I. Casa-Bloco, térrea e de andar
p. 25-213
Texte intégral
1Paralelamente à própria diversificação dentro de cada uma destas duas zonas mais vastas e gerais, também as duas categorias de casas que definimos a traços largos se apresentam com uma infinidade de características peculiares locais e diferenças de pormenor, resultantes, uma vez mais, da acção dos factores secundários que individualizam as várias subdivisões regionais – materiais que o solo fornece e de que elas são construídas, necessidades decorrentes do tipo de economia predominante, localização das edificações, movimentos histórico-sociais que estão na base da difusão de determinados elementos ou estilos em áreas reduzidas, maior ou menor capacidade de aceitação de inovações, por vezes de invenção pessoal, e outras razões ainda de vária natureza, difíceis de precisar.
2Assim, dentro da área geral nortenha, distinguiremos em primeiro lugar duas zonas basilares que marcam entre si um contraste fundamental : a zona atlântica, a noroeste, que corresponde à região compreendida entre o litoral oceânico-norte e a barreira de montanhas que, correndo na direcção norte-sul a meio do País, marca a transição das terras baixas ocidentais para o planalto continental, a leste; e a zona transmontana, a nordeste, compreendendo as terras planálticas das províncias de Trás-os-Montes e Beiras Interiores, que prolongam a meseta castelhana.
Zona atlântica
3O Noroeste, de clima atlântico característico, temperado, fresco e muito pluvioso – a Ibéria Húmida –, é uma região predominantemente granítica com largas manchas de xistos, de terras regadas, sempre verdejantes, com uma vegetação variada, densa e profusa, numa típica paisagem «de bocage », a «terra castanha e verde», do poeta, onde se desenvolve uma policultura intensiva, de cereal, pastos, horticultura, vinha – o vinho « verde », de ramada ou «de enforcado » – e oliveira, nas mesmas terras, dominada actualmente pelo ciclo agrário do milho, com as suas implicações sociais e culturais, no sistema rotativo de campo-prado, de regadio, que veio substituir as pastagens permanentes que aí existiam a par com culturas de sequeiro antes da introdução daquele cereal, nos princípios do século xvi.
4Este tipo agrário traduz-se em trabalho permanente nos campos, para fertilização e valorização da terra, regas por sistemas variados, estrumações abundantes, cavas, sachas, mondas, etc. As áreas cultivadas situam-se no meio de matas extensas e entrecortadas de pinheiros bravos, revestidas de tojo e outras espécies atlânticas, que, roçadas e curtidas na cama dos gados, constituem o adubo característico do milho, e que vieram substituir a floresta de carvalhos--robles e castanheiros que na época castreja recobria totalmente com o seu manto as baixas, então desabitadas; os cereais, de sequeiro como dissemos, ocupavam as terras altas e as agras enxutas.
5A grande densidade populacional, que vem já desses tempos, que se relaciona por um lado com a fertilidade do solo e por outro com as exigências dessa agricultura intensiva e minuciosa, combinada com as circunstâncias históricas que presidiram à distribuição das terras depois da dispersão castreja e ocupação dos vales que se seguiu à conquista romana (a substituição do conceito de propriedade colectiva, que servira de base ao agrupamento pré-histórico, pelo de propriedade individual, e a dispersão das habitações em « villas », « quintas » e «casais», na paisagem) e com as mencionadas condições naturais do solo e tipo agrícola delas decorrente – que exigem uma grande e permanente intimidade com a terra e ligam a família mais a ela do que à vida colectiva – estão na base de uma característica disseminação de povoamento, que é o traço dominante da região, e se pode na verdade considerar um « facto atlântico » : nesta área, e mormente no Minho, não há verdadeiras aldeias, aglomerados em bloco; há casas espalhadas no meio das terras de cultura, ligeiros adensamentos em certos lugares esparsos, ou junto das estradas e caminhos, por vezes um pequeno núcleo que nunca chega a ser compacto; com frequência, só a torre branca da igreja, com a sua cúpula em forma de uma emergindo do arvoredo, marca a sede da freguesia: ao lado dela, o adro deserto, com um cruzeiro, o « passal » e o cemitério; à volta, campos, e, mais longe, a cinta escura dos pinhais. Mas as casas nunca cessam, e as últimas de um lugar confundem-se com as primeiras do lugar próximo; e já no século xvi se alude à raridade de povoações compactas nesta região, vendo-se os « fregueses » dispersos por casais isolados e pelos lugarejos.
6Aqueles mesmos pressupostos determinaram outros traços característicos da paisagem atlântica: o parcelamento excessivo do solo, todo ele dividido em pequenas leiras, por vezes minúsculas, atingindo em certos casos o nível da atomização da propriedade, e o seu aproveitamento minucioso e ininterrupto, que se traduz na construção de socalcos nos terrenos acidentados, na utilização das beiradas para erva e para vinho, na pesquisa por toda a parte de águas, cujos direitos de utilização se transmitem com a propriedade; e não apenas do solo, mas também de todos os recursos naturais, exprimindo-se numa grande variedade de painéis culturais, a que correspondem tipos mais ou menos distintos e definidos de casas: culturas agrícolas nas terras baixas, culturas agro--pastoris nas áreas serranas, culturas marítimas e agro-marítimas no litoral, culturas urbanas e industriais nos centros mais importantes e populosos – todas elas porém fortemente influenciadas por uma feição rural predominante.
7No que se refere portanto à casa popular na zona atlântica, estudaremos por um lado a casa das áreas propriamente rurais, da Ribeira Minhota do Alto e Baixo Minho e Minho Interior, Douro Litoral e Baixo Douro, e Beiras confinantes, e, particularizadamente, a das zonas serranas – casa-bloco, de rés-do-chão e piso superior sobradado –, e por outro lado a casa urbana. Seguidamente, noutro capítulo, a casa da faixa litoral desta área, própria dos estratos piscatórios, que é, ali, uma casa térrea.
8A casa popular na área rural atlântica, e de acordo com o tipo nortenho geral que atrás defininos, é uma construção de rés-do-chão e andar1, contendo no térreo as cortes ou aidos, estábulos, currais e pocilgas para os animais, a adega, o lagar, as tulhas, o palheiro e arrumações diversas, e no andar sobrado os aposentos para as pessoas, ou seja, os quartos e a sala; a cozinha ora se situa aí, ora é térrea, conforme os casos. Estes dois pisos são sobrepostos, mas, como dissemos, em regra independentes, acentuando a característica dualidade de funções respectivas ; o acesso ao sector de habitação faz-se geralmente por uma escadaria exterior, de pedra, encostada ou perpendicular à fachada, em casos mais raros de dois lanços, com patamar em frente à porta, por vezes alpendrado, em certos casos mesmo com colunas ou pilares e guardas lavradas; não raro porém existe uma escada interior única ou ao mesmo tempo que a exterior. Dentro deste tipo geral distinguiremos as casas das regiões baixas de povoamento disperso e mais evoluídas, e a casa serrana e de áreas arcaizantes e de povoamento concentrado, mais pobre, rude e tosca.
9O material de construção normal desta casa nortenha é, como dissemos, a pedra, nomeadamente granito ou xisto, conforme os recursos ou possibilidades locais; e a par com um factor económico de adaptação ao tipo agrícola cor- rente nesta área e independentemente da acção de outras influências que sem dúvida existem convergentemente, a partir de origens históricas e filiações culturais, é legítimo relacionar-se a estrutura desta casa, de rés-do-chão e andar, com as qualidades de resistência e força do material de que ela é feita.
10A construção em granito e xisto, de um modo geral, não consente a riqueza de formas e a fantasia que se encontram nas casas das áreas de outros materiais mais facilmente modeláveis, como os barros, «taipas» e calcáreos do Sul, e pode certamente dizer-se que o estilo da casa popular do Norte é pobre. Muitas vezes e mormente nas regiões serranas ou de qualquer modo arcaizantes, ela é de pedra crua, sem qualquer reboco ou caiação, e até, não raro, sem argamassas, de paredes despidas, apenas com os rasgos estremes das portas e janelas.
11Quando, porém, elas são rebocadas e caiadas exteriormente, é frequente mostrarem um rodapé de cor, geralmente cinzento, e cunhais, beirais e guarnições de portas e janelas de cantaria, perpianho ou alvenaria. Por outro lado, nas casas de pedra à vista, muitas vezes uma faixa caiada a branco acentua ombreiras e padieiras que o aparelho tosco da construção deixa menos determinadas.
12Nas zonas de granito, essa pedra pode ser mais ou menos aparelhada, e até lavrada, em alguns casos segundo preceitos regionais determinados; assim, em várias regiões, as paredes são duplas, constituídas por um aparelho exterior e outro inferior independentes, ligados aqui e além por peças que vão de face a face, a que se dá o nome de « juntouros », e que deixam entre si um vazio que faz as vezes de isolador2; noutras (como por exemplo o concelho de Amarante), as casas mostram grandes blocos quadrangulares de perpianho, dispostos em fiadas horizontais, todos da mesma altura em cada fiada, e apenas com as juntas caiadas ou pintadas; e no Alto Minho, numa área restrita da região de Monção, vêem-se casas térreas e muros feitos de esteios de granito postos a prumo uns a seguir aos outros, num sistema a que dão o nome de pasta, que é uma curiosa e significativa aplicação de um elemento muito cultural característico, normalmente destinado a fins diferentes. De um modo geral, porém, nos casos melhores, lembrando a velha tradição das cantarias minhotas, afirmada jé em tempos castrejos nas preciosas pedras ornamentadas que se encontram nas diversas citânias, nas capelas românicas, tão numerosas nesta zona, nos solares barrocos seis e setecentistas e, mesmo, nos espigueiros de pedra, por toda a parte se pode ver a riqueza discreta de um ou outro motivo decorativo de um neoclassicismo rústico cuja sobriedade rude vai a par com uma beleza de linhas que realça a nobreza severa da pedra: alizares de portas e janelas, por vezes com guarnições floreadas, frisos de cornijas e beirais, cunhais e entablamentos apainelados, cachorros de varanda, quando não mesmo mísulas, nichos, cruzes, inscrições com datas, legendas, medalhões ou símbolos diversos, em peças lavradas que ressaltam ou se destacam sobre a lisura das paredes.
13Nas zonas de xisto, as casas feitas só desse material apresentam formas e elementos ornamentais mais escassos, porque ele não consente os primores do granito. A construção de xisto, geralmente de alvenaria de pequenas lajes tabulares sobrepostas, é precária e carece de pedras-mestras sólidas. Como o xisto é muitas vezes excessivamente miúdo e quebradiço, as padieiras de portas e janelas são quase sempre grossas tábuas ou barrotes de madeira, que se inserem nas paredes, e sobre as quais a construção segue com maior segurança; quando se pode obter granito, é frequente tais peças serem desta pedra, e bem assim as ombreiras e aventais das janelas, e principalmente os cunhais do edifício, que, em grandes blocos de perpianho dispostos alternadamente numa e na outra parede, se destacam, nas casas sem reboco, pela sua cor e dimensões, ao lado do aparelho pobre do xisto.
14Muitas vezes, para aliviar o peso da parede acima das padieiras colocam- – se sobre elas duas placas oblíquas formando ângulo.
15Além destas particularidades, a construção de xisto apresenta, em determinadas partes desta zona, algumas soluções especiais, que por vezes definem um carácter local muito acentuado; pensamos designadamente nos telhados e beirais feitos de placas desse material, e nas grandes lajes utilizadas como muros divisórios de campos que se vêem em certas terras onde ele impera, e sobretudo nas várias aplicações da lousa na região de Valongo, como cobertura de telhados em pequenas telhas em forma de escama, de fabrico mecânico, e mesmo postas a prumo como revestimento exterior de tabiques.
16O telhado destas casas é normalmente de quatro águas, não sendo porém raro, nesta zona, igualmente o de duas; aparecem com frequência também telhados de três águas, já como alteração do tipo corrente, já mais regularmente como solução especial relacionada com a localização da cozinha e chaminé no topo da casa em empena. Por outro lado, correspondendo a certos estilos locais de casas, vêem-se por vezes telhados de estrutura complexa, comportando uma ou mais alas laterais que recobrem corpos salientes do edifício principal; é o que sucede designadamente em certas casas da Maia a que adiante nos referiremos, cujo tipo geral, após uma interrupção nas proximidades do rio Ave, volta a aparecer em termos idênticos por Esposende. O sistema de cobertura que parece ser mais antigo é o de colmo ou de outros materiais vegetais, assentes num travejamento de madeira, e que na época castreja era por vezes revestido de barro3; ele é ainda hoje usado em grandes áreas, especialmente em zonas confinantes com regiões serranas ou de qualquer modo arcaizantes, onde se pode considerar de regra, nas rudes casas de pedra à vista que aí se encontram. Nas terras baixas, porém, mais evoluídas, predominam os telhados de telha caleira, que, em certas áreas, se caiam de branco. Ultimamente, observa-se a tendência para o abandono sistemático dos velhos processos, que subsistem apenas nos casos mais pobres ou antigos, e a sua substituição pela telha, e a da telha caleira pela chamada telha marselha, vendo-se povoações inteiras donde eles desapareceram totalmente, marcando a decadência final das formas tradicionais locais que caracteriza a nossa época4. Os telhados de telha caleira mostram, muitas vezes, espaçadas regularmente, fileiras da largura de três ou quatro telhas assentes em cal e voltadas para cima, em destaque sobre o restante da cobertura, tendo em vista estabelecer uns passadiços que permitam andar sobre o telhado, e que por vezes se caiam de branco.
17De um modo geral, no Norte faltam, sobre os telhados, os elementos decorativos correntes no Sul; à parte os simples beirais corridos, assentes por vezes em singelas cornijas, ou sobre um motivo de duas ou três fileiras de telhas embutidas e desencontradas, que os Franceses denominam génoise, apenas em áreas restritas se usam, nos topos dos cumes, pombas de barro ou cal, de asas abertas, pintadas de branco.
18Nesta área, a chaminé, que parece ser entre nós um elemento adoptado em data relativamente recente5, falta em inúmeros casos, sobretudo, mas não apenas, nos níveis mais antigos e pobres e em regiões arcaizantes, escoando-se então o fumo, que enegrece o interior das casas, através da telha-vã, pelas fendas naturais ou praticadas intencionalmente no telhado, por telhas levantadas, ou pelas portas e janelas abertas; nos concelhos de Matosinhos e Vila do Conde, e nas casas da Maia atrás mencionadas, por exemplo, grandes casas rurais, algumas mesmo de feição burguesa, mostram a cozinha num anexo térreo, e não têm chaminé. Apesar disso, porém, ela é muito frequente, podendo mesmo considerar-se de regra em inúmeras partes e em casas mais recentes ou construídas sob moldes menos tradicionais. Por vezes ela consiste apenas num dispositivo rudimentar de telhas erguidas, encostadas pelos topos; outras vezes, pelo contrário, e numa área muito vasta, ela toma grande vulto, ocupando um largo sector da parede do edifício6, e correspondendo a uma casa rural de elevado nível económico. Tal é o caso da zona situada da Maia para o interior, por exemplo, onde a chaminé ora estreitece para o alto, acima do cume do telhado (Paços de Ferreira, Penafiel, etc.), ora se mantém sempre da mesma largura, ocupando toda ou grande parte daquela parede, e é de pedra, ou de tabique revestido a telha, lousa ou chapa. Estas chaminés grandes são especialmente notáveis na zona litoral minhota, nos concelhos de Esposende, Barcelos e Viana do Castelo, em que se elevam, enormes e caiadas de branco, sobre uma esquina da fachada de topo da casa, por vezes a toda a sua largura, outras vezes no sentido perpendicular a ela, outras ainda encostadas a ela ou em destaque, no topo do edifício térreo contíguo à cozinha; como estão sempre construídas sobre um cunhal, têm duas faces verticais de granito; as outras duas são de tabique forrado a telha caleira, uma vertical e outra oblíqua. Na boca larga há duas caleiras com ligeiro pendente assentes sobre as paredes, para escoamento da água da chuva, que terminam nas faces menores da chaminé ; a sua saída serve por vezes de pretexto a certos ornamentos que a enquadram; por cima dessas caleiras está um varão de ferro onde pousam horizontalmente telhas com espaços entre si, para saída do fumo, e tudo isto é protegido do vento por um rebordo de tijolo ou lascas de xisto. Na região do Baixo Douro e do Tâmega, a chaminé, em certos casos, toma maior vulto ainda, assemelhando-se a pequenas torres de paredes cegas de pedra sobressaindo acima do telhado da casa, coberta por um vulgar tejadilho de quatro águas, com pináculos que rematam o seu cume; ela nasce no interior da cozinha, já ampla e larga no saial, e as suas quatro paredes sobem verticalmente até acima, mostrando apenas uma série de frestas ao alto, por onde se escapa o fumo7. Nesta mesma região, junto ao rio, vê-se também, a par com os outros tipos, uma chaminé, que parece ser de aparição recente, e que consiste num pequeno telhado de duas águas de telha marselha, elevado ligeiramente sobre o cume do telhado da casa e que tem a mesma estrutura deste.
19Estas diversas formas de chaminé rematam de modos diversos, que permitem a saída do fumo e impedem a entrada da água: telhas formando como que um pequeno tejadilho de duas águas, ou em grupos seguidos, inclinadas duas a duas ao alto, encostadas nos topos, chapas firmadas um pouco acima da boca, etc.
