III. Casa urbana
p. 391-484
Texte intégral
1Nos núcleos urbanos, de um modo geral, a casa, traduzindo níveis e matizes muito diferenciados, e influências de uma elaboração técnica e de um entrecruzamento de culturas muito complexos, a que não são mesmo estranhos factores de invenção pessoal, reveste uma variedade de formas e tipos que toma difícil a sua definição singular, e mesmo a sua classificação completa. Limitamo-nos por isso a indicar as categorias gerais sob que ela se apresenta por toda a parte, e seguidamente os pormenores de estilo mais característicos. À parte os exemplos mais ou menos definidos de casas elementares e de casas rurais localizadas na cidade, que são, sem dúvida, muito numerosos, a casa propriamente urbana, de um modo geral, mostra-se fundamentalmente ora do tipo vertical – a casa esguia, estreita e alta, com um número variável de andares, na sua maioria dois três ou quatro, fora os acréscimos, e com duas ou três portas, janelas ou varandas de frente, raramente com mais e às vezes só com uma – ora de tipo horizontal – largas e baixas, de rés-do-chão e andar nobre, com numerosas portas, janelas e varandas de fachada, com a típica feição de palácios. Esta distinção elementar corresponde basilarmente a uma dualidade fundamental de níveis económicos e sociais: a casa estreita e alta, que, na sua forma e sentido originários, além de derivar das construções próprias dos burgos amuralhados ou, de um modo geral, dos locais onde se verifica a necessidade ou a conveniência do adensamento da população em áreas limitadas, constitui um tipo híbrido funcional de residência urbana e estabelecimento comercial ao mesmo tempo, referidos à mesma família, estritamente utilitário, de acordo com as necessidades profissionais e a mentalidade da classe de que é própria, que tinha as suas lojas, armazéns ou oficinas no rés-do-chão, junto à rua, abertas ao público, sem qualquer aparato, e habitava os andares superiores, é caracteristicamente a casa popular e burguesa de mesteirais e comerciantes, estreita por economia de terreno e de manutenção e pelas exigências de espaço, e cujo carácter híbrido é atestado pela existência, sem excepção, de pelo menos duas portas (uma da residência, e outra, por vezes mais larga, da loja) e também, muitas vezes, de soluções especiais de comunicação entre aqueles dois sectores, tais como escadas privativas ou alçapões entre os andares de cima e o estabelecimento; por seu turno, a casa larga e baixa, de amplas fachadas em linhas horizontais, de rés-do-chão e andar, enriquecidos muitas vezes com um mezanino ou um piso suplementar de serviço, que serve de pretexto a primores arquitectónicos que os mascaram – o palácio –, é a casa nobre, própria originariamente de uma classe poderosa e terratenente, para quem a largueza do espaço é afirmação de prestígio e domínio, que transferiu para a cidade o conceito de casa senhorial do campo, e fez da sua residência uma espécie de solar à beira-rua ; casa duma classe que, além disso, vivia de benefícios e não mesteres ou ofícios mercantis que impusessem ajustamentos funcionais a eles subordinados, e em que, pelo contrário, grande parte é concedida, por dever de Estado, ao aparato das salas de recepção. Na sua estrutura geral, ele é uma forma neoclássica comum na Europa, que aqui mostra apenas pormenores decorativos em estilos locais.
2A casa urbana esguia e alta, popular e burguesa, que representa verdadeiramente a forma arquitectónica característica deste nível social, mostra-se, por seu turno, sob duas formas principais, que correspondem também, embora de modo menos preciso, a dois níveis sociais distintos: a casa de pedra, que é a mais comum, e forma a generalidade das construções das respectivas localidades, e a casa de fachada de tabique – que subsiste apenas em exemplos raros, como sobrevivência do passado.
3Exceptuando os escassos vestígios que restam da maciça construção civil romano-gótica, a casa com a fachada de tabique parece ser em geral não só mais antiga que a de pedra, mas também e principalmente mais pobre, própria, sobretudo, pelo menos actualmente, de artífices, mesteirais e pequenos comerciantes em velhos lanços de ruas populares. Essa casa, que mostra as molduras de janelas e portadas, divisórias de andares, entablamentos de varandas e beirais – estes geralmente muito salientes e com os topos dos caibros à vista1– de madeira, que se destaca em escuro contra a superfície lisa das paredes, assenta num rés-do-chão e não raro também num primeiro andar de perpianho, e tem apenas os restantes de material leve, pode apresentar-se com os andares em ressalto ou com as fachadas lisas. Quando os andares são em ressalto, este pode ser mais ou menos acentuado, e é sustentado as mais das vezes apenas pelas próprias traves do soalho desses andares, que sobressaem, apoiadas em escoras oblíquas, em cachorros, em grossos socos de pedra arredondados e em forma de cornija ao longo de toda a fachada, ou ainda, em casos raros mas notáveis, em colunas de pedra; por vezes o ressalto é só de um lado, ficando a parte de tabique de esguelha sobre os pisos inferiores de pedra.
4Algumas casas desta categoria, especialmente localizadas em esquinas, apresentam uma forma irregular, com vários andares salientes e acrescentos de várias épocas, com janelas e postigos distribuídos sem qualquer ordem ou simetria ; outras, com os andares igualmente ressaltados, mas apertadas contra as vizinhas em arruamentos seguidos, têm uma fachada de forma regular, com vários pisos, e uma, duas e, por vezes, mais janelas, dispostas ordenadamente ao nível de cada andar.
5Na técnica primitiva do tabique, não se usa o fasquio: o sistema de revestimento aproxima-se do fachwerk dos países germânicos, Inglaterra e França, em que o tabique é feito por sectores compreendidos num esqueleto de madeira, com barrotes horizontais e a prumo cortados por diagonais, e os vãos cheios com tijolo e barro, por vezes à vista, dispostos decorativamente em espinha ou de outro modo. Na Europa Central, essa substrutura vê-se, em destaque, sobre a taipa da parede, num belo efeito que tem as suas mais notáveis manifestações na Alemanha, França e Inglaterra.
6Entre nós, numa forma mais modesta e tosca, esse esqueleto é recoberto, e vêem-se apenas os elementos exteriores que atrás mencionámos. Nos casos mais modernos, casas ou acrescentos feitos pelo mesmo processo, usa-se o fasquio.
7De facto, a casa de tabique, com os andares em ressalto, a que os Franceses dão o nome de « encorbellement », e que certos autores explicam como um processo de se obter maior espaço interior sem prejuízo da largura das ruas exíguas dessa época, aparece como um estilo comum na Europa medieval, quinhentista e seiscentista. Entre nós, ele surge também antes do século XVII2 ; a casa de tabique de fachada lisa e balaústres de pau nas varandas parece também ser um tipo igualmente pré ou talvez proto-seiscentista3, representando uma forma mais evoluída das velhas casas de tabique de fachada irregular, que marca, no limiar do século XVII, a transição para a pedra, que se generaliza em seguida a essa data. O tabique constitui assim, entre nós, uma técnica de construção anterior ao século XVII, com largas raízes ou manifestações provinciais, mas que, certamente por constituir um processo barato e fácil, continuou a utilizar-se, revestido de telhas, lousas ou chapa, para acréscimos, trapeiras e outras formas de andares suplementares, e que é ainda hoje corrente no Douro, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho em revestimentos de varandas, altos de casa, etc.
8Mas a arquitectura popular urbana é representada sobretudo pela casa esguia e alta de pedra, que forma a quase totalidade do conjunto das casas de rua das nossas vilas e cidades. Exteriormente, tais casas são de proporções muito variáveis, parecendo predominar os dois e três andares acima do rés-do-chão e fora os acréscimos – a que, em relação ao Porto, o padre Rebelo da Costa chama «as sobrecozinhas » –, e as duas ou três janelas, portas ou varandas de frente. As fachadas são de uma grande simplicidade de linhas e de desenho regular e simétrico, onde se encontram certas categorias de motivos decorativos ou funcionais em estilos que ou se filiam em correntes gerais europeias pós-renascentistas, se podem considerar versões do barroco nacional e regional. No Norte, esses ornatos, no granito escuro e duro da região, em destaque sobre a brancura lisa ou outro colorido das paredes ou sobre o revestimento de azulejos – entre os quais sobressaem notavelmente certas guarnições de portas e janelas, cachorros e entablamentos de varandas e beirais, pilastras e cornijas, lavradas e apaineladas, óculos, mísulas e nichos, e principalmente esses belos algerozes, correntes em todo o Norte do País, e que parecem representar uma última forma das gárgulas góticas aparecem tanto nas casas estreitas como nas nobres, e é possível que provenham dos solares da província, donde teriam passado para o palácio citadino, generalizando-se em seguida à casa burguesa. Não são também raros os medalhões de azulejos, com cenas ou imagens religiosas e belas cercaduras joaninas.
9As fachadas, mais sóbrias e severas do século XVII, mais movimentadas e graciosas no século XVIII, e cujas linhas se simplificam consideravelmente no século XIX, perdendo praticamente os motivos ornamentais e tomando-se pobres e monótonas, compõem-se fundamentalmente de combinações variadas e harmoniosas de janelas, óculos e varandas, que, estas, são umas vezes individuais, outras corridas a toda a largura do prédio, dispostas de modo diverso e simétrico nos seus diferentes pisos. O último andar assinala-se geralmente por qualquer particularidade distinta, que o destaca dos demais: ora é mais baixo do que os outros, com uma varanda disposta acima de um falso beiral, ora, em soluções mais elaboradas, tem o aspecto de um frontão ou varandim, que podem assumir várias formas. Os telhados até ao século XIX são sempre de quatro águas estreitas, terminando com largos beirais salientes e acolhedores, que no Porto por vezes são de telhas de faiança azul e branca; depois dessa data são geralmente de duas águas, com as empenas nas paredes laterais, rematando à frente em platibanda. São extremamente frequentes as soluções de aproveitamento dos sótãos, que se traduzem exteriormente por acréscimos nos telhados, trapeiras, mirantes, andares suplementares, etc., nos quais se utiliza, como dissemos, o tabique exterior.
10Raramente com os cheios de pedra à vista, as fronteiras são em geral lisas, rebocadas ou, também do século XIX, em diante, muitas vezes revestidas de azulejos, ora de desenho singular ora formando conjunto, dispostos, nos casos mais notáveis, em painéis que imitam tapeçarias, com a sua barra em tomo.
11Interiormente, a casa esguia e alta é no Porto e em diveros outros pontos do País, do sistema pobre a que Ramalho chama «de alforge», imposto pela sua estrutura e por uma ética burguesa de vida vertical, peculiar à classe de que é própria: salas para a frente e para as traseiras, a sala de visitas em baixo, os quartos, muitas vezes de alcova, a seguir, e a sala de jantar e cozinha no andar de cima, por causa dos incêndios e dos cheiros; os sótãos, para alojamento dos criados, arrumações e oratório; e, a meio, iluminada por óculos ou clarabóias, a escada, nascendo do átrio de azulejos. Os tectos das salas são, nos casos mais ricos, de caixotes barrocos de castanho pintado ou, do século XIX em diante, de estuques de finos lavores. As janelas são envidraçadas, de corrediça ou de duas folhas, mas são visíveis com grande frequência vestígios dos sistemas anteriores – as simples portadas de pau, e rótulas, gelosias ou adufas, em secções móveis de tabuinhas cruzadas, suspensas da padieira, e a abrir para esse lado. Em Braga as actuais janelas com frequência acusam esse velho processo, compostas de vidraças articuladas em caixilhos pendentes dos ganchos exteriores das antigas gelosias. Em velhas casas setecentistas do Porto, pelo seu lado, vêem-se ainda, por vezes, portadas de varanda de duas folhas, com caixilho de vidraça fixo, pregado do lado exterior da portada e, por trás dele e do seu tamanho, postigos móveis que se podem abrir sem ser preciso abrir as portadas nem as vidraças para iluminar a sala.
12As varandas e sacadas tinham também gelosias semelhantes às das janelas que, por vezes, as tapavam completamente. Em Braga e em Guimarães vêem-se ainda algumas que revestiam mesmo totalmente a fachada alta da casa a toda a sua largura e sobre os dois andares superiores4. Noutros casos as varandas tinham balaústres, simples ou torneados, de madeira, que foram progressivamente sendo substituídos por gradeamentos de ferro, de vários géneros, de que existem exemplares formosíssimos. Actualmente, portadas e janelas são em geral pintadas de branco, e as suas bandeiras, quando existem, mostram frisos e desenhos variados, frequentemente em singelos estilos pós-georgianos.
13Pelo seu lado, o palácio apresenta-se geralmente com vastos átrios de pedra, por vezes duplos, com a escadaria ao fundo também de pedra, geralmente curvando num patamar de coluna ou desdobrando-se em dois lances, a galeria ao alto, precedendo a enfiada de salas de recepção, no andar, sobre a frente, abrindo umas sobre as outras e com belos tectos elevados, de masseira, às vezes pintados e com o brasão de família no centro. Em baixo, ficam as dependências de serviço; e as restantes divisões encadeiam-se ao acaso, sem ordem nem lógica oigânica.
14Ainda como tipo especial da casa urbana da zona litoral, notamos em certas localidades onde existia uma classe importante de gentes navegadoras – Caminha, Viana do Castelo, Vila do Conde, etc. –, uma casa, de feição acentuadamente burguesa, certamente relacionada com esse nível social, de rés-do-chão e andar, porta entre duas janelas e, semelhantemente, em cima, três pequenas varandas ou janelas, frequentemente com belos ornatos quinhentistas de granito. A particularidade notável destas casas é que geralmente elas aparecem em séries seguidas de casos idênticos, à face de ruas características, formando conjuntos de aspecto muito especial.
15Nas vilas e cidades alentejanas, a casa, mantendo certas características fundamentais de casa rural, apresenta porém traços originais que a incluem numa categoria à parte; ela é geralmente de dois pisos, muitas vezes com escadas exteriores, as largas chaminés em ressalto na fachada frontal, e pátios, janelas, recantos e outros elementos, dispostos na frontaria com uma liberdade cheia de fantasia e pitoresco, que acentua o seu parentesco com a construção de certas outras regiões mediterrâneas.
16Na casa de dois pisos, o pavimento do andar de cima pode ser constituído por tijolos postos de cutelo entre duas traves distanciadas entre si a largura desses tijolos e que formam o tecto dos térreos que fica desse lado à vista ou é revestido por caniço; outras vezes, aquele pavimento assenta sobre tijolos apoiados sobre a abóbada dos mesmos térreos.
17Estas casas, além disso, desenvolvem-se muitas vezes para as traseiras, através de arcos e abóbadas, sobre um pátio inteiror onde não raro se encontra o poço, e onde se cultivam hortaliças e flores, que dão uma nota de cor viva que ressalta do fundo da brancura intensa das paredes.
18É frequente ainda as casas mostrarem óculos ou frestas, que podem apresentar formas variadas, desde simples postigos redondos a belas peças ornamentadas em cruz, quadrifólias, etc., e que ora iluminam as escadas que partem da porta da rua, ora, em certos casos, são as aberturas regulares de alguma dependência pequena de arrumos, e que se dispõem pela fachada, em harmonia com qualquer abertura maior.
19Com frequência também, a frontaria destas casas remata, ao alto, com uma platibanda linear, por vezes de tijolos vasados, com desenhos geométricos ou arabescos não raro coloridos. Em certas localidades, designadamente Borba e Campo Maior, as casas mostram-nos altos e curiosos «mirantes» que são típicas construções pequenas, sobressaindo do telhado e coroando o edifício, e que ou são completamente descobertos, mas tendo num dos topos uma pequena construção que serve de abrigo à escada de acesso que comunica com o interior da casa, ou completamente cobertos, rodeados de arcarias e fechados num dos topos, também, para abrigo da escada, ou finalmente completamente fechados dos lados por janelas (geralmente em número de três) e, como nos dos segundo tipo, com escada comunicando com o interior da casa.
20Estas construções, que parecem na verdade ter apenas como finalidade proporcionar uma vista desafogada aos moradores – especialmente às mulheres, numa época em que estas viviam a maior parte do tempo enclausuradas –, têm possivelmente a sua origem nos mirantes conventuais, nomeadamente do Convento das Servas de Borba, que deles apresenta um exemplar muito rico5. Em certas cidades alentejanas, como por exemplo Beja e sobretudo Portalegre, a fachada frontal das casas mostra painéis de belos estuques lavrados de caprichoso desenho, nos lanços de parede que se espraiam entre as janelas e portadas dos andares superiores.
21Outros elementos particularmente notáveis na casa urbana do Alentejo são os ferros forjados, grades, braços, portas, balaústres, suspensões de lampadários e sobretudo resguardos de varandas. Especialmente florescente no século XVII, no Norte do distrito de Portalegre, é talvez em Marvão e em Castelo de Vide que se encontram os exemplares mais formosos; mas a arte do ferro, como elemento decorativo da habitação, manifesta-se por toda a província, de Marvão a Évora e a Beja, documentando-se em espelhos de fechaduras, e sobretudo nas belíssimas varandas de Borba em nada inferiores às da área de Portalegre, que são consideradas as mais notáveis do País. Pode-se por isso afirmar que, também no Alto Alentejo, floresce um núcleo da arte do ferro forjado além do de Portalegre6.
22Assinalaremos ainda, para terminar, os portais góticos e manuelinos de certas vilas acasteladas do Alentejo, dos séculos XIII, XIV e XV, rasgados nas fachadas das casas que bordam as velhas vielas e congostas que sobem aos respectivos castelos, onde se encontram, a par de formas ogivais, denticuladas, ornamentadas de bolas, etc., outros motivos que se podem ter inspirado em monumentos pré-históricos, árabes ou romanos. Como diz Luís Keil, a propósito de Castelo de Vide, «divisam-se ali, numa grande sucessão e variedade de estilos, as influências que no rústico canteiro produziram os modelos usados então, e ainda a fantasia de alguns artistas que foram modificar de modos caprichosos e extravagantes as formas severas do seu tempo »7.
Casas esguias do Porto e sobrados do Recife8
23A tese da natureza ecológica do sobrado característico do Recife – a casa esguia e alta – e, concretamente, das suas origens flamengas, como expressão mais acabada dessa natureza, pode considerar-se de larga tradição no Brasil. Num trabalho intitulado O Sobrado na Paisagem Recifense, Aderbal Jurema de novo insiste nessa opinião, baseando-se na comparação e interpretação de determinados traços morfológicos de certas casas do Recife, da Holanda e de Portugal, que combina com razões deduzidas de factos históricos e mesológicos : nomeadamente o aparecimento no Recife, em seguida à sua ocupação pelos Holandeses no século XVII, de um tipo habitacional semelhante, na sua estrutura geral e nos seus pormenores arquitectónicos, na sua natureza funcional e seus pressupostos ecológicos e sociais, à casa típica das cidades talássicas e portuárias dos Países Baixos, que tantas afinidades geográficas apresentam com esta zona brasileira; e, por outro lado, oposto, por esses mesmos elementos, ao que o Autor considera a casa portuguesa, de acordo com o tipo de casa ali existente naquela data, de origem evidentemente portuguesa9.
