que for, só por causa da tornozeleira.”38
78A marca identificatória do criminoso tem implicações diversas, variando conforme os espaços e as circunstâncias. Em determinadas áreas da cidade do Rio de Janeiro, pode acarretar no levantamento da ficha criminal do usuário monitorado, mediante os vínculos estreitos entre os grupos de milicianos que as controlam e a Polícia Militar, podendo resultar na execução do indivíduo marcado caso sua pena decorra da prática de um crime não tolerado, como o estupro ou o assassinato de um policial, por exemplo. De toda maneira, o risco de vida imposto pelas milícias é um fator a ser considerado por qualquer um que porte um aparelho de monitoração na capital fluminense. Sérgio prossegue:
“Tem um bairro de Jacarepaguá que eu não conheço ninguém, é de milícia aquilo lá. Às vezes eu pego um ônibus que passa por lá. Daí acontece que eu tô de bermuda e o ônibus foi por lá. Entra alguém dentro do ônibus e me vê de tornozeleira e acha que eu sou uma ameaça: ‘Desce’. Avisa a milícia no bairro: ‘Pô, tem um cara de tornozeleira dentro do ônibus, eu acho que ele vai assaltar o ônibus’. Os cara enquadra, não quer nem saber. Ou chega arrebentando na bala, porque tem essa potencialidade de violência, ou vai te enquadrar, vai te esculachar, vai puxar tua vida toda. Porque eles têm essa capacidade e têm essa legitimidade dentro desses espaços. E a sociedade vai aplaudir. Amanhã eu vou aparecer no jornal que “ex-presidiário é morto em área de milícia”. E o consentimento de geral vai ser: ‘Tava roubando’. Eu ia morrer à toa. E ninguém vai questionar, porque a própria tornozeleira vai legitimar a morte. Pode parecer estranho. Se eu morro com uma tornozeleira, a própria tornozeleira legitima a morte.”39
79Inserido em áreas específicas, o equipamento de controle tem por efeito colateral a identificação do sujeito executável, ao estampar o crime como marca visível na perna do criminoso. Tal como a máquina kafkiana que inscreve a sentença no corpo do sentenciado, a pulseira reitera ao condenado e à sociedade a verdade de sua condenação: “Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentar na própria carne” (Kafka 1998: 36). Aqui, o dispositivo de monitoramento oscila entre seu funcionamento biopolítico, destinado a produzir e conduzir circulações autogeridas, e uma inadvertida face tanatopolítica, direcionada à identificação da vida matável (Agamben 2002). “A tanatopolítica acontece quando um Estado assinala, marca ou circunscreve um grupo humano que está sob sua jurisdição para matá-lo” (Vítores 2012: 2). Refere-se à produção da vida indigna de ser vivida, conceituação sobre a qual se baseia o poder soberano de decidir sobre a morte (Agamben 2002).
80Não se pretende inferir daí que o Estado monitore para matar. O escopo dos programas de controle eletrônico penal fundamenta-se em princípios biopolíticos, e não tanatopolíticos. Seu programa consiste fundamentalmente em gerir e conduzir corpos em vida, e não em definir ou expor o indivíduo penalizado à morte. Contudo, em contextos particulares, governados por redes público-privadas de segurança que atualizam consideráveis traços de soberania, a marca fixada pelo aparelho de monitoração é utilizada como instrumento de identificação daqueles que devem viver e dos que devem morrer. O Estado marca o corpo cuja morte será definida pelos grupos de milicianos a ele vinculados, mas que o extrapolam, sustentados por práticas de confisco e extermínio. Entre o controle dos circuitos territoriais e a extração público-privada da vida, a marcação do corpo criminoso suscita decorrências não calculadas, ajustadas às dinâmicas de violência que se espraiam pelo país.
