Prefácio: Os anos 1950 desde o Brasil
p. 17-23
Texte intégral
1Cartas do Brasil. Correspondência de Antropólogos e Folcloristas Brasileiros para Jorge Dias (1949-1972), organizado por Ana Teles da Silva, traz a público o conjunto das cartas de intelectuais brasileiros endereçadas ao antropólogo português Jorge Dias (1907-1973) depositadas no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa. Ao fazê-lo, vem iluminar sob novo ângulo a história das ciências sociais, em especial da antropologia, em Portugal e no Brasil. Para o público brasileiro é preciso dizer de imediato que Jorge Dias é autor central na história da antropologia portuguesa. Sua obra original e marcante bem como seus densos percursos intelectuais são iluminados por texto introdutório de João Leal que acompanha o presente volume. Além do valioso conjunto das 149 cartas que compõem o foco da publicação, soma-se ao livro o texto da própria organizadora, que comenta com fluência distintos aspectos das ciências sociais brasileiras e portuguesas abordados pelas cartas.
2A troca de missivas transcorreu entre 1949 e 1972 e os seis anos iniciais são o período de maior intensidade. João Leal refere-se a eles como os “anos brasileiros” de Jorge Dias, tão frequentes foram, entre 1949 e 1956, suas visitas ao país e tão constante e diversificada foi a troca de cartas e de livros entre os correspondentes.1 A maior intensidade dos contatos brasileiros de Dias nesse período bem expressa o momento particularmente rico das ciências sociais vivido no Brasil dos anos 1950.
3Entre os muitos aspectos desse período vivaz, destaca-se a firme articulação entre a antropologia em formação e os estudos de folclore em plena expansão. Eram campos de conhecimento que se sobrepunham, se mesclavam e atraíam a atenção comum da intelectualidade interessada nas culturas populares tradicionais. É significativo que Jorge Dias tenha se entusiasmado pelo que pode então presenciar e participar.
4Para os brasileiros, os fortes laços históricos, culturais e linguísticos existentes com Portugal trazem com frequência a imediata e enganadora sensação de familiaridade quando nos aproximamos de assuntos de interesse comum. Em que pesem as diferenças vocabulares que o novo acordo ortográfico busca acomodar, a sonoridade e os ritmos próprios da língua compartilhada nos fazem sentir quase que “em casa” em Portugal – para logo desconfiarmos de tão confortável sensação. Pouco a pouco, distâncias e estranhamentos – tão importantes para a construção da perspectiva antropológica – vão se impondo e a conversa ganha novo ímpeto e maior alcance. Portugal parece suficientemente próximo para que tratemos com relativa segurança os assuntos trazidos à baila e suficientemente distante para que logo inúmeras diferenças sejam apreendidas indicando, como é o caso das cartas agora publicadas, contextos nacionais e institucionais bem diversos. De lado a lado, há sempre muito a conhecer e Cartas do Brasil vem salientar a relevância e o interesse desse conhecimento mútuo.
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5No Brasil, já no segundo quartel do século XIX, a poesia e literatura orais, festividades e tradições populares, religiosidades amazônicas e afro-brasileiras configuravam um forte campo de interesse em torno do folclore – o neologismo que viera designar um vasto e heterogêneo conjunto de expressões e processos populares. No século seguinte, entre 1930 e 1960, junto com os estudos etnológicos sobre os grupos indígenas, essas diferentes vertentes de estudos convergiram para a conformação da antropologia como um campo disciplinar singular em meio à institucionalização universitária das ciências sociais.
6Poucos anos antes e logo simultaneamente, entre os anos 1920 e 1940, o movimento cultural modernista renovou o interesse intelectual pelo folclore – visto, em especial por Mário de Andrade, como fonte de inspiração para as artes eruditas brasileiras rumo à configuração de uma cultura brasileira singular e aberta ao mundo. Esse ideal fomentou muitos registros e estudos de fundo etnográfico que iluminaram o valor intrínseco dos saberes e artes populares, bem como enfatizou a necessidade de seu estudo científico e de sua proteção e apoio por parte do Estado.