24A ideia basilar desta tese encontra-se já em Gilberto Freyre, que, contudo, aludindo embora à origem flamenga do «sobrado magro» recifense, acentua a primazia do factor ecológico na sua elaboração : « Sobrado magro, vertical. Às tradições de arquitectura holandesa, que condicionaram o desenvolvimento do Recife, parecem ter-se juntado imposições de natureza ecológica, para consagrarem aquele tipo de casa...»10 – que, de resto, definira antes como « o tipo de habitação ecológica » ; e, mais adiante, reforçando esta feição, alude à urbanização na ilha de António Vaz, ligada ao bairro do Recife pelas pontes de Nassau, e que passara a ser o local de moradia da burguesia mais rica da cidade, dizendo: « O problema da habitação, sem esse desafogo, teria-se tornado um horror. Sobrados estreitíssimos, e, dentro deles, um excesso de gente. Gente respirando mal, mexendo-se com dificuldade. Às vezes oito pessoas dormindo no mesmo quarto. Verdadeiros cortiços. Os primeiros cortiços do Brasil »11.
25Contudo, o factor histórico-cultural é também fortemente relevante para o Autor, que, atrás, citando Morales de los Rios, observara: « ... a arquitectura holandesa, no Recife, cuja influência ainda hoje se surpreende... nas “ empenas laterais dos prédios ”, pouco se inspirou no meio ambiente. Os Holandeses a impuseram à cidade tropical, sem nenhuma adaptação que lhe quebrasse a estrutura europeia de casa para os frios do Norte »12. E, além destes factores, o mesmo sociólogo parece ter ainda em mente a ideia de um elemento ético-somático especial, de natureza ecológica que coincide com o factor natural, e explica convergentemente a continuidade do sobrado magro na forma que ele apresenta no Recife, mais próximo da holandesa, por oposição aos sobrados do mesmo género de outras cidades portuárias do Brasil, modelados pela acção de influência portuguesa; é o que o Autor exprime, quando, a propósito do sobrado recifense, fala na sua harmonia «com um tipo mais estreito e mais magro de homem do que o Baiano»13, que Jurema esclarece com estas palavras: « Parece-me que essa tendência para o magro... é ecológica e que, por feliz associação de necessidades imediatas, se harmonizou com o tipo de construção civil trazido pelo holandês de Seiscentos. Até nas cores dos nossos artistas plásticos, como nos traços de seus desenhos... a gente encontra sempre a natureza de perfil anguloso... Há mesmo um complexo de ridículo, entre nós, por tudo o que é excesso de ornamentação, de gordura física ou intelectual, que se revela até na parcimónia dos adornos com que se apresentam... os nossos santos nas procissões tradicionais. Parcimónia que psicológica e ecologicamente revelam... o temperamento magro do Pernambucano, em coerência com a natureza geo-económica destes trópicos, que não tem favorecido a gordura física nem intelectual do homem-comum, capaz de degenerar em rendilhados e ornamentação rocoeó, tão típicos, aliás, de regiões mais privilegiadas, como a Bahia e um pouco Minas »14. Parece-nos porém que se trata aqui não propriamente de uma feição psicológica determinante, mas de mais um exemplo de interacção e inter-relação entre um elemento cultural e uma constante temperamental.
26Dentro ainda das teses flamengas, Manuel Diegues Júnior, analisando o contributo etnocultural holandês na formação brasileira durante o período colonial, ensina que, enquanto os caracteres somáticos da etnia holandesa desapareceram após a Restauração, sem quase deixarem rasto, «alguns traços de cultura... ficaram ; entre eles, o tipo de sobrado recifense, esguio e comprido de frente a fundo, o telhado de duas águas, o emprego de tijolo em maior escala do que até então »15.
27Convém recordar que, antes da ocupação holandesa, a capital da capitania de Pernambuco era a cidade portuguesa de Olinda, localizada num alto, segundo os preceitos militares medievais de estratégia defensiva – eficazes, de resto, em mais de que uma emergência –, próprios da mentalidade do colonizador que no século XVI organizou a conquista do Brasil: o fidalgo português16. Pelo contrário, a Ribeira Marinha dos Arrecifes, que, de acordo com os seus conceitos, ele desprezou, por não poder ver, nos terrenos alagadiços do delta de Capibaribe, mais do que uma faixa costeira inaproveitável e sem interesse, é o local escolhido pela gente batava, em virtude da sua situação litoral, eminentemente favorável aos propósitos de pirataria e tráfego mercantil que a moviam. Acresce que, como já dissemos, a topografia dessa zona se assemelha estreitamente à das cidades donde provinham os invasores, sugerindo-lhes por isso uma urbanização que lhes era perfeitamente familiar, e para a qual eles estavam excepcionalmente preparados; e, na realidade, é com a ocupação flamenga que surge verdadeiramente o Recife, cujo desenvolvimento se processa, além disso, segundo os planos dos arquitectos de Maurício de Nassau.
28Para Aderbal Jurema, porém, a tese da prioridade holandesa não diz respeito apenas à implantação da casa esguia e alta em terras recifenses ; ela estende-se à própria criação desse género de construção, determinada por razões de natureza ecológica e social, particularmente sensíveis na Holanda e em relação ao tipo de civilização que aí se desenvolveu nessas eras. A casa esguia e alta é por excelência a solução habitacional sempre que se verifica a necessidade ou a conveniência do adensamento da população num espaço limitado, e isto dá-se especialmente nas zonas portuárias em geral, onde tem lugar um tráfego comercial intenso; ora, em país algum a limitação de espaço era mais angustiosa do que nas cidades talássicas da Holanda, concentradas em áreas lacustres roubadas ao mar com grande custo, e sem possibilidades de fácil alargamento, e onde um denso formigar humano, derivado da sua posição capital no comércio marítimo europeu, se devia alojar em soluções verticais. Mas, a par disso, a casa esguia e alta é também, por natureza da sua orgânica utilitária essencial, a habitação originariamente própria de gente em que sobrelevam as considerações económicas – a gente comerciante, popular e burguesa, que reside nos altos e tem suas lojas no rés-do-chão, abertas ao público: precisamente, e concordantemente, a classe que domina o panorama social da Holanda de então.
29Seria portanto a partir da Holanda que este tipo de casa, pela sua eficiência funcional em relação ao «estilo de vida que se desenvolvia sob o influxo do comércio marítimo»17, e graças ao expansionismo daquele país, se difunde por todas as zonas portuárias europeias, tanto do Norte como do Mediterrâneo, que com ele mantinha relações comerciais, das quais passa a ser característico, e onde o vamos encontrar já no século XVI, mas sobretudo do século XVII em diante; e seguidamente, por contacto directo com a Holanda, ou indirectamente através dos países que por sua vez ela já influenciara nesse sentido – Inglaterra, no que refere aos Estados Unidos, no século XVII, e Portugal, ao Recife nos século XVIII e XIX18–, ele atinge as cidades portuárias do Novo Mundo.
30No Recife holandês, desde a primeira hora se faz sentir a necessidade premente de alojamentos, em relação à massa de gente que todos os dias chegava da Europa para mercadejar à sombra da Companhia das Índias Ocidentais, e que, como na Holanda, tinha de se resolver numa área limitada; essa gente, naturalmente – e também como na Holanda – pertencia às classes burguesas e negociantes. São estes os pressupostos da casa esguia e alta na Holanda: como aí, e ao mesmo tempo que o Recife assume o aspecto de uma cidade-porto de tipo flamengo – a primeira tentativa de colonização urbana do Brasil19–, define-se aqui também a solução vertical da habitação, que se exprime no sobrado magro.
31Vemos assim o Holandês instalar-se no Brasil numa região cujas condições naturais são iguais às das suas cidades de origem, e que aí estão na base da casa esguia e alta; essa gente, burguesa e comerciante, é aquela que na Holanda construiu e vive em tal casa; e veio para o Brasil dedicar-se à actividade que, convergentemente, é ainda o outro pressuposto da mesma casa. É portanto legítimo admitir-se que o sobrado magro do Recife tenha de facto sido aí implantado pelos Holandeses, tanto mais que, por muitos dos seus caracteres morfológicos, ele se assemelha à casa daquelas cidades da Holanda; e, ao mesmo tempo que aí era a casa normal que conheciam os novos emigrantes, citadinos, traficantes e burgueses, ela era estranha ao velho colono lusitano, nobre, terratenente e rural.
32A gente holandesa, pois, que veio para o Recife comerciar, atraída por umas condições naturais idênticas às da sua pátria de origem, teria ali implantado a casa vertical, esguia e alta, que lhe era familiar, já porque era a sua, pela mera força de um fenómeno de difusão passiva, já porque, segundo a lei da afinidade20, ela se ajustava e esse condicionalismo peculiar, semelhante ao que, na Holanda, havia determinado a sua criação. A tese da origem flamenga do sobrado recifense, para lá do facto da ocupação holandesa, reforça-se singularmente com a consideração desses ajustamentos sociais e funcionais que o explicam e justificam.
33Esta opinião não é porém unanimemente aceite no Brasil. Josué de Castro, por exemplo, explica a casa esguia apenas em função das condições naturais, considerando-a própria de todas as zonas portuárias, independentemente de quaisquer factores históricos de difusão a partir de um determinado país. Para ele, de resto, a casa desse tipo não constitui «algo de tipicamente holandês » ; ela encontra-se «em vários portos europeus, não holandeses, durante os séculos XV, XVI e xvii, desde o mar do Norte até ao Mediterrâneo. A Lisboa do século XVI já possuía no seu porto, marginando o Tejo, filas inteiras desse tipo de construção... Nos séculos seguintes, todos os grandes portos europeus possuíam esse tipo de arquitectura cosmopolita, produto da necessidade de aproveitar ao máximo o espaço disponível, de concentrar numa área relativamente limitada os negociantes – patrões e assalariados –, suas lojas e suas residências por cima das lojas... É por isso que não nos parece acertado falar-se, no caso dos sobrados magros do Recife, em influência holandesa, quando os há do mesmo tipo em Lisboa, Antuérpia, Amsterdão ou Argel. Falando em influências, o certo seria dizer-se com Luís da Câmara Cascudo: « Influências de onde ? De toda a Europa. De todos os grandes portos da Europa». No caso do Recife, o que se passou no século XVII foi a angústia cada vez maior do terreno, em relação com as necessidades do espaço para construção, diante das exigências do porto cada vez mais movimentado, e, destarte, a solução mais natural foi a do sobrado daquele tipo, universalmente criado como solução única para o caso. Nasceu esse tipo de sobrado magro diante das águas do Atlântico e do Capibaribe por motivos análogos aos que o fizeram surgir em Antuérpia diante das águas do Escalda; em Lisboa, diante das do Tejo, e em Amsterdão, em frente às do Y e do Amstel, como um produto espontâneo da evolução e da diferenciação urbanas». No Recife, « longe de significar... uma expressão de influência holandesa na arquitectura brasileira, o que (ele) traduz na verdade é um traço característico da paisagem urbana, da sua evolução e diferenciação em consequência da situação e localização da cidade. O sobrado acentua no Recife o seu magro perfil vertical em consequência de peculiares funções da cidade-porto, assentada em zonas com escassez de terrenos propícios a construção ». De resto, os sobrados altos e esguios do Recife não foram aí erguidos durante o tempo dos flamengos, mas somente cerca de um século depois da Restauração Pernambucana, numa altura em que poucos traços da cultura trazida pelos Holandeses subsistiam; e o Autor remata: « Não houve no caso qualquer influência holandesa; aquilo que o parece ser é produto de simples coincidência de factores análogos, condicionando soluções idênticas aqui e na Holanda». Por outras palavras, não se trata de influência cultural, mas sim ecológica21.
34De certo modo, porém, as duas orientações coincidem : de facto, ambas elas consideram o sobrado magro como um produto de actividades portuárias, próprio de zonas dessa natureza, e explicam-no em função de factores socioecológicos que lhes são peculiares: a concentração de gente mercadora, decorrente do desenvolvimento económico-social dessas zonas que resulta do comércio marítimo internacional, em áreas densamente urbanizadas num espaço limitado. Josué de Castro adopta este ponto de vista funcional, com inteira independência de considerações históricas de origens nacionais; mas como aquele complexo topográfico tem a sua expressão mais perfeita nas cidades talássicas e comerciais da Holanda, e como a época de expansão deste país coincide com o desenvolvimento geral de todos os portos europeus, o argumento histórico insere-se no próprio condicionalismo socioecológico.
35As razões de Josué de Castro, no que respeita especialmente à ausência de sobrados com mais de dois andares durante a dominação holandesa no Recife, não são porém estranhas à argumentação de Aderbal Jurema. Para este Autor, com efeito houve uma primeira influência directa da Holanda no Recife, quando da sua ocupação efectiva no século XVII, que se traduziu apenas no aumento em altura das primitivas casas e barracos térreos dos raros portugueses que ali habitavam, e a sua transformação em sobrados estreitos de dois e três andares incluindo o rés-do-chão22 ; e ainda na difusão de certos traços fundamentais das construções portuárias da Holanda, que representam soluções económicas de aproveitamento de espaço – nomeadamente telhados agudos de duas águas, apoiados em altas empenas laterais, facultando um andar suplementar, o sótão, sem elevação das paredes mestras – e bem assim a adopção do material adequado a esse estilo, corrente na Holanda: o tijolo23. A esta primeira influência, veio, nos séculos XVII e XIX, sobrepor-se outra, porventura mais activa e importante, agora indirecta, via Lisboa e Porto, que, no que se refere às construções esguias e altas portuárias, haviam já sido influenciadas pela Holanda, e que, encontrando no Recife a semente deixada pelos Flamengos, deu ao sobrado magro dessa cidade o máximo esplendor do seu género: « os sobrados másculos» de cinco e seis andares, fora os sótãos24. De facto, o capítulo III do seu livro é consagrado à demonstração das origens holandesas das casas daquele tipo de Lisboa e do Porto, baseada na existência das importantíssimas relações comerciais entre Portugal e a Flandres, datando já dos primeiros tempos da nacionalidade, muito antes do século XVI e portanto da época holandesa do Recife; do mesmo modo que na pintura quinhentista portuguesa, a influência flamenga teria sido decisiva na casa esguia e alta das zonas portuárias portuguesas. E invoca Júlio Dantas, que fala nos «telhados flamengos» da Rua dos Mercadores de Lisboa do século XVI, comparando-a a uma rua da moderna Bruges; e também Ramalho, que, nas suas aproximações das casas do Porto e de Amsterdão, fala na « flamenga Rua da Reboleira», onde « mais se concretiza a influência dos Flamengos sobre a casa de muitos andares das zonas portuárias de Lisboa, do Porto e do Recife »25. É por isso que o sobrado magro se estendeu a outras cidades portuárias do Brasil, como a Bahia, o Rio de Janeiro, etc. ; mas enquanto nessas cidades o sobrado é «muito menos magro e quase sempre mais baixo», com ornatos rococós e telhados «chatos» a evidenciarem influências portuguesas, no Recife a herança directa holandesa preservou a linha « enxuta » e estreme das fachadas, que domina até o barroco das suas igrejas mais antigas, e que se reflecte nesse elemento psicocultural a que alude Gilberto Freyre26.
36Note-se que esta afirmação abre novas perspectivas à problemática histórica do assunto. Admitindo-se, na elaboração do sobrado magro recifense, uma influência holandesa indirecta via Lisboa ou Porto, não só se diminui a força da imposição geográfica, que os Portugueses desconheciam na sua agudeza maior, na criação dessa casa, mas também se afirma a sua origem portuguesa directa, embora numa forma modelada por certos traços mais especificamente flamengos, que subsistiram no processo de aculturação que ali teve lugar, pondo-se primariamente em causa a questão da origem da casa esguia e alta portuguesa.
37A tese flamenga de Aderbal Jurema parte fundamentalmente de uma antinomia essencial entre dois tipos de construções que existem ou existiam no Recife, com características opostas que correspondem a uma dualidade nítida de origens nacionais; ela resume-se nas seguintes palavras: « No que se refere às construções civis de Portugal e da Holanda, parece-nos que o espírito do barroco lusitano – de linhas horizontais – encontrou na adaptação ao trópico, fincando-se na terra pelas raízes da cana-de-açúcar, um motivo ecológico de aculturação e acomodação patriarcal que mais se acentuou nas casas alpendradas, derramando-se pelas colinas. Enquanto isso, o sobrado magro holandês, principalmente o de zonas lacustres como Amsterdão, buscava nas alagadas e estreitas planuras recifenses o seu húmus para florescer. Daí a casa portuguesa, pesadona, de paredes grossas, feitas com pedra, sugerir um barroco agrário... e o sobrado alto, esguio como um coqueiro, já se entremostrando nas gravuras de Post, ter servido socialmente de casa burguesa, no seu significado mais mercantil, com a associação da morada, nos andares superiores, à utilização do térreo para estabelecimentos comerciais. Estilo de casa coerente com o espírito mercantilista da época, e que, premido pela exiguidade de terreno, tanto em Amsterdão como no Recife, consegue burguesmente reunir o útil ao agradável »27.
38Da complexa descrição que, desses dois tipos, se vai fazendo ao longo do livro que estudamos, eles podem definir-se como segue:
Por um lado, casas de rés-do-chão e andar, de linhas horizontais, «pesadonas» e «acaçapadas», com telhados de quatro águas, e com o aspecto atarracado das construções barrocas portuguesas; com paredes grossas de pedra, e esquinas, soleiras e ombreiras de cantaria, é a casa rural, e também o «sobrado patriarcal urbano» do Recife, que descende em linha recta das casas da primitiva Olinda – é portanto a casa de Olinda, de origem portuguesa28.
Por outro lado, em contraste marcado com essas, e indicando conjecturalmente a sua origem holandesa, casas esguias, com fachadas por vezes notavelmente exíguas e «magras», e que no século XIX atingem cinco e seis andares, de «altas empenas laterais» geralmente de tijolo, sobre os quais assentam telhados de duas águas, na direcção frente-fundo, que o Autor qualifica de «agudos», «pontudos», « íngremes » e até «a pique», acentuando a sua forma e semelhança com o « gable » da casa de Amsterdão, que tivesse mudado de direcção29. Estas características, que ainda hoje constituem o traço visual predominante na paisagem urbana recifense, parecem-lhe representar uma versão nacional desse « gable » holandês, e devem a sua expansão ao facto de permitirem a utilização do sótão com um andar suplementar, que não impõe a elevação das paredes mestras, com a vantagem ainda, perante o telhado de quatro águas, de exigir menos madeira, escassa na região. Elas generalizaram-se na verdade depois da ocupação holandesa, representando soluções de alargamento de espaço para acomodações, que nessa altura se tomaram particularmente desejáveis, e que os Holandeses conheciam; acresce que só pelo emprego de tijolo foram possíveis os arrojos de tais empenas, e que esse material passou a ser de uso corrente só depois daquele acontecimento30.
