Apresentação
p. 19-24
Texte intégral
“O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas ‘substitutivas’, ao menos para a pequena delinquência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa certas horas.”
Gilles Deleuze (1992: 219-226)
1O monitoramento eletrônico de pessoas condenadas ou processadas pelo sistema de justiça tem sido discutido e implantado como parte das políticas criminais contemporâneas em diversos países. Tal monitoramento consiste no uso de equipamentos transmissores, atrelados aos corpos das pessoas controladas, que permitem vigiar, em meio aberto, o posicionamento desses indivíduos, por meio de tecnologias de radiofrequência ou de rastreamento via satélite. Discutem-se, com frequência, questões doutrinárias em relação a esse uso da vigilância eletrônica no campo penal, seus efeitos em termos de expansão de certa cultura do controle na atualidade, sua articulação com dinâmicas concretas no âmbito da punição contemporânea, como o crescimento do encarceramento, entre muitos outros aspectos. No Brasil, o monitoramento eletrônico no âmbito da justiça criminal foi possibilitado pela aprovação, em 2010, da Lei Federal n.o 12.258.
2A pesquisa de Ricardo Campello, apresentada agora em livro, ao investigar o monitoramento eletrônico no Brasil, não perde de vista essas múltiplas questões, mas desenvolve um olhar sociológico original acerca do emprego desse artefato, ao mesmo tempo sociotécnico e político, nova metamorfose nos métodos punitivos na contemporaneidade. Michel Foucault apresenta uma noção que ajuda a compreender a abordagem peculiar de Campello em relação ao monitoramento eletrônico: a de dispositivo. Sobretudo no assim chamado momento genealógico de sua trajetória, Foucault multiplica as caracterizações a partir deste termo: dispositivos de poder, dispositivos disciplinares, dispositivos de saber, dispositivo da sexualidade, etc. E um conjunto de elementos descritivos por meio dela se organizam: trata-se de descrever a rede de relações estabelecidas entre elementos heterogêneos – discursos, instituições, propostas arquitetônicas, leis, regulamentos administrativos, enunciados filosóficos, científicos, morais etc. –, que se definem a partir de gêneses específicas e com nexos de diversas naturezas, ao buscarem responder a determinados desafios históricos, mas perpetuamente reconfiguradas em termos estratégicos (Foucault 1988; Castro 2009). Abordar o monitoramento eletrônico como um dispositivo implica, deste modo, perseguir essa descrição complexa, contextualizada, mas que ao mesmo tempo revela padrões de conexões e de desdobramentos em determinadas relações sociais de poder.
3Tendo em vista esta intuição analítica, o leitor é convidado a acompanhar as múltiplas dimensões sociais afetadas por esse dispositivo, quer seja em termos de discussão e de implementação da legislação que dá suporte legal e institucional à nova tecnologia; quer seja do crescimento de um mercado de serviços de vigilância e de proteção, no qual o monitoramento eletrônico está incluído; ou do funcionamento dos aparatos burocráticos de monitoramento, em diferentes regiões do país, e dos efeitos produzidos nos indivíduos monitorados e nas suas interações com os demais na vida cotidiana.
4Deste modo, ao longo dos capítulos do livro, diferentes dimensões do dispositivo de monitoramento eletrônico são dissecadas e o leitor pode acompanhar detalhadamente, graças à criatividade do autor ao empregar diversas metodologias de pesquisa – análise documental, observação direta, entrevistas, dados quantitativos acerca dos indivíduos monitorados no país, etc. –, como as camadas estão dispostas e se projetam em direções ora convergentes, ora divergentes. E os efeitos perversos e os danos causados pelo emprego da tecnologia são igualmente descritos e não aparecem como nada desprezíveis.
5O caminho da Lei Federal n.º 12.258/10, que autoriza o monitoramento eletrônico de condenados no Brasil, é retraçado, juntamente com outros aspectos da implementação de tal política, que paulatinamente passa a ser aplicada em milhares de pessoas no país. Já fica patente, nesta discussão, um primeiro paradoxo pois, ao longo da discussão da nova lei, destacava-se o “potencial desencarcerador” da medida, o que não necessariamente se efetivou, pois a expansão do monitoramento, nos anos subsequentes, não se traduziu em queda dos índices de encarceramento. Assim, a suspeita levantada pela investigação é a de que o monitoramento estaria sendo aplicado no país como elemento complementar ao cárcere, ao não refrear, mas sim ampliar e intensificar os controles penais.
