Apresentação
p. 1-6
Texte intégral
1Decorreu nos dias 27, 28 e 29 de Junho de 1996, na vila de Portel, o colóquio intitulado Artes da Fala e subordinado ao tema da oralidade a sul do rio Tejo numa perspectiva antropológica. Organizado pela Câmara Municipal de Portel e pelo Centro de Tradições Populares Portuguesas (Universidade de Lisboa), tendo o professor Manuel Viegas Guerreiro assegurado a respectiva coordenação científica.
2A realização do evento traduz a congregação de esforços entre uma unidade científica e uma entidade autárquica para que durante as jornadas referidas se criasse um ambiente de estímulos mútuos. Para se tornar realidade, o empreendimento necessitou de apoios vários, que, por seu lado, reflectiram a confiança de individualidades e entidades na proposta apresentada.
3O secretariado agradece em primeiro lugar ao Dr. António José Monteiro Vidigal Amaro, presidente da Câmara Municipal de Portel, e ao vereador da Cultura, José Manuel Godinho Fialho, não só a permanente disponibilidade e empenho pessoais manifestados, bem como ainda o entusiasmo que entenderam activamente demonstrar com a sua participação directa nas sessões do colóquio. Ao reverendo Jerónimo, da paróquia de Portel, por ter acolhido na Igreja de Nossa Senhora do Socorro as nossas artes da fala. A originalidade e a qualidade das instalações foram um factor decisivo para o êxito destas jornadas alentejanas, onde a frescura do local garantiu uma constante predisposição dos participantes para um debate vivo e em muitas ocasiões espontâneo, porque bem abrigados dum calor impiedoso.
4A Delegação Regional do Alentejo do Ministério da Cultura concedeu suporte financeiro que viabilizaria uma das acções projectadas mais difíceis de levar a cabo; para além disso, a Dr.a Ana Maria Borges testemunhou com a sua presença o interesse daquele organismo pela iniciativa.
5A Junta de Freguesia de Portel, através do seu presidente, Jesuíno Oliveira Serrano Rendeiro, proporcionou aos participantes no colóquio uma noite inesquecível de convívio no parque da vila, à volta de mesa farta.
6Graças ao empenho permanente e nunca regateado dos motoristas municipais José Vital e Francisco Honrado foi possível manter pontualidade, quer nas deslocações de pessoas, como de materiais. Cabe agradecer igualmente aos grupos corais Mineiros de Aljustrel e Os Ceifeiros de Cuba, aos protagonistas do canto ao baldão e aos tocadores de viola campaniça a sua presença e actuações integradas no programa.
7Os apoios concedidos pelas câmaras municipais de Beja e de Aljustrel, como ainda da Junta de Freguesia de Baleizão, terão de ser referidos, pois também sublinham a amplitude regional da temática abordada no colóquio. É igualmente devido um agradecimento à Caixa Geral de Depósitos (agência de Portel). Da convergência destes esforços e vontades fez-se o colóquio, que integrou acções paralelas: o lançamento de duas publicações e de um disco compacto, incidindo este último sobre o tema em debate.1
8Não podem ficar omitidos os moderadores das sessões (Manuel Viegas Guerreiro, Júlio Brancas, José Manuel Godinho Fialho, Brian Juan O’Neill), porque contribuíram decisivamente para o êxito dos trabalhos.
9O professor Manuel Viegas Guerreiro viria a falecer durante os preparativos para a edição deste volume. Já não lhe foi dado ver o resultado final duma sua acção na área temática e numa região sobre as quais tanto se havia debruçado. O secretariado do colóquio julga expressar o sentimento geral dos participantes, traduzido na modesta homenagem que aqui assim se presta, ao ter tido a oportunidade de contribuir para a concretização e finalização daquela que terá porventura sido a sua última iniciativa no âmbito do Centro de Tradições Populares Portuguesas.
10Como ponto de partida para a preparação do colóquio serviu um opúsculo de José Leite de Vasconcelos (1858-1941) intitulado Cantigas Quadradas. Nótulas Etnográficas, publicado originalmente em 1916, em Elvas. Com este pequeno artigo redigido no início do século pretendeu-se propor aos autores de comunicações uma área temática, um modo de olhar, um espaço geográfico preferencial — tudo isto a quase um século de distância. Os versejadores espontâneos, a sua caracterização social e o Sul do país como área da sua mais forte incidência — estas as linhas da proposta então esboçada e permanecendo hoje plena de sentido.
11Se estes parâmetros fornecem um quadro propício para ensaiar uma abordagem aprofundada de artes encenadas pela fala, Manuel Viegas Guerreiro sublinha na sua comunicação de abertura a consistência de conteúdo e forma na chamada literatura popular, tornando-a uma disciplina autónoma e, por conseguinte, esbatendo a dicotomização entre erudito e popular, uma vez que a criatividade não é exclusiva a uma destas esferas.