81No estado do Ceará, o acirramento dos confrontos entre grupos faccionais que disputam o controle de determinadas áreas urbanas tem apresentado algumas dificuldades aos operadores dos serviços de monitoramento nos momentos de aplicação da medida. Divididas em zonas pertencentes a facções inimigas, as áreas periféricas da Região Metropolitana de Fortaleza são os bairros onde habitam muitas das pessoas monitoradas, algumas delas ligadas a estes grupos. Entretanto, as regras de recolhimento domiciliar impostas pela monitoração não condizem, muitas vezes, com as necessidades de circulação colocadas pelos cenários de conflito, uma vez que a permanência em endereço fixo pode acarretar um risco de vida ao apenado. De acordo com o psicólogo da Central de Alternativas Penais de Fortaleza, há situações em que o indivíduo monitorado é perseguido por facções rivais e o seu recolhimento em domicílio pode representar uma ameaça. “Ele não pode ficar parado. Se ele tem um inimigo querendo matá-lo, ele não pode ficar na casa dele. Pra ele é impossível ficar com monitoração eletrônica. Se não ele morre”.40
82Por esse motivo, o juiz da 3.a Vara de Execuções Penais de Fortaleza relata a situação de um rapaz que preferiu retornar à prisão depois de um período que passou em regime domiciliar sob monitoramento:
“Eu recordo muito desse caso, mas eu não recordo qual foi a audiência. Ele chorou, pedindo para retornar pra dentro do presídio porque não suportava mais a idéia de que ali, ele estando fixo na residência, monitorado, sem poder sair dali, ele poderia vir a ser vítima de algum tipo de agressão por parte de algum inimigo dele. E aí ele pediu pra retornar pra dentro do presídio e a saída que eu encontrei pra ele naquele momento foi autorizar o retorno dele pra dentro do presídio e tirar o monitoramento. Muitas vezes, eu imagino, que é até o aspecto psicológico da coisa. Ele acha que tá sendo vigiado. Porque os nossos presos, como em todo o canto, a maioria é humilde. Mas eles mudam muito de residência, é impressionante. Como regra, eles mudam muito de residência, porque eu acho que é o medo, receio do inimigo.”41
83Por razões distintas, variando conforme os contextos, são consideráveis os impactos dos dispositivos de monitoramento nos cenários de conflito urbano nacionalizados pelas capitais brasileiras.
84Em São Paulo, alguns relatos indicaram que o uso de tornozeleiras, em determinado momento, tornou-se uma via de identificação do pertencimento ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Segundo Vladimir, monitorado em 2014 quando cumpria pena no regime semiaberto no interior do estado, os presos de unidades que pertencem ao PCC utilizavam a pulseira na perna direita, ao passo que aqueles que pertenciam a unidades da oposição,42 as facções inimigas, utilizavam na esquerda. “Cada facção coloca de um lado”,43 dizia ele. Pelo fato de já ter tido uma desavença com um dos “cabeças” do partido,44 Vladimir contou que usava o aparelho na perna esquerda, razão pela qual chegou a ser ameaçado, pouco antes de romper a tornozeleira:
“Faz mais ou menos dois anos, eu tava de saidinha, vindo lá do semiaberto de Sorocaba. A condução me levava até a capital. Eu tava indo pra Osasco, na casa do meu pai. Quando eu desci da condução, ali na Praça Azevedo Antunes, na Lapa, três irmãos do PCC já colaram em mim. Eles viram a pulseira na minha perna esquerda e vieram me cobrar. Me encurralaram contra um muro e começaram a desenrolar que tinham que me levar pra debater em outro lugar. Eu fechei os punho e falei ‘Ó, o que vocês vão fazer comigo vocês faz aqui mesmo. Eu não vou pra lugar nenhum com vocês, nóis desenrola aqui e agora’. Nisso tinha uma base da PM por perto, dessas unidade móvel da PM. Os polícia chegaram pra ver o que tava acontecendo e os caras saíram correndo. Expliquei pros PM que eu tava de saidinha, mostrei a pulseira e o documento que comprova a saidinha e eles me deixaram vazar. Na sequência, eu fui pra Igreja Nossa Senhora da Lapa. Cheguei lá, fiz minha oração, catei uma faca e cortei a pulseira. Deixei ela lá na igreja em gratidão ao Nosso Senhor.” (Vladimir, CDP Belém I)45