20Nas fachadas lineares e lisas, além dos raros ornatos que mencionámos, vêem-se apenas os beirais de telha, os rasgos das portas e janelas, a escada de pedra e o patamar alpendrado, uma ou outra pequena varanda corrida. Nas casas elementares, nas áreas mais arcaicas e nos níveis mais pobres, as aberturas são escassas, e ainda hoje é frequente apresentarem simples portadas de pau sem qualquer vidraça; nas localidades mais evoluídas, as janelas são as mais das vezes do sistema de corrediça, que parece ter-se difundido entre nós, e sobretudo no Norte, a partir de começos do século xviii, trazido pela gente inglesa que aqui se instalou em seguida à celebração do Tratado de Methuen, e que pelo seu lado o aprenderam dos Holandeses na época de Guilherme de Orange8.
21A grande varanda, aberta, larga e corrida, de pedra ou de madeira, que existe em inúmeros casos, situa-se nesta área ao longo de uma das fachadas mais compridas, recoberta pela aba do telhado da casa, que desse lado desce muito abaixo, pousada em prumos de madeira ou colunas. Ela é utilizável para arrumação e sequeiro, às vezes mesmo com empanadas móveis de protecção, e, conforme as regiões, aparece ora à face da fachada, apoiada em colunas ou mais usualmente pilares de pedra encimados por uma espécie de capitel de cantos redondos – como é o caso minhoto –, ora em saliência, suportada pelos próprios barrotes em que assenta o sobrado do andar – como é o caso do vale do Baixo Douro e seus afluentes – ; mas em ambas as formas o térreo sob ela fica aberto, utilizando-se o desvão que assim se forma para arrecadação de alfaias9; por outro lado, numas regiões ela é alta e airosa; noutras, como em aldeias da Peneda, baixa e atarracada. Esta velha varanda aberta parece estar na origem de várias soluções arquitectónicas frequentes no Norte do País; na região da Maia e Vila do Conde, em casas de lavoura construídas no século xix, pode ver-se, ao nível do andar sobradado, um corredor muito largo, chegado à fachada virada para o quinteiro, para onde abrem as portas das diferentes divisões, que é iluminado por várias janelas, e ao qual se ascende por uma escada situada num dos seus extremos, sendo o outro ocupado por um quarto; a varanda aberta vê-se nesta região em casas dos séculos xvii e xviii e em alguns casos pode mesmo seguir- – se o processo evolutivo da sua transformação nesse corredor oitocentista; em múltiplos lugares, nomeadamente Esposende, essa varanda fecha-se com uma fachada de perpianho ou de material leve, geralmente um tabique, onde se rasga uma série de janelas seguidas que a disfarçam, formando também um largo corredor interior, ao qual se ascende pela velha escada de pedra exterior10. Em muitos casos, porém, não existe a varanda, mas um patim alpendrado no cimo da escada exterior, para o qual abre a porta que dá directamente para o andar sobradado.
22Geralmente, e sobretudo nos casos de maior vulto, certas dependências da lavoura, cortes, galinheiros, cobertos, arrumações, etc., não se encontram na sua totalidade compreendidos no bloco principal do edifício, mas dispostos um pouco a esmo em tomo de um pátio ou recinto fechado situado ao lado daquele – telheiro, terreiro ou quinteiro – onde se empilham palhas, matos, lenhas e estrumes, onde as galinhas e por vezes os porcos andam à solta, e junto do qual fica a eira com os seus alpendres, varandões, sequeiros ou casas de eira, de um ou dois pisos, e bem assim o coberto, com a barra ou palheiro, e os espigueiros ou canastros, de pau ou de pedra, onde se seca e guarda a espiga colhida no tarde. Essas casas, de acordo com a típica disseminação da zona atlântica, vêem-se em regra isoladas no meio das suas terras de cultura – hortas, eirados ou campos –, e localizam-se à face dos caminhos que se alongam entre muros e se cobrem muitas vezes de ramadas; mas, apesar disso, elas não têm porta directa sobre esses caminhos: as mais das vezes a sua entrada situa-se ao lado, num largo portal de carros, muitas vezes alpendrado e ladeado por dois bancos de pedra ou poiais exteriores, que abre para um coberto anexo e contíguo, antecedendo imediatamente o quinteiro; e é deste que parte a escadaria de pedra que ascende ao patamar de entrada ou à varanda, e para onde abre a cozinha, se esta é térrea. Em muitas áreas desta zona porém, à face de ruas ou estradas, vêem-se casas deste tipo, de fachada lisa e quadrangular, de arquitectura singela e linhas horizontais, de feitura cuidada e por vezes mesmo rica, em que aquele portal se rasga na própria fachada da casa, em muitos exemplares ao fundo de magníficos vestíbulos alpendrados, em arco; mas mesmo então, não se trata da porta da casa, mas do portal do quinteiro das traseiras, ao qual conduz uma passagem por baixo do andar, cujo sobrado fica à vista sobre o seu forte travejamento, e que é já um recinto de arrumos. Estes portais mostram por vezes belos lavores de madeira, e, em especial no Douro Litoral, são com frequência pintados, ostentando, além disso, notáveis trabalhos de ferraria, nos seus espelhos de rico desenho vazado, aldrabas e batentes.
23Numa ampla zona central da província do Douro Litoral, e, em casos esporádicos, um pouco por toda a zona, e nomeadamente pelo concelho de Paredes, junto ao rio Sousa, encontra-se um tipo especial de casa de pátio fechado, que oferece aspectos originais. O conjunto dos edifícios que constituem a unidade agrícola e que formam o pátio dispõem-se à volta, fechando-o ora na sua totalidade, ora apenas por dois ou três lados, sendo neste caso o restante vedado por um muro alto. O acesso ao pátio faz-se por um largo portal, geralmente alpendrado. A casa de habitação fica ao fundo, e tem quase sempre um andar sobradado sobre um térreo de serviço. A cobertura desta casa é em muitos casos de colmo, e o aparelho das paredes é de pedra tosca à vista, granito ou xisto, de um rusticismo ou arcaísmo extremos. Ela aparece isolada das terras de cultura, numa zona típica de pequena propriedade muito parcelada, e vê-se em níveis muito diversos, que vão desde casas abastadas de lavoura às mais pobres e modestas; e se o pátio é, sem dúvida, um elemento funcionalmente vantajoso em qualquer caso, o aspecto de cidadela fechada, vedada ao acesso de estranhos, que ele aqui toma, parece poder explicar-se fundamentalmente por razões histórico-culturais, como sobrevivência de uma remota forma que tinha em vista a defesa contra assaltos ou depredações.
24Interiormente, a casa do Noroeste é de uma simplicidade de estilo correspondente ao exterior, e, salvo no que se refere a certos traços muito gerais, o seu plano não oferece qualquer uniformidade. Contudo, em várias partes, encontram-se um conjunto regular, formado pela sala com duas alcovas ao fundo, a par, abrindo para ela; esta forma aparece nas casas de Esposende e noutras, e tem particular evidência e interesse nas casas da área rural do Porto e da Maia. Aí, além desse conjunto, vê-se entre as duas alcovas um estreito corredor que faz a ligação da sala com a cozinha ou com a escada que leva a esta, quando essa divisão fica no piso térreo. Da comparação das casas dessas duas áreas, que datam respectivamente dos meados dos séculos xvii e xviii, pode ver-se não só a evolução dos conceitos habitacionais que presidiram à elaboração daquele plano, no sentido do seu ajustamento a uma casa mais diferenciada, mas também o seu processo da adaptação a níveis económicos diversos, desde pequenas casas térreas de artífices até importantes casas de lavoura, ricas e de feição aburguesada.
25Na análise da casa popular, de um modo geral, distinguiremos, pelo seu carácter mais acentuado e pela importância das suas funções, a cozinha, a sala e os quartos.
26A sala é, em toda a parte, uma dependência de natureza fundamentalmente cerimonial, relacionada com certas solenidades, designadamente a visita pascal, a velada fúnebre, e também determinados acontecimentos festivos; ela situa-se por isso geralmente logo à entrada da casa, e é a divisão onde a preocupação decorativa e os elementos de luxo assumem maior vulto. Nela figuram sempre as melhores peças do mobiliário da casa, e em especial o oratório, geralmente sobre uma cómoda, e em alguns casos substituído por um nicho cavado na parede, formando uma espécie de altar. Assim sucede, por exemplo, em algumas dessas casas da área rural do Porto atrás referidas, onde esse nicho é revestido de preciosas peças de talha policromada seiscentista.
27Não raro o seu tecto é em forma de «masseira», que permite um alteamento que aproveita parcialmente a inclinação do telhado, de painéis de madeira, em certos casos com pinturas de grinaldas de flores ou outros motivos, ou de estuque, por vezes mesmo com ricos lavores, que são também de velha tradição minhota. Naquelas casas do Porto, o tecto de «masseira» deixa à vista o seu embarrotamento, que tem uma disposição especial. A cornija do tecto e as molduras e guarnições das portas mostram belos frisos exuberantes, de castanho, tendo estas últimas fortes almofadados em relevo. Com muita frequência, ali e de resto nas demais janelas destas casas, vêem-se bancos de pedra, no vão, junto às ombreiras laterais.
28A natureza cerimonial da sala e o seu carácter luxuoso excluem dela geralmente as actividades quotidianas normais; ela é frequentemente utilizada para arrumos de roupas ou objectos domésticos, o que constitui ainda uma afirmação indirecta dessa sua natureza específica. Vê-se, assim, a importância e o relevo que têm, na estrutura da casa popular, o elemento simbólico e cultural; mesmo em casas muito exíguas, em que é premente o problema do espaço para acomodações indispensáveis, grande parte das disponibilidades fica imobilizada numa dependência que não desempenha nenhuma função utilitária relacionada com o quotidiano da economia material doméstica11.
29Os quartos, pelo contrário, nada têm, na maioria dos casos, de especial. Os seus tectos são geralmente estucados ou forrados a madeira, e, como vimos, muitas vezes têm a forma de alcovas ou cubículos, abrindo para a sala. Numa casa rural setecentista, em Tecla, no concelho de Celorico de Basto, existe, a um lado da sala, uma armação de madeira que mostra belos frisos ornamentais com duas alcovas contíguas; este tipo de alcova, que era corrente nas casas dos pescadores da Póvoa de Varzim, é porém raro entre nós nas casas rurais.
30A cozinha é o compartimento essencial da casa, o local onde decorre toda a vida de relação da família, onde se cozinha, se come e se reúnem as pessoas depois do trabalho, sobretudo durante o Inverno. Como dissemos, ela ora se situa no rés-do-chão, com um piso de pedra ou de terra batida, e actualmente de cimento, ora, mais geralmente, no andar de cima, num dos topos da casa, sendo então pavimentada a soalho. A sua peça fundamental é a lareira, símbolo da casa, ou seja, o lugar onde se faz o fogo e se prepara a comida. A lareira é normalmente constituída por uma laje de pedra ou por blocos esquadrejados, sobre os quais se faz o fogo, e situa- – se ao meio ou um pouco ao lado de uma parede ou então num canto da cozinha. Se a cozinha é no andar e soalhada, ela fica elevada acima do nível desse pavimento; se é no térreo e este é de terra batida ou de lajedo, ela pode ficar ao nível do pavimento.
31Em algumas zonas, especialmente em casas mais pobres, térreas e rústicas, ela fica mesmo abaixo do nível do pavimento, formando assim um degrau onde as pessoas se sentam, voltadas para o fogo, e compõe-se então de uma ou mais pedras ladeiras, meio enterradas no solo12. Por trás da lareira, cavada na parede, fica uma espécie de caixa alta ou pequeno armário aberto – a borralheira ou cinzeiro – onde se deita a cinza.
32A borralheira é coberta, em cima, por uma grande laje de pedra formando uma prateleira, por vezes de um belo desenho simples e nobre, que sugere o altar dos deuses familiares: « lares » – o poial ou piai –, e resguardada à frente por outra pedra – o trafogueiro – contra a qual se encostam as achas de madeira que ardem13. Em certas partes, a borralheira toma o aspecto de um vazio aberto na espessura da parede; são assim, por exemplo, as pilheiras da região de Basto, onde dão o nome de lar à pedra que serve de poial e que divide horizontalmente as duas pilheiras sobrepostas. Ao lado da lareira situam-se os bancos ou escanos, e, à sua frente, uma peça de ferro, que leva também o nome de trafogueiro, ao qual se encostam as achas que ardem, e em cujas colunas se pousam as malgas do caldo e se apoia a ponta do espeto em que se assam as grandes peças de carne por ocasião de certas festas em que aparecem numerosos convidados.
33Na grande maioria dos casos, por toda esta região, o fomo do pão é construído dentro da cozinha, ao lado da lareira, chegado a um canto, por vezes meio embutido na grossura das paredes; a sua boca fica levemente de esguelha, voltada para a lareira, com uma soleira14 e muitas vezes também uma padieira saliente. Excepcionalmente e em casos recentes, em terras de Vila do Conde, aparece um ou outro fomo construído no exterior da casa, para não ocupar espaço dentro da cozinha, mas abrindo para ela a sua boca. Não raro as casas ricas possuem dois fomos: um, maior, em que se cozem as grandes fornadas usuais de pão de milho; e outro, de menores proporções, que se utiliza geralmente para os assados ou outros cozinhados dos dias de festa, ou para qualquer fornada acidentalmente mais pequena15. Para a construção do forno, empregam-se geralmente os fornos de barro cozido fabricados nas olarias, que se instalam no sítio onde devem ficar, e se recobrem de barro. Para fomos maiores, usa-se o tijolo. Um outro processo que se utilizava para a construção dos fomos consistia em se fazer uma espécie de abóbada de achões de madeira, sobre os quais se estendia uma espessa camada de barro; quando este secava, acendia-se o forno, a madeira ardia, e a abóboda ficava cozida e firme.
34Como vimos, em inúmeros casos não existe a chaminé ; o tecto da cozinha é quase sempre de telha-vã, e o fumo escoa-se então pelas fendas do telhado ou pelas portas abertas. Quando ela existe, porém, corresponde interiormente, em geral, a enormes «saias» que recobrem a lareira e o forno, apoiadas num extremo por um prumo, ou corridas de lés a lés a toda a largura da cozinha. Essas «saias» são vulgarmente em tabique, e rematam à frente numa espécie de prateleira, onde se colocam objectos de uso doméstico, pratos, luzes, etc. ; em casos muito raros, em que essa «saia» é de pedra, ela pode tomar aspectos monumentais, em enormes blocos monolíticos de belas peças de cantaria, apoiados lateralmente em colunas. Em casos muitos raros, aparecem «saias» pequenas, cobrindo apenas a lareira; numa velha casa da região de Celorico de Basto, existe uma deste tipo, toda de pedra, que estreitece para cima, e cujo frontal se apoia lateralmente em possantes cachorros sobrepostos, do mesmo material, que fecham em parte, dos lados, a lareira. Note-se que por vezes a presença do saial não implica a existência da chaminé que lhe devia corresponder. Em Riba de Âncora, no Alto Minho, por exemplo, são muito frequentes as casas cuja lareira é recoberta pelo saial, escapando-se contudo o fumo apenas pelas fendas obtidas para esse fim pelo levantamento de algumas telhas.
35A par da lareira e do forno, com os seus apetrechos e potes de ferro e de barro, e além do mobiliário característico – os preguiceiros e bancos diversos, a mesa, a masseira e utensílios do pão, etc. –, vêem-se na cozinha numerosos nichos, poiais, pilheiras ou cantareiras, dispostos por vezes com grande profusão nas diversas paredes. Na região da Maia, o lugar da cozinha onde se arruma a lenha, a um canto, ou, mais correntemente, ao lado da lareira, atrás do banco que a ladeia, leva o nome de alhar ; e em Mourão (Vila do Conde), o alhar é mesmo um móvel especial onde do mesmo modo se arruma a lenha – uma espécie de tabuleiro largo fixo às traseiras do banco da lareira, do qual faz parte.
36Em terras maiatas, vêem-se ainda, em cozinhas de velhas casas rurais, um ou vários postigos que abrem directamente sobre a manjedoura dos aidos do gado de engorda. Quase sempre as paredes em que se rasgavam esses postigos eram de pedra até ao tecto, mas aparecem casos em que apenas a base dessa divisão é de pedra, e os postigos deslocam-se lateralmente num tapamento de madeira; numa casa antiga de Labruge, vêem-se mesmo esses postigos – a que dão o nome de manjedouras – dispostos em duas paredes opostas da cozinha. E em alguns casos raros, a própria porta do aido abria para a cozinha, e através dela passavam os bois e retirava-se o estrume. Estes postigos, que até há poucos anos eram aqui extremamente frequentes, encontram-se em vias de desaparecimento total, e são hoje raros; eles constituem mais uma forma de convívio entre pessoas e animais, característica da casa nortenha, e em especial na região maiata ; um ou outro caso semelhante que encontramos noutros pontos do País apresentam-se como solução casual, que de modo nenhum representa costume regional; por outro lado, eles parecem ser conhecidos noutros países16.
37A ausência de chaminé, a escassez de aberturas, a própria natureza do trabalho agrícola da região, que obriga toda a gente da casa a trabalho permanente no campo, a necessidade de manter o gado estabulado e os conceitos gerais de economia doméstica que dominam as populações nortenhas são causa da característica escuridão e desalinho destas cozinhas; elas são geralmente negras de fuligem, e mostram uma ausência total de preocupações estéticas ou decorativas. Na região de Aveiro, em que se anuncia já a casa do Sul, é por isso frequente não se utilizar a cozinha, preparando-se e comendo-se normalmente as refeições noutro local, e utilizando-se a cozinha principal como sala de trabalho ou de costura; ela fica desse modo preservada, numa propositada aparência de esmero; uma segunda cozinha, a seguir à casa, e a que se dá o nome de cozinha velha, é onde vulgarmente se cozinha, se come e se reza o terço. Por vezes, há ainda uma terceira cozinha, fora, onde na época própria se gastam, como combustível, «troços» de couves e « rameiras » verdes dos valados, que fazem muito fumo.
