Capítulo 2. A literatura popular entre o oral e o escrito
p. 19-21
Texte intégral
1Quando se aborda o tema da literatura dita popular, as apreciações dicotómicas tendem a prevalecer condicionando fortemente o campo de análise. Popular/erudito, oral/escrito são os termos mais frequentes do sistema de oposições que enformam as reflexões sobre estes temas.
2Frequentado desde os finais do século XVIII pela cultura erudita, o terreno da “criação popular” é, no entanto, tão dificil de isolar desde esta época como, por razões diferentes, o foi desde o século XVI ao século XVIII.
3Mas se a nitidez das fronteiras que separariam de forma estanque o erudito do popular têm resistido mal à critica mais recente (Almeida 1991) a oposição oral/escrito permanece como um baluarte quase inexpugnável.
4Sem negar a pertinência da delimitação de dois territórios senão oponíveis pelo menos contrastados, deve sem dúvida encarar-se a existência de um terceiro território de intertextualidade onde oral e escrito se combinam de forma matizada e muitas vezes se sobrepõem.
5O terreno onde esta combinação é mais imediatamente apreensível é sem dúvida o da literatura de cordel.
6Categoria tida por específica da literatura popular, a literatura de cordel constitui, como se sabe, um género pouco homogéneo a que só determinadas características de impressão e circulação conferem unidade. Erradamente ela é muitas vezes separada da literatura oral, separação justificada pela natureza de um suporte que permite uma transmissão sem recurso à memorização e onde, por isso mesmo, a expressão oral seria secundária.
7No entanto, as práticas que envolvem a circulação da literatura de cordel desmentem em grande medida esta separação. Ainda que não pretenda discutir directamente esta questão, o clássico estudo de Julio Caro Baroja (1990) fornece um grande número de exemplos que servem uma reflexão aprofundada sobre a indeterminação entre oral e escrito na literatura de cordel particularmente nítida nas composições em verso. Composições impressas, mas que são também muitas vezes cantadas, ou simplesmente ditas, por vendedores e outros agentes da circulação.
8Ocupando-se largamente dos romances tradicionais, cuja inspiração se encontra muitas vezes na “literatura culta”, Caro Baroja trata também exaustivamente outros géneros ficcionais ligados a acontecimentos coevos e quotidianos, nomeadamente crimes, roubos, mortes, também eles versificados e vendidos em pliego suelto por vendedores ambulantes e outros agentes especializados.
9Quando nos debruçamos sobre a rica tradição do cordel brasileiro, ou mais concretamente nordestino, a situação que se nos depara não é muito diferente. Objectos versificados integram um repertório rico e variado, onde encontramos a mesma fusão entre oral e escrito que se nos depara nos romances peninsulares. Fusão patente nas práticas de circulação desses mesmos objectos, apregoados e ditos nas feiras e mercados rurais e urbanos por vendedores que podem ou não confundir-se com os autores, mas que têm sempre atrás de si máquinas de produção cada vez mais importantes, cujas oficinas se situam muitas vezes nos principais núcleos urbanos da região (Slater 1984).
10O universo que recobre a forma poética da décima, cuja expressão é hoje em dia particularmente forte a sul do Tejo, constituiu um terreno privilegiado para observar este género de combinação.
11Unificada por umas certas características formais de cujos cânones se falará mais adiante e pela prática da oralidade expressa na performance individual dos “dizedores”, a décima configura um território textual extremamente rico.
12Em primeiro lugar, pelo facto de as décimas ditas, ou mais propriamente rezadas, circularem igualmente em folhetos escritos pelo menos desde os princípios deste século.
13Em segundo lugar, pela inspiração na cultura escrita de alguns desses objectos de que o melhor exemplo nesta antologia se encontra na composição intitulada “Um dia que eu estava apático”, que faz inequivocamente pensar nas ladainhas e nos “latinórios” estudantis que transformam textos eruditos em objectos de ironia e escárnio.
14Sem ignorar os complexos problemas de classificação que a literatura oral e a literatura de cordel comportam, optou-se aqui por uma classificação bastante simples. Como é perceptível, deu-se primazia a dois critérios principais: um primeiro que permite ilustrar a diversidade estilística, dentro e fora do cânone geral de décima, que percorre a poesia popular do Sul, e um segundo que permite configurar essa mesma poesia como lugar de memória, particularmente (mas de modo nenhum exclusivamente) sensível ao registo e à transmissão da memória social.
15Ainda aqui não convém, no entanto, que nos deixemos cair em visões simplificadoras. Considerando o que ficou dito sobre as relações entre oral e escrito que a décima configura, é de admitir que certas composições, como, por exemplo, a que se intitula “Marechal Duque de Saldanha” tenham origem letrada e resultem de uma elaboração de dados históricos conhecidos por via escrita e até, provavelmente, na escola.
16Produtos de uma sociedade onde a cultura oral mantém amplos direitos, mas que não está de modo algum isolada do terreno da cultura escrita, a décima alentejana aparece como um produto híbrido que traduz antes de mais a dialéctica da escrita e da oralidade, assim como a complexidade de uma cultura habitada por pulsões contrastadas que não deve nem pode ser abordada a partir de sistemas de oposição redutores.
Bibliographie
Almeida, Miguel Vale de (1991), “A décima e o dezedor”, Portugal Moderno. Tradições (Enciclopédia Temática), pp. 149-151, Lisboa, Pomo.
Caro Baroja, Julio (1990), Ensayo sobre la literatura de cordel, Madrid, Istmo.
Slater, Candace (1984), A Vida no Barbante. A Literatura de Cordel no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Auteur
Professora do ISCTE
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