85Vladimir permaneceu foragido por cerca de um ano e meio antes de ser recapturado e enviado para o Centro de Detenção Provisória de Belém I, unidade destinada a prisão provisória mas que abriga presos condenados ao regime fechado por falta de vagas nas penitenciárias do estado. Sobre o uso do aparelho na perna esquerda ou direita, conforme o pertencimento ou não ao PCC, Natasha, presa no CPP de Butantã e monitorada em 2014 durante as saídas temporárias, reafirma: “Desde que tem essa pulseira é assim. O partido coloca em uma perna e a oposição na outra. Alguém começou isso de brincadeira e ficou”.46
86Na visão de Augusto, não se tratava de brincadeira:
“Eu não sabia disso, até que teve um dia que a gente saiu da colônia pra trabalhar lá no lixão de Mirandópolis. Lá perto, ia também trabalhar os presos monitorados de outra unidade de Mirandópolis, que é do PCC. Foi aí que eles começaram a apontar pra nóis e falar: ‘Ó lá! Os coisa! Ó lá! Os coisa!’ Daí eu fiquei pensando como é que os cara sabia que a gente era oposição e perguntei isso pro agente penitenciário que ficava lá com nóis. Daí ele disse: ‘Olha pra sua perna. Agora olha pra perna deles lá’. Foi aí que eu percebi, mano, que os cara tava tudo com a pulseira na perna direita, e nóis na esquerda. A ‘polícia’, junto com o PCC, marca nóis pra saber que nóis é oposição. Teve um preso que pediu pra ‘polícia’ colocar a pulseira na outra perna e o ‘polícia’ falou que não. Se recusou, porque quer que nóis fique marcado como coisa.”
87A perna em que a tornozeleira era instalada seria determinada, de acordo com Augusto, pelas articulações entre o PCC e os agentes prisionais das unidades de regime semiaberto, com a finalidade de identificar aqueles que pertenciam ao partido do crime e diferenciá-los de seus inimigos, os coisa. Aos membros do PCC, o aparelho instalado na perna direita teria como propósito a autoafirmação da identidade faccional e de seu pertencimento ao maior coletivo criminal do país. Aos coisa, a marca fixa na perna esquerda denotaria suas condições de inferioridade que os equiparam a vermes, como também são chamados os rivais do comando. Dos propósitos de supervisão remota, o dispositivo era convertido em sinal de identificação e diferenciação, a partir das relações estabelecidas entre o PCC e os agentes prisionais na operacionalização dos serviços de monitoramento em São Paulo.
88Para além do estigma goffmaniano, instrumento social fundado no descrédito e na inabilitação social (Goffman 1988), o corpo marcado refere-se aqui à autoafirmação identitária que habilita socialmente o indivíduo a ser reconhecido como membro pertencente a um determinado grupo, a partir da marca fixada pelo Estado. Não se trata da mera determinação de cima a baixo de uma identidade deteriorada pela estrutura sociopolítica que imprime no indivíduo o rótulo que o inferioriza, mas de um agenciamento coletivo, compartilhado entre o Estado, a empresa de monitoramento, a “facção criminosa” e o próprio indivíduo monitorado, que resulta na enunciação de uma informação que integra e constitui sua própria subjetividade e da qual o estigma é apenas um dos efeitos. Christian Kasper (2004) propõe a noção de desvio de função para descrever a utilização arbitrária de um objeto específico, a despeito de suas normas originais de uso. De acordo com o autor, um desvio de função é caracterizado como uma transgressão do uso de um determinado artefato, viabilizada por sua incorporação a um novo contexto e pela percepção de suas virtualidades. A utilização da pulseira como signo da identidade faccional aparece aqui como um uso imprevisto, no interior de uma relação de poder específica ao chamado “mundo do crime”, desviando-se da mera funcionalidade de controle penal originalmente atribuída ao dispositivo.