Um tipo de casa rural dos arredores do Porto1
38O núcleo urbano do Porto é circundado, ainda dentro dos seus limites administrativos, por uma dilatada zona rural, que as necessidades criadas pelo progressivo movimento urbanístico vão absorvendo pouco a pouco, para a construção de bairros excêntricos, fabris ou de habitação, mas onde a actividade agrícola ancestral persiste, prolongando, sem soluções de continuidade, as lavouras da Maia e do Baixo Minho Litoral, num arcaísmo de utensilagem e processos que surpreende, a escassos milhares de metros do centro da cidade.
39É ela, a noroeste, constituída por uma paisagem plana, de hortas e campos de milho, por vezes bordados de ramadas montadas em esteios de pedra, entre manchas de pinheirais, envolvendo os singelos aglomerados rústicos de Aldoar, Nevogilde, Ramalde, Pereiró, Senhora da Hora, e, mais adiante, Matosinhos, Sendim, etc., com as suas pequenas igrejas paroquiais de belas guarnições de granito sobre paredes caiadas de branco ou revestidas de azulejos, as suas velhas quintas de altos muros encimados de trepadeiras, as suas sebes de silvas e madressilvas e o seu casario alongando-se pelos extensos arruamentos já meio citadinos.
40A propriedade é muito dividida, e a menor parcela de terreno se aproveita, porque a cidade tudo consome facilmente. A par de uma considerável produção hortícola, tem aí lugar o cultivo do milho, segundo a tecnologia conhecida no resto da província, com todas as suas implicações. Como lá, a água – aqui por vezes já poluída pela prévia utilização fabril – corre em levadas e partilha-se entre consortes. No Inverno, uma lama abundante sustenta a ervagem dos campos, para penso do gado; pululam as noras e engenhos de buchas, não raro de toscos carretos e rodas dentadas, de madeira, accionados por esse gado, assegurando, no Verão, uma rega conveniente; e estes sistemas, combinados com uma adubação forte, permitem o rotativismo de culturas de regadio, de tipo intensivo.
41O boi é, aqui também, o complemento fundamental da economia agrária, como factor de adubo e elemento quase exclusivo de tracção rural; é ele que puxa a charrua e a grade; que, como dissemos, eleva a água de rega, e que se atrela ao carro, em juntas jungidas pelos mais formosos jugos que se conhecem no mundo17, de madeira lavrada e pintada; é ele que prepara o estrume específico desta agricultura, curtindo nas suas cortes o mato que para esse efeito cresce nos pinhais. Por outro lado, ele sustenta-se dos subprodutos do milho – o «pendão », na altura própria, e, durante todo o ano, a cana e folhas, com que, enfaixadas em molhos, se constroem anualmente « barracas » ou « cabanas » sobre estacas de pau, por vezes de dimensões avultadas, que se vão desfazendo à medida das necessidades alimentares dos animais, e que servem, entretanto, para arrecadação de alfaias – e da erva que se segue ao milho durante os meses de Inverno.
42A alfaia agrícola aqui usada deve relacionar-se com a que, da mesma natureza, se encontra nas regiões puramente rurais do País, podendo incluir-se, com as suas variantes particulares, nas categorias respectivas de um quadro tipológico geral, referido à região atlântica. Grande parte dela é ainda de madeira, de fabrico manual e de formas tradicionais; falámos já dos engenhos de buchas, em que a « bomba », o «carreto» e a « roda dentada» são desse material, e o mesmo sucede com os pesados carros de bois, de duas rodas, com as grades de quatro « banzos » paralelos, o recipiente de « água choca» com que se enriquece a adubação, que é uma pipa com uma gamela fixa ao alto, e com o arado de tipo quadrangular, de aivecas quase unidas ao dente, empregado para abrir regos e revolver a terra sem a virar.
43É corrente estas lavouras compreenderem ainda um porco, que aproveita a lavagem da casa e certos produtos secundários da terra, e que, na época da engorda, se ceva à base de milho, integrando-se perfeitamente no conceito regional da economia agrária.
44Encontramos, pois, aqui, as características fundamentais das culturas de Entre-Douro-e-Minho : o milho e a erva, a horta, o vinho de ramada, o boi e o mato, a sua utensilagem e tecnologia próprias, muitos dos seus conceitos e costumes. A proximidade da cidade faz-se sentir na maior importância da horticultura, no emprego sistemático – a ponto de implicar alfaia própria – da « água choca» como adubo normal, e também do lixo, a par com o mato, na infiltração de certas noções quantitativas que uma necessidade mais sensível de numerário justifica, etc.
45A propriedade, de um modo geral, é pequena ou média, feita pelos próprios donos com a ajuda da família ou de assalariados, ou arrendada a caseiros, mediante o pagamento de rendas fixadas de acordo com certas normas consuetudinárias.
46Espalhado por toda a área que descrevemos, com uma densidade por vezes apreciável e certamente grande se a reportarmos aos demais casos coevos, encontra-se um género de casas apresentando entre si uma identidade perfeita de caracteres internos e externos, que, por isso e pela sua difusão e frequência, consideramos um tipo especial de casa rural dos arredores do Porto. É uma dessas casas, situada na freguesia de Aldoar, que passamos a descrever, como protótipo das demais, das quais indicaremos seguidamente os pormenores variáveis.
47Trata-se de uma casa de planta rectangular (des. 8), cuja fachada principal – que é virada a SE – é um dos lados mais compridos, e que se compõe de rés-do-chão e andar, a que se acede por uma escadaria exterior e uma escada interior. A escadaria exterior, larga (de 1,60 m) e de subida suave, é de pedra bem aparelhada, e termina por um patim alpendrado, da mesma largura que a escada, que vai até ao cunhal oposto; a guarda da escada começa por um elemento decorativo em S de dupla espiral, e é em grandes blocos de cantaria com um corrimão talhado a capricho (foto 5). O conjunto da escada e do patim, embora aderente ao corpo principal da casa, da qual ocupa toda a fachada principal, é, contudo, de construção independente desta: na fachada de topo, mal disfarçada pela caiação, distingue-se a linha que divide os dois cunhais contíguos: o do corpo da casa e o do patim (foto 6).
48O telhado da casa, de telha caleira portuguesa velha, é de quatro águas; uma delas – que corresponde à fachada principal – prolonga-se de modo a formar sobre o patim um alpendre inclinado, sustentado por três colunas baixas (0,85 m), de granito, num estilo neoclássico singelo e rústico; este alpendre, porém, não abrange a escadaria, que fica a descoberto.
49No patim, está a porta de entrada do andar superior, o qual compreende uma sala, dois quartos pequenos desiguais, e o patamar e vão da escada interior. A porta do patim – que é a porta de entrada da casa, larga, forte, e de mais aparato – abre directamente para a sala.
50A sala é quadrangular, formada por três paredes exteriores e um tabique ; em cada uma das paredes exteriores há um rasgo: na da frente, a porta de entrada, já mencionada, que dá para o patim; em cada uma das outras duas, uma janela. Interiormente, a porta e as janelas apresentam estreitas guarnições de granito, hoje caiadas como as paredes; e, de cada lado do vão das janelas, vêem-se os característicos poiais também de granito, fazendo de bancos.
51O tecto da sala é de masseira, com os barrotes bem aparelhados à vista, dispostos com intervalos regulares de cerca de 40 cm uns dos outros. Os barrotes nascem, em baixo, de uma cornija de madeira que remata as paredes; em dois lados opostos, os barrotes oblíquos prolongam-se em barrotes horizontais na superfície plana central do tecto, que fica cortada em vários sectores por esses barrotes; nos outros dois lados, os barrotes oblíquos atingem a superfície plana central, quebram, como os outros, e seguem horizontalmente, mas apenas até ao primeiro barrote horizontal perpendicular a eles, e aí acabam. Este sistema de embarrotamento dá ao painel central, que é quadrado, uma aparência de oblongo (des. 10).
52Cortando cada canto, a partir da cornija que mencionámos, um travessão trava e reforça os ângulos da cornija. O forro do telhado está por cima dos barrotes, e também à vista; forro e barrotes são de castanho, estes aqui actualmente caiados de branco18.
53No lado da sala de tabique, abrem-se as duas portas que dão comunicação para os dois quartos; mas o tabique da sala não é o mesmo que o tabique dos quartos: entre um e outro medeia um pequeno espaço, que se reservou para a escada interior. Esta parte de um pequeno patamar situado entre as portas da sala e do quarto das traseiras, patamar iluminado por uma fresta alta e sem qualquer resguardo de vidraça ou madeira, e desce num só lanço até ao rés-do-chão, colada ao tabique da sala. No que respeita ao quarto da frente, a porta da sala abre para um recanto que o quarto ali faz, e que corresponde ao patamar do lado oposto; abrem para esse recanto duas arrumações sobrepostas, que aproveitam o desvão da escada. Ambos os quartos são pequenos, mas o da frente é maior, pois aproveita o recanto à entrada, que o das traseiras cedeu ao patamar. O quarto maior tem um tecto de masseira semelhante ao da sala e uma janela com as mesmas dimensões das da sala, idênticas guarnições e bancos de pedra, que abre sobre a escadaria exterior, na fachada principal; o mais pequeno tem apenas um postigo alto, que dá para as traseiras, fechado com um caixilho envidraçado, de uma só folha, e o tecto é plano, de barrotes à vista e tabuinhas lisas com as juntas tomadas com ripas delgadas, em meia cana. Os dois quartos comunicam entre si por uma porta, de dimensões muito exíguas (0,52 m x 1,60 m, e de decoração singela.
54Por cima das portas da sala para os quartos, que são de fortes almofadas e têm guarnições de molduras exuberantes (des. 10), há grossas cornijas de madeira, muito salientes; entre elas, embutido na parede, um nicho de madeira de recorte quadrangular, com o caixilho ricamente entalhado ao gosto seiscentista, e o fundo policromado e dourado, com motivos de flores, era o lugar do santuário. Este nicho, pelo lado de trás, faz uma pequena saliência sobre o vão da escada.
55No rés-do-chão, existe, por baixo da sala, uma loja-celeiro, que tem um armário de parede com cornija de granito e uma janela para as traseiras semelhante às do andar, além de duas portas exteriores – uma, que abre para a fachada SO, sobre uma eira situada junto à da casa, e outra, que passa sob o patim para o terreiro que está à frente da fachada principal – e uma interna, que dá para um corredor colado à parede onde exteriormente se apoia a escadaria de pedra; neste corredor desemboca a escada interior, que vem de cima, e abre-se outra loja, situada, como o próprio corredor, por baixo dos quartos, e que é presentemente utilizada como quarto e sala de costura. Por baixo do patim, há uma pequena divisão com a salgadeira, com porta para o exterior (agora entaipada mas ainda nitidamente reconhecível), e com outra para o celeiro, de abertura aparentemente posterior à construção da casa.
56De acordo com a descrição que acabamos de fazer, vê-se que a fachada apresenta, além da escadaria de pedra, a porta de entrada ao nível do andar.
57A fachada principal prolonga-se, no rés-do-chão, com a cozinha, numa construção anexa mas independente, ligada ao corpo da casa por uma porta que abre para o corredor das lojas. Esta construção tem um telhado a duas águas, de cume a meio, paralelo à fachada, com os caibros à vista e de telha-vã, e primitivamente não tinha chaminé ; a porta de entrada dá para a fachada principal, a seguir à escadaria de pedra, e, virada para as traseiras, há uma janela. Nela se encontra a lareira, uma cantareira où armário metido na parede, à esquerda da porta, e o demais mobiliário das cozinhas rurais: masseira, mesa, cadeiras, bancos, banca da louça, etc.
58As paredes exteriores são de granito revestido de argamassa e caiadas de branco; portas e janelas têm alizares simples de granito aparelhado, e o mesmo material é usado na escadaria exterior e seu resguardo, colunas e piso da varanda alpendrada ; estes últimos elementos são mesmo de grandes e belas peças de cantaria, na pedra da região, dura e acinzentada pela acção do tempo. O piso da varanda é em grandes blocos dispostos paralelamente à fachada da casa. O beiral, de velha telha caleira portuguesa, como o telhado, é duplo.
59Interiormente, barrotes do telhado, travessas do soalho, caibros, portas, portadas, janelas e demais madeiramentos são de castanho; os tabiques são de argamassa misturada com palha, montada num ripado tosco de castanho.
60Presentemente, as janelas desta casa são de guilhotina, e, pelo lado de dentro, têm portadas de madeira; à data da construção da casa, devem, porém, ter tido portadas exteriores, conforme se depreende da existência de restos de ferragens cravadas nos respectivos alizares19.
61As portadas interiores jogam agora em dobradiças de ferro cravadas nas ombreiras de pedra das janelas, e o mesmo sucede com o postigo do quarto mais pequeno, que dá para as traseiras; originariamente, porém, devem ter girado em gonzo, de madeira, que eram o prolongamento das suas próprias couceiras ; o de cima entrava num buraco furado na pedra, no ângulo da padieira superior; o de baixo, bastante comprido, rodava no fundo de um rasgo inclinado que permitia a colocação da portada, cavado no poial de granito dos bancos das janelas. No quarto, em vez de postigo, devia existir uma pequena portada do mesmo género. Estes buracos e rasgos conservam-se intactos e sem serventia, e além disso são visíveis as marcas de terem sido serrados os prolongamentos das couceiras, que constituíam os primitivos gonzos das portadas20 (des. 16).
62É, pois, de presumir que estas casas não tivessem vidraça à data da sua construção, e que, portanto, as janelas de guilhotina e o postigo de vidraça sejam mais recentes que o edifício.
63A casa que descrevemos situa-se dentro do prédio rústico, à face não do caminho público, mas junto, pelo menos actualmente, de uma divisória de terrenos, a NO. O acesso a ela faz-se por um largo portal com belos ornatos de cantaria, rasgado no muro da propriedade, e donde parte o caminho que, passando ao lado da eira, conduz ao terreiro aberto e em frente à fachada principal, com a escadaria de pedra e a porta da cozinha. A seguir a esta – que, como dissemos, ocupa uma construção independente – e sempre bordando este terreiro, encontra-se um coberto com um telhado a duas águas, como a cozinha, aberto à frente sobre o terreiro, mas fechado atrás com uma parede, onde se abre um portal alpendrado, para as traseiras; nele se guardam o carro, as alfaias agrícolas, e tudo o mais que possa convir.
Medidas
64Espessura das paredes até ao sobrado : 0,60 m
Espessura das parede daí para cima : 0,55
65Altura do r/chão ao soalho : 2,40
Altura do soalho aos barrotes : 2,40
Altura do painel central do tecto da sala : 3,30
Altura dos peitoris, no andar : 0,94
Altura dos peitoris, no r/chão : 0,87
66Postigo do quarto nas traseiras:
dimensões : 0,70 x 0,70
alt. do chão : 1,27
67Altura da porta por baixo do patim :
para o celeiro : 2,00
para a eira : 2,20
68Altura do resguardo do patim : 0,88
Altura das colunas : 0,85
Altura do patim aos barrotes do telhado, junto à parede : 2,45
69Nicho da sala, alt. 1,40 ; larg : 0,95
70A seguir a este coberto, encontram-se as cortes do gado, aido do porco, etc., pequenas construções dispostas umas no alinhamento da fachada principal, outras em direcção perpendicular, limitando por esse lado o terreiro; do lado oposto, é-o pelo muro que isola as terras de lavoura, onde, à entrada, se encontra o barraco de palha milha para penso do gado, o poço, a nora, etc.
71Vimos casas deste tipo, com pequenas variantes, em Nevogilde, em Ramalde, nos lugares de Vila Nova e Pereiró, da Barranha e de Lavadores da freguesia da Senhora da Hora, em Matosinhos, etc. Numa delas, no lugar de Lavadores, a sala, os dois quartos e a escada interior formam um conjunto semelhante ao que descrevemos, mas existe uma outra sala, no alinhamento dos quartos, com porta para o patim exterior e com ligação com a primeira sala através de um dos quartos; a planta da casa é, pois, em : L, e a escadaria de pedra desenvolve- – se junto do corpo lateral do prédio; de resto, vemos ali o mesmo sistema de barrotamento de Aldoar, no tecto da sala, o santuário entre as portas dos dois quartos – as quais têm molduras muito semelhantes às de Aldoar –, etc. ; como nesta última, a cozinha é no rés-do-chão, num edifício anexo, de duas águas, de telha-vã, e sem chaminé ; entra-se da rua pelo portal do coberto alpendrado, aberto sobre o terreiro central, à direita do qual se dispõem as diversas dependências da lavoura, e, à esquerda, a casa, ficando a passagem para as terras em frente (des. 11).
72Em Nevogilde, a casa que vimos foi muito remodelada, mas é fácil identificar algumas das modificações mais recentes. Observa-se uma localização semelhante da casa em relação ao terreno: vindo da rua, o portal abre para um terreiro e logo à esquerda está o edifício da cozinha, igual aos que descrevemos, a que se segue um celeiro, contíguo à fachada principal e antes da escadaria de pedra; dentro, encontra-se a mesma disposição de divisões, o tecto da sala de masseira, hoje estucado, o mesmo desenvolvimento da escada interior, etc. ; a diferença mais importante que aqui se nota, relativamente a Aldoar, é a existência de um compartimento suplementar, que ocupa o topo do patim, que é, portanto, fechado; este compartimento é mais largo que o patim, e de construção posterior à casa primitiva, que era igual, portanto, ao protótipo de Aldoar ; na parede oposta à escada vê-se ainda a marca dos primitivos limites das paredes da varanda, agora absorvida pelo compartimento (des. 12).
73É, porém, no lugar da Barranha, da freguesia da Senhora da Hora, que se encontra o exemplar desta casa que, comparado com aquele, melhor ajuda a esclarecer certas dúvidas e a compreender o processo genético da sua evolução, pelo que passamos a descrevê-lo sucintamente (des. 13).