39Como soluções de finalidade funcional – que também parecem indigitar a origem holandesa deste tipo de casa –, para ventilação e iluminação dos sótãos, são correntes, além das janelas rasgadas nos próprios outões, sempre que tal é possível, os « lantemins », que se elevam acima do cume do telhado, e mostram um tejadilho independente, também de duas águas; as «trapeiras», ou águas-furtadas, que o Autor considera de um « velho estilo ibérico» de inspiração mourisca ou romana, e que são gerais em toda a Europa; e os «mirantes», que embora possam ter sido de origem flamenga, seriam substituídos pelos miradouros portugueses, existindo em várias cidades do Brasil, e funcionais também em relação à observação de entradas e saídas dos navios. E, como elementos acessíveis, podemos ainda indicar « muxarabis » ou « quase-muxarabis » : beirais «de pagode chinês», largos31, arrematados em «cauda de andorinha» ou « à feição de pombo», traduzindo influências sino-japonesas, importadas no Recife e em Portugal «pelos mestres lusitanos que praticaram nas colónias asiáticas do reino »32; gelosias; janelas corrediças, com vidraças, de influência inglesa33, portadas ibéricas; e, mais raros no Recife, arcos «de inspiração florentina »34, tudo isto... coexistindo dentro do perfil vertical de altos e estreitos sobrados com tectos pontudos « à moda de Olanda »35. É ainda o azulejo que tem no Recife a área da sua maior utilização, e que Gilberto Freyre considera de origem portuguesa, contra os que querem ver nele uma manifestação do asseio tradicional holandês36.
40Foi esta a casa de que, segundo o Autor, os Holandeses lançaram a semente no Recife no século XVII, embora então ela não tenha ultrapassado o nível de dois ou três pisos; nos séculos XVIII e XIX ela desenvolve-se notavelmente, já porque a proverbial plasticidade do Português o levou a adoptar o ritmo vertical da construção batava, já porque a própria construção portuária metropolitana, que ele repetia nos trópicos, acentuava aqueles caracteres, por influência directa da Holanda sobre Portugal; já ainda porque ela era « funcional e burguesmente rica de acomodações para o tipo de sociedade que, no Recife, se iria desenvolver nos séculos XVIII e XIX »37, dando-se assim uma complexa convergência de motivações : dupla influência formal da Holanda, directa e indirecta « via Portugal», e dupla influência funcional, portuária e burguesa: tipo híbrido de residência e loja – por vezes de seis andares, e onde as actividades familiares decorrem em sentido « quase puramente vertical», com os estabelecimentos, armazéns ou sanzalas para os criados no térreo, escritórios no segundo andar, e a parte residencial nos demais: salas de visitas e quartos de dormir nos seguintes, salas de jantar em cima, a cozinha no último ou no sótão, onde se situam também as outras ocupações domésticas e onde vive e trabalha todo o elemento feminino da casa38, e ainda, acima, um «mirante ou cocuruto onde se podia observar a cidade e admirar a vista dos arredores» –, nestes sobrados (e de resto também nos do mesmo género que, por influência portuguesa, se encontram, menos altos e magros, noutras cidades do Brasil) «situaram-se estilos de vida luso-brasileira bem característicos do período de transição entre o declínio do patriarcalismo rural e o desenvolvimento do urbano » : própria fundamentalmente da gente burguesa comerciante do século XIX, esta forma é adoptada pelos senhores de engenho, «atraídos pelas seduções da vida mundana da capital e pela agradável vista do mar que se descortinava dos altos miradouros»39, podendo considerar-se a casa típica do recifense mais rico – o comissário do açúcar –, símbolo da prosperidade que atingiram então esses « fidalgos do comércio», que, a despeito das reduzidas possibilidades que oferece, nela vive com o mesmo luxo e largueza que nas casas grandes; ao mesmo tempo que, noutros níveis, mas em conceitos afins, ela é, do mesmo modo, a residência das classes inferiores da sociedade.
41Não nos compete, de modo nenhum, tomar posição nem parte na controvérsia, mesmo porque conhecemos o sobrado recifense e a problemática que ele suscita apenas através das descrições de Gilberto Freyre e Aderbal Jurema, e das gravuras que ilustram o livro deste Autor que vimos comentando. Perante esses dados, porém, a comparação entre os tipos habitacionais do Recife e do Porto impõe-se categoricamente, sugerindo uma relação estreita, se não decisiva, entre ambos: a semelhança visual é irrecusável, e o próprio Gilberto Freyre, na sua recente Aventura e Rotina a acusa, dizendo: « Èu revejo e os outros... vêem pela primeira vez a cidade do Porto... e... concordamos em achar nos sobrados alguma coisa dos recifenses »40.
42O Porto, com efeito, oferece, neste caso, o interesse especial não só de ser, como o Recife, uma cidade em que a casa esguia portuguesa tem uma preeminência tal – ela representa verdadeiramente a casa típica da cidade, constituindo a quase totalidade das suas construções civis – que acentua com mais clareza do que em qualquer outro caso os seus caracteres específicos, significado, implicações e traços de origem, mas também o de possuir uma estrutura social peculiar e bem definida no conjunto nacional, que indica nitidamente a natureza dessa casa: o Porto é ao mesmo tempo uma cidade de estatuto burguês expresso, e uma cidade constituída por casas esguias e altas – o que prova que, entre nós, a casa esguia e alta é, na verdade, a casa burguesa. Vamos por isso tentar a sua análise um pouco mais atenta, convencidos de que ela trará elementos novos à interpretação do sobrado de Recife, considerando especialmente o seu aspecto geral, e certos traços basilares que Aderbal Jurema destaca na sua caracterização desta última.
43O Porto representa o desenvolvimento do vetusto Portus Cale – o porto, situado à beira-rio Douro, da cividade castreja de Cale, localizada na escarpa, hoje arrasada, que, nos nossos dias ainda, levava o nome de Corpo da Guarda e Cimo de Vila, um pouco ao norte do morro da Sé. O aglomerado ribeirinho teria sido mais um desses povoados que surgiram com a paz romana, a partir da ocupação das terras baixas pelas gentes castrejas que abandonaram os seus redutos, e, aqui, se instalaram no local onde o desembarque da travessia do rio é o ponto de partida da penetração para o interior. Logo na sua remota origem, portanto, o Porto liga-se a actividades portuárias, de circulação e comércio, e este carácter, que lhe dará o nome, subsistirá através de toda a vida da cidade, definindo-se, com o decorrer dos tempos, de modo cada vez mais consequente.
44No século vi constitui-se o burgo episcopal, no cerro amuralhado da Pena Ventosa, no morro da Sé, que domina estrategicamente a zona fluvial: os bispos são os senhores da cidade, mas é na faina da vila baixa que verdadeiramente germina o seu futuro.
45D. Teresa dá o burgo portuense e o vasto couto que o rodeia em concessão à Mitra, que em 1123 outorga foral aos respectivos habitantes, fixando-lhes as suas liberdades, direitos e garantias; e à sombra deste diploma, a cidade prospera, em crescimento constante, enchendo-se de uma população laboriosa e activa, mercadora e fabril, que vai povoando o fronteiro morro da Vitória, englobado mais tarde na cerca fernandina.
46A indústria e o comércio – e principalmente o comércio marítimo – são, pois, desde a primeira hora, os traços que definem a personalidade social do Porto, e a quem a cidade deverá o seu engrandecimento e riqueza. Temos notícia de importantíssimas relações comerciais que, desde os primórdios da monarquia, o Porto mantinha com a França, Inglaterra e Flandres, por meio das naus que demandavam a barra do Douro e fundeavam em frente à Ribeira. Na defesa dessa actividade, que no próprio dizer dos procuradores do Porto às Cortes de Évora de 1436, justificava o povoamento da cidade e constituía a mola real da sua prosperidade, os diferentes monarcas, incluindo D. Afonso V, concedem à cidade o privilégio que proibia aos nobres a posse de casas e a residência no Porto por mais de três dias, pondo desse modo uma população ciosa da independência a quem devia a sua riqueza, e cuja actividade obrigava a longas ausências, ao abrigo das exacções e desmandos de uma nobreza prepotente.
47Até ao século XVI, a cidade compunha-se, pois, exclusivamente dessa gente comerciante e mesteiral, habitando então os bairros da Sé e da Vitória, com os seus negócios e as «bandeiras» dos seus ofícios arruadas à maneira medieval. Em 1502, D. Manuel, com a sua política de centralização absolutista apoiada na nobreza, permite a esta classe a edificação de casas e a residência no Porto, derrogando o privilégio burguês que tão caro era aos Tripeiros. Mas o carácter e a fisionomia sociais do Porto, anteriormente fixados, mantiveram-se e prevaleceram mesmo depois disso, e ainda hoje, para lá do nivelamento que apaga todos os regionalismos, distinguem a estranha metrópole nortenha : terra que não tivera senhores poderosos e opulentos por direito de nascença, e onde a nobreza era uma classe intrusa, recente, sem prestígio, encarada mesmo com hostilidade, e sem direitos ancestrais, o Porto, como outrora, continuou – e continua – a ser a cidade industriosa, comerciante e plebeia, para quem é válida, acima de todas as demais, a escala dos valores materiais, do trabalho, da economia e do dinheiro. Gilberto Freyre sente no Porto «a presença do novo-rico, o ímpeto do arrivista, e até mesmo algum exibicionismo de parvenu »41 ; mas a esta visão, de certo modo exacta, falta a perspectiva histórica e social da cidade: não se trata verdadeiramente do novo-rico, do arrivista, do parvenu característico : é antes o natural de uma cidade que desde sempre foi rica, e em que o dinheiro é o prémio da sua cultura específica, dos seus valores, da sua vitalidade. A riqueza tripeira representa um labor de tal vulto e valor construtivo que os próprios reis, em muitos casos, a nobilitaram especialmente. O Porto é de facto a cidade burguesa de Portugal, mas, por isso mesmo, a burguesia do Porto tem um sentido especial, diverso do que tem a burguesia nas outras terras do País: aqui, o trabalho e o comércio ascendem ao mais alto nível social, à semelhança do que acontecia nas cidades burguesas das ligas hanseáticas, da Holanda, da Flandres ; e há nomes, que figuram na tabuleta de casas comerciais, que valem títulos nobiliárquicos. A nobreza qualificada do resto do País, na sua aversão às profissões mercantis, fechada num conceito cerrado de casta e só reconhecendo direitos de cidadania a quem ela pertencesse, continuou durante muito tempo a «a não saber quem eram » os grandes nomes burgueses do Porto, que eram ricos porque trabalhavam; confundiam-nos com a arraia-miúda e com a menos significativa classe média das outras terras, que vivia abaixo dela e à sua sombra. E não percebia que a burguesia do Porto era um caso único e à parte, representando ali a classe mais elevada, uma aristocracia comercial que era o verdadeiro senhorio da cidade, que não reconhecia nenhuma classe acima de si, e perante quem a nobreza tinha – e teve – de se curvar. De geração em geração, a sua riqueza transforma-se numa verdadeira cultura superior, solidamente estruturada, apurada e original. A própria nobreza, em muitos casos, ingressa no comércio e adopta os padrões da classe. É a burguesia quem imprime ao Porto o tom próprio de um viver que fez a sua personalidade e a sua dignidade e se tomou característico : menos elegante e requintado, sofisticado e brilhante do que profundamente decente, sólido, equilibrado e sisudo; rico, sério e sóbrio, vivendo largamente, por vezes com ostentação mas sem aparato, de contas boas e sãs, nada boémio nem vadio, desconfiado de prodigalidades. Numa evolução progressiva, a partir da distinção que já no século XV se estabelece entre burgueses e mesteirais – os cidadãos enriquecidos com o comércio, especialmente marítimo, e o povo miúdo –, ela vai-se diferenciando em hierarquias muito nítidas que se evidenciam com especial relevo no século XIX. Essa época, que marca uma grande diferença no viver tripeiro, nos seus modos e conceitos, e que coincide – e certamente não por acaso – com o advento do liberalismo, em que a burguesia atinge o seu pleno desenvolvimento, assiste a grandes mudanças e fenómenos sociais, e a um intenso e complexo fenómeno de urbanismo já muito diversificado. Depois da celebração do Tratado de Methuen, com a Inglaterra, em 1703, ao mesmo tempo que o comércio do vinho do Porto tomava um incremento quantitativo e qualitativo notável, a sociedade portuense é posta em contacto íntimo com a colónia inglesa, cujo viver típico muito iria influenciar certas camadas sociais da cidade. O vinho do Porto, na verdade, não é apenas um produto da terra senhorial; ele pressupõe uma comercialização complexa e especial, que de certo modo exprime o sentido mais subtil da burguesia do Porto. E como a propósito dos comissários de açúcar do Recife, na expressão de Gilberto Freyre, também os comerciantes do vinho do Porto serão na cidade os fidalgos do comércio – fidalgos, de facto, de longa e apurada tradição de bem viver. Nestas esferas mais elevadas, vemos a burguesia do Porto, fechada a loja, procurar requintes de ambiente e de convívio: cultiva a música e as artes, lê, viaja, instrui-se e fala línguas; educa os filhos em Inglaterra, faz uma vida social intensa, ao mesmo tempo familiar e formal, provinciana e mundana, marcadamente patriarcal, e que não precisa de imitar a nobreza para afirmar os seus valores próprios. É também então que se opera a aproximação e a fúsão progressiva dos extractos burguês e nobre da cidade, por uma espécie de aculturação de conceitos, até aí exclusivos de cada um deles. Finalmente – e é esse um ponto que consideramos de importância fundamental –, o século XIX é a época em que se verifica, por muitos lados, o retomo do emigrante português enriquecido no Brasil, que constitui um poderoso facto de difusão cultural, que não tem sido devidamente considerado; muitos elementos que se encontram simultaneamente em Portugal e no Brasil não são possivelmente formas portuguesas que foram levadas para uma terra de povoação mais recente, mas, pelo contrário, produtos elaborados nesse país de tão ricos contactos e relações de culturas, e trazidos para Portugal pelo veículo do emigrante de retomo que, no seu desejo de ostentação, repete na sua terra aquilo que aprendeu onde se fez grande. O estudo desses elementos culturais está por fazer, e merece a atenção, necessariamente conjunta, da investigação portuguesa e brasileira.
48A casa portuense traduz todo este quadro histórico-social, como um corpo vivo que tem no homem a sua realidade verdadeira e mais funda. O velho centro do Porto, ao lado do burgo medieval, que se espraia aqui e além em belas ruas quinhentistas, e as suas imediações – antiquadas ruas irradiantes, seis, sete e oitocentistas, que representam o primeiro transbordar além-muralhas desse burgo primitivo, e o povoamento das estradas de acesso às portas da cidade e suas áreas, e que nenhuma relação directa tem com a zona ou actividades portuárias, é composto fundamentalmente por edifícios, na sua maioria dos séculos XVII, XVIII e XIX, que se podem agrupar em duas categorias perfeitamente distintas: por um lado, num desfiar sem conta, seguindo-se umas às outras ao longo de todas essas mas, casas com um número variável de andares – na sua maioria com três ou quatro, fora os acréscimos, e não raro com cinco e mais, e com duas ou três janelas de frente, raramente com mais, e às vezes só com uma – mas todas elas uniformemente esguias, estreitas e altas, desenvolvendo-se, numa palavra, em solução vertical; por outro, dispersas no meio delas, outras casas, largas e baixas, de amplas fachadas em linhas horizontais, compostas fundamentalmente de rés-do-chão e andar nobre, com numerosas portas e janelas, e enriquecidas muitas vezes com um mezzanino ou um piso suplementar de serviço, que servem de pretexto a primores arquitectónicos que os mascaram, pertencendo, numa palavra, claramente à categoria de palácios: as primeiras, com predomínio numérico decisivo sobre as segundas; estas, raras e isoladas, bem individualizadas no meio das primeiras, em contraste marcado com essas, e muito mais avultadas, individualmente, do que elas.
49Esta distinção elementar e expressiva corresponde visivelmente a uma dualidade fundamental de níveis económicos e sociais: a casa estreita e alta, no Porto como por toda a parte em geral, constitui, na sua forma e sentido originários, um tipo híbrido funcional de residência urbana e estabelecimento comercial, simultaneamente, referidos à mesma família, estritamente utilitário, de acordo com as necessidades profissionais e a mentalidade da gente de que é própria, que tinha as suas lojas, armazéns ou oficinas (relacionadas ou não com o comércio marítimo), no rés-do-chão, junto à rua, abertas ao público, e habitava, sem qualquer aparato, os andares superiores, correndo assim os ferrolhos da casa, à noite, como gostam de fazer todos aqueles a quem o dinheiro custa a ganhar, e dormindo sobre a sua mercadoria; ela é, por outras palavras, a casa popular e burguesa, estreita por economia de terreno e de manutenção, cujo carácter híbrido é atestado pela existência, sem excepção, de pelo menos duas portas sempre: uma, da residência, e outra, da loja; e também, muitas vezes, de soluções especiais de comunicação entre esses dois sectores, tais como escadas privativas ou alçapões entre os andares superiores e o rés-de-chão. Por seu turno, a casa larga e de rés-de-chão e andar – o palácio – é a casa nobre, própria originariamente duma classe poderosa e terratenente, para quem a largueza de espaço é afirmação de prestígio e domínio, que transferiu para a cidade o conceito da casa senhorial do campo, e fez da sua residência uma espécie de solar urbano à beira-rua ; casa duma classe que, além disso, vivia de benefícios e não de mesteres ou ofícios mercantis que impusessem ajustamentos funcionais a eles subordinados, e em que, pelo contrário, à semelhança do que sucedia nos paços reais, que representavam, grande parte é concedida, por dever de Estado, ao aparato das salas de recepção.
50Casas esguias e palácios não constituem, de modo nenhum, soluções peculiares e privativas do Porto. O palácio tripeiro, na sua estrutura geral, é uma forma comum europeia, e, nos seus pormenores, parece representar apenas a transposição para o Porto do tipo corrente do solar urbano nortenho, seis, ou mais geralmente, setecentista, nomeadamente das regiões de granito, com a pompa das suas janelas, sacadas, portais e brasões joaninos, os seus vastos átrios com escadaria de pedra lavrada ao fundo, curvando por vezes num patamar de coluna, desdobrando-se normalmente em dois lanços, com as dependências de serviço no rés-do-chão, e, no andar nobre, sobre a frente, a enfiada das salas de recepção, abrindo umas sobre as outras. A casa esguia e alta, pelo seu lado, é um tipo urbano também vulgar no País, especialmente no Norte, onde aparece, em termos estreitamente semelhantes àqueles em que a encontramos no Porto, em outras localidades urbanas, sejam costeiras sejam do interior, e até, como dissemos atrás, em numerosos países europeus, correspondendo por toda a parte ao extracto popular e burguês da população, aos artífices e comerciantes de áreas mais ou menos densamente povoadas. A originalidade do Porto está em que, no velho coração evoluído da cidade, onde se elaborou a sua cultura específica, e que corresponde ao seu significado tradicional, há apenas, praticamente, casas esguias, cada qual de sua altura, e alguns raros palácios, num contraste perfeitamente demarcado das duas formas. As soluções fundamentais da habitação citadina – a horizontalidade e a verticalidade –, cuja combinação nos largos prédios comuns, de grande número de pisos, faz os conjuntos ordenados e as perspectivas unitárias das cidades de tipo europeu, estremam-se – ou estremavam-se até há pouco – no Porto radicalmente. O Porto é uma cidade grande, feita de casas pequenas e irregulares – e, aqui e além, uns raros palácios discretos. E é precisamente essa antinomia estreme e exclusiva, e sobretudo a maioria esmagadora de casas estreitas e de tamanhos variáveis, que nos dá a razão da desordem aparente da paisagem visual do Porto, sobre que adiante nos deteremos.