7Entre 1948 e o início dos anos 1960, a consciência desse valor cultural ganhou a cena pública e expandiu-se em ampla movimentação em prol da defesa do folclore brasileiro. Simultânea e paralelamente, também a antropologia se organizava intelectual e profissionalmente como um campo disciplinar próprio. Os contatos de Dias com intelectuais brasileiros trazidos à luz com a publicação das cartas a ele dirigidas se inicia e se intensifica justo nesse momento particularmente fecundo.
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8Em fins de 1947, criou-se no país a Comissão Nacional de Folclore.2 O Brasil integrava-Se com isso aos esforços da recém-criada Unesco, em prol da educação e cultura no contexto do pós-segunda guerra mundial. Dessa Comissão partiu a ampla movimentação em prol da defesa do folclore brasileiro que culminaria com a criação, em 1958, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.3 O diplomata e musicólogo Renato de Almeida, um dos relevantes interlocutores de Dias, liderou essa movimentação. Nesses mes mos anos 1950, prosseguia a institucionalização universitária das ciências humanas e sociais, e Manuel Diégues Júnior, antropólogo também muito ligado ao Movimento Folclórico, outro interlocutor importante de Dias, notabilizou-se nos esforços de construção institucional em prol da educação superior.
9Os anos 1950 foram, portanto, um período cheio de cruzamentos entre distintos campos culturais e disciplinares em formação. A movimentação em prol do folclore brasileiro abrigava-os em uma grande corrente de estudiosos das expressões culturais populares que almejava também a sensibilização das autoridades públicas municipais, estaduais e federais e de diferentes agentes sociais para a urgência e o alcance da tarefa de salvaguarda a ser empreendida.4 A designação de folcloristas comumente atribuída a esses intelectuais supõe uma homogeneidade enganadora. É importante ter em mente que eles compunham um grupo de formação heterogênea que transitava entre formas mais ou menos institucionalizadas de funcionamento, entre o diletantismo e a formação universitária que se consolidava. Eram professores, gestores públicos, membros dos institutos históricos e geográficos e das academias de letras estaduais, músicos, escritores, sociólogos, antropólogos, todos interessados de modos diversos na cultura de sua terra e de sua gente. A obra de muitos dos participantes dessas comissões e do movimento folclórico de modo geral notabilizou-se na tradição dos estudos antropológicos e de folclore. Luís da Câmara Cascudo, outro correspondente regular de Dias, que sempre valorizou relações com a intelectualidade portuguesa, é um caso exemplar da pujança dos estudos então iniciados ou fomentados.
10A primeira reunião da Associação Brasileira de Antropologia ocorreu em 1953 no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A segunda, em 1955, na Bahia. O I Congresso Brasileiro de Sociologia, por sua vez, data de 1954, por ocasião do IV Centenário de São Paulo. Como indica Ana Teles da Silva em seu texto, o período como um todo é de trânsitos e transições.
11Essa efervescência parece estar na base da declaração de Dias, mencionada no texto de João Leal, do quão interessante se configurava então a antropologia brasileira para a experiência portuguesa.
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12Um dos aspectos dos diferentes percursos intelectuais de Jorge Dias destacado por Leal emerge como particularmente relevante para a apreensão desse forte interesse mútuo atestado pelas Cartas do Brasil: sua busca de caracterização de uma cultura nacional portuguesa, e com isso a abertura de seu interesse para o vasto mundo luso-brasileiro.