74A casa da Barranha está dentro da quinta, junto a um muro de divisão dos terrenos de cultura; do caminho público penetra-se na propriedade por um portal quadrangular simples, que tem a data gravada de 169421. Esse portal abre para um terreiro alongado e mal delimitado, que tem à esquerda um coberto onde se empilha o estrume, a eira, e várias outras construções menores, e à direita, em alinhamento seguido, as diversas dependências da lavoura, como o costume: a corte do gado, o aido do porco, etc., a que se segue, sem interrupção, a cozinha e finalmente a casa principal, com a escadaria de pedra voltada para quem chega (foto 4). O corrimão da escadaria, o motivo decorativo que a remata e a coluna do patim, ao alto, reproduzem os da casa de Aldoar (foto 4) ; a sala de entrada é também idêntica à daquela, com o santuário, portas com almofadas e guarnições caprichosamente entalhadas em castanho, mais ricas mas menos apuradas do que em Aldoar (foto 1). No quarto das traseiras, o tecto é como ali ; a escada interior ia primitivamente dar a este quarto, sem o patamar isolador que existe em Aldoar ; vê-se aí a saliência que faz o nicho da sala, e, nas lojas, ainda existe a coluna que sustentava a trave interrompida para permitir a passagem. O tecto da sala, hoje estucado, era como o de Aldoar, e todo em castanho, que é a madeira de todos os madeiramentos da casa; os barrotes apresentavam dois rincões decorativos entalhados, que são visíveis nos do tecto do quarto. As janelas são rigorosamente iguais às de Aldoar, e vêm confirmar o que dissemos a respeito destas últimas: agora de guilhotina, tinham, originariamente, em vez de vidraças, portadas exteriores, de castanho, articuladas em ferragens cravadas nos alizares, de que ainda subsistem restos; a substituição foi feita pelo actual proprietário, há apenas 20 ou 30 anos, e ainda pudemos ver umas dessas portadas, aproveitada como tampa de poço, pertença da casa. Interiormente, elas apresentam portadas iguais às exteriores, que hoje têm dobradiças cravadas nas ombreiras, mas que foram primitivamente em tudo semelhantes às de Aldoar, com gonzos de madeira, rasgo no poial de pedra, etc.
75A construção é sólida e de bons materiais; as paredes, de granito, são duplas, do sistema de pedras de face, ou silhares, travadas com juntouros, recobertas exteriormente com argamassa, caiadas de branco22. Nas aberturas as padieiras são igualmente duplas, compostas de padieira e contrapadieira. O telhado é, como em Aldoar, a quatro águas, com o prolongamento numa delas a recobrir o patim; a cobertura assenta em barrotes e o cume apoia-se em tesouras, com as suas traves de linha, ou terças, e trave da tesoura, ou asna. A casa tem hoje telha do tipo marselha, mas o beiral, duplo como o de Aldoar, é ainda da velha telha portuguesa.
76A cozinha situa-se, em relação à casa, como em Aldoar, e nela se vê a lareira, o forno do pão, a masseira, mesas, bancos, cadeiras, etc., e o alhar23 para a lenha. O seu telhado é, como nos demais casos, a duas águas, com o cume a meio, e de telha-vã, sem chaminé.
77A diferença mais importante que esta casa apresenta relativamente à de Aldoar é o cubículo que ocupa o topo do patim, e que já encontrámos, em termos parecidos, em Nevogilde. Este cubículo não faz, sem dúvida, parte da construção primitiva, e é um acréscimo ulterior; como em Nevogilde, a sua largura é maior que a da escadaria; o seu tecto é assotado, mantendo a inclinação do alpendre do patim24 ; as paredes são consideravelmente mais finas do que as do resto da casa; a sua única porta, que abre para o patim, é de dimensões diversas da porta da sala, que, esta, pertence sem dúvida à construção primitiva; o chão do cubículo é ao nível do patim, enquanto deste para a sala há um degrau, que é a soleira da porta. Na parte da casa que exteriormente lhe corresponde, a pedra está a descoberto, caiada, mas sem reboco de massas; na parede do topo vê-se nitidamente a linha que divide os dois cunhais contíguos25, que sobe até ao telhado (foto 1).
78Foi em Aldoar mesmo que encontrámos, além da que considerámos o protótipo das outras, o maior número de casas deste tipo; pode-se dizer que, neste lugar, o núcleo mais antigo do aglomerado é constituído quase integralmente por tais casas, num total de cinco ou seis, fora as que estão dispersas no meio do casario moderno26. Por esse motivo, e também porque a que descrevemos primeiro é não só a mais perfeita que conhecemos mas também a que se nos afigura mais antiga27, admitiremos hipoteticamente, e sob todas as reservas que o caso comporta, na falta de melhor prova, que foi em Aldoar que este tipo de casa primeiramente se definiu, nos termos que indicámos, difundindo-se seguidamente pelas redondezas, onde aparece com menos frequência; seja em todo o caso como for, o seu aparecimento situa-se, o mais tardar, no decorrer da última metade do século xvii, de acordo com a inscrição da casa da Barranha28.
79Estas casas localizam-se geralmente junto a qualquer muro ou outra divisória do prédio rústico que encabeçam; mas, quando esta é o caminho público, a fachada que dá para fora não é a principal, onde se encontra a escadaria e a porta de entrada: a fachada que dá para fora é sempre uma fachada lateral, sem portas; penetra-se no terreno onde a casa se encontra por um portal de entrada para terreiro, e a escadaria dá para esse terreiro, já dentro da propriedade29. Este terreiro faz as vezes do pátio fechado que existe em outros tipos de casas rurais, e é para ele que abrem igualmente as diversas dependências anexas, dispostas ao longo da casa ou dispersas ao seu lado; e um destes lados é sempre aberto para as terras de cultura30.
80Comparando entre si os diferentes exemplares que estudámos, vemos que, a par de uma identidade quase total de pormenores, ocorre por vezes uma diferença de grande importância: a existência, em alguns deles, do cubículo suplementar que ocupa o topo do patim, que é aí muito mais curto, e fechado nesse topo. Encontramo-lo por toda esta área, mas em todos os casos é visível que se trata de um arranjo precário feito numa casa que já existia, e não de uma verdadeira variante, introduzida estruturalmente no plano da casa. Isto confirma o que dizemos atrás, quando consideramos que o tipo originário destas casas não comporta aquele cubículo, que constitui um acréscimo posterior à construção do edifício – que era tal como o definimos em Aldoar –, ditado certamente pela necessidade de um maior número de divisões, mas que não fora previsto no traçado primitivo.
81Este arranjo, porém, interessa sobremaneira, porque acentua e precisa o parentesco entre estas casas e certas casas da Maia, que noutro lugar estudámos, e com as quais as passamos a comparar31.
82A semelhança entre estes dois tipos de casas parece-nos, com efeito, fora de dúvida. Numas e noutras se encontra a escadaria exterior, aparatosa, acedendo a um patim onde se rasga a porta de entrada da casa, que abre directamente para a sala; interiormente, para esta dão os dois quartos pequenos ou alcovas, numa disposição idêntica. Numas e noutras a cozinha constitui um edifício anexo e independente, de rés-do-chão e a duas águas, contíguo à casa e comunicando com ela por uma porta de serviço interno, e não tem chaminé ; para ela se desce, do andar, por uma escada interior, de serviço, situada, contudo, diversamente numas e noutras. Umas e outras são casas de terreiro, em tomo do qual se situam e dispõem a entrada da ma, a casa de habitação e a cozinha, as diversas dependências da lavoura mais ou menos alinhadas ou dispersas, e a passagem aberta para os terrenos de cultura; numas e noutras é para esse terreiro que dá a fachada principal – escadaria e varanda; ambas são casas sem porta para a ma, mesmo quando se situam junto a ela, fazendo-se primeiro a entrada para o terreiro, e dele para a casa. Umas e outras parecem corresponder ao mesmo nível social – casa de lavoura mediana.
83Duas grandes diferenças se notam entre elas: a existência do cubículo ao lado da sala, característico das casas da Maia e que falta na casa típica dos arredores do Porto, e diversa disposição da escada interior, que nas casas dos arredores do Porto parte de um dos quartos (ou de um patamar roubado a esse quarto), e nas casas da Maia abre para a sala, entre as portas dos dois quartos, ocupando o lugar do oratório das casas dos arredores do Porto.
84Estas casas dos arredores do Porto apresentam, para a escada interior, uma solução muito inconveniente; numa casa exígua e com reduzidas possibilidades de alojamento, essa escada vem roubar um espaço considerável a um dos dois únicos quartos disponíveis, já de si diminutos, tomando-o, além disso, quando não existe o tabique divisor que a isola, inteiramente devassado pelo serviço. Acresce que, a despeito da referida falta de espaço, elas apresentam uma varanda de dimensões muito grandes, que é um elemento decorativo de luxo, desnecessário, nessas condições, à economia fundamental da casa, tão deficitária por outros lados. Foi por essas razões que, por meio de obras feitas posteriormente e que só precariamente se ajustam à estrutura da casa, se substituiu a escada de serviço, em algumas delas, por um alçapão aberto na sala, por exemplo, e principalmente se inutilizou o topo do patim, transformando-o num cubículo aproveitável, embora em prejuízo da harmonia do edifício, na sua linha geral e nos seus pormenores de construção.
85Nas casas da Maia, estes inconvenientes são atenuados e, podemos dizê-lo, corrigidos: a escada interior rasga-se entre as duas alcovas, que ficam ambas iguais e livres para quartos, numa solução simétrica, mais equilibrada e própria. E não só deste modo se obtém uma maior e melhor capacidade de alojamento: aparece mais outro quarto, situado no lugar que, na casa dos arredores do Porto, corresponde ao topo do patim ou ao cubículo aí implantado, mas que aqui se integra no plano fundamental da casa, que, por sua causa, foi previsto e concebido em forma de L, determinando o aparecimento de uma ala lateral do telhado, de modo a permitir que o seu tecto seja horizontal e com o mesmo pé direito que as restantes divisões ; esse cubículo apresenta-se, além disso, com porta directa para a sala, em estilo e dimensões iguais às das demais do prédio, e é soalhado e ao mesmo nível que aquela; por isso também, a fachada de topo do corpo principal da casa prolonga-se na fachada dessa ala lateral que corresponde a tal quarto, sem qualquer solução de continuidade aparente, e as janelas que nela se rasgam são todas iguais – porque todas pertencem a uma construção simultânea.
86Quer dizer, as diferenças fundamentais que nas casas da Maia do tipo B se notam em relação às casa-tipo dos arredores do Porto apresentam-se, de facto, dado o parentesco indubitável que existe entre umas e outras, como um desenvolvimento do plano destas últimas, compreendendo um melhor aproveitamento de alguns dos seus elementos e a correcção de certos defeitos ou seja, logicamente, como uma evolução do conceito arquitectónico que está na base deste tipo de casas, no sentido do aperfeiçoamento de algumas das suas soluções mais precárias.
87Na mesma ordem de ideias, o alpendre que, nas casas dos arredores do Porto, é apenas um prolongamento do telhado, que só recobre o patim, alargou-se de modo a proteger também a escadaria, tomou-se muitas vezes independente do telhado, numa concepção mais complexa, e embelezou-se com uma esbelta coluna de apoio no fundo da escada.
88Esta dependência lógica das casas da Maia do tipo B, relativamente às casas dos arredores do Porto, confirma-se e completa-se com a consideração das datas respectivas : enquanto que, como dissemos, estas últimas nos aparecem já na segunda metade do século xvii, não conhecemos nenhum exemplar de casas da Maia do tipo B anterior a 174332.
89Dado, portanto, o parentesco evidente que verificámos entre as casas dos arredores do Porto aqui consideradas e as casas da Maia do tipo B ; dada a natureza das diferenças entre elas, que constituem o aperfeiçoamento de certas soluções muito precárias que aquelas apresentavam, e a sua consagração num novo plano, que as previu e resolveu, e que a relaciona mais do que distingue; atendendo que ambas correspondem ao mesmo nível social e económico; e considerando finalmente que as primeiras antecedem as segundas de cerca de 50 a 100 anos – concluiremos que as casas da Maia do tipo B derivam efectivamente das casas dos arredores do Porto que aqui descrevemos e representam a evolução real do conceito arquitectónico que está na base destas últimas.
90É assim evidente a estreita relação de parentesco, que existe entre o cubículo que aparece em muitas casas dos arredores do Porto adaptado ao patim pré-existente, e o quarto lateral que nas casas da Maia é elemento constitutivo do seu plano originário. Não se pode, porém, precisar qual o verdadeiro sentido de tal relação, e marcar a ordem do processo evolutivo; não temos elementos que permitam decidir se foram as alterações ocasionais feitas às casas dos arredores do Porto que provocaram a revisão do seu plano, que teria vindo a efectivar-se nas casas da Maia do tipo B, ou se foram as novas casas que sugeriram as alterações que se teriam feito depois nas velhas casas seiscentistas. Seja, porém, como for, conhecemos casos nitidamente intermédios, como seja o de uma casa no lugar de Sendim (Matosinhos), a pouco mais de uma centena de metros da casa da Barranha atrás descrita, em que a escada interior e o cubículo lateral já foram previstos no plano original e fazem parte da sua estrutura normal, e a escadaria de pedra é coberta pelo alpendre, com a coluna alta ao fundo, característica das casas da Maia, mas em que o telhado é ainda a 4 águas simples, como nas casas dos subúrbios do Porto, sem a ala lateral que nas casas da Maia veio a recobrir tal cubículo, o qual tem, assim, um tecto inclinado33.
Casas da Maia34
91Este trabalho pertence à série de monografias que o Centro de Estudos de Etnologia Peninsular se propõe publicar, com o fim de ordenar material recolhido em vista de um próximo estudo da habitação em Portugal. Ele representa uma tentativa de seriação levada sistematicamente a efeito na faixa que se estende ao norte do Porto, desde a beira-mar até um pouco a nascente da estrada Porto-Braga, e em que, de entre uma grande variedade de formas, se individualizaram três tipos de casas, designados, para facilidade de exposição, por tipos A, A’, e B, os quais se identificam por um conjunto de caracteres externos e internos que aí se encontram em combinações regulares, e que se agruparam por corresponderem à mesma concepção arquitectónica.
92Tal concepção, que, se não no seu aspecto exterior, pelo menos no plano fundamental do seu aproveitamento interior, não é privativa desta região35, constituindo pelo contrário um caso bastante generalizado, que se repete em outras partes do País, fixa, entre outros, um elemento que, pela regularidade com que aparece, se pode considerar uma constante característica, e que se nos afigura de grande interesse e importância: referimo-nos à alcova, que condiciona o desenvolvimento da planta de todas as casas desta categoria, e que, embora sob formas muito diversas, é comum a construções de vários países numa certa época e fase da sua arquitectura.
93Por essa razão, não procurámos, acerca dos três tipos aqui seleccionados, determinar filiações cronológicas ou fixar precedências locais; na verdade, a sua relação com o conceito geral que mencionámos, confere aos problemas que lhes dizem respeito uma amplitude que transcende os limites da região aqui considerada, e faz supor que a sua diversidade não se deve explicar por qualquer lei de transição de uns para os outros, mas sim por razões de natureza diferente, representando a utilização e adaptação de esse mesmo conceito a circunstâncias externas – económicas ou sociais – também diversas. De resto, a deficiência de dados documentais autoriza, na questão cronológica, apenas conjecturas ; e por isso limitamo-nos a estabelecer entre eles uma relação de carácter lógico e morfológico.
94Em qualquer caso, porém, trata-se de um tipo de construção perfeitamente definido, que interessa sobremaneira não só porque representa, como dissemos, a manifestação local de um conceito que na sua estrutura fundamental se pode considerar muito geral, mas ainda porque se apresenta aqui, no seu aspecto mais evoluído, com um requinte e certeza de estilo que não são vulgares entre nós em construções deste género, e que nos parece terem exercido uma influência grande no aparecimento de numerosos detalhes arquitectónicos de construções posteriores.
Casas de tipo A
95Das casas que estudaremos neste trabalho, são estas as mais simples e modestas. Exteriormente, apresentam-se como casas de planta rectangular com telhado a três águas, às quais se tivessem acrescentado dois cubículos nas extremidades da fachada onde se abrem as suas duas portas, que é a lateral; a construção é porém feita de uma só vez, não se notando nas paredes sinais de cunhais que revelem qualquer acrescento. O cume do telhado corre a meio do corpo principal da casa e a água do lado dos cubículos desce de modo a cobri-los, formando entre eles um alpendre ; daqui resulta a linha quebrada do beiral sobre a rua, que é um traço característico visível deste tipo (des. 21).
96As mais singelas dentre elas têm o corpo principal dividido apenas em cozinha e sala, comunicando entre si, e cada divisão com porta para o alpendre. Na sala abre-se também uma porta para um dos cubículos que é um pequeno quarto de dormir. Tanto este quarto como o outro cubículo, que é no geral um aido, têm igualmente porta para o alpendre.
97Contudo, na sua maioria, a divisão interior é um pouco mais diferenciada, e reveste a forma que se vai encontrar nos demais tipos agora estudados nesta região, e também nas outras zonas do País a que aludimos: Na parede da sala orientada para a cozinha, abrem-se três portas: duas nos extremos, largas e envidraçadas, que correspondem a duas alcovas, geralmente sem janelas; e uma mais esguia, a meio, que abre para o estreito corredor que leva à cozinha, correndo entre elas. A sala é mais ou menos quadrada, e, nas casas mais antigas, apresenta detalhes interessantes, como nichos, armários embutidos, etc., que repetem a decoração das portas. A cozinha nunca tem chaminé ; o tecto é de telha-vã, e tem apenas um pequeno postigo que filtra uma luz escassa.