51Mas o Porto, sob o ponto de vista habitacional, oferece ainda outra peculiaridade, que, do mesmo modo, encontramos na descrição que Gilberto Freyre e Aderbal Jurema fazem do Recife: enquanto que por toda a parte, de um modo geral, a casa estreita e alta – a casa burguesa, que aí é da classe média – é uma casa modesta, inexpressiva, talvez mesmo mesquinha, traduzindo o viver de uma classe excluída das manifestações mais representativas da sociedade local, que quando muito procura, no seu modo de viver, dar satisfação a um desejo tosco de ostentação, no Porto essa é a casa de toda a gente, e por isso ela apresenta por vezes requintes que transcendem o tipo comum, assemelhando-se, em muitos dos seus elementos, aos palácios nobres: fachadas em que se acentua o ritmo vertical, mas em belas cantarias lavradas como nos solares joaninos: beirais de faiança; átrios de azulejos com estreitas escadarias de pedra terminando em belos modilhões ao gosto seiscentista. Interiormente, elas são sem dúvida desse sistema pobre a que Ramalho, comparando-as com as holandesas de Amsterdão, chama « de alforge », imposto pela sua estrutura, e também por uma ética tradicional de vida vertical: salas para a frente e para as traseias, a sala de jantar e a cozinha no último andar – com os galegos aguadeiros, tal como os moleques escravos do Recife, galgando as escadas com os canecos de água dos fontenários ao ombro –, por causa dos incêndios e dos cheiros; os sótãos – a que o padre Rebelo da Costa chama as « sobrecozinhas » – para arrumações e alojamento de criadagem; e a meio a escada, iluminada por óculos ou clarabóias – e, no rés-do-chão, sobre a rua, o estabelecimento. O grande desenvolvimento da cidade, a partir do século XVII, e o incremento da riqueza que então se dá acarretaram sem dúvida uma progressiva diferenciação económica que se reflecte directamente nas casas: aparecem casas grandes e pequenas, ricas e singelas tanto interior como exteriormente; mas à parte os palácios, nobres ou burgueses, que serão sempre raros, a casa tripeira, mesmo a de gente de grandes haveres e sob muitos aspectos equiparada ao nobre, continua a ser esguia e alta, híbrida e funcional, dentro do tipo fixado ; e muitas vezes – o que é um aspecto social característico da casa do Porto – uma casa de aparência modesta pertence a uma família de burgueses ricos e de projecção na vida social, e é interiormente opulenta: na sua simplicidade utilitária, as madeiras são muitas vezes preciosas, de pau-brasil, pau-rosa ou pau-cetim; os tectos, de caixotões barrocos, de castanho, geralmente decorados com pinturas ornamentais, ou de finos estuques no mais puro gosto Adam ou Wedgewood, testemunhando influências inglesas, quando não nos exuberantes motivos da época vitoriana, que têm uma versão muito corrente na província minhota; as portas são de belas almofadas entalhadas, pintadas a branco e ouro, com «espelhos» de madrepérola ou marfim ; as vidraças, com bandeiras de desenhos pós-georgianos ; fogões de mármores famosos; lustres de cristal, jóias e pratas de valor, delicados móveis e porcelanas inglesas ou orientais, bibliotecas ou colecções valiosas, uma mesa farta e cuidada, vinhos afamados – tudo isso testemunhando, nesses níveis mais altos, um viver patrício em casa burguesa – um viver largo em casa estreita e vertical – que era o verdadeiro sentido da cultura tradicional do Porto.
52Acompanhando a evolução dos conceitos sociais pelas razões que atrás apontámos – novos matizes sociais, contactos com a classe nobre e a sociedade inglesa, e talvez certas noções próprias do romantismo – surgem no século XIX conceitos habitacionais diferentes e novos tipos de residência urbana: além de se generalizar o costume de passar o Verão fora da cidade, em quintas suburbanas ou à beira-mar, a casa da cidade deixa de ser funcional, dissociando-se a residência e a loja, aparecendo casas só residenciais; mas – e é esse o fenómeno mais significativo e original, no que respeita à casa do Porto – estas, agora já apenas por razões de inércia cultural, mantêm o tipo estreito e alto, em que, em vez da loja, fica no rés-do-chão uma sala, com janelas gradeadas sobre a rua. E este tipo cultural perdurará como tal no Porto até aos nossos dias.
53No Porto, portanto, encontram-se, como no Recife, casas estreitas e altas, e casas largas e amplas, com predomínio decisivo das primeiras sobre as outras. E a distinção, de base morfológica, que, a respeito do Recife, Jurema faz entre casa portuguesa e casa holandesa, corresponde precisamente àquela que, no Porto, fizemos entre casa nobre e casa burguesa. Os dois opostos acham-se no Porto claramente documentados, em termos que se nos afiguram perfeitamente idênticos aos do Recife; e, aos nossos olhos, tal distinção exprime, não uma dualidade de origens, mas sim, dentro dos dois tipos portugueses fundamentais, dualidade de funções sociais: a casa «acaçapada», de linhas horizontais barrocas, de Olinda, é a casa larga e ampla: a casa nobre; o «sobrado magro», do Recife, é a casa esguia e alta: a casa burguesa. Para um portuense, muito em especial, a casa de linhas horizontais não é de modo nenhum «a casa portuguesa», por oposição a uma casa esguia não portuguesa: ela é apenas a casa nobre, apalaçada, por oposição à casa não nobre – esta última, na velha cidade burguesa nortenha, verdadeira casa regional –, a única que, desde sempre, ele conheceu como tal. E a correspondência que apontámos toma um sentido mais sugestivo ainda, se pensarmos que a «casa portuguesa» de Jurema – a nossa casa nobre – é precisamente a casa de Olinda, a velha cidade da época das Capitanias, fundada pela nobreza militar de Duarte Coelho; enquanto que a «casa holandesa» de Jurema – a nossa casa burguesa mercantil – é a casa do Recife, a cidade da burguesia comerciante.
54No Porto, como dissemos, estas casas, na sua maioria, apresentam-se como edifícios dos séculos XVII, XVIII e XIX, com três andares acima dos rés-do-chão, fora os acréscimos, e com duas ou três janelas de frente; em certas ruas, porém, vêem-se prédios com quatro e mais andares, às vezes seis e sete. As fachadas são de uma grande simplicidade de linhas e segurança de estilo, de desenho regular e simétrico, mais sóbrias e severas no século XVII, mais graciosas e movimentadas no século XVIII; elas compõem-se fundamentalmente de combinações variadas e harmoniosas de janelas, óculos e varandas – estas, que podem ser individuais ou corridas a toda a largura do prédio, mas sempre estreitas, abertas, com guardas de ferro, e com a maior importância ornamental – dispostas de modo diversos nos diferentes andares, o último dos quais se assinala geralmente por qualquer particularidade distintiva que o destaca dos demais, como por exemplo ser mais baixo do que os outros, mostrando uma varanda acima de um falso beiral ou cornija, ou apresentar certas soluções típicas mais elaboradas, tais como frontões, em tímpano perfeito, truncado ou imperfeito, ou falsos frontões, incluídos na estrutura do edifício e completando a linha de sua fachada42. Raramente com a pedra à vista, essas frontarias são em geral lisas e rebocadas a branco ou outra cor, mostrando, em destaque, grande variedade de motivos decorativos e orgânicos – molduras, pilastras, cornijas, óculos, nichos, mísulas ; belíssimos entablamentos e cachorros de varandas e beirais, e ainda esses notáveis algerozes que parecem representar uma última forma das gárgulas góticas – no magnífico granito escuro e duro da região, e que ora se filiam em correntes gerais europeias pós-renascentistas, ora se podem considerar versões do barroco nacional e até provincial, aparecendo, com datas anteriores, em casas nobres de Entre-Douro-e-Minho, nomeadamente em Viana do Castelo, Guimarães, Braga, Penafiel, etc., onde existe uma velhíssima e apurada tradição de cantarias, e donde teriam passado para a casa nobre do Porto, pelo veículo do artífice minhoto popularizando-se em seguida por um processo normal de difusão cultural a partir de elementos próprios originariamente de níveis sociais mais elevados.
55No século XIX, as fachadas simplificam-se consideravelmente, desaparecendo praticamente os motivos ornamentais que as animam, e tomam-se pobres e monótonas; as varandas reduzem-se a uma pedra linear, e pode aqui dizer-se, como no Recife: fachadas enxutas e escorreitas, na sua pura verticalidade, que certos ornatos – guias de pedra, verticais, a toda a altura do edifício – por vezes acentuam e como que consagram. Este empobrecimento, de resto, é compensado pelo aparecimento de novos tipos residenciais mais luxuosos, nomeadamente o característico «palacete» tripeiro, misto de casa larga e casa burguesa, que é costume considerar, entre nós, próprio do «brasileiro» de retomo. Nessas fachadas lisas, generaliza-se o revestimento de azulejo, de desenhos singulares ou formando conjuntos; este sistema toma-se muito comum e vemo-lo prolongar-se nos modernos edifícios de concreto, ajustado a técnicas e a uma estética inteiramente novas; e lembramos que, no dizer de Gilberto Freyre, foi também no Recife que o sobrado de azulejo alcançou maior esplendor43.
56Vemos assim que, pelas características morfológicas da sua estrutura geral, e pelos seus pressupostos sociais e económicos, a casa esguia do Porto e o sobrado magro do Recife mostram um estreito parentesco. Vamos agora analisar certos traços especiais, que se vêem neste último, e que, segundo Jurema, indigitam a sua origem a partir de « raízes holandesas», marcando uma diferença nítida com os sobrados do mesmo tipo de outras cidade do Brasil: nomeadamente a forma peculiar dos telhados – de duas águas, « íngremes » e «pontudos», apoiados em «altas empenas laterais», de forma a permitirem a utilização dos sótãos ; e as diversas soluções de iluminação destes últimos.
57As velhas casas do Porto, anteriores so século XIX, quase sem excepção, têm um telhado de quatro águas, baixo, com os outões, portanto, horizontais, e isto é sem dúvida uma diferença fundamental para com a casa do Recife. Nos prédios que rematam com frontões em tímpano perfeito, o telhado é de facto de duas águas, com o cume no sentido longitudinal do edifício; contudo, mesmo aí se afirma a velha forma das quatro águas, conforme se deduz da sua relação estrutural com o tímpano truncado, que acusa a existência das águas da frente, apenas interrompidas antes da sua terminação normal; e esta interpretação confirma-se com o facto de o frontão se elevar acima de um falso beiral ou cornija que indica a verdadeira linha do telhado frontal. E a força de persistência desta forma é tal, que em casas mais modernas, já com telhado de duas águas, os andares sobrepostos voltam a ter quatro águas; e muitas vezes, quando esses acréscimos ocupam todo o telhado, das originárias duas águas vê-se apenas a linha do beiral inclinado nas empenas laterais, com, à frente e atrás, o aumento correspondente ao acréscimo que atinge a altura do cume primitivo44. Jurema, contudo, caracterizando o que entende por «casa portuguesa», parece associar indissoluvelmente a forma «acaçapada» e o telhado de quatro águas; de facto, a casa larga e ampla portuguesa tem geralmente o telhado de quatro águas; no Porto, porém, os telhados anteriores ao século XIX são de quatro águas, mas os prédios correspondentes não são, de modo nenhum, « acaçapados » : os dois traços dissociam-se nitidamente, e, pelo contrário, esses prédios são magros, por vezes magríssimos, como raros o serão no Recife ou em Amsterdão, com uma só janela entalada numa fachada estreita, e quatro ou cinco pisos45.
58Nestes velhos telhados, aparecem, como elemento característico, largos beirais salientes e acolhedores, que prolongam a água frontal; nas velhas casas de tabique, esse beiral assenta num entablamento de madeira, com os caibros à vista; depois do século XVII, aparecem os belos entablamentos de cantaria lavrada, assentes em cachorros também de cantaria, em diferentes estilos. Esses beirais, de natureza francamente funcional em vista do clima pluvioso da cidade, são correntes, em termos mais singelos, nos centros urbanos de Entre-Douro-e-Minho, em telha caleira e com os seus algerozes de pedra, como aqui ; e vemos Gilberto Freyre mencioná-los em relação à casa do Brasil em geral46, de telha «acanalada», e terminando em «cauda de andorinha», num estilo sino-japonês difundido pelos Portugueses no ultramar.
59Deve-se acentuar que esse elemento, extremamente corrente em Portugal, especialmente no centro e Sul do País, confere um aspecto muito familiar à casa recifense.
60No século XIX, porém, generaliza-se nestas casas estreitas o telhado de duas águas alto (persistindo, contudo, o de quatro águas); e esse telhado, como no Recife, e ao contrário da Holanda, é orientado na direcção frente-fundo, assente em empenas laterais que merecem muitas vezes sem dúvida o qualificativo de « íngremes » ou «pontudas», que Jurema aplica às das casas do Recife47. As fachadas destas casas rematam, à frente, com um beiral mais estreito que os antigos, e também, muitas vezes, com uma platibanda, lisa ou de balaústres, cuja linha decorativa se completa em estátuas, umas, vasos, ou pequenos frontões com medalhões, monogramas, ou outros motivos.
61Os telhados de quatro águas, nas casas mais estreitas do Porto, podem ser tão baixos, que não seja possível o aproveitamento do seu vão para sótãos ; logo porém que tal é possível, vemos surgir toda a espécie de soluções de iluminação desse espaço, desde o simples postigo que não altera a linha do telhado, até às várias formas de andares suplementares. Estes elementos, na sua imensa variedade, ainda mais acentuam a irregularidade e diversidade estruturais das fachadas; de resto, eles coexistem em diversas formas, no mesmo telhado, constituindo uma nota característica da casa do Porto, que anula qualquer vislumbre de ordenação dos aspectos de conjunto da cidade.
62Nas casas com telhados de duas águas, o vão é sempre aproveitado para sótãos, facultando mais um andar, sem aumento de altura das paredes mestras, mas apenas dos outões ; esses sótãos mostram, além das demais soluções de iluminação, e sempre que as condições da casa o permitem, uma janela ou até uma sacada rasgada no outão, como no Recife48.
63O que contudo se pode afirmar é que, com muito raras excepções, todas as velhas casas do Porto destes tipos, com telhados de duas ou de quatro águas, apresentam, de uma maneira ou de outra, qualquer espécie de construções suplementares, que ora se enxertam no telhado principal e lhe aproveitam o vão, como as trapeiras, ora se elevam acima dele, como os mirantes (que parecem corresponder àquilo a que Jurema dá o nome de « lantemins », e que considera de origem holandesa), ou os andares sobrepostos que podem ser recuado, ou vir à face do prédio. Os andares sobrepostos recuados podem ser simples ou com varandim ; e estes varandins (que, pelo seu turno, parecem corresponder àquilo a que Jurema dá o nome de « mirantes ») podem rematar à frente com grades de ferro ou com a platibanda normal, e serem cobertos ou descobertos, e os primeiros abertos ou envidraçados; o tejadilho destes varandins cobertos, nos telhados de duas águas, insere-se a uma certa altura da água frontal, que acusa uma quebra característica. Estes varandins cobertos revestem geralmente formas de fantasia, com o tejadilho apoiado à frente em colunas ou arcarias, num estilo pretensamente exótico dos meados do século passado, com portas ogivadas e vidraças de cor. Em prédios isolados ou de esquina, o varandim corre a toda a volta do edifício.
64As diversas formas de andares suplementares que mencionámos são sempre de material pobre: tabique, nas mais antigas, à vista, e nas mais recentes revestido de telha ou lousa a prumo, ou chapa, num sistema que, no que se refere principalmente aos andares sobrepostos, constitui um género corrente nas construções do Minho, Douro e Trás-os-Montes. As três categorias fundamentais – trapeiras, mirantes e andares sobrepostos – distinguem-se não só sob o ponto de vista morfológico, mas também pelas suas funções específicas, tendo de comum apenas o propósito de aumento económico de espaço para acomodações : as trapeiras destinam-se a iluminar e altear um sector de sótão ; os mirantes, à iluminação da escada central, aproximando-se portanto funcionalmente das clarabóias – que são também um elemento muito vulgar nas casas do Porto –, das quais contudo se distinguem por consistirem, interiormente, numa galeria que pode ser utilizada; os andares sobrepostos são mais um pavimento que a casa adquire, de construção leve e barata, e que não exige grande resistência49.
65Esta enumeração basta para mostrar que, no Porto, o aproveitamento do vão dos telhados, com as suas diversas soluções de iluminação e ventilação, e de um modo geral os sistemas de andares suplementares de qualquer natureza, como soluções económicas de espaço, são de uso perfeitamente corrente e normal, sendo mesmo muito raros os casos em que eles não existem, e frequentes aqueles em que, no mesmo prédio, eles aparecem em mais do que uma forma. Eles revestem aqui formas perfeitamente comparáveis às que vemos no Recife, e a hipótese da origem holandesa destas últimas perde muito da sua força, uma vez que, para explicar a sua existência, não se pode falar do seu desconhecimento em Portugal, e fundá-las necessariamente no condicionalismo especial que justifica a casa portuária flamenga.
66Se portanto os velhos telhados portuenses anteriores ao século XIX são na verdade de quatro águas, ao contrário do que sucede no Recife e na Holanda, esta diferença não exclui contudo a outra característica recifense que Jurema considera de origem flamenga, com ela relacionada: o aproveitamento dos vãos para sótãos, e as suas várias soluções de iluminação. Acresce porém que o telhado de duas águas não é de modo nenhum estranho em Portugal; com um significado certamente diferente do do telhado urbano evoluído do Recife, ele constitui pelo contrário, uma das soluções primitivas da casa rural elementar portuguesa, embora sem dúvida com um aspecto muito diverso do que aqui se trata – baixo e extremamente rústico50 –, e além disso, ele é principalmente o telhado normal da casa de muitas regiões do País, nomeadamente do centro e do Sul, podendo-se mesmo dizer que em Lisboa e Coimbra ele aparece por vezes em termos perfeitamente idênticos aos que vemos no Recife51.