89De todo modo, agenciada ou não por grupos faccionais, desviadas ou não as funcionalidades do aparelho, a condição de prisioneiro estampada no corpo tem como decorrência previsível a conversão do indivíduo monitorado em alvo privilegiado da atenção policial, cujos controles presenciais somam-se ao rastreamento à distância. Diversos relatos sublinham a atração do olhar persecutório da polícia e de agentes de segurança privada, despertado pelo equipamento de monitoração.
“Todo o mundo fica te olhando. No mercado, o segurança ficava colado em mim. E chama atenção da polícia. Lá no meu bairro nem tem tanta polícia e começou a rondar quando me viram com a pulseira. Teve um dia que eu fui buscar minha filha na escola com isso. Foi horrível. A ronda escolar chegou em mim e depois apareceu uma pá de viatura e me enquadrou. Todo mundo ficava olhando, minha filha não entendeu nada, ficou supernervosa.” (Natasha, CPP Butantã, São Paulo)47
90O sujeito tido como perigoso que mobiliza precauções policiais pode agora ser reconhecido pela pena que ele ostenta. À anatomopolítica do delinquente se sobrepõe a identificação do criminoso pelo artefato tecnológico a ele acoplado: elemento maquínico coextensivo ao corpo que escancara sua individualidade e condição de prisioneiro.
91Dessa maneira, seja pela produção da vida matável, seja pela autoafirmação da identidade faccional, seja ainda pela circunscrição do indivíduo suspeito a ser acompanhado de perto pela polícia, o aparelho de monitoração imprime no corpo do apenado a marca da política penal, constituindo o processo produtivo da identidade criminosa. O signo que enuncia a verdade do crime no corpo-máquina criminoso é introduzido na semiologia política do conflito como dimensão positiva própria às tecnologias de poder e de construção da individualidade, ainda que essa individualidade seja exposta à morte ou à abordagem policial constante.
92O corpo marcado pelo dispositivo de monitoração reafirma a subjetividade criminosa inaugurada pela lei penal e pelo discurso criminológico, agora estampada no corpo como placa de registro identitário ou Magen David revisitado. Tal como o índio sem nome cuja identidade é numericamente fundada pela campanha biopolítica de vacinação subsequente ao massacre deliberado, ou como o povo uniformizado a ser enviado e eliminado nos campos de extermínio, a identidade do sujeito monitorado é politicamente construída pela marca escancarada pelo Estado que o devolve à sociedade como alvo de intervenção policial ou como vida nua exposta à morte. Entre bios e tanatos, o corpo marcado constitui um dos principais efeitos da aplicação do monitoramento eletrônico sobre aqueles cujo castigo converte-se em identidade.
93São estas, portanto, algumas das singularidades que caracterizam o uso e a aplicação dos dispositivos de monitoramento eletrônico e dos efeitos de sua marca nas metrópoles brasileiras. São estes alguns dos aspectos particulares que qualificam a integração entre o corpo monitorado e o dispositivo de monitoramento em nosso contexto. É aí que reside a relevância da pesquisa de campo e da observação direta, atentas às particularidades territoriais e temporais assumidas por um determinado dispositivo de poder. É também aí que se localiza a necessidade de se considerar os aspectos circunstanciais, muitas vezes inesperados ou imprevisíveis, que conformam a funcionalidade instável de uma dada tecnologia, fazendo com que ela escape de seu programa inicial. Muito além da mera supervisão penal, o monitoramento eletrônico de pessoas condenadas ou processadas pelo sistema de justiça é reconfigurado pela agência e interceptação daqueles e daquelas a quem ele é direcionado, fazendo com que a interface corpo-máquina seja constituída por uma inevitável relação de mão dupla.