98É esta a forma que consideramos característica do tipo em geral, parecendo-nos que a que descrevemos de entrada representa apenas a sua simplificação, que utilizou dela a sua forma exterior, num plano de aproveitamento interior reduzido.
99Quando estas casas estão à face da rua – e é o caso mais frequente – a fachada que dá para aí representa o lado mais estreito do rectângulo da planta principal, e corresponde à sala e ao quarto; tem assim uma ou duas janelas (da sala) e um postigo (do quarto). É para este lado que está a água triangular do telhado; o beiral é, pois, horizontal na parte da parede que corresponde à sala, inflectindo para baixo na parte que corresponde ao cubículo.
100Estas casas não têm geralmente porta para a rua; logo a seguir ao cunhal do cubículo abre-se uma cancela ou portão que dá acesso a um quintal ou horta, ao lado do qual se alonga a fachada da casa que tem o alpendre, e onde se encontram as duas portas exteriores.
101Estas particularidades e aspectos externos mantêm-se quando a casa não se situa junto à rua; mesmo nessas condições, elas ocupam geralmente um canto do terreno, e apresentam a parede sem janelas voltada para o terreno vizinho.
Casas de tipo A’
102As casas deste tipo são muito semelhantes às do tipo anterior característico. A divisão interior dumas e doutras é precisamente igual, existindo nestas as duas alcovas em simetria, que abrem para a sala, com ou sem portas, entre as quais corre a passagem para a cozinha, que também é desprovida de chaminé (des. 22). A única diferença está no telhado; enquanto naquelas a mesma água cobre os cubículos e o alpendre, nestas o telhado tem uma ala lateral que cobre o cubículo que faz de quarto. A água do telhado que desce a cobrir o alpendre e o outro cubículo, apoia-se no cunhal do quarto, na devida altura abaixo do beiral.
103A face da casa virada para a rua, e onde se abrem as três janelas da sala e do quarto, fica poic com o beiral direito. O quarto deixou de ser assotado, tendo assim o mesmo pé direito que a sala (des. 23).
104A localização da casa, em relação à rua e à entrada, tem lugar nos mesmos termos que apontamos para as do tipo anterior; mas há casos em que a sala tem também porta para a rua.
Tipos intermédios entre A e B
105Quando as casas dos tipos que acabamos de descrever são construídas sobre terreno desnivelado, aparecem por vezes com uma cave baixa a que se desce por uma escada que abre por um alçapão no corredor.
106Se o desnível é mais acentuado, a cave dá lugar a lojas, que ocupam geralmente os baixos de toda a casa à excepção da cozinha e às quais se acede por uma escada exterior, e geralmente também por outra interior. Aproximam-se já das de tipo B, como veremos adiante (foto 7).
107O telhado destas casas apresenta-se algumas vezes com a forma do tipo A, mas geralmente segue a do tipo A’.
108A sua localização é idêntica à dos dois tipos que apontamos como seus modelos.
Casas de tipo B
109Estas casas são de rés-do-chão e andar, com dois corpos formando um L de braços desiguais; o corpo principal é coberto por um telhado de quatro águas, que se ramifica numa ala lateral mais baixa cobrindo o corpo menor. Encostada ao lado interno do primeiro, sobe uma escada de pedra com um patamar no alto; escada e patamar são cobertos por um alpendre formado pelo prolongamento do telhado (às vezes, raramente, o coberto é independente). Para o patamar dão duas portas: uma da sala e outra do quarto grande, fronteiro à escada; estas duas divisões têm comunicação interior. Tal como sucede nas casas dos tipos anteriores, para a sala abrem também as portas das duas alcovas e a da escada estreita que desce para a cozinha, contígua ao corpo da casa. O rés-do-chão é ocupado apenas por lojas, para as quais se entra pelo vão situado por baixo do patamar da escada (des. 24).
110A escada exterior é de granito bem trabalhado, com uma guarda lançada entre duas colunas, uma curta no patamar, e outra que parte do fundo, alta e elegante. A base desta coluna alta sobe sempre acima da guarda (des. 27).
111Por vezes o patamar é fechado por uma janela (des. 26), e em alguns casos por uma porta que dá para a escada. Isto acontece quando a orientação da casa vira o patamar para as nortadas, tão frequentes na região do litoral. A traça da escada, colunas e alpendre repete-se de casa para casa quase como uma cópia fiel (fotos 8 e 9).
112As duas janelas da sala e a do quarto grande rasgam-se a espaços regulares na fachada virada para a rua, com os seus largos alizares de granito (des. 27). Para o interior, portas e janelas têm também uma delgada guarnição de pedra. Como os postigos das alcovas são pequenos, as portas para a sala são largas e envidraçadas; de resto em muitas casas nem postigos há, e é só através delas que entra o ar e a luz.
113A sala é geralmente de planta quadrada, por vezes de grandes dimensões ; em Freixieiro, Perafita, por exemplo, vimos uma – na realidade a maior que encontrámos – com 8 metros de lado; o tecto é quase sempre forrado a madeira lisa e pintada, com qualquer florão decorativo a meio, e esquadrias e cantos ornamentados e em cores diferentes, o mesmo sucedendo às guarnições das portas e alcovas, e, quando os há, nichos, armários embutidos, ou quaisquer outros elementos acessórios.
114A cozinha, no rés-do-chão e fora do corpo da casa, mas a ele ligado, com telhado a duas águas sem chaminé, não se distingue das cozinhas das casas dos tipos A e A’. O chão é de terra. A um canto o forno e logo a seguir o lar, com a borralheira para a cinza; um postigo de reduzidas dimensões deixa entrar alguma luz sobre o lar. Além da porta para o exterior há também a porta da escada que sobe para a sala, e a que dá passagem para as lojas.
115As lojas são apenas duas, correspondendo às paredes da construção, e na maior é visível a caixa da escada que desce para a cozinha (des. 24). Para ventilar e deixar coar um pouco de luz, há frestas horizontais por baixo das janelas viradas para a rua. As portas que dão para o exterior e para a cozinha são chapeadas. Não existe lagar, pois o vinho era feito em domas36.
116Estas casas situam-se sempre à face da rua, correspondendo-lhes um terreiro maior ou menor, e um quintal ou cortinha. A fachada em L, onde se encontra a escadaria de pedra, dá para esse terreiro; e o mesmo sucede à cozinha térrea, que prolonga, sem o andar superior, o corpo principal.
117A fachada que dá para a rua é lisa, e mostra geralmente três janelas (duas da sala e uma do quarto), sobre os três postigos das lojas. As três janelas, e a forma do telhado resultante da altura diferente das duas alas que o compõem, dão a estas casas um aspecto característico, que as identifica facilmente (des. 26).
118É muito frequente encontrarem-se casas que combinam traços característicos dos diferentes tipos aqui mencionados, constituindo anomalias, em relação aos tipos-padrão. Nos desenhos 30 a 35 damos alguns exemplos de tais casas.
Estudo comparativo
119Vemos, assim, que os três tipos atrás descritos correspondem a uma concepção arquitectónica única, patente especialmente no que se refere ao aproveitamento e divisão interior. Podemos mesmo estabelecer uma linha nítida de desenvolvimento e evolução morfológica, se não cronológica, que marca a adaptação dessa concepção única a circunstâncias diversas.
120No tipo A, a passagem da planta típica para a mais singela correspondeu certamente a uma menor facilidade económica, que levou à supressão de algumas divisões ; mas à parte esse caso, ela mantém-se em qualquer dos três tipos: em todos eles, no corpo principal vemos a sala, as duas alcovas, muitas vezes arejadas e iluminadas apenas pelas portas com que com ela comunicam, e, entre essas alcovas, o corredor ou escada (conforme a casa é térrea ou de andar) que conduz à cozinha, que é sempre térrea; a ala lateral, perpendicular a esse corpo principal, é ocupada pelo quarto que dá para a sala.
121O tipo A difere pois do tipo A’ apenas no telhado. No primeiro, ele é de três águas, prolongando-se uma das laterais a cobrir o alpendre e os cubículos, de modo que o beiral da fachada da rua fica parte direito, parte inclinado. No tipo A’ o quarto é coberto pela ramificação lateral do telhado; o beiral fica direito, e separado de maneira evidente do beiral do alpendre.
122Quando o desnível do terreno permitiu a existência duma cave ou de lojas, é no corredor que se abre o alçapão, ou é ele próprio substituído pela escada.
123O tipo B representa a adaptação da planta da casa de tipo A’, à qual se tivesse suprimido o cubículo correspondente ao aido, a uma casa de andar, mantendo-se a cozinha no rés-do-chão. O corredor transformou-se em escada interior. O alpendre para onde davam as portas da casa foi substituído por uma escadaria exterior de pedra, com patamar para onde abrem as portas do andar, escadaria que se aproveitou como motivo decorativo e de enriquecimento. O telhado é igual aos do tipo A’.
124Em todos estes tipos de casas falta, como vimos, a chaminé, e esta nota é característica.
125As casas do tipo A são bastante raras. É talvez na freguesia de Santa Cruz do Bispo que elas se encontram com mais frequência, mas sempre muito pouco numerosas. Fora dali, vimos uma série delas no lugar de Real, em Soutelo (Modivas), muito adulteradas, e uma ou outra espalhada pelo concelho de Matosinhos e pela ponta SO do concelho da Maia. Aparecem algumas apenas com um cubículo ao lado do alpendre; neste caso o que falta ou é substituído por uma parede, ou, mais raramente, fica o alpendre aberto, com um esteio suportando o telhado. Em Barreiros (Maia) vimos casas destas com telhados a duas águas.
126As casas de tipo A’ são pelo contrário muito frequentes. Vimo-las mais ou menos por todo o concelho de Matosinhos e pelo da Maia até à estrada Porto-Braga. São numerosas em Cabanelas, com um alpendre mais curto que em Santa Cruz do Bispo, e mostrando para a rua duas janelas e uma porta ao meio, que abre para a sala. Em Paiço e em Pedras Rubras há também muitas, mais altas, de planta geral mais quadrada e alpendre muito curto, e às vezes também só com um cubículo. São muito vulgares também em Moreira e em Barreiros, e ao longo da estrada Porto-Póvoa, da Circunvalação ao rio Leça ; em todos estes locais, a porta para a rua vê-se também, por vezes, na fachada que corresponde à sala.
127Na passagem do concelho de Matosinhos para o da Maia começam porém muitas destas casas a ter cave ou loja. Assim na Guarda (Moreira da Maia), onde elas formam a quase totalidade das habitações da povoação, todas elas têm uma cave baixa para onde se desce por uma escada abrindo um alçapão no corredor; no vizinho lugar de Carvalhido há bastantes com lojas, e esta variante aparece para leste da estrada Porto-Braga, por Gueifaes, Nogueira, e ainda, já raramente, por Silva Escura. Os tipos, porém, se são bastante nítidos desde o mar até essa estrada, começam para o interior a perder a sua regularidade, mantendo-se em muitos casos apenas sinais da sua influência.
128É pela área da freguesia de Santa Cruz do Bispo e dos lugares de Freixieiro e Gandra (Perafíta) que as casas de tipo B se encontram em maior número, melhor conservadas, e onde a sua construção atingiu uma maior uniformidade (fotos 8 e 9)37. As únicas diferenças estão num ou noutro pormenor sem importância: existirem ou não postigos nas alcovas, ter o quarto grande mais uma janela além da que dá para a rua, serem as colunas do alpendre de ferro ou pau em vez de pedra, etc.
129Contudo pode afirmar-se que este tipo, ou casas por ele influenciado, se encontra por todo o concelho de Matosinhos. Assim sucede em Perafíta, onde se notam casas com a sua forma exterior característica e, por vezes, vestígios de velhas escadas de colunas, incluídas em construções muito adulteradas. No Paiço ainda se encontram alguns, raros, exemplares, razoavalmente conservados mas menos típicos. Em Pampelido são mais pequenas e modestas, mas mantêm a escada com colunas de pedra da mesma forma (des. 32). Em Lavra vimos várias casas nitidamente influenciadas por este tipo – na forma do telhado, na existência da escada com colunas de pedra, etc. –, embora nenhuma o repetisse fielmente, e todas se encontrassem muito adulteradas.
130Para o interior, vão surgindo por Pedras Rubras, Telha e por Moreira38, Barreiros e Castelo, já no concelho da Maia. Aqui, porém, são muito mais frequentes as que citámos atrás, como tipos intermediários, em que as lojas só ocupam parte da casa por causa do desnível do terreno.
131Desta zona para dentro, a influência é ainda evidente, mas são raras as casas de tipo puro, tal como acontece com as casas de tipo A e A’.
132Como atrás dissemos, a deficiência de dados documentais – registos, escrituras, etc. – relativos a estas casas não permite fixar a seu respeito origens locais nem estabelecer entre os diferentes tipos relações evolutivas ou qualquer cronologia exacta ; apenas por conjectura se pode dizer que a evolução se deu a partir dos tipos mais simples para os mais complexos, ou vice-versa, ou ainda dos tipos intermediários para os mais caracterizados. E a mesma incerteza se verifica em relação à data do aparecimento desta concepção arquitectónica geral na região. De resto, atendendo à sua larga difusão, pelo menos no Noroeste do País, estes problemas devem ser estudados em conjunto com aqueles que respeitam às demais zonas onde ela se verifica igualmente.
133As casas do tipo A, e mesmo as dos tipos A’ e intermédios, por demasiado singelas na sua ornamentação, não oferecem qualquer detalhe que marque uma época determinada, mesmo aproximada; conhecemos apenas uma, do tipo A’, na vila da Maia, que tem a indicação da data de 1761 (des. 35). Porém os ornatos das escadas e em certos casos os da sala grande das do tipo B, a despeito da sua sobriedade e modéstia, podem enquadrar-se no estilo que, numa feição pobre, corresponde a finais do século xviii ; e esta cronologia não parece contrariar a indicação que nos foi dada pela actual proprietária de uma delas – a maior e melhor que vimos – relativamente ao seu construtor, que pelo cômputo das gerações que lhe sucederam, acusava entre 150 a 200 anos. Além disso, no portal do quinteiro duma destas casas, em Pedras Rubras, vê-se a inscrição da data de 1754. É certo que este portal pode ser independente, quanto à época da sua construção, da casa que serve; mas em Vila Nova, na Telha, um outro que, esse, tem nitidamente o aspecto de ser coevo do prédio principal – que é também uma casa do tipo B característico da zona – contém, além de outros ornatos, uma inscrição com a data de 1743 ; e em Freixieiro, se não também no próprio edifício, na casa da eira de uma outra casa destas, encontra-se ainda a inscrição de 1796.
134Todos estes elementos, portanto, embora não decidam cabalmente a questão, são concordantes e apoiam a nossa suposição.
135Quanto à sua função social, afigura-se-nos que as casas dos tipos A, A’, e intermédios, correspondem, em níveis económicos diversos, a uma classe de artífices locais autónomos ou pequenos proprietários-trabalhadores, vivendo em relativo desafogo e independência, com um quintal maior ou menor, que eles próprios amanham nos seus vagares; o amplo alpendre que as caracteriza é eminentemente apropriado para a recolha das alfaias agrícolas ou para a instalação dos apetrechos de uma profissão manual – mesa de carpinteiro, pequena oficina de sapateiro, cesteiro, etc. – e o seu plano interior mostra claramente que os trabalhos domésticos são feitos, pelos próprios moradores, nos mesmos locais onde estes habitam.
136Por seu turno, a casa do tipo B, que tem as características de uma casa de lavoura mediana, pela nítida separação e diferenciação que estabelece entre os sectores de habitação – o quarto, as alcovas e a sala –, no andar superior, com acesso pela escadaria de pedra, exterior e aparatosa, e o de trabalho, no rés-do-chão – a cozinha, as lojas e as dependências agrícolas – com comunicação para cima por uma escada característica de serviço, exígua e desprovida de qualquer ornamentação, pressupondo a existência de criadagem e postulando uma vida de relação mais requintada e com ocupações perfeitamente diferenciadas, parece corresponder a uma classe burguesa abastada e com certas exigências, ainda ligada à terra, mas já com influências da cultura urbana.
Casas de Esposende 2
137O estudo que aqui nos propomos levar a efeito diz respeito a determinados tipos de casas, que constituem a quase totalidade das construções que encontramos numa grande parte do concelho de Esposende, pelas zonas de Fão, Gandra, Gemezes, Esposende, Marinhas, Abelheira, etc. Região franca e quase exclusivamente rural, estas casas são – ou foram originariamente – próprias de uma classe de lavradores vivendo mais ou menos modesta ou abastadamente das suas terras, que eles próprios amanham com a ajuda da família. E esta feição primitiva perdura e é patente na existência de amplos quinteiros cobertos, de arrecadação, guarda de carro e alfaias, etc.39, geralmente situado ao lado da casa principal, com largo portal quadrangular para o caminho – às vezes recoberto por um alpendre saliente, que é o prolongamento do telhado desse quinteiro – e através do qual se passa para entrar em casa. Para esse quinteiro dá, conforme a casa é térrea ou de andar, a porta da cozinha ou das outras dependências, a varanda térrea ou a escada de pedra.
138Estes tipos de casas, que procuraremos definir por um conjunto de caracteres externos e internos, deverão, para melhor compreensão do seu significado dentro do fenómeno geral da habitação portuguesa, aproximar-se dos tipos de casas da região da Maia, que no estudo anterior caracterizámos e definimos sob as designações de tipos A, A’ e B. Com efeito, se pelas características exteriores – e exceptuando a sua típica chaminé, localizada regularmente num dos topos do edifício40 – as casas de Esposende não apresentam entre si uma nítida identidade de características, que permita uma definição precisa – tal como acontece com os citados casos da Maia, onde se afirma um estilo perfeitamente certo – e se, por essa razão, a sua semelhança com estas é menos evidente, veremos que, pelo plano da sua divisão e aproveitamento interno, e à parte pequenos pormenores, a semelhança entre as casas das duas regiões é decisiva, impondo a sua aproximação e inclusão dentro da mesma concepção arquitectónica, a qual, por sua vez, dá um sentido mais compreensível aos traços exteriores que atrás apontámos, de semelhança mais confusa e diluída.