67Quanto ao uso do tijolo, que, segundo Aderbal Jurema, se generalizou nessa cidade a partir do período flamengo52, embora tenha já sido aí usado pelos Portugueses antes dos Holandeses53, há na verdade que reconhecer que, como material de construção exclusivo, ele não é característico da velha casa do Porto, tipicamente de granito e tabique ; mas já o mesmo não sucede em várias outras regiões do País, muito especialmente na área mediterrânea, alentejana e algarvia, onde prolonga uma tradição que já vem da época romana; e mesmo no Porto, ele aparece mais modemamente, com muita frequência, recomendado pela sua leveza e maleabilidade, nos acréscimos dos telhados e nos andares suplementares, tão divulgados nos edifícios do século passado; e, numa utilização que reputamos do maior interesse, era com ele que se enchiam os espaços entre o barrotamento cruzado das paredes exteriores nas casas seis e setecentistas do bairro da Sé, construídas pelo sistema do « Fachwerk », entre nós irreconhecível sob a argamassa exterior que o escondia54. De resto, a técnica flamenga e central-europeia da construção em tijolo confere aos edifícios um aspecto totalmente diverso daquele que julgamos divisar através das velhas fotografias da cidade brasileira.
68Em confronto portanto com o sobrado magro do Recife, tal como ele é descrito no texto e ilustrações do livro de Aderbal Jurema, parece-nos que a casa esguia e alta portuguesa – que no Porto afirma claramente o seu carácter de casa burguesa e mesteiral – é um elemento primordial de interpretação dessa forma arquitectónica.
69De facto, nenhuma diferença fundamental vemos entre ambas: pelo contrário, os traços que, segundo esse Autor, definem a origem holandesa do sobrado recifense, por oposição a um tipo português, encontram-se afinal em outro tipo igualmente português, da mesma categoria, de modo perfeitamente semelhante; enquanto alguns desses traços, idênticos em Portugal e no Recife, opõem ambas essas casas às holandesas, onde eles se apresentam diferentemente: pensamos designadamente nas várias formas de acréscimos dos telhados, na localização das cozinhas (nos últimos andares no Porto e no Recife, e nos rés-do-chão em Amsterdão)55 ; etc. Resta a questão dos telhados, que é sem dúvida muito relevante. Mas enquanto que, como vimos, nas casas holandesas as duas águas se desenvolvem na direcção lateral, ficando a empena na frontaria do edifício – o gable, que tem a maior importância arquitectónica como peça fundamental da estrutura e decoração características destas casas –, na casa recifense essas duas águas desenvolvem-se na direcção oposta, frente-fundo, situando-se assim as empenas, ou outões, nas fachadas laterais. Quando estas constituem a parede divisória com a casa contígua, essas empenas não têm naturalmente qualquer abertura; e muitas vezes isso passa-se também mesmo quando tal não é o caso – e que significa verosimilmente que esses sótãos são dependências sem luz, de arrumos ou de somenos valor habitacional. E é precisamente o que sucede, em termos perfeitamente idênticos no que se refere tanto ao aspecto exterior da casa como ao sentido da sua utilização interior, com a casa esguia e alta do Porto de telhado de duas águas, ou seja, a partir do século XIX. E enfim, para lá dessas semelhanças ou diferenças, há um elemento fundamental, e que nos parece decisivo, que acentua o parentesco da casa esguia do Recife com a do Porto e de Portugal em geral, em confronto irredutível com a das cidades flamengas, e que se reflecte na paisagem urbana de umas e outras respectivamente : por um lado, a bela ordenação e o calmo alinho das ruas nestas últimas, bordadas de casas cujas fachadas são de uma perfeita e harmónica uniformidade de estilo, animada apenas por pequenas diferenças individuais – todas de alturas iguais ou que se equilibram, com os seus madeiramentos brancos das portas lavradas e das altas janelas de vidraças corrediças em destaque contra o tijolo, e a rematar com os esguios gables – testemunhando de uma cultura urbana superior e requintada; e por outro, a desordem da paisagem do Porto, de ruas caprichosas e promíscuas, falhas de grandeza, perspectiva e unidade mas agitadas e vivas, plenas de imprevisto e colorido, de um pitoresco extremo, rude e variado, com toda a riqueza expressiva da própria desordem, numa paisagem de burgo medievo assente numa orografia violenta e inquieta, cerros castrejos de permeio, ladeiras íngremes, escarpas a pique sobre o rio com o casario despenhado, em desníveis surpreendentes, lembrando velhas gravuras animadas – a total desigualdade das fachadas, cada qual de seu feitio, cor e altura, assemelhando-se a livros avulsos mal arrumados numa prateleira, com portas e janelas de formatos e dimensões diferentes, justificando o epíteto que Garrett deu à cidade de « Grande Aldeão », com acentuado carácter provinciano (e que aliás encontramos em todos os aglomerados urbanos portugueses), e que vemos, em termos perfeitamente idênticos, nas imagens do velho Recife, em que as casas, do mesmo modo, criam, nas palavras de Aderbal Jurema, « uma diversidade arquitectónica de tão ricas sugestões estéticas, que poucas cidades do Brasil apresentam »56 – em ambos os casos sem nada que ver com o aspecto e carácter das cidades holandesas (e mesmo central-europeias em geral).
70Em glosa, pois, ao reparo de Gilberto Freyre, cremos poder afirmar que a uns olhos portugueses, atentos e desprevenidos, o sobrado magro recifense, no seu aspecto estrutural e nos seus pormenores, apresenta-se como uma forma perfeitamente familiar, comparável e do mesmo nível de outras variantes da categoria geral das casas estreitas e altas de todo o País, influenciada ali possivelmente por quaisquer elementos locais de somenos importância.
71Mas é sobretudo na ética da vida doméstica, e em tudo aquilo que, dessa ética, se traduz na casa – os conceitos habitacionais que fazem a verdadeira atmosfera interior da casa, e a razão dos movimentos pessoais que nela têm lugar, a projecção material e imediata das próprias pessoas e da sua cultura: o aspecto convencional e hirto das salas, a falta de gosto e de conforto, o sentido difuso da varanda, como resultante de compromisso entre o recato claustral feminino e a vida da rua (e até os cacos de vidro nos muros do jardim), etc. – que se sente o parentesco mais essencial entre a vida no sobrado do Recife e o viver português57, em contraste acentuado com os aspectos paralelos na casa holandesa, tão viva e pormenorizadamente dados, nos seus elementos materiais e na sua expressão psicossocial, na pintura holandesa do século XVII, e, em nossos dias, na descrição de Ramalho58.
72Por outro lado, a hipótese, aventada por Aderbal Jurema, da origem flamenga da casa esguia e alta portuguesa em geral, afigura-se-nos totalmente destituída de fundamento. A casa deste tipo ocorre em todos os núcleos que se desenvolveram grandemente, a partir de um espaço limitado, independentemente de serem ou não zonas portuárias; foi o que sucedeu em muitas das nossas velhas cidades, que em pleno século xviii se adensavam ainda praticamente nos seus velhos centros medievais amuralhados. Um dos locais onde, entre nós, se podem ver casas estreitas mais altas, é na Praça Velha de Coimbra, com edifícios de oito pisos e mais. A existência das importantes relações comerciais e culturais entre os dois países não basta para a fundamentar, quando é certo que esse é um tipo comum a inúmeras cidades europeias e quando nenhuns elementos concretos vemos que autorizem a aproximação dos modelos português e flamengo. Pelo contrário, o aspecto geral dos edifícios e das ruas, tão fortemente caracterizado no Porto, é totalmente estranho a qualquer sugestão flamenga; as frases de Ramalho e de Júlio Dantas, citadas por Jurema para fundamentar a sua tese – «a flamenga Rua da Reboleira» (no Porto), e « os telhados flamengos» da quinhentista Rua dos Mercadores, de Lisboa, segundo a iluminura de António de Holanda no Livro de Horas de D. Manuel59 –, são meras expressões figurativas, sem qualquer preocupação de rigor, e de resto pouco ajustadas e que não resistem a uma observação um pouco menos superficial, e não pretendem, em qualquer caso, encerrar uma tese de filiação histórica. E deste modo, a ideia de uma influência flamenga indirecta, via Portugal e até via Lisboa e Porto, que é mesmo aquela que, segundo Jurema, explica verdadeiramente o sobrado magro e alto recifense tal como ele se apresenta realmente, perde todo o seu valor.
73Parece-nos assim que a consideração única de razões de lógica histórica – a prioridade flamenga – não é concludente para a determinação das origens do sobrado magro recifense. Numa categoria tão genérica como seja a da casa esguia e alta, que comporta tantas formas regionais, não basta na verdade a coincidência cronológica da dominação holandesa e da urbanização do Recife, e do aparecimento dos primórdios desse tipo na cidade, mesmo tendo em conta a convergência de motivações ecológicas e sociais: seria necessário ainda a identidade concreta das formas, o veredicto da realidade.
74Por outras palavras: o método histórico não nos parece suficiente para esclarecer o assunto, e deverá ser completado com o método etnográfico : para a interpretação do sobrado magro do Recife e determinação das suas prováveis origens, impõe-se o estudo directo desse tipo de casa no Recife, em Amsterdão, em Portugal, e seguidamente a comparação dos elementos construtivos, alicerces, telhados, etc., que assim vierem a identificar-se.
Casas do Porto60
75Acerca da arqueologia e da topografia histórica da nossa cidade, muito se há escrito, e em muito boa hora. Escutando a voz dos velhos manuscritos, e meditando escrupulosamente a lição das pedras, mumerosos investigadores conseguiram salvar pelo menos a memória das coisas que o camartelo público e particular vem tão barbaramente destruindo. Sobre o Porto monumental, e mesmo sobre o que podemos chamar um roteiro menor da cidade: pedras expressivas, pormenores de arquitectura, ferragens diversas, etc. – tudo aquilo em que, ao longo dos tempos, o labor dos obreiros anónimos gravou a sua ideia e o seu gosto, e que constitui uma afirmação autêntica da cultura da cidade, os seus títulos de nobreza e verdadeiros valores humanísticos (que são os únicos que contam e que o futuro recordará) – também não faltam estudos, monografias e álbuns documentários.
76O nosso propósito aqui é mais modesto, e de uma natureza inteiramente diferente. Vimos falar apenas da casa do Porto, a casa vulgar que todos conhecemos às centenas por estas ruas, e que, por isso mesmo – a que, num processo paralelo e inverso, damos em etnologia o nome de etnocentrismo – tão incaracterística se nos afigura, da qual tão pouco parece haver que dizer, e que tantos portuenses zelosos aspiram a ver desaparecer dos arruamentos da cidade, substituída pelos grandes « Palácios » actuais, de nomes retumbantes; essa casa que nada recomenda especialmente, mas que afinal é uma das expressões mais típicas do Porto, que tem o seu estilo próprio e a sua tradição legítima, e que traduz as condições históricas e político-sociais do velho burgo, a índole e a vida da sua gente.
77O estudo da habitação urbana, sob o ponto de vista etnocultural, no sentido de se procurar a definição da casa de uma cidade determinada e a sua relação com os demais factores culturais do grupo, que a expliquem, não é tarefa fácil. A casa é sempre o produto de uma grande multiplicidade de elementos inter-relacionados, reflectindo condições naturais e históricas, técnicas, estrutura económica e social, profissões, conceitos de família, gostos, mentalidade e até certos sentimentos, em especial sentimentos de grupo, das pessoas que as constroem e habitam. Numa cidade grande – e tal é o caso do Porto –, em que a casa se amolda a níveis e matizes muito diferenciados, que sofre a influência de uma elaboração técnica e de um entrecruzamento de culturas muito complexos, a que não são estranhos mesmo factores de invenção pessoal, a casa apresenta-se com uma variedade inumerável de formas e categorias, através da qual é por vezes difícil descortinar a unidade que permita a sua definição singular – a definição do protótipo a que todas obedecem, e que resulta das condições comuns, históricas e culturais. É o que apesar disso vamos tentar, procurando fixar certas linhas mestras fundamentais que estabeleçam as classificações elementares de tipos, isolando, em relação a cada um deles, o seu conceito-base essencial, dos multiformes acessórios que integram a realidade dos diferentes casos.
78Quem percorrer o velho centro do Porto, ao lado do labirinto do antigo burgo medieval, espraiado aqui e além em belas ruas quinhentistas, e seguir depois, para lá desse primitivo núcleo, pelas antiquadas ruas irradiantes, seis, sete e oitocentistas – que representam o povoamento das estradas de acesso às portas da cidade, e o desenvolvimento do seu transbordar inicial além-muralhas –, é de entrada surpreendido apenas pela completa falta de uniformidade das casas que aí se encontram : casas de todos os feitios e tamanhos, cada qual de sua altura e cor, contíguas umas às outras, numa total confusão de formas, que parece condenar a fracasso qualquer tentativa de seriação.
79Atentando-se porém um pouco melhor, logo algumas ideias gerais se vão definindo, que introduzem uma certa ordem nesse polimorfismo caprichoso: para lá da aparente diversidade, descobrem-se semelhanças essenciais, que permitem agrupamentos por categorias; assim, por um lado, vêem-se casas que, embora com um número variável de andares – na sua maioria com três ou quatro, fora os acréscimos, e não raro com cinco e mais, e com duas ou três janelas ou portas de frente, raramente com mais e às vezes só com uma – são todas elas uniformemente esguias, estreitas e altas, desenvolvendo-se, numa palavra, em solução vertical, e mostram um estilo comum de motivos, que afirma o seu parentesco; dispersas no meio delas, outras casas, largas e baixas, em amplas linhas horizontais, compostas fundamentalmente de rés-do-chão e andar nobre, com numerosas portas e janelas de fachada – as primeiras, num desfiar sem conta, seguindo-se umas às outras ininterruptamente ao longo de todas essas ruas, com um predomínio numérico decisivo sobre as segundas; estas, raras e isoladas, bem individualizadas no meio das outras, em contraste marcado com essas, e muito mais avultadas, isoladamente, do que elas, pertencendo claramente à categoria de palácios.
80A distinção elementar e expressiva entre estas duas categorias de casas corresponde normalmente, aqui como por toda a parte em geral, a uma dualidade fundamental de níveis económicos e sociais: a casa estreita e alta, que na sua forma e sentido originários constitui um tipo híbrido funcional de residência urbana e estabelecimento comercial ao mesmo tempo, referidos à mesma família, estritamente utilitário, de acordo com as necessidades profissionais e a mentalidade da gente de que é própria, que tinha as suas lojas, armazéns ou oficinas no rés-do-chão, junto à rua, abertas ao público, sem qualquer aparato, e habitava os andares superiores, correndo dessa forma os ferrolhos da casa, à noite, como gostam de fazer todos aqueles a quem o dinheiro custa a ganhar, e dormindo sobre a sua mercadoria, é caracteristicamente a casa popular e burguesa, estreita por economia de terreno e de manutenção e pelas exigências de espaço, cujo carácter híbrido e independente é atestado pela existência, sem excepção, de pelo menos duas portas: uma, da residência, e outra, da loja; e também, muitas vezes, de soluções especiais de comunicação entre aqueles dois sectores, tais como escadas privativas ou alçapões entre os andares superiores e o rés-do-chão. Por seu turno, a casa larga e baixa urbana, de amplas fachadas em linhas horizontais, de rés-do-chão e andar, enriquecida muitas vezes com um mezanino ou um piso suplementar de serviço, que servem de pretexto a primores arquitectónicos que os mascaram – o palácio –, é a casa nobre, própria originariamente duma classe poderosa e terratenente, para quem a largueza de espaço é afirmação de prestígio e domínio, que transferiu para a cidade o conceito de casa senhorial do campo, e fez da sua residência uma espécie de solar urbano à beira-rua ; casa duma classe que, além disso, vivia de benefícios e não de mesteres ou ofícios mercantis que impusessem ajustamentos funcionais a eles subordinados, e em que, pelo contrário, à semelhança do que sucedia nos paços reais – que representavam –, grande parte é concedida, por dever de Estado, ao aparato das salas de recepção.
81Estes dois tipos – as casas esguias, estreitas e altas, e os palácios, de rés-do-chão e andar nobre – não constituem, de modo nenhum, géneros peculiares e privativos do Porto. O palácio, na sua estrutura geral, é uma forma comum europeia, e, nos seus pormenores, parece representar apenas a transposição para o Porto do tipo corrente do solar urbano nortenho, nomeadamente das regiões de granito, de vastos átrios com a escadaria de pedra ao fundo, por vezes curvando num patamar de coluna, geralmente desdobrando-se em dois lances, e com a sua enfiada de salas de recepção sobre a frente, abrindo umas sobre as outras; a casa estreita e alta, pelo seu lado, é um tipo urbano vulgar em todo o País (especialmente no Norte, onde existe em termos estreitamente semelhantes àqueles em que aparece no Porto), e do mesmo modo em muitos países europeus, correspondendo, por toda a parte, ao estrato popular e burguês da população, dos artífices e dos comerciantes. A originalidade do Porto está em que, no velho coração evoluído da cidade, há apenas, praticamente, casas esguias, representando a quase totalidade dos edifícios civis, e alguns raros palácios; as duas soluções fundamentais da habitação urbana – a verticalidade e a horizontalidade – extremam-se radicalmente, não existindo (pelo menos até há muito poucos anos, à excepção do Palácio das Cardosas, e, mesmo agora, fora da tradição local) os largos prédios comuns, de grande número de pisos, que combinam as duas soluções e que, nas cidades europeias, permitem perspectivas bem ordenadas e conjuntos unitários. O Porto é uma cidade grande, feita de casas pequenas – e, aqui e além, alguns raros palácios discretos; e é precisamente esta antinomia, e sobretudo a maioria esmagadora de casas estreitas e altas, que dá a razão da irregularidade desconcertante que de entrada nos surpreende: ruas caprichosas, promíscuas, falhas de grandeza e unidade visual, assemelhando-as a prateleiras de livros avulsos mal arrumadas, que, no aspecto exterior do caso, lhe fez merecer o epíteto garrettiano de « Grande Aldeão », mas plenas de colorido e imprevisto, de um pitoresco extremo, rude e variado, com toda a riqueza expressiva da própria desordem, numa paisagem de orografia violenta e inquieta, cerros castrejos de permeio, ladeiras íngremes, escarpas a pique sobre o rio, com o casario despenhado em desníveis surpreendentes, lembrando uma velha gravura animada.
82De entre estas duas categorias de casas, a primeira é a que se pode sem dúvida considerar típica do Porto, aquela que ocorre de modo pouco menos que exclusivo, tanto nas ruas mais velhas como em outras mais recentes. Veremos como, surgida no primitivo burgo das próprias condições histórico-sociais que presidiram ao seu desenvolvimento, a casa estreita e alta ganhou foros de padrão material de cultura, e assim perdurou na tradição local, assimilando os sucessivos estilos e técnicas, e acompanhando a evolução da classe de que é própria, mesmo quando e aonde as circunstâncias efectivas que determinaram o seu aparecimento deixaram de se verificar.