13Entre os estudiosos do folclore brasileiro, os interesses de Dias vinham ao encontro da busca de continuidades culturais entre Brasil e Portugal pensadas sob a forma de uma “matriz lusitana” na formação da cultura popular brasileira. Como bem indicou Roberto DaMatta, em seu ensaio A fábula das três raças ou o racismo à brasileira (1980), vigorava nos anos 1950 a visão da composição da cultura brasileira como uma espécie de mistura, devidamente hierarquizada, das chamadas três “raças” formadoras: o “branco” (o português, colonizador europeu), o “negro” (as populações escravizadas vindas da África) e o “índio” (os muitos povos nativos das terras brasileiras). Essa visão racialista das origens da formação da cultura brasileira foi particularmente influente nas pesquisas folclóricas que se difundiram pelas diversas regiões do país. Ao mesmo tempo, no terreno da antropologia já sediada nas universidades, os estudos de comunidade
14– entre os quais podemos situar outros interlocutores de Jorge Dias como Eduardo Galvão, Charles Wagley, Emilio Willems, Gioconda Mussolini – realizavam precursoras pesquisas de campo em pequenos povoados, cidades médias, áreas ribeirinhas e rurais que abrangiam desde o modo de vida de comunidades amazônicas e sua religiosidade característica até os modos de vida de áreas de população imigrante de origem europeia. A pesquisa idealizada por Jorge Dias entre comunidades de origem alemã no Paraná
15– os suábios que, em fuga da perseguição que em países da Europa Central e dos Balcãs se seguiu à derrota do nazismo, haviam se estabelecido em época recente – bem indica esse aspecto mais moderno do diversificado contexto intelectual por onde transitou Jorge Dias.
16Muito embora as cartas brasileiras persistam até 1974 e revelem o quanto perduraram interesses e afetos mútuos, no final dos anos 1950 novas conjunturas trouxeram novas distâncias. Como nos relata Leal, para Dias, havia o Portugal profundo com o comunitarismo agropastoril e o forte interesse pela história da própria antropologia portuguesa. Havia a Europa com a rede de etnologia europeia na qual Dias tanto se envolveu. Havia, finalmente, o Ultramar colonial português e o redirecionamento de Dias para o africanismo antropológico, com a pesquisa acerca dos Maconde de Moçambique. Ao mesmo tempo, ao final dos anos 1950, o próprio cenário intelectual brasileiro vai se modificando gradualmente. Diferenciações internas se acentuam tanto com a institucionalização da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958, no âmbito das instituições de cultura, como com o incentivo às pós-graduações a partir da Reforma do Ensino Universitário de 1968. Por cerca de vinte anos, em especial nos centros universitários do sudeste brasileiro, antropologia e sociologia afastaram-se temporariamente da tradição dos estudos de folclore que se manteve, entretanto, viva como uma das vertentes formadoras das ciências sociais brasileiras (Vilhena 1997). A partir de meados dos anos 1980, bem ao gosto do que almejava Jorge Dias, a antropologia brasileira abarcou com olhos mais compreensivos essa rica tradição de estudos. Cartas do Brasil vem renovar o interesse pela história das nossas ciências sociais e pelo amplo e sempre atual conjunto de temas que tanto mobilizaram Dias e seus interlocutores brasileiros
Bibliographie
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro, 2012, Reconhecimentos: antropologia e estudos de folclore. Rio de Janeiro, Aeroplano.
DAMATTA, Roberto, 1987, Relativizando. Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco.
VILHENA, Luis Rodolfo, 1997, Projeto e missão: o Movimento Folclórico Brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
Notes de bas de page
1 Deixo registrado o interesse, quiçá a ser contemplado num futuro próximo, pela correspondência de Dias a esses intelectuais a ser localizada em diferentes acervos brasileiros.
2 A Comissão inseria-se no Ministério das Relações Exteriores.
3 A campanha, que incorporou ao longo de sua história vastos acervos documentais, bibliográficos, de objetos e materiais na Biblioteca Amadeu Amaral e no Museu de Folclore Edison Carneiro, é hoje o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
4 Ver, em especial, Vilhena (1997), e Cavalcanti e Vilhena (2012). Farta documentação a esse respeito, sob a forma de anais, boletins, correspondências e documentos, encontra-se na Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular no Rio de Janeiro.
Auteur
Professora titular de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro
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