139A nota característica da generalidade destas casas, que falta apenas nas mais humildes dentre elas, é a sua vasta chaminé, larga e pesada – às vezes enorme –, que se ergue na maioria dos casos sobre a parede de um dos topos do prédio, e, ou vai de lado a lado, ou ocupa apenas metade da largura, até à longitude do cume do telhado, tendo este então três águas; noutros casos, menos frequentes, mas também numerosos, ela ergue-se sobre a parede de uma das fachadas maiores da casa, a partir do cunhal, e o telhado é então a quatro águas41 (des. 36).
140Estas chaminés, como estão sempre construídas sobre um cunhal da casa, têm duas faces verticais de granito42 ; as outras duas são de tabique forrado a telha-canela, uma vertical e outra inclinada. Na boca larga há duas caleiras com ligeiro pendente, assentes sobre as paredes, para escoamento das águas da chuva, e a sua ponta nota-se nas faces menores da chaminé. Por cima delas está um varão de ferro, onde pousam horizontalmente telhas com espaços entre si, para a saída do fumo ; tudo isto é protegido do vento por um rebordo de tijolo ou lascas de xisto. Este género de chaminé ergue-se menos acima do cume do telhado do que outro, em que a boca é protegida por um chapéu de tijolo (des. 35).
141Quando a chaminé ocupa toda a largura da casa, a trave do cume assenta, como é natural, numa tesoura.
142Os demais elementos da construção exterior apresentam-se, de um modo geral, como dissemos, com pouca regularidade, tomando-se por isso difícil definir e fixar constantes locais características ; parte das casas formam simples blocos quadrangulares térreos ou com andar, tendo o cume do telhado a meio da planta do edifício, e as suas duas águas maiores iguais; outras vezes as casas com andar têm um corpo principal da mesma forma das anteriores, mas apresentam uam ala lateral num dos topos, que corresponde a um cubículo, e que origina no telhado um prolongamento a três águas43.
143Este prolongamento do edifício, virado sempre para um lado ou para as traseiras, e correspondendo a um pequeno quarto, é continuado, ao longo da fachada comprida, por uma varanda aberta ou fechada. Tal varanda, que é em geral recoberta pelo prolongamento assimétrico da água lateral do telhado principal, reconhece-se, quando é fechada, pelo material utilizado – o tabique- que contrasta com a pedra do cubículo, e pelo grande número de janelas que apresenta.
144Pelo exposto, vemos que é possível estabelecer uma relação certa entre estas formas externas fundamentais e os elementos que caracterizam a classificação das casas da Maia nos tipos A’ e B. Assim, aqui como lá, encontramos o plano em L, com o telhado competente, característico desses tipos, e a varanda que corresponde ao alpendre das casas da Maia dos tipo A e A’. Aqui, como lá, também as casas não têm porta directa para a rua; a entrada faz-se desta para um quinteiro ou terreiro, onde a casa se situa, com a fachada para a rua, mas sem porta.
145É contudo sob o ponto de vista da sua divisão e aproveitamento internos, que, como dissemos e como vamos ver, as semelhanças destas casas com as da região da Maia têm um carácter mais èvidente e decisivo.
146De entre as casas térreas, as mais simples reduzem-se a sala e cozinha, e têm o telhado a três águas, com a cozinha do lado da empena. Com uma estrutura funcional mais diferenciada, elas apresentam-se com a sala, para a qual dão duas alcovas sem janela e a porta de um estreito e curto corredor, que passa entre elas e faz ligação da sala com a cozinha.
147O caso mais vulgar é porém o das casas de andar, com lojas no rés-do-chão aproveitadas para cortes do gado e arrecadações, e por isso delas passamos a ocupar-nos, analisando-as mais detidamente.
148O andar, de planta rectangular, tem, como no caso anterior, a sala para onde dão as duas alcovas, e o corredor a meio, ligando-a à cozinha; aparece ainda como regra, ao longo da parede que corresponde à fachada da entrada, a varanda corrida que acima mencionámos, com o cubículo que a prolonga numa das extremidades – geralmente a do lado da sala – e mais raramente nas duas44, e que corresponde à ala lateral do telhado também atrás mencionada.
149O telhado da casa é a três ou quatro águas – além da ala lateral – conforme a colocação da chaminé ; uma das águas maiores amplia-se de modo a cobrir a varanda e um dos quartos, quando existem dois; por vezes mesmo, em certos casos, não existe a ala lateral do telhado, e essa água assimétrica recobre toda a fachada da casa.
150A colocação da escada de acesso ao andar superior, ou, mais concretamente, à varanda, varia conforme a situação geral e forma da casa, e o declive do terreno; o patim, pelo seu turno, fica também indistintamente a meio ou num topo, geralmente do lado da cozinha – existindo neste caso, evidentemente, apenas o quarto da extremidade oposta.
151A varanda pode ser aberta ou fechada45 ; neste último caso que é muito mais frequente, a parede exterior é quase sempre de tabique, e nela se abrem duas ou três janelas que iluminam e arejam bem a casa. Para esta varanda dão as portas da sala e da cozinha, e as dos quartos situados nas suas extremidades. A parede divisória entre estes quartos é muitas vezes de tabuado, outras de tabique. A parede interior da varanda, a todo o seu comprimento, é sempre de pedra.
152O quarto é sensivelmente quadrado, e tem a largura da varanda, de que é o prolongamento; apenas a parede do lado do topo da casa é de pedra, com uma janela ou postigo.
153A sala é quadrada, com uma ou duas janelas, e portas para a varanda, corredor central e alcovas. O tecto pode ser direito, mas é com mais frequência de masseira, de madeira, não raro duma bela feitura, com pinturas ou ornatos entalhados46.
154As alcovas são por vezes muito pequenas, apenas com o espaço para a cama; quando assim sucede, não têm portas, ou estas abrem para a sala. Ouvimos chamar-lhes, em Gemezes de Cima, camaretas. Entre elas fica o corredor estreito que conduz à cozinha.
155A cozinha, de dimensões sensivelmente iguais às da sala, tem uma ampla chaminé cujo rodo cobre todo o telho do lar (lareira), feito de lajes de granito47, e é apoiado num pilar de pedra ou prumo de madeira; muitas vezes atravessa a cozinha de lado a lado. O forno fica também debaixo da chaminé, com a boca virada para a lareira. Atrás, cavada na parede, a borralheira para a cinza (borralheira tanto é o vazio para a cinza como a pedra que o cobre, e sobre o qual pousam a louça). A banca ou pedra de lavar tem quase sempre um funil de despejo feito de cimento, ou de pedra nas casas mais antigas. Um louceiro, a masseira, mesa e cadeiras, e os cântaros da água num nicho da parede, completam o recheio da cozinha.
156Nas casas que têm maior número de divisões, vê-se com frequência outra sala entre as alcovas e a cozinha.
157As lojas do rés-do-chão nada apresentam de particular; nelas estão instaladas as cortes do gado, arrecadações, por vezes o lagar, etc.
Exemplos
158a – Casa de rés-do-chão e andar, com a planta mais vulgar : sala, alcovas, e corredor entre estas para a cozinha. Varanda fechada com quarto numa das extremidades. Telhado de águas assimétricas com ala lateral a 3 águas cobrindo o quarto.
159(Está agora modificada, mas reconstitui-se com facilidade a planta original). – Gemezes.
160b – Planta semelhante à anterior; também o telhado é igual. Varanda aberta, com cubículos em ambas as extremidades. Outra colocação da escada. – Barca do Lago.
161c – Planta idêntica, apenas com um cubículo na varanda, que é aberta. Telhado de águas maiores assimétricas, sem ala lateral, cobrindo o quarto. – Barca do Lago.
162d – Divisão interior idêntica. Varanda fechada, com escada de dois lanços. Telhado com duas alas laterais a três águas, cobrindo, uma o quarto, e a outra, maior, um corpo ocupado em baixo por uma azenha, e em cima por um «despejo». (Marinhas, Abelheira). (Este tipo de telhado é raro).
163e – Esta casa apresenta como que a duplicação da planta usual. Cozinha no rés-do-chão, com escada de acesso ao andar (agora entaipada) passando entre as alcovas.
164(O edifício foi ampliado, mas mantém bem conservada esta parte primitiva). – Gemezes.
165f – Edificação sólida datada de 1871 (?), mantendo quase a construção original. Tectos de madeira em castanho natural, com ornatos entalhados.
166Cozinha com enorme rodo de granito. As lajes do lar apoiam-se num maciço de entulho que rouba o seu espaço a uma corte que fica por baixo.
167Varanda excepcionalmente larga, com parede exterior de granito de construção posterior (a regra é esta parede ser de tabique).
168Também contra o costume, o portal abre-se na própria casa, e não directamente para o quinteiro (foto 11).
169g – É muito semelhante a uma casa de tipo A, da Maia, com lojas aproveitando o desnível do terreno. Alcovas pequenas (2 x 1,69 m). Paredes dos cubículos para a varanda de tabuado. – Gemezes.
170h – Divisão interior diferente e relativamente rara. O corredor passa junto à parede da varanda, e é para ele que abrem os quartos. Telhado a três águas, uma das maiores prolongada, cobrindo os quartos e a varanda. Esta é aberta, mas com ripados de baixar, como nos varandões do Minho.
171(A casa, dividida agora entre dois herdeiros, e acrescentada uma das partes com outra cozinha, é facilmente reconstituível). – Gemezes de Cima.
172i – Casa de rés-do-chão e andar relativamente moderna. Telhado a três águas, com o cume ao meio do edifício. A varanda está reduzida a um compartimento comprido, inteiramente englobado no corpo da casa. Não são muito frequentes, e parecem ser mais modernas. – Gandra.
173Vemos assim que, com efeito, a concepção da planta da divisão interior destas casas é, à parte pequenas diferenças de detalhe que não afectam a estrutura fundamental do edifício nem os seus elementos característicos, rigorosamente idêntica à das casas da Maia, dos tipos A, A’ e B atrás referidos; numas e noutras notamos a existência de duas alcovas abrindo para a sala, e entre elas, o estreito corredor que liga esta à cozinha. Aqui, em muitas casas, como lá, aparece o quarto ao lado da sala, que corresponde a um corpo de edifício destacado do bloco quadrangular principal, implicando a ala independente do telhado.
174Como diferenças de detalhe, que se articulam na concepção comum, podemos notar que o alpendre das casas de tipo A e A’ foi aqui substituído pela varanda, aberta ou fechada; a cozinha, na quase totalidade das casas com andar, deixou de ser no rés-do-chão, ao contrário do que sucede na Maia, onde ela é sempre aí ; os quartos da varanda não têm ligação directa com a sala ou cozinha, também ao contrário do que sucede na Maia; e duas das suas paredes são aqui de tábuas ou tabique, enquanto lá são sempre de pedra.
175Apesar disto, porém, o plano interno de aproveitamento é fundamentalmente o mesmo em ambos os casos, e aqui como lá, ele fixa a alcova como elemento definido; a grande característica diferencial está portanto num elemento da construção exterior, que é a chaminé, e na transformação do alpendre em varanda, com a consequente adaptação da escada que a ela conduz.
176Falámos já da função destes tipos de casas. A sua cronologia, tal como acontece com a maioria dos casos da Maia, apoia-se meramente em conjecturas, aqui fundadas no estilo da sala, que parece corresponder a princípios do século xix.
177Contudo, e tal como dissemos a respeito das casas da Maia, dada a área de difusão desta concepção arquitectónica, que não se limita às duas regiões já estudadas, os problemas que lhe dizem respeito têm uma amplitude que transcende os seus limites, e deverão ser considerados em conjunto e na interdependência dos factores que estão na base do seu aparecimento em todas as partes em que ela ocorre.
Alguns elementos das casas de Matosinhos, Maia e Vila do Conde3
178Um tipo de casa de lavoura muito corrente na região litoral entre o Douro e o Ave – de resto frequente também em outras áreas do País, especialmente no Noroeste, e ocorrendo tanto nos aglomerados urbanos48 como isolada no meio da respectiva unidade agrícola, mas, em ambos os casos, à face de qualquer caminho público ou particular – rua, estrada ou quelha –, é um edifício de arquitectura singela e lisa, em linhas horizontais, de planta rectangular e telhado regular de quatro águas (foto 21), composto de rés-do-chão e andar, tendo no térreo as lojas e outras dependências de arrecadação relacionadas com a agricultura, e no andar sobradado a parte de habitação. Estas casas são geralmente de granito, rebocado e caiado, não raro com as cornijas, cunhais e molduras de janelas e portas em cantaria lavrada, mostrando na fachada principal, que dá para o caminho, uma simples fiada de janelas ao nível do andar (por vezes com uma ou várias pequenas varandas de permeio), e exíguos rasgos, postigos ou frestas, no rés-do-chão. O acesso de fora faz-se sempre exclusivamente por um largo portal de serviço, previsto nomeadamente para a entrada de carros de bois, rasgado quer na própria fachada da casa, quer, quando ele existe (o que é muito frequente), num coberto anexo e contíguo; no primeiro caso, aquele portal abre para um quinteiro ou terreiro situado nas traseiras da casa, através de uma passagem larga por baixo do andar, cujo soalho fica à vista sobre o seu forte travejamento, e a qual é já um recinto de arrumos; no segundo caso, o portal abre directamente para o coberto que antecede imediatamente o quinteiro das traseiras. A porta de entrada da habitação propriamente dita nunca dá para o caminho: fica nessas traseiras, por vezes no rés-do-chão, abrindo para o mencionado quinteiro, outras já no andar, ascendendo-se nesse caso a ela por uma escadaria exterior ou interior que parte do mesmo quinteiro. E em tomo deste quinteiro, distribuem-se, sem ordem uniforme, outras dependências da lavoura: arrecadações, aidos e cortes de gado, pocilgas ou galinheiros, eiras e casas da eira, « cabanas » de palha milha para os animais, medas, o poço, etc.
179Dentro do tipo exterior assim descrito, estas casas, interiormente, não obedecem a um plano regular e único que permita uma definição concisa. Mas, em conjunto, elas apresentam, com maior ou menor frequência, certos elementos especiais, alguns dos quais se podem considerar típicos da região, e que, embora não coexistam em cada uma delas, se acham disseminados por toda a área, uns numas casas, outros noutras, e até em casas de tipos diversos do que acabámos de descrever. São esses elementos que passamos a analisar.
I – Portais e alpendres
180Como elementos acessórios mais notáveis das construções desta região, estudaremos em primeiro lugar as diferentes formas que revestem os portais a que acima aludimos, que por toda ela se encontram muito espalhados, e que, embora não sejam dela privativos, nem sejam, em cada uma das localidades nela compreendidas, excessivamente abundantes, se podem, pela sua frequência e regularidade, considerar característicos dentro da área em questão.
181Distinguiremos, pois: 1) – portais quadrangulares e : 2) – portais em arco –, considerando, em relação a ambas as soluções, os dois casos de: a) – portais abertos na fachada da casa, e : b) – portais abertos nos cobertos; e seguidamente, dentro de cada uma destas categorias fundamentais, as diferentes espécies de alpendres que os recobrem. Notaremos desde já que os portais, quadrangulares ou em arco, situados na fachada, correspondem em regra a casas do tipo descrito de início; pelo contrário, quando situados no coberto, esses portais aparecem associado a casas desse ou de outros tipos indistintamente.
1 – Portais quadrangulares
1 – Portais de coberto:
182Além do portal simples, mais ou menos largo, rasgado na parede do coberto, que não raro mostra uma data inscrita na padieira, e que, em alguns casos, é ladeado por bancos de pedra apoiados contra a parede49, não constituindo, pela sua estrita singeleza funcional, um elemento diferencial, consideraremos três espécies de portais quadrangulares, segundo a forma dos alpendres que os recobrem :
183a) Simples portais quadrangulares, recobertos por um alpendre saliente de uma única água, geralmente de pequenas dimensões e sem qualquer suporte ou apenas apoiado em duas travessas oblíquas, de ferro ou madeira, firmadas ao lado das umbreiras. Estes portais abrem-se, como dissemos, nas paredes dos cobertos que dão para o quinteiro, e o alpendre é o prolongamento parcial duma das águas do telhado desse coberto50.
184b) O alpendre, em vez de ser saliente sobre o caminho, cobre um recanto que faz o muro exterior do coberto, recuando do seu alinhamento, por uma inflexão arredondada mais ou menos alongada, ou em canto brusco. Sobre a trave que, em cima, mantém o alinhamento interrompido, pousa o beiral do alpendre, não ficando quebrado o beiral do coberto. No seu aspecto mais típico, o recanto resulta da volta brusca das suas paredes, e forma um pequeno átrio exterior, abrigado e regular, que dois bancos de pedra, em geral muito toscos, apoiados ao longo das paredes laterais, de cada lado da porta que se abre ao fundo, mobilam caracteristicamente (foto 20)51.
185c) Quando a parede não sofre desvios simétricos, o recanto toma uma forma irregular, resultante do desvio combinado de uma das paredes em quebra brusca, e da outra – onde se rasga o portal – por simples inflexão, obliquando ligeiramente, de modo a facilitar a volta dos carros; o alpendre apresenta-se então com planta triangular e esguia, e no lado que quebrou bruscamente, aparece por vezes o banco de pedra típico do caso anterior. Mais frequentemente, encontram-se alpendres deste tipo recobrindo recantos que resultam do aproveitamento de uma esquina ou outra quebra no alinhamento do caminho, pelo avanço do prédio que se lhe segue; neste último caso, o muro em que se abre o portal não sofre qualquer desvio, ou apenas inflecte ligeiramente para dentro, enquanto que a trave frontal do alpendre se afasta, vindo apoiar-se na parede ou cunhal avançado desse prédio vizinho52.