83O Porto representa o desenvolvimento do vetusto Portucale – o porto, situado à beira-rio Douro, da cividade castreja de Cale, localizada na escarpa, hoje arrasada, que, nos nossos dias ainda, levava o nome de Corpo da Guarda e Cimo de Vila, um pouco a norte do morro da Sé. O aglomerado ribeirinho teria sido mais um desses povoados que surgiram com a paz romana, a partir da ocupação das terras baixas pelas gentes castrejas que abandonaram os seus redutos, e, aqui, se instalaram no local onde o desembarque da travessia do rio é o ponto de partida de penetração para o interior. Logo na sua remota origem, portanto, o Porto liga-se a actividades portuárias, de circulação e comércio; e este carácter, que lhe dará o nome, subsistirá através de toda a vida da cidade, definindo-se, com o decorrer dos tempos, de modo cada vez mais consequente.
84No século VI constitui-se o burgo episcopal, no cerro amuralhado da Pena Ventosa, no morro da Sé, que domina estrategicamente a zona fluvial; os bispos são os senhores da cidade, mas é na faina da vila baixa que verdadeiramente germina o seu futuro.
85D. Teresa dá o burgo portuense e o vasto couto que o rodeia em concessão à Mitra, que em 1123 outorga foral aos respectivos habitantes, fixando-lhes as suas liberdades, direitos e garantias; e à sombra deste diploma, a cidade prospera, em crescimento constante, enchendo-se de uma população laboriosa e activa, mercadora e fabril, que vai povoando o fronteiro morro da Vitória, englobado mais tarde na cerca fernandina.
86A indústria e o comércio – e principalmente o comércio marítimo – são pois, desde a primeira hora, os traços que definem a personalidade social do Porto, a quem a cidade deverá o seu engrandecimento e riqueza. Temos notícia de importantíssimas relações comerciais que, desde os primórdios da monarquia, o Porto mantinha com o Norte da Europa, principalmente com a França, Inglaterra e Flandres, por meio das naus que demandavam a barra do Douro e fundeavam em frente à Ribeira. Na defesa dessa actividade, que, no próprio dizer dos procuradores do Porto às Cortes de Évora de 1436, justificava o povoamento da cidade e constituía a mola real da sua prosperidade, os diferentes monarcas, incluindo D. Afonso V, concedem à cidade o privilégio que proibia aos nobres a posse de casas e a residência no Porto por mais de três dias, pondo desse modo uma população ciosa da independência a que devia a sua riqueza, e cuja actividade obrigava a longas ausências, ao abrigo das exacções e desmandos de uma fidalguia prepotente.
87Até ao século XVI, a cidade compunha-se pois exclusivamente dessa gente comerciante e mesteiral, habitando então os bairros da Sé e da Vitória, com os seus negócios e as «bandeiras» dos seus ofícios arruados à maneira medieval; conservam-se vestígios toponímicos mais ou menos exactos deste sistema nos nomes e funções de certas ruas, como a dos Pelames, dos Canastreiros, dos Mercadores, dos Caldeireiros (esta quase ainda com realidade efectiva), etc. Os membros da Câmara do Porto, de eleição popular, pertencem quase sempre à classe comercial, mas não raro vêem-se entre eles também sapateiros, tanoeiros, alfaiates, etc. ; e entre os homens-bons da cidade contam-se do mesmo modo, junto com advogados e tabeliães, aquelas categrias de artífices, e, além deles, marinheiros, banheiros, etc. Em 1502, D. Manuel, com a sua política de centralização absolutista apoiada na nobreza, permite a esta classe a edificação de casas e a residência no Porto, derrogando o privilégio burguês que tão caro era aos Tripeiros. Mas o carácter e a fisionomia sociais do Porto, anteriormente fixados, mantiveram-se e prevaleceram mesmo depois disso, e ainda hoje, para lá do nivelamento que apaga todos os regionalismos, distinguem a estranha metrópole nortenha : terra que não tivera senhores poderosos e opulentos por direito de nascença, e onde a nobreza era uma classe intrusa, recente, e sem direitos ancestrais, o Porto, como outrora, continuou – e continua – a ser a cidade industriosa, comerciante e plebeia, para quem é válida, acima de todas as demais, a escala dos valores materiais, do trabalho, da economia e do dinheiro. Gilberto Freyre sente no Porto «a presença do novo-rico, o ímpeto do arrivista, e até mesmo algum exibicionismo de parvenu »; mas a esta visão, de certo modo exacta, falta a perspectiva social da cidade: não se trata tanto do novo-rico, o arrivista, o parvenu, como do natural de uma cidade em que o dinheiro é o prémio da sua cultura específica, dos seus valores, da sua vitalidade; e o Porto nunca foi « parvenu » enquanto viveu a dignidade desses valores. A riqueza tripeira representa um labor de tal vulto e valor construtivo, que os próprios reis, em muitos casos, a nobilitaram especialmente. O Porto é de facto a cidade burguesa de Portugal, mas, por isso mesmo, a burguesia do Porto tem um sentido especial, diverso do que tem a burguesia nas outras terras do País: aqui, o trabalho e o comércio ascendem ao nível da nobreza, e há nomes que figuram na tabuleta de casas comerciais, que valem títulos nobiliárquicos, à semelhança do que acontecia nas cidades burguesas do Norte da Europa, das ligas hanseáticas, da Holanda, da Flandres. A nobreza qualificada do resto do País, na sua aversão às profissões mercantis, fechada num conceito cerrado de casta e só reconhecendo direitos de cidadania a quem a ela pertencesse, continuou durante muito tempo a « não saber quem eram » os grandes nomes burgueses do Porto, que eram ricos porque trabalhavam; confundiam-nos com a arraia miúda e com a menos significativa classe média das outras terras, que vivia abaixo dela e à sua sombra. E não percebia que a burguesia do Porto era um caso único e à parte, representando ali a classe mais elevada, uma aristocracia comercial que era o verdadeiro senhorio da cidade, que não reconhecia nenhuma classe acima de si, e perante quem a nobreza tinha – e teve – de se curvar. De geração em geração, a sua riqueza transforma-se numa verdadeira cultura superior, solidamente estruturada, apurada e original. A nobreza é uma classe adventícia e estranha na cidade, que, em muitos casos, ingressa no comércio e adopta os padrões da burguesia. E a burguesia quem imprime ao Porto o tom próprio de um viver que fez a sua personalidade e a sua dignidade, e se tomou característico : menos elegante e brilhante do que profundamente decente, sólido, equilibrado e sério; rico e farto, e ao mesmo tempo económico e modesto, sisudo e sóbrio, vivendo largamente, por vezes com ostentação, mas sem aparato, falho de gosto e de conforto, mas de contas boas e sãs, severo na moral e na con venção, e pesado de maneiras, nada boémio nem vadio. Nas suas esferas mais elevadas, essa burguesia comerciante do Porto, fechada a loja, procura certos requintes de ambiente e de convívio, cultiva a música e as artes, lê, viaja, instrui-se e fala línguas, faz a vida social estrita e recatada, duma sociedade fechada e solidária, em que todos se conhecem, com clubes e agremiações de diversão, música e cultura de carácter privado, ao mesmo tempo familiar e formal, provinciana e mundana, marcadamente patriarcal, que não precisa de imitar a nobreza para afirmar os seus valores próprios. Todos nós, mais ou menos, tivemos quaisquer bisavós com balcão de comerciante na Rua das Flores ou armador de navios nos muros da Ribeira; e, ainda hoje, quem recebe a soberana inglesa de visita à cidade, são os mercadores tripeiros do século XX. Numa evolução progessiva, a partir da distinção que já no século XV se estabelece entre burgueses e mesteirais – os cidadãos, enriquecidos com o comércio, especialmente marítimo, e o povo miúdo – ela vai-se diferenciando em hierarquias muito nítidas, que se evidenciam com especial relevo no século XIX. Essa época, que marca uma grande diferença no viver tripeiro, nos seus modos e conceitos, e que coincide – e certamente não por acaso – com o advento do liberalismo, em que a burguesia atinge o seu pleno desenvolvimento, assiste a grandes mudanças e fenómenos sociais, e a um intenso e complexo fenómeno de urbanismo já muito diversificado, que porém não afecta a estrutura burguesa da cidade. Depois da celebração do Tratado de Methuen, com a Inglaterra, em 1703, ao mesmo tempo que o comércio do vinho do Porto tomava um incremento quantitativo e qualitativo notável, a sociedade portuense é posta em contacto íntimo com a colónia inglesa, cujo viver típico muito iria influenciar certas camadas sociais da cidade. É também no século XIX que se opera a aproximação e a fusão progressiva dos extractos burguês e nobre da cidade, por uma espécie de aculturação de conceitos. Finalmente – e é esse um ponto que consideramos de grande importância – é nesse século que se verifica, por muitos lados, o retomo do emigrante português enriquecido no Brasil, que deve ter constituído um poderoso elemento de difusão cultural, que não tem sido devidamente considerado; muitos elementos que se encontram simultaneamente em Portugal e no Brasil não são possivelmente formas portuguesas que foram levadas para uma terra de povoação mais recente, mas, pelo contrário, produtos elaborados nesse país de tão ricos contactos e relações de culturas, e para aqui trazidos pelo veículo do emigrante de retomo que, no seu desejo de afirmação, repete aquilo que aprendeu onde se fez grande; o estudo desses elementos culturais está por fazer, e merece a atenção, necessariamente conjunta, da investigação portuguesa e brasileira.
88A casa portuense tudo isto traduz, como um corpo vivo que tem no homem a sua realidade verdadeira e mais funda ; e é sem dúvida este condicionalismo social que explica uma das outras características originais do Porto: enquanto que por toda a parte, de um modo geral, a casa estreita e alta – a casa burguesa, ou, aí, traduzindo o viver de uma classe excluída das manifestações mais representativas da sociedade local, da classe média – é uma casa modesta, inexpressiva, talvez mesmo mesquinha, que, quando muito, procura nos seus modos dar satisfação a um desejo tosco de ostentação, no Porto essa é casa de toda a gente e de todas as classes; e, por isso, se interiormente ela é sem dúvida desse sistema pobre a que Ramalho, comparando-a com as holandesas de Amsterdão, chama «de alforje », imposto pela sua estrutura e também por uma ética tradicional de vida vertical – salas para a frente, salas para as traseiras, a sala de jantar e a cozinha no último andar, por causa dos incêndios e dos cheiros, os sótãos para o alojamento dos criados e arrumações, e a meio a escada, iluminada por óculos ou clarabóias; e, no rés-do-chão, sobre a rua, o estabelecimento –, e se normalmente a sua decoração é mesquinha, na rigidez da sala de visitas e do escritório, um pouco hirtos, com o seu mobiliário de mogno de tipo padrão, ela apresenta também formas que transcendem o tipo comum, assemelhando-se por vezes, em muitos dos seus elementos, aos palácios nobres, e que, nas devidas proporções e em mais modesta escala, se pode, como a própria classe que a habita, aproximar da casa do mesmo tipo dessas cidades burguesas do Norte da Europa, como esta também pertencente a ricas famílias de mercadores cultos que viviam num nível elevado: fachadas em que se acentua o ritmo vertical, mas com belas cantaria lavradas, beirais de faianças, átrios de azulejo com as suas escadarias de pedra; as madeiras, muitas vezes, são de paus-brasil ; os tectos, de caixotões barrrocos, de castanho, às vezes decorados com pinturas ornamentais, ou de finos estuques em puro gosto Adam ou Wedgewood, testemunhando influências inglesas, quando não nos exuberantes motivos da época vitoriana, que são também uma tradição corrente no Minho; as portas são de belas almofadas entalhadas, pintadas a branco e ouro, com espelhos de xarão e madrepérola ou marfim; as vidraças, com bandeiras de desenhos pós-georgianos ; fogões de mármores famosos, lustres de cristal; jóias e pratas de preço, delicados móveis e porcelanas inglesas, bibliotecas ou colecções valiosas, uma mesa cuidada, vinhos de categoria, tudo isso testemunhando, nesses níveis mais altos, um viver patrício em casa burguesa – o verdadeiro (e perdido) sentido da cultura tradicional tripeira. Por outras palavras: a casa independente, esguia e alta, é, em todo o Norte do País, a casa própria do extracto burguês, mais ou menos abastado, da população urbana; como o Porto é essencialmente uma cidade de gente burguesa, próspera e rica, praticamente todas as casas são desse tipo, e mostram facilmente características acima do seu nível comum, de acordo com o predomínio da classe na cidade.
89Pode afirmar-se que até ao século XVI, fora uma ou outra excepção (v. g. a casa da Reboleira), só houve no Porto casas estreitas, burguesas ou mesteirais, híbridas e funcionais; de facto todos os exemplares desse período que identificamos nos bairros velhos da cidade, são desse tipo. Depois dessa data, vemos surgirem pouco a pouco, no próprio coração do burgo comercial, casas amplas, residenciais e de aparato, com a fileira de janelas lavradas num único correr, e a pompa dos seus portais e balcões monumentais. Mas à parte esses palácios, nobres ou burgueses mas sempre excepcionais, e a par com o ambiente social, também o tipo habitacional do Porto estava fixado – estava culturalmente fixado : de entrada lógica e funcional, constituindo a totalidade das casas do velho burgo e correspondendo às necessidades profissionais e aos conceitos da sua população, a casa estreita e alta cristaliza seguidamente numa forma definida, que passa a ser o tipo comum e geral da casa do Porto, que se repetirá daí em diante, durante séculos, quase sem alterações estruturais, mesmo quando já nenhuma consideração funcional a impõe, apenas em nome da inércia da tradição. Foi essa mesma força que preservou a casa estreita e alta de ser absorvida pela solução dos grandes prédios largos e de muitos andares, que triunfou em todas as cidades, e manteve no Porto um tipo de casa próprio dos burgos amuralhados, que evoluiu sem se desprender da sua forma originária essencial.
90O velho Porto, onde se elaborou a cultura própria da cidade, explica-nos assim o Porto mais recente – o Porto que é ainda dos nossos dias e que só agora entrou numa nova fase arquitectónica.
91Vejamos agora os diferentes géneros de casas que, dentro da classificação essencial que estabelecemos, se nos deparam. Mas antes de novamente corrermos as velhas ruas do burgo, tão ricas de ensinamentos, queremos dirigir uma saudação especial, nesta palestra sobre casas do Porto, a essa relíquia – que, a despeito das alterações sofridas, se pode considerar perfeita –, de um romanesco tão evocativo e empolgante, que é a velha casa gótica do beco atrás da Sé, de pedra negra e rude, à vista, com as suas portas ogivais de largas aduelas fundidas na parede, os seus j anelos trilobados e os seus cachorros, de empena em forma de gable sobre a rua, tida – aparentemente a justo título, – como sendo a mais antiga da cidade, e que, segundo certos autores, remonta talvez ao século xiv. Trata-se porém de um caso único sobre todos os pontos de vista, que, se por isso ganha todo o valor das coisas raras, só com muita prudência se pode utilizar como elemento de interpretação da casa ulterior do Porto. Deixemo-la, pois, suspensa da sua própria duração, no silêncio quase musical em que ela voga à flor do tempo, e voltemos à cidade agitada dos vivos, onde as coisas são a cristalização momentânea de um fluir que não cessa, e que a nós próprios nos habita.
92A respeito de Lisboa, todos conhecemos o célebre dístico de Herculano, com a sua ressonância lapidar, que faz dela a «cidade de mármore e granito», e que peca apenas porque, no sentido exacto das palavras, Lisboa não é verdadeiramente nem de mármore nem de granito, mas desse calcáreo friável, dum rosado que se toma lívido sob a acção do tempo, e toma por vezes o aspecto das velhas pedras tumulares. Sobretudo no que se refere ao granito, nós, tripeiros, sentimo-nos particularmente irónicos perante a bravata: de granito entendemos nós, e reivindicamos para a nossa cidade alterosa e soturna essa parte da definição, conscientes de que ela exprime não só a substância telúrica da nossa terra, mas também os seus aspectos humanizados – a sua verdadeira essência poética e real. Com Pascoaes, chamamos à Tone dos Clérigos, que exprime todo o sentido violento e dramático da cidade: « Alto cipreste empedernido» – empedernido, duro, feito de silêncio e eternidade, como o próprio espírito da cidade e da sua paisagem.
93A olhos mais atentos, porém, as coisas não se passam assim. Embora o granito rude e negro seja sem dúvida a pedra do Porto (e já o padre Rebelo da Costa, em 1787, fala na qualidade incomparável dessa pedra, que abundava nos arrabaldes da cidade, e da qual eram feitos os portais, janelas, cunhais e balcões das suas casas), grande parte, se não mesmo a maioria, das casas velhas do burgo, que se seguiram às maciças contruções românico-ogivais, de que poucos vestígios restam, têm as suas frontarias simplesmente de tabi que e madeira...Estas casas de tabique são de dois tipos fundamentais: casas com andares em ressalto, e casas de fachadas lisas; numas e noutras, as molduras das janelas e portadas, as divisórias dos andares, os entablamentos das varandas e beirais – estes geralmente muito salientes e com os topos dos caibros à vista – são de madeira, que se destaca em escuro contra a superfície branca e lisa das paredes. Na técnica do tabique dos casos que nos parecem mais antigos, não se usa o fasquio: o sistema de construção aproxima-se talvez do Fachwerk dos países germânicos, Inglaterra e França, em que o tabique é feito por sectores compreendidos num esqueleto de madeira, com barrotes horizontais e a prumo, cortados por diagonais, e com os vãos cheios com cacos de barro e tijolos metidos na argamassa, por vezes à vista, dispostos decorativamente em espinha ou de outro modo. Na Europa Central, essa substrutura vê-se, em destaque sobre a cal das paredes, num belo efeito que tem uma das suas mais notáveis manifestações nas construções inglesas da época elisabethiana ; aqui, numa forma mais modesta e tosca, esse esqueleto é recoberto, e vêem-se apenas os elementos que acima mencionámos. Nos casos mais modernos, casas ou acrescentos feitos pelo mesmo processo, usa-se o fasquio.
94A casa de tabique, com os andares em ressalto, é um estilo comum na Europa medieval, quinhentista e seiscentista, a que os Franceses dão o nome de encorbellement. Entre nós, ele aparece também antes do século XVII ; de facto, existe a imagem duma casa desse tipo, com fachada regular e de ressalto apoiada em colunas, numa iluminura do Livro de Horas de D. Manuel, e é de supor que certas casas deste género, muito irregulares, sejam ainda anteriores a esta. A casa de tabique de fachada lisa, com varandas e balaústres de pau, parece ser um tipo igualmente pré-seiscentista, ou talvez proto-seiscentista. Ela encontra-se em termos perfeitamente semelhantes em certas ruas mesteirais ou mercadoras de Guimarães, atestando assim uma continuidade cultural que nos parece decisiva para o caso do Porto, e tanto mais importante que, morfologicamente, esta casa, fazendo a transição entre as casas de ressalto e as casas de pedra, parece sem dúvida ser a que está mais directamente na origem e ponto de partida da casa moderna portuense posterior ao século XVII.