94Não obstante, a compreensão das múltiplas funcionalidades assumidas ou atribuídas às tecnologias de poder exige a realização de um estudo pormenorizado das diferentes camadas que as constituem, dentre elas o seu conteúdo programático e epistemológico. Uma análise das formulações teóricas e enunciados científicos que fundamentam a elaboração e a aplicação dos dispositivos de monitoramento se faz necessária para que se compreenda seus diferentes atributos e condições de funcionamento no interior da penalidade contemporânea. Ainda: a investigação das interações entre os elementos mecânicos e os componentes orgânicos que constituem o monitoramento eletrônico requer um exame dos saberes e racionalidades que articulam e viabilizam essas interações, perfazendo a dimensão epistêmica da conexão entre o corpo e a máquina. A relação entre os elementos biológicos e tecnológicos que compõem o monitoramento eletrônico não se estabelece sem que tenha sido concebida a partir de um conjunto de fundamentos teórico-discursivos. Tendo isso em vista, o capítulo a seguir promove um recuo histórico e um deslocamento geográfico em direção à gênese política e científica do dispositivo em questão. Com o propósito de identificar as diversas finalidades penológicas que o constituem e a conjuntura política de sua emergência, o próximo capítulo dedica-se ao nascimento dos dispositivos de monitoramento eletrônico na superpotência penal estadunidense.
Notes de bas de page
1 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016. Todos os nomes próprios citados nesta tese são fictícios, exceto os de autoridades públicas.
2 Entrevista realizada em 31 de agosto de 2015.
3 Poço, pote ou castigo são os nomes dados, no sistema prisional paulista, às celas reservadas a detentos que supostamente violaram regras de execução penal ou que entraram em conflito com a administração da unidade. Em geral, são pequenas celas superlotadas nas quais os presos são privados de banho de sol por dias, semanas ou até meses.
4 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
5 Registro de campo produzido em 20 de outubro de 2016 na Central de Monitoramento Eletrônico de São Luiz, Maranhão.
6 Paul Virilio analisa os modos pelos quais as liberdades são equacionadas no interior de uma engenharia política que contrapõe vetores de velocidade. As estratégias ligadas ao manejo do espaço em função do tempo são tomadas como chave analítica para o estudo das relações de poder nas sociedades modernas. O governo dos deslocamentos requer a concepção de técnicas de condutibilidade que regulem a passagem das coisas e dos corpos, facilitando ou dificultando os “cursos”, as “corridas”. Virilio utiliza a palavra grega dromos para designar velocidade, curso, corrida, deslocamento. O autor analisa as sociedades capitalistas como sociedades dromocráticas, pautadas pela lógica da velocidade como parâmetro de urbanização, arma de guerra e instrumento de poder (Virilio 1996).
7 Gilles Deleuze (2009: 294-298) desconstrói a oposição entre o virtual e o real, definindo o virtual como dimensão própria e imanente a um determinado objeto ou existência real. Para o filósofo, “o virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual” (idem), sendo a realidade composta necessariamente por uma dimensão virtual e outra atual. Mobilizado pelas discussões propostas por Deleuze, Pierre Lévy (1995: 10) compreende a realidade como um produto da virtualidade, mesmo que o virtual esteja desprovido de “presença física imediata”. Ao longo desta tese, serão discutidos alguns dos aspectos e efeitos da virtualização do castigo, assim como de sua atualização, tomando os trabalhos de Deleuze e Lévy como importantes referenciais analíticos.