12Numa apresentação sucinta, Fátima Sá sumariza outro dilema neste mesmo domínio, a saber, a relação entre o oral e o escrito. Redigido para acompanhamento do CD editado, parece-nos importante republicar o texto neste volume, porque introduz e problematiza um leitmotiv do colóquio. A este propósito refira-se que os materiais recolhidos em gravação e em fotografia pela Oficina de Património da Câmara Municipal de Portel trazem à luz do dia casos e situações em que a análise mais aprofundada nos encaminha para perspectivas não dicotómicas. Ressalta a dimensão da circulação de ideias, textos e falas, onde letrados e ditos não letrados, artistas da palavra ou da pena, se confundem numa teia de relações incidindo no presente.
13Tendo como pano de fundo um tema no domínio do performativo a analisar em contextos etnográficos portugueses vários, Paulo Raposo situa algumas das principais questões com que se vê confrontado no terreno escolhido. O seu texto é uma revisão de propostas teóricas actualmente em discussão em torno de vários dos conceitos também abordados por Fátima Sá — como a questão da oralidade e a sua relação com as culturas escritas —, para além de nos apresentar elementos analíticos gerais sobre a noção de cultura popular e o seu quadro de acção política nas sociedades. Mais uma vez, haverá que reter a rejeição de noções contrastantes.
14Elaborado para uma fundamentação etnográfica e enquadramento analítico da selecção de poesia popular editada no CD anteriormente referido, o estudo de Paulo Lima é aqui reproduzido numa versão ligeiramente alterada. Pela primeira vez, um contexto cultural de poesia popular é abordado sistematicamente em Portugal. Retenhamos, entre as várias questões aprofundadas, a da caracterização do poeta popular ou a da sua inserção na sociedade. É uma resposta às sugestões formuladas anteriormente por duas figuras historicamente comprometidas com a etnografia portuguesa.2
15José Manuel Pedrosa alerta para a necessidade de aprofundar o estudo das relações entre e criação e recriação poéticas, nas suas múltiplas funções e expressões, tanto no folclore como na literatura. Analisando uma canção e o seu tema num período compreendido entre o século II e a actualidade, o autor mostra-nos a permanência e difusão no tempo e no espaço de um tema, o que, no seu entender, acontece por reflectir a própria essência humana. Atendendo aos diferentes contextos culturais e religiosos citados e cruzando o sentido mais profundo deste texto com alguns dos problemas já levantados por autores em comunicações anteriores, evidencia-se outra articulação: a da criação literária com a memória folclórica.
16Partindo de materiais do Atlas Linguístico de Portugal e da Galiza (ALEPG), Manuela Barros Ferreira desvenda um percurso para a identificação de um personagem de um anfiguri — o Era e não Era. O trajecto proposto leva-nos ao domínio da chamada sabedoria popular, que, como a restante literatura oral, sofre um processo de fixação escrita no século XIX. Uma relação inverosímil com o mundo adquire sentido; na proposta da autora, o personagem em causa contém uma amplitude maior que as funções pedagógicas ou de interpretação do universo directamente a ele imputáveis, por tratar-se duma indagação à essência humana.
17Tematização latente da reciprocidade, da igualdade ou da justiça nas relações sociais, apresenta-a Maria Aliete Galhoz no seu contributo sobre uma parábola de Jesus Cristo, presente em Lucas. Indagando não só sobre a sua origem e respectiva difusão no espaço peninsular, presumivelmente por meio de folha de cordel, é-nos sugerida uma via de passagem do erudito ao popular pela referenciação de versão em décima circulando no Sul de Portugal.
18Ana Teresa de Sousa expõe resultados preliminares de um projecto de estudo sistemático de espólios particulares. Trata-se do acervo de J. A. Pombinho Jr. (1898-1983), figura importante na construção etnográfica do Sul do país. O trajecto biográfico da personalidade em causa, a especialidade que assume — a lexicografia —, os meios de difusão preferenciais que se abrem às conclusões das suas pesquisas, a articulação com os vultos da ciência no plano nacional, deixam entrever tratar-se não tanto de uma ciência etnográfica alternativa, mas provavelmente do posicionamento de uma geração perante a realidade nacional. Só a continuação das pesquisas em torno de outros espólios do mesmo género pode esclarecer algo mais sobre o conteúdo dado ou encontrado ao longo do século XX à noção de etnografia. Seria ela paralela ou concorrencial com o ramo científico entretanto em vias de institucionalização? Que significou ser etnógrafo neste século em Portugal? Uma atitude de militância cultural, uma posição política ou uma profissão? Nesta ordem de ideias, terá de falar-se de etnografias, pois não houve uma só; sendo assim, quais as relações de hierarquização estabelecidas entre elas?