95O tabique, entre nós, representa portanto um tipo de construção anterior ao século XVII, com raízes ou manifestações provinciais, mas que, certamente por constituir um processo barato e fácil, continuou a utilizar-se revestido de telhas, lousas ou chapa, para acréscimos, trapeiras e outras formas de andares suplementares, e que é ainda hoje corrente no Douro, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho.
96À parte estas casas de tabique e algumas de pedra, tosca e mal acabada, à vista, de que é difícil estabelecer a cronologia certa, mas que se nos afiguram muito primitivas e por vezes partem de um rés-do-chão certamente quinhentista, a grande maioria das casas hoje existentes, mesmo nos bairros que correspondem ao núcleo medieval da cidade, e tanto as estreitas, com as suas lojas no rés-do-chão, como os grandes palácios aristocráticos, são edifícios dos séculos XVII, XVIII e XIX ; no velho Porto, a casa estreita e alta detém a mais antiga tradição, e pode supor-se que nasceu a partir das primitivas construções, de que representa certamente o desenvolvimento e a evolução ; enquanto que a casa larga e nobre constitui uma importação que não é anterior ao século 0, uma forma que surge abruptamente e não prolonga nenhuma tradição local pré-existente, material ou ética. Deste modo, é legítimo dizer-se que, acompanhando os progressos da cidade, as antigas casas, mais pequenas e modestas, em parte aumentadas e em parte substituídas, deram origem, a partir do século XVII, a novas casas, em pedra lavrada e melhores, num estilo que passa sem dúvida a definir a arquitectura civil da cidade, e que, tomando sucessivamente novos aspectos com o decorrer dos tempos, perdurou quase até aos nossos dias. O grande desenvolvimento da cidade, o incremento do comércio e da riqueza, a que talvez não seja estranho o movimento da Restauração, acarretam sem dúvida uma progressiva diferenciação económica, que se reflecte directamente nas casas: aparecem casas grandes e pequenas, ricas e singelas, tanto interior como exteriormente; mas à parte os palácios, nobres ou burgueses, a casa tripeira, mesmo a de gente de muitos haveres, vivendo fidalgamente e sob muitos aspectos equiparada ao nobre, continua a ser esguia e alta, funcional e híbrida, dentro do tipo fixado; e muitas vezes – o que é um aspecto social característico de casa do Porto – uma casa de aparência modesta pertence a uma família de burgueses ricos e de projecção na vida da cidade, e pode mesmo ser interiormente opulenta e farta.
97Passado o primeiro quartel do século XIX, e certamente sob a influência conjunta dos factores e conceitos novos que atrás apontámos, o modo de viver burguês do Porto sofre uma grande alteração : a casa deixa de ser funcional, dissociando-se a residência e a loja, e aparecendo casas apenas de residência; mas estas, agora já apenas por razões de inércia cultural, mantêm o tipo estreito e alto, em que, em vez da loja, fica um escritório com janelas para a rua, muitas vezes gradeadas. É esta a casa dos nossos avós e dos nossos pais, que se alastra pelos arruamentos e áreas mais modernos de Fernandes Tomás, Formosa, Malmerendas, Alegria, Santa Catarina, para não dizer mesmo o campo.
98Exteriormente, estas casas, como dissemos, são de proporções muito variáveis; nos séculos XVII, XVII e XIX parecem predominar as casas com dois e três andares acima do rés-do-chão e fora os acréscimos – a que o padre Rebelo da Costa chama as « sobrecozinhas » –, e com duas ou três janelas de frente; mas em certas ruas setecentistas, como por exemplo a de S. João, vêem-se prédios com quatro e mais andares, às vezes seis e sete. As fachadas são de uma grande simplicidade de linhas, e de desenho regular e simétrico, onde se encontram certas categorias e motivos decorativos ou orgânicos, num estilo que ora se filia nas correntes gerais europeias pós-renascentistas, ora se pode considerar como uma versão do barroco nacional e até provincial, relacionado com outros casos portugueses, nomeadamente da região de Entre-Douro-e-Minho. Esses ornatos, no granito escuro e duro da região, em destaque sobre a brancura lisa ou outro colorido das paredes – e entre os quais sobressaem notavelmente certas guarnições de portas e janelas, cachorros e entablamentos de varandas e beirais, pilastras e cornijas, lavradas e apaineladas, óculos, mísulas e nichos, e principalmente esses belos algerozes, correntes em todo o Norte do País, e que parecem representar uma última forma das gárgulas góticas –, aparecem tanto nas casas estreitas como nas nobres, e é possível que provenham dos solares da província (pensamos na velha tradição das cantarias minhotas), donde teriam passado para a casa nobre da cidade, tendo-se em seguida generalizado, como sucede com muitos elementos culturais, que, originariamente ligados às classes elevadas, depois são assimilados pela cultura popular.
99As fachadas, mais sóbrias e severas no século XVII, mais graciosas e movimentadas no século xviii, e cujas linhas se simplificam consideravelmente no século XIX, perdendo praticamente os motivos ornamentais e tomando-se pobres e monótonas, compõem-se fundamentalmente de combinações variadas e harmoniosas de janelas, óculos e varandas, sendo estas, umas vezes, individuais e, outras corridas a toda a largura do prédio, dispostas de modo diverso nos seus diferentes pisos. O último andar assinala-se geralmente por qualquer particularidade distinta, que o destaca dos demais; ora é mais baixo que os outros, com uma varanda corrida acima de um falso beiral, ora, em soluções mais elaboradas, tem o aspecto de um frontão, que pode revestir várias formas. Os telhados, até ao século XIX, eram sempre a quatro águas, terminando com largos beirais salientes e acolhedores; depois dessa data, são geralmente de duas águas, com as empenas nas paredes laterais, rematando, à frente, em platibanda. Raramente com os cheios de pedra à vista, as frontarias são em geral lisas, rebocadas ou, também, do século XIX em diante, revestidas de azulejos, ora de desenhos singulares, ora formando conjunto, dispostos, nos casos mais notáveis, em painéis que imitam tapeçarias, com a sua barra em tomo; e vemos o sistema do revestimento exterior de azulejo, tão característico do Porto, prolongar-se nos modernos edifícios de concreto, adaptado a uma técnica e estética inteiramente novas.
100Generalizada, como vimos, no século XIX, a casa só residencial, surge um tipo burguês afidalgado, que parece traduzir o desejo de ostentação das fortunas recentes: é o típico «palacete» do Porto, misto de casa larga e casa burguesa, com a aparência de um corpo central onde se rasga a porta de entrada, e dois andares elevados acima de lojas altas.
101No século XX, a casa estreita do Porto entra numa nova fase: com o alargamento progressivo da área comercial da cidade, que vai absorvendo ruas há cinquenta anos apenas residenciais, as casas aí situadas voltam a ser híbridas, pela adaptação do escritório do rés-do-chão a loja; mas esta já não pertence à mesma gente que habita os andares superiores, e estes, de resto, começam pouco a pouco a ser alugados separadamente a pessoas diferentes, com ocupações profissionais compatíveis. Vemos assim a solução horizontal insinuar-se na vida tripeira, pelo próprio veículo da casa vertical. Mais recentemente, constroem-se prédios inteiramente novos, segundo os conceitos mais modernos, para alugar por andares; mas, embora se disponha muitas vezes de terreno que permitiria amplos edifícios, eles continuam a ser esguios; e se é indubitável que nesta solução intervêm razões económicas, também se vê a força de persistência duma velha forma e o seu poder de assimilação e adapatação a técnicas, formas de vida e estéticas diversas. E o apego à forma tradicional é tal, que se fazem por vezes casas largas, com divisórias aparentes na fachada, compostas de várias casas estreita seguidas.
102A técnica do cimento armado não touxe, durante muito tempo, modificações substanciais à casa do Porto; ela não passou, de entrada, de um facto de renovação decorativa superficial, sob a qual essa casa continuou a ser estruturalmente a mesma, vertical e estreita, com a divisão interna das velhas casas oitocentistas; mas o sistema horizontal dos andares autónomos vai-se impondo decisivamente, e finalmente, vencendo a resistência da tradição e ultrapassando uma forma cultural que só em nome dela subsistia, alicerçada em séculos de vigência, aparecem os grandes prédios de rendimento, largos e altos, ocupando por vezes quarteirões inteiros, com numerosos pisos autónomos para alugar, todos iguais, concebidos segundo princípios racionalizados, que correspondem ao ambiente social presente, contra todos os atavismos culturais e afectivos. Costumava invocar-se o proverbial sentimento de liberdade e independência do Tripeiro, historicamente afirmado na sua rebeldia contra a Mitra suserana, contra a nobreza prepotente, no seu apoio ao mestre de Avis e à causa liberal, etc., para explicar o seu apego tenaz à casa independente, esguia e alta – e incómoda... Nós cremos antes que se trata de um puro facto cultural que subsiste em função da própria força da inércia da cultura. E sem negarmos de modo nenhum o seu profundo e generoso sentido de liberdade, tão profusamente demonstrado em mais nobres causas, diremos que, no capítulo especial da casa, não foi o seu sentimento de independência que levou o Portuense durante tanto tempo a preferir casas independentes, mas, pelo contrário, o facto de ter vivido sempre em casas que eram independentes por imposições funcionais e culturais, que criou nele esse desejo e aparente necessidade de independência habitacional, que fez com que julgasse que só nessas se sentia bem. E de facto, perante as circunstâncias actuais, vemo-lo evoluir sem demasiado custo num sentido oposto àquele, adoptando a habitação em andares. Esta solução situa-se porém completamente fora da linha local, e é perfeitamente incaracterística ; de resto, a despeito da sua plena eficiência, vinga também a corrente contrária, que se exprime em pequenas casas isoladas, em estilos neo-regionais mais ou menos felizes, que prolongam a moda dos chalets e das villas do século passado, e em que perdura a independência habitacional tripeira.
103A casa estreita e alta e independente do Porto, a casa vultar de três janelas de frente e três andares de alto, surge assim, sob o impulso de razões históricas, económicas e sociais, como desenvolvimento das primitivas casas do burgo medieval, tendo-se enriquecido com todos os elementos que em seguida foi assimilando, tendo-se adaptado a novas circunstâncias e técnicas, e generalizado de modo quase absoluto na cidade, até ao advento, em época mais recente, dos grandes prédios de andares, que acabaram por destroná-la. Ela é, na sua modéstia expressiva, um livro aberto em que se lê muito da história do Porto. Com plena e estrita realidade funcional de entrada, ela define-se mais tarde num tipo que passa a constituir uma pura forma cultural, a que se obedece por tradição, com inteira independência das condições e razões que determinaram o seu aparecimento.
104Esta casa morreu ; a sua época passou, e dela perdura apenas um esqueleto sem prestígio, inadequado e deslocado num mundo que pouco ou nada tem que ver com aquele que foi o seu. Mas pode dizer-se que a sua morte exprime também a morte do espírito antigo da cidade, o seu ambiente social e os seus valores originais. E, para rematar esta palestra de que ela foi a heroína, aqui deixamos expresso um voto: que, ao menos nos casos mais significativos, esse esqueleto se conserve, com a compreensão, o respeito e o carinho que merece um padrão do velho Porto e do viver dos nossos avós, a quem devemos muito do melhor que somos.
Telhados do Porto61
105Pode-se dizer que, salvas raríssimas excepções, até meados do século XIX, as casas do Porto (mesmo já as velhas casas estreitas e altas de fachada de tabique, dos bairros da Sé e da Vitória) têm telhados de quatro águas, de telha caleira portuguesa – o que significa que os oitões terminam horizontalmente, na mesma linha do beiral frontal62.
106Nas casas mais estreitas, esse telhado é tão baixo que não permite o aproveitamente do seu vão para qualquer sótão. Mas logo que tal é possível, vemos aparecer um sem-número de formas de andares suplementares, que na sua imensa variedade ainda mais acentuam a irregularidade e diversidade estruturais das fachadas, que de resto coexistem sob diversos tipos no mesmo telhado, e que constituem uma nota profundamente característica da casa do Porto, com sensível prejuízo da unidade visual das ruas.
107Nestes telhados, aparecem, como elemento fundamental, que dá uma fisionomia muito peculiar à velha casa do Porto, largos beirais salientes e acolhedores, que prolongam a água frontal. Nas casas, antigas ou modestas, de fachada de tabique, esse beiral, como as varandas, assenta num entablamento de madeira, com os caibros à vista, geralmente com os topos arredondados. No século XVIII, à medida que as casas de pedra e cal se vão tomando mais frequentes e cuidadas, com molduras e ornatos de granito, vemos substituírem-se os velhos beirais de madeira por belos entablamentos de pedra, apainelados e enriquecidos com cachorros, no mesmo estilo das demais cantarias da casa. Estes beirais, de natureza francamente funcional, em relação com o clima pluvioso da cidade, são correntes, em termos semelhantes mas consideravelmente mais simples, em diversas localidades nortenhas, nomeadamente no Noroeste Atlântico63. Eles são sempre, como os próprios telhados, de telha caleira e, mesmo em alguns casos, raros mas significativos, de telhas de louça vidrada com desenho azul e branco e do formato das outras, e enriquecem-se nos topos e até excepcionalmente a meio, com compridas goteiras ou algerozes de cantaria lavrada, de feitura notável e formas muito variadas, que parecem representar uma última forma de gárgulas góticas64, e que são do mesmo modo um elemento corrente na tradição urbana provincial de Entre-Douro-e-Minho (des. 169).
108A partir de finais do século XIX, vemos vulgarizar-se o telhado de duas águas, no sentido frente-fundo, com as empenas dos oitões por vezes muito elevadas, continuando a linha frontal a ser horizontal. São ainda frequentes as casas com beiral, em geral mais pequeno aqui do que nas antigas, mas é igualmente corrente o remate da fachada frontal ser uma platibanda lisa ou em balaustrada ornamental, cuja linha decorativa se completa por vezes com estátuas, vasos, umas, monogramas, ou outros motivos. Este processo encontra-se já em edifícios do século XVIII e até, mais raramente, do século XVII, mas então à frente de telhados de quatro águas, e em casas com uma feição apalaçada, mostrando influências de inspiração neoclássica. Em casas de maior vulto, essa platibanda mostra mesmo, a meio, um pequeno frontão em tímpano ou em arco, ostentando qualquer medalhão, óculo ou monograma monumental ou até pedras de armas. Mas muitas vezes, abaixo desta platibanda, corre um falso beiral, apoiado numa cornija saliente, sem qualquer utilidade, que apenas aponta o seu sentido estrutural de remate da água do telhado.
109Nas casas com telhados de duas águas, o vão do telhado é sempre aproveitado para sótãos, em forma de gable, com empenas para os lados, como solução de mais um andar que não implica aumento da altura das paredes principais, mas apenas dos oitões ; e esse sótão apresenta também uma grande variedade de soluções de iluminação : a mais vulgar é o simples postigo, que não altera a linha lisa do telhado, ou, quando tal é possível, uma janela ou até sacada na empena do sótão. Mas, de resto, pode dizer-se que, com raras excepções, todas as velhas casas do Porto apresentam, de uma maneira ou de outra, qualquer espécie de construção suplementar, as mais das vezes de tabique, que ora se enxerta no telhado e lhe aproveita o vão, como as trapeiras, ora se eleva acima dele, como os mirantes e os andares sobrepostos, que podem ser recuados ou à face do prédio. No século XVIII, já o padre Rebelo da Costa, falando das casas do Porto, menciona as « sobrecozinhas » (as cozinhas eram no último andar normal da casa).
110As trapeiras são pequenas construções, como alas que se inserem no telhado, de uma (des. 170, n.° 1), duas (des. 170, n.os 2 e 3) e mais geralmente três águas (des. 170, n.° 4) ; são as mais das vezes muito pequenas, do tamanho apenas de uma pequena janela, virada para a frente; mas aparecem algumas mais avultadas, com duas e mais janelas em várias faces (des. 170, n.° 5), que se confundem mesmo com mirantes; em casas de planta mais larga, vêem-se muitas vezes sistemas de várias – três e quatro – trapeiras dispostas em cruz, a partir de um certo sector do cume do telhado principal65.
111Os mirantes são construções que se elevam acima do telhado, num sector qualquer da sua linha longitudinal, muitas vezes a meio, por vezes à frente, outras atrás; nas casas estreitas, eles geralmente ocupam toda a largura do prédio (des. 170, n.° 7), mas, nas mais largas, muitas vezes ficam isolados no meio do telhado, como um pequeno torreão (des. 170, n.° 8). Eles têm quase sempre janelas para vários lados, e um telhado pequeno, independente do telhado da casa, de quatro águas.
112Os andares sobrepostos, finalmente, são verdadeiros andares que se vieram acrescentar ao prédio originariamente previsto, impondo-se à sua estrutura, e alterando-lhe mesmo a linha arquitectónica. Distinguem-se desse modo dos frontões, varandins e mansardas, que se integram nelas e as completam. De construção habitualmente menos cuidada e mais pobre do que o edifício primário, eles podem continuar a fachada, à frente da casa – e vê-se então, em prédios de cantaria, um último andar de tabique, liso e tosco, com as molduras das janelas de madeira, acima da cornija ou do entablamento de granito do antigo beiral – ou ficarem em recuo sobre ela. Neste último caso, o andar sobreposto mostra duas ou mais janelas à frente, abrindo para o final da água frontal do antigo telhado normal, que só aí subsiste e que representa o recuo, assemelhando-se então a um mirante nas traseiras do telhado.
113Os andares sobrepostos têm sempre, naturalmente, um telhado mais curto que aquele que corresponderia ao prédio normal; não raro – nos casos de simples andar em recuo – esse telhado é de duas águas, com a empena para a frente; o telhado de quatro águas é, porém, o caso mais geral. Os andares suplementares que acabámos de descrever são sempre de material mais pobre – tabique, à vista ou revestido exteriormente de telhas postas a prumo, nas mais antigas; lousas ou chapa, nas mais recentes.
114As três categorias fundamentais – trapeiras, mirantes e andares sobrepostos – distinguem-se não só sob o ponto de vista morfológico, mas também pela sua função específica: as trapeiras destinam-se a iluminar e altear parcialmente um sector – ou mesmo a totalidade – de um sótão ; o mirante consiste num compartimento construído acima do telhado para ampliação da casa; os andares sobrepostos são mais um piso que a casa adquire, que pesa pouco, não exige grande resistência, e é barato66.
115As clarabóias, que estão em relação com o plano interior destas casas, para iluminação da escada central, são também um elemento característico dos telhados do Porto, extremamente corrente. Aparecem clarabóias de muitos formatos, desde simples vidraças ao correr das águas do telhado, até complicadas gaiolas de fantasia, altas como mirantes, e exuberantemente ornamentadas. O tipo mais comum é o da clarabóia circular ou elíptica, em forma de pequena cúpula de vidro – muitas vezes com vidros de cor – montada numa base cónica de barrotes dispostos à feição, cobertos de telhas ao alto, e revestida com rede protectora. Esta base muitas vezes não adere bem ao telhado, e é causa de típicas correntes de ar dentro de casa, através do vão da escada, em ligação com a porta da rua. Rematando-as exteriormente, estas clarabóias são com frequência encimadas por motivos de fantasia – bolas coloridas, grimpas, etc. (des. 171).