186Todos estes portais, de um modo geral, mostram molduras de granito ou outros elementos aparelhados sem grande apuro; os bancos a que nos referimos são, muitas vezes, simples blocos de granitos grosseiramente alisados no assento. Mas em alguns casos aparecem belas peças de cantaria lavrada, e medalhões no fecho das padieiras, com datas, legendas, símbolos religiosos ou outros motivos decorativos.
187Pelo seu lado, os alpendres são igualmente, na sua maioria, muito toscos, de traves, ripas, e caibos rudimentarmente trabalhados, cobertos a telha caleira, e em regra de pequenas dimensões. Alguns, contudo, apresentam uma estrutura complexa, e outros, raros, são de feitura esmerada, e podem assumir proporções bastante avultadas53.
2 – Portais quadrangulares abertos na fachada das casas:
188Notaremos desde já que os diferentes géneros de portais desta categoria se encontram precisamente nas casas do tipo que descrevemos de início, de que constituem um elemento característico. E portanto, a despeito da sua localização e do facto de, com raríssimas excepções, serem a única porta de acesso ao prédio, que dá para o caminho, eles não são portas de casa propriamente ditas, mas sim portais de quinteiro, ao qual dão entrada através da passagem que existe sob o andar do edifício.
189Do mesmo modo que os portais de coberto, também neste caso se vêem portais quadrangulares simples rasgados nas fachadas das casas, mostrando por vezes uma data ou qualquer outro ornato no fecho da padieira, e que não raro é ladeado por dois bancos de pedra apoiados à parede; e como ali, também estes portais, pela sua estrita singeleza, não podem constituir um elemento de diferenciação, distinguindo-se da vulgar porta de entrada pelas suas maiores proporções e pela sua natureza funcional em relação com a actividade agrícola54.
190Além destes, e igualmente nas fachadas das casas, encontram-se também portais reentrantes, formando um átrio exterior incorporado na planta geral do edifício, aberto à frente e tendo ao fundo o portal de entrada propriamente dito. Em vez de alpendre, este vestíbulo é abrigado pelo andar do prédio, e o seu tecto é por vezes o soalho, com os barrotes à vista, ou então largas lajes de pedra dispostas paralelamente à abertura55; ele é geralmente de forma regular, e muitas vezes guarnecido com bancos laterais56.
191Estas categorias de portais e alpendres, que fixam os tipos mais caracterizados e definem verdadeiramente um estilo regional, devem completar-se, como é natural, com inúmeros casos intermediários ou anómalos, que combinam diferentemente elementos particulares próprios dos vários grupos que individualizamos, procurando soluções originais adaptadas a condições especiais, segundo o engenho e o gosto do construtor, e que são muito abundantes (des. 47).
2 – Portais em arco
192Os portais em arco – abatido ou de volta redonda – encontram-se igualmente por toda esta zona, e, embora sensivelmente menos abundantes do que os quadrangulares, podem considerar-se do mesmo modo um elemento característico da construção regional. Como aqueles, também os portais em arco aparecem localizados quer na fachada da casa – que é, então, naturalmente, sempre de tipo especial que descrevemos –, dando passagem, sob ela, da rua ao caminho para o quinteiro das traseiras, quer no muro exterior do coberto anexo ou de quaisquer outras dependências contíguas ao corpo principal da casa, mas dele destacadas; e embora se possa dizer que, de facto, como portais de coberto, são mais frequentes os portais quadrangulares do que os portais em arco, que se encontram sobretudo na fachada das casas, é fora de dúvida que uns e outros têm em vista fins rigorosamente idênticos, e representam apenas duas formas de um mesmo elemento, cuja escolha não é determinada por considerações funcionais de qualquer espécie.
193O que, porém, além da sua própria estrutura, distingue verdadeiramente o arco dos portais quadrangulares é o seu carácter marcado de elemento de luxo: enquanto que os portais quadrangulares, como dissemos, e especialmente quando constituem portais de cobertos, têm as mais das vezes uma feição acentuadamente rústica, com frequência mesmo muito tosca, aparecendo associados a casas de lavoura dos tipos e níveis mais variados, o arco mostra geralmente uma feitura cuidada, com molduras e demais elementos em cantarias lavradas e bem aparelhadas, fazendo a entrada de casas de maior vulto ou categoria dentro do tipo em questão ; e essas características verificam-se ainda e mesmo quando ele se situa nos cobertos anexos (fotos 15 e 16).
194Como simples portal de entrada, na fachada do prédio sobre a rua, o arco é geralmente liso, alto e largo. Muitas vezes, porém, estes arcos, sem fazerem recanto propriamente dito, rasgam-se em toda a espessura da parede da casa, apresentando o aspecto de portas profundas dando para o caminho; dentre estes, alguns mesmo, como que em transição para o tipo seguinte, são muito largos, e enquadram uma porta quadrangular, sem ornatos, ao fundo57.
195Onde porém o arco tem a sua utilização mais frequente e notável, complexa e original, é à entrada de vestíbulos externos, reentrantes e abertos, semelhantes aos que descrevemos a respeito de um certo tipo de portais quadrangulares, e que se podem considerar uma forma característica da região. Em arco abatido ou volta inteira, eles rasgam-se, como aqueles, na fachada das casas, que são então sempre também do tipo que vimos considerando. Esse vestíbulo situa-se aqui também sob o andar, e tem um tecto plano, constituído pelo soalho com o travejamento à vista, ou, muitas vezes – tal como vimos do mesmo modo no caso dos portais quadrangulares –, por largas lajes de granito dispostas no sentido do rasgo, sob as quais assenta o soalho; não raro ele é todo forrado de pedra, vendo-se muitas vezes os típicos bancos ladeando a porta do fundo, que é sempre rectangular. E todas essas peças – molduras do arco e da porta do fundo, bancos laterais, revestimentos e ornatos diversos – são sempre de cantaria fina e esmeradamente trabalhada, acentuando o seu carácter de elemento de luxo (foto 15)58.
196Estas duas espécies de arcos – o arco simples, e o arco formando a entrada de vestíbulos reentrantes e abertos – aparecem igualmente, e em termos perfeitamente idênticos aos que acabamos de descrever, quando eles constituem portais de cobertos anexos; mas, como dissemos, nesta modalidade, eles são consideravelmente menos abundantes do que os portais quadrangulares, por um lado, e do que os portais de fachada, em arco, por outro (fotos 21 e 22)59.
197Finalmente, lembramos ainda que o arco aparece nesta região, com muita frequência, com outros fins, como elemento acessório das diversas construções, na estrutura exterior ou interna das casas, suportando varandas, enriquecendo e embelezando aberturas, rasgando paredes de apoio, etc., sendo em especial muito corrente ver-se um ou mais arcos, por vezes de grandes dimensões, com tais funções, na aludida passagem que, sob o andar, conduz do portal ao quinteiro das traseiras60.
198Estes diversos tipos de portais e alpendres aparecem disseminados por toda a região indistintamente, com inteira independência de delimitações locais, não se podendo de modo nenhum considerar qualquer deles próprio de determinadas subáreas, com exclusão dos demais. E por outro lado, em cada localidade, eles aparecem nas suas diversas formas, referidos a casas de todos os géneros: portais do mesmo tipo associados a casas de géneros diferentes, e portais de tipos diferentes associados a casas do mesmo género. Notaremos apenas a relação, que atrás mencionámos, existente entre os portais de fachada – quadrangulares ou em arco, e simples ou vestibulares – e as casas do género especial de que nos vimos ocupando; e também, de um modo geral – se não necessário –, a relação constante que constatámos entre o arco, como elemento de luxo, e esse tipo de casa, correspondendo a uma classe rural economicamente elevada61.
199O elemento mais característico, que destacaremos pela originalidade da sua forma e significado cultural, é certamente o portal vestibular, que tem a sua expressão mais elaborada nesses notáveis exemplares de portais vestibulares em arco, com os típicos bancos, ornatos e revestimento em cantarias lavradas, e a sua larga porta quadrangular ao fundo, para entrada e passagem de gente, gado e carros.
200Os portais vestibulares quadrangulares existem na região já na primeira metade do século xviii; conhecemos um exemplar no Paiço – o mais antigo –, de 1730, e alguns casos mais com datas imediatamente a seguir a esta, que parecem indicar a sua difusão a partir dessa altura. Esta forma, contudo, não é frequente, e apresenta-se sempre com uma feição sensivelmente rústica62.
201O arco, de modo geral, representa igualmente uma tradição antiga na região considerada globalmente, que se documenta expressivamente em certos portais joaninos setecentistas, monumentais ou de aparato, de igrejas e casas de feição solarenga ; mas mesmo na sua utilização específica em portais vestibulares, ele aparece aqui pelo menos já também na primeira metade do século xviii : em Malta (Gião), aberto na fachada de uma casa do tipo em questão, situada no largo fronteiro à capela seiscentista de Santa Apolónia, e que, à guisa de lápide, incrustada na parede, mostra uma inscrição com uma pequena cruz tri-fólia tendo na base a indicação da data de 1759, vê-se um rude portal vestibular em arco, certamente coevo da casa; é um portal estreito e baixo, maciço e de aspecto atarracado, feito de grossos blocos de pedra bem aparelhada mas não lavrada, sem quaisquer molduras ou frisos, formando um recanto exíguo e acanhado, sem bancos nem ornatos – nem espaço para eles –, com uma larga porta quadrangular ao fundo, de dimensões maiores do que o arco da fachada, para entrada e passagem de gente, gado e carros, sob o andar de casa, para o quinteiro das traseiras (foto 17)63.
202Trata-se portanto, sem dúvida, de um protótipo dos portais vestibulares em arco da região, antepassado dos formosos modelos que hoje se encontram, e que marca uma data. Mas, se não o aparecimento, pelo menos a difusão do arco – e sobretudo desses portais vestibulares em arco – parece ter-se dado apenas, de acordo com os exemplares datados que conhecemos, muito mais tarde: o portal de Malta parece ser um caso único isolado na sua época, uma vez que não é natural que tivessem existido e sido demolidos todos os arcos desse tipo com datas intermediárias entre a de Malta e os fins do século xix ; por razões impossíveis de determinar, o modelo é desprezado ou esquecido durante mais de cem anos, para reaparecer nos últimos decénios do século xix, conhecendo então uma grande voga nessa formas de luxo, que representa talvez uma fusão do modelo de Malta com os largos portais vestibulares quadrangulares, associada a grandes casas de lavoura de feição aburguesada64. As razões, porém, do reaparecimento e difusão subsequente deste elemento, ao mesmo tempo que da sua relativa raridade, são problemas a que só conjecturalmente se pode responder. De facto, embora o arco fosse conhecido na região, é arriscado dizer que a difusão do portal vestibular em arco, nos fins do século xix, constitui qualificadamente o reatamento de uma tradição, que, nessa forma particular, se documenta apenas por um caso único, com mais de um século de anterioridade. O seu aparecimento encontra porventura explicação na difusão da casa grande de lavoura, de feição burguesa, a que ele se ajusta e onde existe de facto, e que corresponde à possível definição e progressos de uma classe rural abastada, de gostos aburguesados, que teve talvez lugar nessa mesma ocasião ; acresce que o carácter luxuoso do arco em si mesmo está também de acordo com o nível económico dessa gente. A sua generalização funda-se talvez, uma vez que ele nenhuma função específica desempenha que o imponha necessariamente, podendo ser substituído, com vantagem até, por um portal simples, ou mesmo, dentro do seu próprio estilo, pelos portais vestibulares quadrangulares, mais modestos e de construção menos dispendiosa, não só no prestígio da sua beleza, mas também nesse característico gosto de ostentação e sentido de emulação que tanta importância tem no povo, e que tantas atitudes do seu comportamento determina, constituindo, muitas vezes, um poderoso factor de difusões culturais. Finalmente, e por outro lado, a sua relativa raridade explica-se certamente por essa mesma característica de elemento arquitectónico de luxo não funcional, que não o impõe e o torna acessível apenas a um número reduzido de pessoas.
II – Corredor largo
203No andar sobradado de muitas casas de lavoura desta região, construídas no século xix, pode-se observar a existência dum corredor chegado à fachada virada para o quinteiro, e que se faz notar pela sua excepcional largura. Para ele abrem as portas dos vários compartimentos, e é iluminado por várias janelas. A escada que lhe dá acesso é mais estreita que ele próprio, e fica geralmente numa das suas extremidades; a outra é frequentemente ocupada por um quarto.
204A grande largura deste corredor transforma-o numa espécie de sala comprida, cuja função não é bem definida; e de tal modo o consideram ultimamente como espaço mal aproveitado, que em muitos casos ele foi dividido num corredor mais estreito, e em vários quartos65.
205Nota-se que este corredor se situa no lugar da antiga varanda aberta, com escada exterior, muito vulgar no Minho. Ele é, na verdade, mais um exemplo de uma das várias soluções arquitectónicas frequentes no Norte do País, com origem nessa velha varanda aberta. Algumas casas antigas da região confirmam e ilustram, de maneira clara, tal origem. A casa do Pisão, situada perto da povoação de Soutelo, em local isolado entre campos, mas em tempos servida pela velha estrada desaparecida que levava da Aveleda àquele lugar, é um edifício de rés-do-chão e andar, com cozinha térrea, que continua o corpo da casa, como é costume na Maia. Sobe-se para o andar por uma larga escadaria exterior de pedra, que é prolongada pela varanda da mesma largura, até ao pequeno quarto da extremidade oposta. Para essa dão as duas portas das salas que constituem, com mais duas alcovas, os compartimentos do andar. Esta varanda foi primitivamente aberta, e o frechai do telhado apoiava-se em colunas baixas de granito; devia ter sido abrigada, hospitaleira, e de proporções muito harmoniosas. Agora encontra-se fechada por um tabique, e as pequenas janelas de guilhotina ficam a meio dos espaços entre as colunas, que lá se mantêm, embutidas na parede. Na base da coluna alta, que sustenta o alpendre da escadaria, está gravada a data de 1783, embora o conjunto seja muito ao gosto do século xvii.
206Também na freguesia de Canidelo, no lugar de Caracoi, se encontra uma casa que reproduz a planta que acabamos de descrever (apenas sobre a escada se não vê qualquer alpendre), e que deve ser construção da mesma época. A varanda foi nesta casa dividida, mais tarde, em dois pequenos quartos e um corredor estreito.
207A citação destas duas casas, que na sua estrutura não se diferenciam de tantas outras espalhadas pelo Minho, apenas serve para frisar a existência desse tipo na região da Maia.
208Como vemos, o corredor de que atrás falámos, tem muitas afinidades com a varanda fechada das casas do Pisão e Canidelo. Apenas o acesso é feito àquele por escada situada no interior da casa, enquanto que a escadaria da varanda fica no exterior. O corredor está, assim, mais encorporado no edifício.
209Há porém construções do fim do século xviii em que a escada é já interior. É o que sucede em certas casas que visitámos, na freguesia de Labruge, que devem datar dessa época. As plantas reproduzidas nos des. 48 mostram, com efeito, a escada partindo de junto da cozinha, ou dela própria, e atingindo um patamar curto, para onde abrem as portas da sala e quarto fronteiro à escada. Esta não ocupa toda a largura entre as paredes, como sucede com o patamar. Embora já não víssemos qualquer escada na sua forma primitiva, pois todas as casas sofreram modificações, os actuais moradores lembram-se bem como elas eram anteriormente : a escada, de madeira ou de pedra, deixava para o lado de dentro, entre ela e a parede, um espaço ocupado pela porta que dava acesso ao vão aproveitado por baixo dela, utilizado geralmente como cubículo de arrumação. O pequeno número de compartimentos existentes nas casas visitadas limita o compartimento do patamar. Ignoramos se ainda se encontram, ou mesmo se existiram, casas dessa época, de mais avultadas dimensões e cujo maior número de compartimentos implicasse um patamar comprido.
210Vemos, pois, em casas do século xvii ou xviii, a varanda aberta e a escadaria exterior, de certo modo independentes do bloco da casa; e em construções do século xix, já metidos no corpo do edifício, o corredor largo e a escada que lhe dá acesso. Mas nota-se, em certas casas do século xviii, a existência da escada interior, com uma implantação muito semelhante.
III – Postigos de corte abrindo para a cozinha
211Um elemento interessante em casas de lavoura desta região é o postigo ou postigos, abertos na parede da cozinha e estabelecendo comunicação para os aidos dos bois de engorda, directamente sobre a mangedoura.
212O leite de vacas turinas é, agora, o grande rendimento que o lavrador, aqui, tira do gado. Em tempos, porém, a engorda de bois de raça barrosã era actividade muito importante, sendo muito desse gado exportado para Inglaterra. Ainda hoje, mais por luxo que por lucro, se vêem nas feiras bois magníficos, gordos, de grandes chifres lustrosos, que são o orgulho de quem ali os leva.
213Era a dona da casa quem pensava esse gado. Lidando na cozinha abria esses postigos, e deitava sobre a mangedoura fartas braçadas de penso. Daí o nome de «bois da patroa» por que eram designados em muitos locais; em outros chamavam-lhe «bois do aido », em oposição aos «bois de fora» ou de trabalho66.
214As paredes em que se rasgavam esses postigos eram geralmente de pedra até ao tecto, mas aparecem muitos casos em que a pedra fazia só a parte inferior, abrindo-se eles num tapamento de madeira. Quer duma maneira quer doutra, os postigos deslocavam-se lateralmente, em frisos de madeira, e davam, como dissemos, directamente sobre a mangedoura.