19Etnografia como discurso sobre a sociedade em que se vive e em que se pensa, ou as palavras que geram relações entre indivíduos. Da experiência de campo relatada por Maria Mantero Morais numa freguesia de Portel, é de reter a intencionalidade do olhar da antropóloga ao indagar prioritariamente a experiência vivida entre mulheres e donde reconstrói sociabilidades femininas. Ressalta numa primeira análise a plasticidade do elemento etnográfico; enquanto numas situações ele é edificado quando ordenado em texto, noutras é a relação social que nasce pela escrita como suporte da acção de reflexão sobre a relação vivida.
20O colóquio foi palco de debate e confronto de ideias e posições, espelhando-se assim níveis distintos e diferenciados de abordagem, percepção e indagação da temática proposta.
21Motivos alheios à vontade dos organizadores não viabilizaram a inclusão neste volume de todas as comunicações apresentadas neste volume. Segue-se a listagem dos autores e respectivos títulos: P. Prista Monteiro, “Fora de palavras: algumas considerações sobre a arte da fala”; J. Rabaça Gaspar, “As décimas: a sua originalidade lusa”; J. M. Monarca Pinheiro “Amor e erotismo nalgumas décimas tradicionais do Alentejo: interpretação antropológica”; Manuel João da Silva, “Breve história da poesia popular nos meios rurais dos concelhos do litoral alentejano”; A. Modesto Navarro “Poetas alentejanos: uma experiência em meados da década de 70”; Robert Rowland, “Cantadores do Nordeste brasileiro”.3
22Os textos reunidos poderão ser perspectivados como formando três variações de um mesmo tema.
23A via da fala é um denominador nos contributos de Manuel Viegas Guerreiro, Fátima Sá, Paulo Raposo e Paulo Lima. Retomam e ilustram questões fundamentais de abordagem de um universo construído pelo modo de exprimir atitudes. Separar ou articular erudito e popular, o escrito e o oral, o localismo e a globalidade — explorar os níveis a que se produzem manifestações de cultura nas sociedades —, eis um dilema perante o qual as posições convergem contra a dicotomização.
24A via textual é o fio condutor nos artigos redigidos por José Manuel Pedrosa, Manuela Barros Ferreira e Maria Aliete Galhoz. Partindo de bases fixadas e transmitidas pela escrita, mas de igual modo presentes na memória do discurso oral, eles permitem aprofundar elementos construtores e perpetuadores da fala, como instância geradora e reguladora de princípios duma ordem social.
25As experiências relatadas por Ana Teresa de Sousa e por Maria Mantero Morais apontam para traves mestras na composição etnográfica, ou seja, para a existência de etnografias. Se no primeiro caso o presente etnográfico advém da relação paulatinamente estabelecida ao penetrar metodicamente num espólio que foi a base da etnografia elaborada por outro, nas reflexões sobre o mundo visto no feminino numa freguesia de Portel, são as falas proferidas, ouvidas e memorizadas pela investigadora que vão ocasionando texto. Em ambas as situações, embora a níveis distintos, textos e falas geram presentes etnográficos.
26Durante as sessões do Colóquio de Portel foram debatidas questões relacionadas com a abordagem da oralidade no Sul de Portugal. Este tema tem um significado duplo. Se, por um lado, fornece matéria para a construção de memória, por outro, caracteriza realidades presentes. Distinguir estas questões implicou interrogar a noção de cultura popular. Ao fazê-lo, somos obrigados a desfazer dicotomias no nosso modo de pensar.
Notes de bas de page
1 Trata-se do livro Cada Casa Uma Porta, cada Porta Um Postigo, da autoria de J. M. Monarca Pinheiro, e do volume temático da Revista Lusitana, n.s., n.os 13-14, 1995, contendo as actas do colóquio Retratos do País e editada pela Colibri, a quem se agradece a colaboração prestada. O CD intitula-se No Jardim do Mundo (Sons) e é acompanhado de um volume No Jardim do Mundo (Textos) com contributos de Manuel Viegas Guerreiro, Fátima de Sá e Paulo Lima, e ainda do álbum No Jardim do Mundo (Fotografias) da autoria de Augusto Brázio; a produção é de O Acaso, Espectáculos, Lda.
2 Sobre esta alusão às duas figuras e ao respectivo contexto histórico na etnografia portuguesa, cf. Revista Lusitana, n. s., n.° 12, 1994.
3 Ver também, do mesmo autor, “Society, Communication and Popular Culture in a Traditional Society:! The ‘Cantadores’ of North-east Brazil”, in Transactions of the Sixth World Congress of Sociology, International Sociological Association, 1970, pp. 171-94. Sobre o Alentejo, e muito recentemente, Miguel Vale de Almeida publicou “Emotions rimées. Poétique et politique des émotions dans un village du sud du Portugal”, Terrain, 22, pp. 21-34.
Auteurs
Professor do ISCTE, investigador do CTPP
Oficina de Património, Câmara Municipal de Portel
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