6É certo que o monitoramento eletrônico passa a mobilizar no país uma rede de burocratas da justiça, de agentes do mercado, de profissionais técnicos, de operadores do sistema prisional, ao colocar em funcionamento a maquinaria da vigilância remota. Campello segue os artefatos, discursos e atores em diferentes estados do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão. Sua observação e análise surpreendem as insuficiências, as falhas e as correções de rota que, na verdade, viabilizam a reprodução do conjunto do dispositivo. A curiosa observação realizada em Fortaleza, no Ceará, de um caso de bloqueio do sinal da tornozeleira de um monitorado, em que operadores do Direito, pouco familiarizados com as tecnologias empregadas, ficam reféns da explicação dos técnicos em informática para decifrar o ocorrido, é um dos exemplos, presentes ao longo do texto, da complexidade do dispositivo, bem como de suas opacidades.
7Por sua vez, a dimensão do mercado de equipamentos de vigilância, que cresce no país, igualmente é explorada. Com o crescimento do encarceramento, o castigo passa a ser um negócio cada vez mais rentável e o avanço de instrumentos e de programas de monitoramento eletrônico animará políticos e empresários da área da segurança, interessados nas oportunidades de lucro que essa nova dimensão do dispositivo irá propiciar no país. Como afirma o autor, uma nova “janela de oportunidades” se abre e o mercado local estará apto a fornecer armas sofisticadas para a guerra declarada contra o crime e pela manutenção da ordem, dentro e fora das prisões, guerra essa que todos sabem que produz uma infinidade de mortos no cotidiano da vida brasileira.
8Em contrapartida, a gigantesca burocracia da justiça criminal busca dominar a deriva tecnológica estimulada pelo emprego da tornozeleira eletrônica, mas não sem percalços, como exemplificado na cena já citada do bloqueio de sinal observado na Célula de Monitoramento Eletrônico do Ceará. Independentemente da regulamentação legislativa e da ação dos operadores do Direito, o funcionamento tecnológico dos sistemas de rastreamento aparece como mais uma “black box”, revestida de semântica própria e de meandros técnicos insondáveis para os leigos. A inversão de hierarquias, a partir da qual técnicos acabarão conduzindo aspectos do cumprimento da pena dos monitorados, é mais um dos paradoxos desvelados pela pesquisa.
9Mas como reagem os monitorados, afinal a clientela do dispositivo? Campello, justamente, abre a investigação com a fala desses monitorados, mas pode-se considerar que a experiência de ser vigiado perpassa toda a investigação desenvolvida e é uma espécie de fio de Ariadne que, se não revela o sentido de todo esse labirinto de tecnologias, burocracias e mercadorias, talvez revele justamente a falta de sentido de toda essa dinâmica. Como que no centro do labirinto, é no corpo do monitorado que as múltiplas camadas do dispositivo se sobrepõem e produzem aquilo que é sempre o resultado de qualquer punição: o sofrimento. São os efeitos materiais da pulseira eletrônica que literalmente ganham corpo: a vibração, a mudança de cor, o calor produzido pela tornozeleira atrelada ao corpo; a visibilidade perversa que, no contexto muito particular do assim chamado mundo do crime no Brasil, coloca o monitorado como alvo de milícias ou de facções; as incontornáveis resistências, mas às vezes igualmente paradoxais, como a do monitorado, no Rio de Janeiro, que terminou por construir um muro ao redor de sua residência para evitar que os vizinhos percebessem que ele estava usando a tornozeleira.
10Enfim, a detalhada investigação realizada e minuciosamente descrita descortina ao leitor algumas das múltiplas dimensões dessa experiência pouco conhecida – e que no Brasil só ganhou visibilidade, claramente distorcida, com a malfadada operação Lava Jato – acerca do monitoramento eletrônico no âmbito da justiça criminal. É legítimo, sem dúvida, a partir daí, retomar os questionamentos tradicionais, em relação ao papel do monitoramento na política criminal, seus efeitos no âmbito do encarceramento e mesmo como uma das opções disponíveis no âmbito das práticas e instituições punitivas na contemporaneidade. Mas dificilmente será possível ficar indiferente ao sofrimento daqueles que experimentam tal medida na situação de monitorados, uma vez que este sofrimento não é um simples resto, resíduo ou sobra de certas políticas abstratas, mas sim aquilo que se busca deliberadamente ao longo de todo o labirinto.
Auteur
Universidade de São Paulo
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