8 O “lapso de benefício” é o tempo em que a pessoa condenada aguarda a progressão de seu regime penal.
9 Registro produzido a partir de entrevistas realizadas entre 23 de setembro de 2015 e 24 de junho de 2016.
10 Inicialmente, o edifício que hoje abriga o CPP de Franco da Rocha fora projetado para funcionar como um dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico do Juquery, localizado nas proximidades da unidade. Não é mera coincidência histórica, contudo, o fato de que boa parte dos presos daquela unidade sejam hoje diagnosticados com problemas de “saúde mental”, conforme me relatou a psicóloga responsável. Sobre as atuais interfaces entre práticas punitivas e psiquiátricas no estado de São Paulo, ver Mallart (2019).
11 A cidade de Franco da Rocha situa-se na Zona Norte da Região Metropolitana de São Paulo. Com cerca de 130 mil habitantes, o município abriga três Penitenciárias, dois Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, um Centro de Detenção Provisória, um Centro de Progressão Penitenciária e seis unidades de internação da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo para Adolescentes (Fundação CASA).
12 O último censo penitenciário indica que 64% das pessoas presas no Brasil se declaram negras, ao passo que a população total do país conta com 53% de pessoas que assim se consideram. A categorização realizada pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclui as pessoas “pretas” e “pardas” na categoria “negra”.
13 Para citar uma bibliografia elementar, pode-se destacar os trabalhos de Agamben (2002) a respeito do nazi-fascismo; Nikolas Rose (2007), sobre o desenvolvimento e transformações no saber médico; e Michael Hardt e Antonio Negri (2000), a respeito das atuais metamorfoses nas relações sociais e produtivas alavancadas pelo avanço do capitalismo de império.
14 Saidinha é como os presos e presas denominam as saídas temporárias no regime semiaberto. Elas não excedem sete dias cada uma e são autorizadas cinco vezes ao ano, nas datas comemorativas de Natal/Ano Novo; Páscoa; Dia das Mães; Dia dos Pais; Finados.
15 Carta de Deivid, remetida pela intermediação de sua esposa, Irene, entrevistada no dia 27 de agosto de 2016.
16 Conversa informal registrada a partir de pesquisa de campo no CPP do Butantã, realizada no dia 14 de abril de 2016.
17 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2016.
18 Idem.
19 Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
20 Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
21 Na diferenciação entre dispositivos disciplinares e dispositivos de controle, Deleuze (1992: 225) afirma que “os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”.
22 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
23 Observa-se, nesse sentido, a emergência e deflagração de saberes criminológicos que tomam o infrator como um agente calculista que empreende sua conduta pautado em escolhas racionais orientadas por avaliações e prognósticos de custo-benefício. “Baseada em teorias como a da rational choice, tal concepção insiste na ideia de que os delinquentes calculam suas ações e de que o crime é um aspecto trivial da existência cotidiana, um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado” (Alvarez 2014: 57). O Homo criminalis dá lugar ao homo oeconomicus (Foucault 2008).
24 Entrevista realizada no dia 27 de agosto de 2016.
25 Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
26 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
27 O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, situado na cidade de São Luís, ganhou visibilidade a partir do ano de 2010, quando 18 presos foram mortos em uma rebelião eclodida em decorrência da superlotação, da má qualidade da comida e da pouca quantidade de água fornecida aos internos. No ano seguinte, uma nova rebelião resultou na decapitação de três presos, além de demais mutilações. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) documentou em relatório (Conselho Nacional de Justiça 2013) a morte de mais de 60 presos no complexo. Ver: G1, “Sobe para 18 total de presos em rebelião no MA”. Disponível em http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/11/sobe-para-18-total-de-presos-mortos-em-rebeliao-no-ma.html; Última Instância, “Decapitações no Maranhão não são novidade”. Disponível em http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/68412/decapitacoes+no+maranhao+nao+sao+novidade+diz+oab.shtml; Folha de S. Paulo, “Presos filmam decapitados em penitenciária no Maranhão”. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml (último acesso em fevereiro de 2017).