116Como dissemos, é muito frequente, nas casas do Porto, verem-se, ao mesmo tempo, vários destes elementos no mesmo telhado, dispostos sem qualquer ordem, acentuando ainda mais a impressão de irregularidade destas casas, já muito sensível pela diversidade de alturas, larguras, cores, estilo, etc., dos prédios; este facto mostra claramente que, no Porto, o aproveitamento do vão do telhado para sótãos ou andares suplementares de qualquer natureza se pode considerar de uso absolutamente corrente e normal, sendo extremamente raros os casos em que ele não tem lugar, e muito frequentes aqueles em que ele se faz na mesma casa, por mais do que uma forma (des. 172).
117Muitas vezes o último andar das casas seis, sete e oitocentistas do Porto assinala-se por qualquer particularidade distintiva que o destaca dos demais. O caso mais simples é o de ele ser mais baixo do que os outros e mostrar uma varanda corrida a toda a largura do prédio, por vezes acima de um falso beiral ou cornija (des. 173, n.° 1)67. Em soluções mais elaboradas, esse remate pode tomar o aspecto de frontões, varandins, ou mansardas. Os frontões, que podem apresentar-se sob diversas formas, são elementos integrados na estrutura do edifício que completam a linha da sua fachada e que se elevam acima de um falso beiral ou cornija do último andar normal. Os frontões ocupam toda a largura da casa, e podem ser em forma de tímpano perfeito (des. 173, n.° 2 e des. 173, n.° 7), truncado, ou imperfeito68, estes últimos com óculos, janelas ou portadas dando para uma varanda corrida (des. 174, n.os 4, 5, 6 e 7) ; no tímpano truncado, a linha superior central é horizontal (des. 173, n.os 1, 2 e 5) ; no tímpano imperfeito, a estrutura é disfarçada atrás de uma fachada de fantasia que esconde a linha do telhado (des. 173, n.°3 ; des. 174, n.°6). E há ainda que considerar o falso tímpano, que é uma verdadeira trapeira central e larga, que emerge do telhado e vem à face da fachada, assemelhando-se, como elemento decorativo, ao frontão de tímpano imperfeito, mas ocupando na realidade apenas um sector a meio, e dando para uma varanda do mesmo comprimento que ele (des. 173, n.° 4).
118Outras vezes, o último andar do prédio fica um pouco em recuo sobre a fachada, e esse recuo forma um varandim, para o qual abre uma ou mais portadas daquele andar, e que constitui um remate estrutural, que completa a linha do edifício (des. 175). Estes varandins – que podem ser descobertos ou cobertos, e estes últimos abertos ou envidraçados – têm, como guarda, uma grade de ferro corrida, ou uma platibanda ou balaustrada. Em prédios de esquina, é frequente verem-se destes tipos de varandins, total ou parcialmente cobertos ou descobertos, não apenas à frente, mas nas duas frentes ao mesmo tempo, ou mesmo em mais lados; o último andar é então um corpo central em recuo, cercado por um varandim (des. 175, n.° 4).
119O telhado dos varandins cobertos apresenta-se por vezes como um acréscimo à água frontal do telhado do prédio, que se acusa por uma quebra da linha dessa água (des. 175, n.° 5). Em certos casos, estes varandins parecem constituir acréscimos ulteriores feitos ao prédio, devendo então considerar-se antes como formas de andares sobrepostos, em recuo; e então, essa quebra do telhado é ainda mais sensível.
120Os varandins cobertos revestem muitas vezes formas de fantasia, com o seu tejadilho apoiado à frente em colunas ou arcarias de ferro, com pretensões a um exotismo típico dos meados do século passado. As portadas que para eles abrem, no tabique do andar em recuo, são muitas vezes em arco, geralmente ogivado, e com vidro de cor.
121Em casas maiores e mais recentes, e visivelmente sob a influência de estilos estranhos, vemos também aparecerem mansardas rematando a estrutura fundamental do edifício, e que normalmente são revestidas de lousa ou telha disposta em escama.
Notes de bas de page
1 Albano Belino, « Habitação Urbana », Portugália, I, pág. 616, diz que em Braga, na Rua do Souto, « os beirais conservaram-se até meados do século xix com uma saliência de tal ordem que as águas dos telhados, quando a chuva era abundante, batia nas portas dos prédios fronteiriços.
2 Existe com efeito a imagem de uma casa deste tipo, com fachada regular e de ressalto apoiado sobre colunas, numa iluminura do Livro de Horas de D. Manuel, representando a Rua Nova dos Mercadores, de Lisboa; e é de supor que as casas do mesmo género, mas de fachada irregular, sejam ainda anteriores a esta.
3 Este tipo mostra geralmente varandas de grades e balaústres também de madeira, e é frequente nas velhas ruas mesteirais do Porto, aparecendo, em termos semelhantes e referidas a nivéis idênticos, em muitas terras da província, nomeadamente em certas ruas mercantis e manufactureiras de Guimarães. No Porto, além dos exemplares que se vêem nas ruas mesteirais do velho burgo – Banharia, Souto, Escura, Caldeireiros, Reboleira, etc. –, existe uma bela amostra na Rua das Flores, num par de casas cujos três andares de tabique assentam num rés-do-chão de pedra, com preciosos ornatos proto-renascentistas, cachorros em forma de cabeça de leão e motivos de óvulos e diamantes, nos entablamentos das varandas, parecendo apontar a data de fins do século xix para a sua construção, o que de resto coincide com a tradição local.
4 Albano Belino, op, e loc. cit., pág. 614, considera as gelosias de Braga de origem árabe, baseado em puras razões históricas; Raul Lino, considera a rótula, em geral, entre nós com essa origem, mas difundida a partir do seu uso nos conventos. Giese distingue as rótulas do Sul, Algarve, Baixo Alentejo e Estremadura saloia, que podem ser de origem árabe; mas recusa essa origem à grades dos conventos e às gelosias nortenhas. Para ele, trata-se aqui ou de uma criação primitiva, ou, possivelmente, em certos casos especiais, de uma influência inglesa que o autor precisa.
5 Fernando Castelo Branco, «Aspectos da casa alentejana », in : Mensário das Casas do Povo, n.° 129, ano XI, Lisboa, Março de 1957.
6 Fernando Castelo Branco, «A arte do ferro e a casa alentejana », in : Mensário das Casas do Povo, ano XII, n.° 136, Lisboa, Outubro 1957, págs. 12-13.
7 Luís Keil, « Portais e Moinhos de Castelo de Vide», in : Terra Portuguesa, n.os 29/30, Lisboa, 1918.
Para o estudo de certos aspectos da casa do Sul baseámo-nos fundamentalmente nos trabalhos de Orlando Ribeiro e Silva Picão sobre o assunto.
8 Este trabalho foi apresentado no III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, de Lisboa, 1957. Parte do texto foi extraído da Conferência realizada no ciclo das comemorações do segundo centenário do nascimento de Francisco de Almada e mendonça, no Porto, e publicada na revista « Douro-Litoral », 8.a série, 7-8. Foi publicado in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XVIII, 3-4, Porto, 1961-62, e pela Pool Editora SA, do Recife, em 1986.
9 Cfr. Aderbal Jurema, O Sobrado na Paisagem Recifense, Recife, 1952.
10 Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, Lisboa, s/d, pág. 348.
11 Id., pág. 349. E o que Aderbal Jurema, referindo-se ao assunto, chama « o sentido imediatista da construção vertical que os Holandeses seguiram no Recife» (op. cit., pág. 27) de base ecológica.
12 Gilberto Freyre, op. cit., pág. 348.
13 Id.
14 A. Jurema op. cit., págs. 67-68.
15 Manuel Diegues Júnior, Etnias e Culturas no Brasil, Rio de Janeiro, 1956, pág. 26.
16 Roy Nash, A Conquista do Brasil (trad. Moacir N. Vasconcelos), São Paulo, 1950 (cit. por A. Jurema, op. cit., pág. 24).
17 A. Jurema, op. cit., pág. 77.
18 Id., págs. 36, 37, 38, 64-5, 71, etc.
19 Gilberto Freyre, op. cit., pág. 351.
20 Sobre o enunciado e definição da Lei de Afinidade, ver Jorge Dias, Os Arados Portugueses e as Suas Prováveis Origens, Coimbra, 1948, pág. 82. Esta lei, segundo o Autor, é que determina o comportamento dum povo quando emigra duma região para outra, segundo as condições de afinidade do meio de onde provém e aquele aonde chega. Se encontra, nas terras a que chega, condições semelhantes às da pátria de origem, onde pode desenvolver o tipo de economia que lhe era peculiar, e se o ambiente natural é semelhante àquele a que estava habituado, o homem triunfa mais facilmente. Se lhe é muito adverso, é difícil a vitória, aumentando ou diminuindo o grau de influência segundo o grau de favorabilidade é maior ou menor, podendo ir desde o domínio completo, acompanhado de manifestações de civilização superior, até à total assimilação ou desaparecimento.
21 Josué de Castro, A Cidade do Recife, Rio de Janeiro, 1954, págs. 155, 156, 158-9, 161.
22 A. Jurema, op. cit., págs. 31-3, 41, 71, 84.
23 Acerca do aproveitamento do sótão, id., págs. 39, 45. No que respeita à generalização do uso do tijolo pelos Holandeses, ver págs. 34, 43, 56, e principalmente 42, 65-66, 70, etc., onde se menciona a sua importação em navios da Companhia das Índias. Ver também informes interessantes sobre o assunto em Gilberto Freyre, op. cit., págs. 435-7.
24 Id., págs 59, 71, 84, e também 75. Note-se que o A., citando Alfredo de Carvalho, fala ainda em outra influência indirecta holandesa, que consistia na desorganização do regime agrícola (op. cit., pág. 15).
25 Id., pág. 84.
26 Ver nota 2 pág. 287.
27 A. Jurema, op. cit., pág. 12.
28 Para a caracterização da «casa portuguesa», Jurema, passim, e sobretudo págs. 12, 46, 66 e 69.
29 A. Jurema, op. cit., págs. 30, 39, 46, e sobretudo 42.
30 Id., págs. 68, 70.
31 Id., pág. 15.
32 Id., págs. 15 e 66-67.
33 Id., págs. 15, 43. Note-se que Wilhelm Giese lhes atribui origem holandesa, tendo-se difundido em Inglaterra nos tempos de Guilherme de Orange, e, seguidamente, em Portugal, a partir dos começos do século xviii, trazidos pelos ingleses que aqui se instalaram após a celebração do Tratado de Methuen (1703). (W. Giese, «Algumas palavras sobre janelas e ralos nos Açores », in : Revista de Estudos Açorianos – Boletim da Sociedade Afonso Chaves, Angra do Heroísmo, Açores, vol. II, n.°1, 1938, págs. 21-22).
34 A Jurema, op. cit., pág. 15.
35 Id., op. cit., pág. 15, citando Fr. Manuel Calado, O Valoroso Lucideno e Triunfo da Liberdade, Recife, 1942.
36 Gilberto Freyre, op. cit., pág. 411, e A. Jurema, op. cit., pág. 85.
37 A. Jurema, op. cit., págs. 64-65.
38 Id., págs. 56, 59, 80, 81.
39 Id., pág. 86.
40 Gilberto Freyre, Aventura e Rotina, Lisboa, s/d., pág. 185.
41 Id., pág. 186.
42 Para uma descrição mais pormenorizada dos telhados do Porto e seus elementos, ver : Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, « Telhados do Porto», in : Douro Litoral, nona série, vol. II, Porto, 1959.
43 Ver nota 7 da pág. 293.
44 Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, op. cit., nota 4 da pág. 286.
45 Um bom exemplo na casa setecentista da Rua do Cimo de Vila, n.°15, descrita em : Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas do Porto», in : Douro Litoral, oitava série, vols. VII-VIII, Porto, 1958, pág. 23 (separata).
46 Ver Gilberto Freyre, op. cit., pág. 408, acerca dos beirais no Brasil, em geral.
47 Cfr. A. Jurema, op. cit., expressões tais como : «altas empenas laterais», págs. 36, 45, 49, 59, 60, etc. ; « telhados pontudos», págs. 15,60, etc. ; « íngremes », págs. 59, 43 ; «a pique», pág. 72 ; etc. Por certas passagens deste livro (v. g. págs. 15, 41, etc.), depreende-se que, para o A., a bitola do telhado agudo é a inclinação que corresponde a uns outões com a altura superior a 1/4 do comprimento frente-fundo do telhado. De facto, nas fotografias que ali vemos dos velhos sobrados do Recife, as expressões parecem-nos um pouco literárias, cabendo melhor nos desenhos também ali inscritos.
48 Cfr. A. Jurema, op. cit., págs. 30, 36, 39, 40, 41 e 42, acerca da « mudança de direcção » das empenas dos telhados do Recife, relativamente à casa holandesa; e 44, que menciona a janela no outão. Ver também págs. 30-31 (nota 8).
49 Ver E. Veiga de Oliveira e F. Galhano, Telhados do Porto.
50 Jorge Dias, « Contribution to the study of primitive habitation », in : Compte rendu du XVIe Congrès International de Géographie, Lisboa, 1949.
51 Em Lisboa, este telhado é próprio das casas burguesas urbanas, e alterna com um telhado de quatro águas, por vezes mesmo em vários sectores na mesma casa, que se vê nos palácios e também nas casas de feição rural, do característico tipo saloio.
52 Ver nota 2 da pág. 291.
53 A. Jurema, op. cit., pág. 70.
54 Cfr. E. Veiga de Oliveira e F. Galhano, Casas do Porto ; também, dos A. A., « Fachwerk em Portugal», in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XVIII, fasc. 3-4, Porto 1961.
55 A. Jurema, op. cit., págs. 56, 59, nota 6, 80-81 (e nota 6), 101, etc. Gilberto Freyre, op. cit., 2.° vol. págs. 409-410 ; e Ramalho Ortigão, A Holanda, Porto, 1885, pág. 242.
56 A. Jurema op. cit., pág. 72. Note-se que essa diversidade, que é sem dúvida um traço fortemente característico do Porto, opõe-se precisamente à unidade arquitectónica que, a despeito da variedade individual das suas casas, dá o tom das ruas de Amsterdão, e lhe imprime a fisionomia de uma grande cidade europeia. Confronte-se isto com a que diz A. Jurema, op. cit., pág. 83.
57 Veja-se o magistral estudo de Gilberto Freyre que vimos citando, onde a vida inteira do sobrado recifense ressalta dos factos materiais com uma existência perfeita. E recomendamos o corte que mostra o « interior do sobrado patriarcal urbano do século xix, no desenho de L. Cardoso Ayres, com que abre o 3o volume da referida obra, que nos dá a imagem de tantas casas nossas conhecidas do Porto.
58 Ramalho Ortigão, op. cit., págs. 241-291 (cap. v, As casas e os indivíduos).
59 Júlio Dantas, «A Era Manuelina», in : História de Colonização Portuguesa do Brasil, Porto, 1921 (vol. I, pág. 5).
60 Conferência realizada na Casa dos Jornalistas do Porto, em 14 de Maio de 1957, por iniciativa da Associação Cultural «Amigos do Porto», com a colaboração da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, por ocasião da comemoração do 2.° Centenário do nascimento de Francisco de Almada Mendonça, publicado in : Douro Litoral, oitava série, VII-VIII, Porto, 1958.
61 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, « Telhados do Porto», in : Douro Litoral, Boletim da Comissão de Etnografia e História, nova série, vol. II, Porto, 1959.
62 E certo que as gravuras setecentistas, que conhecemos, da cidade, parecem por vezes indicar telhados de duas águas; isto nada significa, porém, e não pode opor-se à evidência dos factos; nas gravuras portuguesas, o caso explica-se pela maior facilidade do desenho de um telhado de duas águas; além disso, dado o carácter esquemático do desenho e a perspectiva simples que as casas mostram – de face –, o aspecto praticamente é o mesmo para as duas ou para as quatro águas; as gravuras estrangeiras, por seu lado, são muitas vezes feitas de cor, sem qualquer preocupação de rigor pictural. De resto, conhecemos uma gravura portuguesa que mostra claramente os telhados de quatro águas.
63 Albano Belino – « Habitação Urbana, Braga e Guimarães », in : Portugália, I, págs. 613-618. « Os beirais das casas da Rua do Souto (Braga)... conservaram-se até meados do século findo (XIX) com uma saliência de tal ordem que as águas dos telhados, quando a chuva era abundante, batiam nas portas dos prédios fronteiros».
64 Em Viana do Castelo existe uma casa da época proto-renascentista, onde essas gárgulas marcam nitidamente a transição para as goteiras barrocas do século xvii.
65 No século xix, aparecem casas com um andar suplementar a todo o comprimento frente-fundo do prédio, e com um telhado de quatro águas, que é afinal como que duas largas trapeiras a todo o comprimento do prédio, nascendo de um telhado primitivo de duas águas, do qual se vê apenas a linha do beiral inclinado nas empenas laterais, aumentadas à frente e atrás até à altura do cume primitivo (des. 170, n.° 6). É isto uma afirmação do telhado de quatro águas, por sobre um primitivo telhado de duas águas, em vista da criação de um novo piso.
66 Esta varanda no último andar é de resto um tipo vulgar provincial, nomeadamente na casa urbana transmontana.
67 A seu respeito, diz Albano Belino, op. e loc. cit., pág. 616 : « O progressivo aumento da população (em Braga e Guimarães) trouxe consigo a necessidade de se construir, sobre o primeiro andar de alvenaria, outro ou outros de tabique, às vezes com sacadas e grossas grades de madeira torneadas, estilo renascença». De facto, estes acréscimos de tabique constituem um género corrente nas construções do Minho, Douro, e Trás-os-Montes.
68 A distinção entre tímpanos perfeitos, truncados e imperfeitos, e falsos tímpanos, além de morfológica, tem uma base estrutural. O tímpano perfeito corresponde a um telhado de duas águas; o tímpano truncado, a um telhado de quatro águas, das quais a da frente se interrompe antes da terminação normal ; no tímpano imperfeito, a estrutura é idêntica à do tímpano truncado; o falso tímpano é uma verdadeira trapeira que se insere na água frontal do telhado principal a quatro águas, prolongando o seu cume, e deixando ver, de cada lado, as bases dessa água frontal. O tímpano perfeito, embora assente num telhado de duas águas, é, portanto, uma afirmação do telhado de quatro águas, que ele de certo modo ilude, mas que respeita e consagra : isso deduz-se da sua relação com o tímpano truncado, que dá o seu verdadeiro sentido estrutural, e ainda do facto do falso beiral ou cornija, que indica claramente qual é a verdadeira linha terminal do telhado frontal.
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