28 Em novembro de 2015, o então ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, definiu o sistema carcerário brasileiro como “masmorras medievais” em entrevista coletiva à imprensa nacional. A declaração proferida pelo principal gestor do sistema de justiça causou um considerável alvoroço nos meios de comunicação e fóruns acadêmicos.
29 Spacecom, “Sistema SAC24 – Dispositivo de Peça Única”. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=1p (último acesso em fevereiro de 2017).
30 Idem.
31 Spacecom, “Sistema SAC24 – Dispositivo de duas peças”. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=2p (último acesso em fevereiro de 2017).
32 Spacecom, “Sistema SAC24 – Software de Monitoramento SAC 24”. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=sac24 (último acesso em fevereiro de 2017)
33 Idem.
34 Registro produzido a partir de pesquisa de campo, realizada em 20 de outubro de 2016.
35 Spacecom, “Sistema SAC24 – Apresentação”. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon (último acesso em fevereiro de 2017).
36 Fortalecidas no decorrer da última década, as milícias do Rio de Janeiro controlam determinados territórios da cidade e do estado, sendo mantidas pela imposição de taxas obrigatórias a moradores e comerciantes locais ou pela aplicação de monopólios coativos sobre determinados produtos, serviços e estruturas (Cano e Duarte 2014). Geralmente, são chefiadas por policiais ou ex-policiais motivados pelo lucro pessoal e pelo combate a grupos narcotraficantes. Segundo Sérgio, “a relação da milícia com a Polícia Militar aqui no Rio de Janeiro é uma só, ela funciona como uma só. Policiais trabalham na milícia, ás vezes são os que comandam ou prestam segurança e deixam funcionar. É um meio muito seguro de garantir dinheiro, porque com o tráfico você tem que ficar trocando tiro, tem que ficar fazendo arrego. Com a milícia não. Com a milícia, o dinheiro chega na mão numa boa. E aí tem o dinheiro da vã, tem o dinheiro da rede clandestina de instalação de TV a cabo, tem internet agora também, tem o gás, tem a porra toda. Em geral, são policiais ou ex-policiais que atuam na milícia. E pessoas comuns também. Tem policial militar que é miliciano, tem policial civil que é miliciano, tem militar da Defesa que possa ser miliciano. Mas, em geral, a Polícia Militar é a que tem mais gente envolvida”. De acordo com Cano e Duarte (2014: 331), “o miliciano é simultaneamente agente público e privado, jogando com essa ambiguidade”. Mais recentemente, as atividades das milícias têm se estendido aos domínios da política institucional, reveladas por denúncias de ameaças a militantes ligados à defesa dos Direitos Humanos, ligações com chefes de governo e pela participação no assassinato da vereadora Marielle Franco, em fevereiro de 2018.
37 Jack é a forma como são designados os indivíduos condenados por estupro ou violência sexual.
38 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
39 Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
40 Entrevista realizada em 4 de julho de 2017.
41 Entrevista realizada em 3 de julho de 2017.
42 Oposição é como o PCC designa seus grupos rivais, que podem também ser referidos como coisa ou vermes.
43 Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, em 10 de maio de 2016.
44 Partido, quinze, comando, família são alguns dos nomes que designam o Primeiro Comando da Capital.
45 Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, em 24 de maio de 2016.
46 Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, em 13 de maio de 2016. Tal informação foi, no entanto, contestada por outros interlocutores e interlocutoras com quem mantive contato. Maria, por exemplo, que também foi monitorada quando cumpria pena no semiaberto de Butantã, quando questionada a respeito da utilização da tornozeleira na perna direita ou esquerda, conforme o grupo faccional de pertencimento, foi taxativa: “Mentira. Não tem nada disso”. Outras pessoas entrevistadas também disseram que não sabiam nada a respeito. Outros, entretanto, confirmaram a informação. Ao que os relatos indicam, isso se deu nos anos iniciais de implementação das tornozeleiras em São Paulo.
47 Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, em 13 de maio de 2016.
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