215Estes postigos, agora raros, foram até há poucos anos muitíssimo frequentes em grande parte da região maiata. Encontrámos vestígios ou memória deles na área compreendida entre o rio Ave e Labruge, desde o mar até Guilhabreu e Canidelo ; ignoramos se a difusão foi mais extensa.
216As modernas noções de higiene, e o trabalho de manter limpa uma cozinha pela qual se atravessa várias vezes ao dia com ervas e palhas, têm, nas últimas décadas, feito desaparecer estes postigos. Eles mantêm-se apenas em casas onde faltem meios para as obras que a sua substituição acarreta. De entre os exemplares que ainda se mantêm podemos citar uma cozinha de Mourão (Vila do Conde), uma face da qual é quase inteiramente constituída por um tapamento de tábuas, apoiado sobre uma base de pedra, e seguro a colunas de granito, no qual se abrem quatro postigos (des. 51). Na Quinta do Crasto, em Vairão, no mesmo concelho, há ainda uma longa fiada de janelas em arco, fecha das por portinholas rectangulares ; a grande cozinha é de construção relativamente recente, e os postigos mantiveram-se até há cerca de um ano, no desejo de prolongar uma tradição local curiosa.
217Numa casa bastante antiga de Labruge (des. 50) as « mangedouras » (deram esse nome aos postigos) dispunham-se em duas faces opostas da cozinha; o actual dono ainda se lembra da satisfação do avô, ao comer as refeições, olhando o gado à sua volta. O mais vulgar, porém, deve ter sido apenas ummaido com uma ou duas dessas aberturas para a cozinha. Em alguns raros casos a própria porta do aido era para a cozinha que abria, e através dela passavam os bois e se retirava o estrume (des. 50).
218Se estes postigos são agora raros, são pelo contrário muito abundantes os abertos nas paredes dos aidos, dando para o exterior ou para qualquer corredor ou dependência. Estas janelas (Malta, Canidelo) ou friestas (Mindelo) são de padieira direita ou em arco, e algumas vezes em bico; não lhes atribuem idade superior a 80 ou 100 anos, e, com efeito, não existem nas casas mais antigas. São agora extremamente frequentes, e à sua difusão pode não ser estranho o uso tradicional de pensar o gado através de um postigo, embora este existisse apenas no aido junto à cozinha.
219É comum em populações rurais viverem homens e bichos debaixo do mesmo tecto. No nosso país, nas povoações serranas do Norte e das Beiras, dorme-se embalado pelas campainhas das vacas e das ovelhas, e não é raro acordar com uma marrada dum carneiro contra a vedação das cortes. Do mesmo modo é frequente a existência dum alçapão no soalho da cozinha, quando esta se situa sobre o aido dos porcos, por onde se lhes lança lavagem ou vianda. As janelas das cozinhas para os aidos, que descrevemos, são mais uma forma deste convívio entre pessoas e animais, mas que só encontramos nesta região da Maia. Um ou outro caso semelhante que surpreendemos noutros pontos do País, não passa de uma solução casual, de modo nenhum demonstra costume regional67.
Alhar
220Em algumas localidades desta região, ouvimos a expressão alhar para designar o lugar da cozinha onde se arruma a lenha. O termo, com esta significação geral, está consignado em vários dicionários, juntamente com a sua variante alhal, por vezes com a indicação de que se trata de um provincialismo minhoto, ou com a da sua localização precisa: « quase sempre por baixo do forno»68.
221Não foi contudo aí que o vimos nas casas da Maia: nestas, o alhar ficava a um canto ou, mais frequentemente, ao lado da lareira, atrás do banco que a ladeia. Mas, em Mourão (Vila do Conde), o sentido do vocábulo concretiza-se notavelmente, e a palavra designa uma espécie de tabuleiro largo ou grande caixa de pequena altura, fixa às traseiras do banco da lareira, do qual faz parte, e onde se arruma a lenha (des. 52).
222Em ambos os casos, portanto, alhar designa o local da cozinha onde se arruma a lenha, situado atrás do banco da lareira, que em Mourão se traduz por uma peça mobiliária especial. Existe por isso sem dúvida uma relação de derivação entre a designação do local e a do móvel, que se funda na identidade fundamental do seu conteúdo, mas cuja ordem não nos é possível indicar.
Casas de pátio fechado do concelho de Paredes 4
223Em extensas áreas do País nota-se a existência de casas de lavoura que têm junto a si um terreiro fechado, para onde dão as portas da habitação, cortes e mais anexos, e que se encontra, geralmente, coberto de mato para estrume. Esse terreiro ou pátio é, muitas vezes, limitado pelos edifícios apenas por um ou dois lados, sendo o restante vedado por um muro baixo. Outras vezes, a tendência é para incorporar o pátio dentro de um conjunto de edifícios, sendo a parte murada, se existe, alta e de pouco comprimento.
224O pátio, apresentando-se de uma ou de outra maneira, é de nítida vantagem na casa de lavoura, quer como retiro ou recreio de gado sob a vigilância directa da gente da casa, quer como preparação de estrumes, pela trituração a que os animais submetem o mato. A segunda modalidade, porém, mostra um claro desejo de isolamento, quase de defesa. A casa, na verdade, com todas as suas dependências, forma um todo vedado ao acesso e até à vista de estranhos.
225Se este tipo de construção rural, com o pátio fechado pelos edifícios que a compõem, é, em alguns locais, limitado às grandes casas de lavoura, noutros estende-se às casas mais modestas e mesmo às pobres.
226O trabalho que segue é um breve estudo das casas de Alvre e Santa Comba, no concelho de Paredes (distrito do Porto), que, como veremos, são exemplares curiosos e perfeitos desse tipo de casa rural.
227A aldeia de Alvre fica na encosta que desce para o rio Sousa, um pouco acima da confluência com o ribeiro de Santa Comba. A aldeia deste último nome, situada uns três quilómetros a montante, é muito mais pequena que Alvre, mas muito semelhante na sua economia, tipo de povoamento e habitação.
228Toda a bacia deste ribeiro é de xisto muito mais rijo que o das serras vizinhas. Na margem esquerda, que sobe mais alta, vêem-se os velhos buracões das banjas, minas donde os Romanos extraíam ouro.
229Os melhores campos estendem-se, estreitos, ao longo do rio Sousa e do ribeiro de Santa Comba ; dão bons milhos no Verão, e são bons lameiros no Inverno. Para as outras terras de cultura foram aproveitados todos os espaços em que se juntou um pouco de terra, no geral uma camada muito delgada, sobre o leito de lousa rija e impermeável.
230São, pois, aldeias pobres, cuja terra já não sustenta, como tantas outras, a sua população. Assim, é grande a drenagem de gente para a cidade. Os que ficam, rapam a pedra da urze e da queiró que ainda a vai cobrindo, para ser depois vendida, como combustível, para as padarias da cidade; e com a urze, vão naturalmente todas as arvorezitas que cresciam entre ela.
231O aspecto das casas está perfeitamente integrado nesta paisagem física e económica. Fora dois ou três, de lavradores mais abastados, todos os edifícios mostram o pitoresco pobre da construção de xisto nu, ainda há poucos anos coberta por sombrios telhados de colmo.
232A casa representada nos desenhos 51 e 52 pertence a uma família numerosa, o que obrigou a acrescentos recentes. O chefe da família que a começou a construir, associa ao trabalho da lavoura a profissão de carpinteiro. Qualquer nova construção é, assim, quase totalmente feita pela gente da casa.
233Vemos que os edifícios ocupam três lados do pátio quadrangular (quinteiro), sendo o quarto um muro de cerca de 2,30 m de altura, onde se abre a porta-fronha, com o seu coberto a duas águas. Em frente à porta, portanto ao fundo do pátio, estão a cozinha, a sala e dois quartos. À direita, um quarto e o sobrado com varanda, de construção recente, sob o qual ficam cortes. À esquerda, mais quatro cortes. Fora deste bloco fechado, construíram um casinholo para o tear e um coberto ou beiral para o carro e alfaias; uma barraca de colmo, a duas águas, de carácter permanente, guarda as palhas.
234O caminho de acesso à portaria é daqueles que na terra não sabem ao certo se são particulares se públicos. A casa está encostada, do lado das cortes, a terreno alheio; no lado oposto, fica a horta e um pequeno campito. Não têm água para regar.
235As paredes são de lascas de xisto (pedra), com uns 60 a 65 cm de espessura, tendo-se escolhido, para os cunhais, pedras maiores e mais duras; não são ligadas com qualquer argamassa, e, no exterior, é apenas revestido e caiado um pequeno lanço da parede dos quartos. As portas regulam por 0,90 x 2,00 m, e as janelas são pequenas e de duas folhas, com vidros.
236As tranqueiras (ombreiras) são prumos de xisto, rudemente afeiçoados, que vão das soleiras às padieiras de madeira. Sobre as paredes pousam placas de lousa (algerozes), no jeito de um capeado largo. É sobre este capeado que escorrem as telhas do telhado. O cume, de telha caleira, é seguro contra o vento por meio de arames que sustentam em cada ponta um pedaço de xisto pousado na pendente do telhado; a cada par de pedras com o seu arame chamam um cavalete.
237A armação do telhado não difere da que é usada por toda a região, e a nomenclatura das peças é, do mesmo modo, quase igual: cumieira, trave para a tesoura (linha), pendurai, fechai, barrotes (ou caibros) e ripas.
238Nesta casa, como aliás na maioria das demais, os telhados são a duas águas (só o do abrigo do tear é a uma). O corpo do fundo e da direita, correspondendo à parte habitada, é coberto agora a telha marselha. Na ala das cortes, à esquerda, usaram soleto (lousas) de Valongo, e o cume é de casqueiras de eucalipto presas por cavaletes. Para o abrigo do tear serviram lascas de lousa (algerozes) arrancadas perto, enquanto que para o coberto das alfaias e para a barraca lançaram ainda mão do colmo tradicional.
239A parede dianteira das cortes é feita de lajes de lousa postas a prumo e de tábuas que tapam os interstícios que elas deixam em aberto. O mesmo material faz as divisórias interiores, tanto destas cortes como das que ficam do outro lado do pátio, debaixo do sobrado, e também uma grande parte das do coberto das alfaias, onde, além das pontas de tábuas, se vêem pedaços de cortiça a vedar buracos.
240A cozinha que, como sucede geralmente nas casas rurais do NO, é o compartimento onde decorre a vida diária, é negra e baixa (as paredes têm 2,20 m de altura), de telha-vã, sem chaminé e sem janela. À esquerda da porta, cuja metade superior serve de janela, ficam a lareira e o forno ; esta parte é lajeada enquanto que a outra é soalhada. O forno encontra-se a um canto e é construído de pequenas lascas de xisto e barro; apenas a boca é feita de granito. Sobre o forno arrumam lenha grossa para o seu aquecimento. A lareira é um bloco de pedra pousado no chão, tendo à retaguarda a borralheira para a cinza, coberta pelo trafogueiro, laje sobre a qual pousam louça quando cozinham ou comem. Por cima da lareira, apoiadas na linha da tesoura e na parede do fundo, há duas varas de pinheiro de que dependuram o fumeiro.
241Fora um armário, com porta de descer servindo de mesa, que é dum acabamento razoável, e também a masseira, todo o mobiliário mostra um desleixo e pobreza extremos. As prateleiras dependuradas na parede, a caixa com sal onde guardam sardinhas, o saleiro de cortiça, o mancebo69 donde dependuram a candeia – tudo dá a ideia duma pobre improvisação.
242A sala, que é separada da cozinha por um tapamento de madeira, é, como todos os demais compartimentos, soalhada e forrada, e de paredes argamassadas e caiadas. A porta de comunicação é muito baixa. A sala é mais propriamente um celeiro ou arrumo, servindo de sala apenas em raros dias festivos.
243O sobrado, levantado há poucos anos sobre uma corte, tem uma pequena varanda muito estreita, para a qual se sobe por uma escada exterior de lajes toscas.
244Não pretendemos que o exemplar descrito sirva para definir a casa de Alvre e Santa Comba, pois quase se pode afirmar que não existem duas iguais. O que ele mostra é : o pátio fechado, à volta do qual se dispõem os vários elementos que constituem qualquer delas, embora em ordem variável, e os materiais e processos de construção.
245O isolamento e a modéstia de recursos mantiveram a construção, até há poucos anos, presa aos pobres materiais da terra: o xisto, a madeira e o colmo. Mesmo assim, iam buscar granito a Castromil e Parada para certos pormenores de construção mais cuidados, e a telha caleira, comprada fora, deve há há bastante tempo ter começado a substituir o colmo.
246As espessas paredes são feitas de pequenas lascas de xisto e apenas os cunhais mostram pedras maiores e geralmente mais rijas. Não é raro o cunhal ser substituído por uma curvatura da parede, mas mais em anexos do que propriamente no edifício de habitação, que mantém a forma quadrangular. As paredes ficam em nu ; só alguns raros e pequenos lanços de parede aparecem revestidos a argamassa70. Para as ombreiras aproveitam lajes de xisto que afeiçoam grosseiramente (tranqueiros), cavando-lhes um leve rebaixo para a porta, ou então fica o portal de agulha, com as pedras de xisto fazendo a face da abertura. Nas portas grandes de agulha incorporam-se muitas vezes blocos de granito para neles se cravarem as dobradiças. O uso de gonzos de madeira, que eram o prolongamento das couceiras, foi aqui muito vulgar; entravam, como o costume, em buracos abertos na soleira e na padieira.
247As padieiras são geralmente de madeira, por vezes arqueadas (sobretudo nas casas antigas), duplas ou triplas, de modo a encher toda a espessura da parede. Não é, porém, raro encontrar ombreiras, padieiras e mesmo peitoris, feitos de pedra de grão (granito), como acontece em muitas outras regiões de xisto. E também aparecem feitas de uma laje de lousa dura, quando não aguentam com peso.
248As janelas são pequenas, e numerosas as que têm apenas portadas interiores de madeira; as de vidraça são quase exclusivamente de correr (de guilhotina).
249O largo capeado das paredes, formado por algerozes, sobre os quais escorrem o colmo ou as telhas, também se encontra por outras regiões de xisto; ele corresponde, de resto, ao capeado das primitivas casas de granito das serras do Norte, e apenas a sua pouca espessura e grande largura lhe dão carácter particular71.
250Os algerozes ou são de lascas de lousa tiradas na vizinhança, ou vêm de Valongo, mais perfeitos. São assentes pelos topos em lajes mais pequenas, soleiras, que vedam as juntas.
251Até há poucas dezenas de anos, era rara a cobertura com telha marselha. O colmo era o material mais empregado, e também a telha caleira. A povoação tinha então a mesma cor da terra, ou melhor, da pedra em que estava construída. Agora, o colmo apenas se mantém em raras casas, ou em palheiros e cortes.
252A forma dominante dos telhados é a duas águas – com frequência muito inclinadas – embora, principalmente nas casas antigas, haja a três águas, com a revessa (água triangular) por cima do sobrado. À empena do outro topo dão o nome de otão. A armação era antigamente de castanho, sendo agora de eucalipto. Os cumes de telha caleira ou são assentes a cal e areia, ou firmados pelos cavaletes que atrás referimos, os quais constituem o processo mais económico.
253As divisórias no interior da habitação são de tábuas. Não são porém numerosas, pois a facilidade com que erguem uma parede de pedra toma-as quase sempre dispensáveis.
254Nas cortes, as divisórias são vulgarmente de lajes postas a prumo, enchendo com pontas de tábuas os vazios que elas deixaram por tapar. O emprego destas lajes é muitíssimo frequente; é mais um dos variados aproveitamentos que o xisto oferece.
255As cozinhas reproduzem a descrita. São sempre no rés-do-chão, de telha-vã, sem chaminé, com o fomo a um canto, e é raríssimo que tenham janela. O seu arranjo não depende das posses do dono da casa, mas unicamente do cuidado da mulher. Nas antigas cozinhas cobertas de colmo – ainda existem algumas – havia sobre a lareira como que um tecto de lajes, aprégua, que protegia o colmo das chamas. Essas lajes pousavam-se em varas passadas da linha da tesoura à parede atrás da lareira.
256À parte da casa destinada a quartos chamam sobrado, embora para alguns esse termo designe de preferência o quarto ou quartos no segundo piso. Todos os compartimentos, à excepção da cozinha, são soalhados e quase sempre forrados (a direito).
257O acesso ao sobrado no segundo piso é feito por escadas de degraus de xisto ou granito, que dão para varandas de madeira, cobertas pelo prolongamento da água do telhado. Estas varandas são estreitas (não ultrapassam seis palmos), baixas e com guarda cheia, de tábuas com juntas tomadas por ripas.
258O segundo piso, sem se poder considerar geral, é contudo muitíssimo frequente, muitas vezes mesmo determinado pelo declive do terreno.
259Por baixo deste sobrado fica uma corte, um celeiro (a que chamam palheiro se lá guardam palhas pelas colheitas), ou uma adega. À volta do pátio dispõem- – se as outras cortes, a casa da palha, onde se guarda exclusivamente palha, e o beiral, coberto onde arrumam o carro e as alfaias. O vão do telhado das cortes, e mesmo do beiral, é utilizado para arrecadação de palhas, folhelhos, etc. Designam-no por barra, nome comum entre Douro e Minho.
260A eira fica perto de casa, mas fora do bloco fechado, tendo junto a casa de eira, de um ou dois pisos. O de baixo tem o nome de palheiro e ao de cima não dão designação certa, sendo contudo a de alpendre a mais vulgar.
261Ao lado da casa ficam a horta e um ou mais campos pequenos, o que torna o aglomerado da aldeia muito extenso e pouco compacto. Nesses campos situa-se o poço, quando existe.
262Embora seja natural que alguns destes conjuntos tenham sido construídos duma só vez, a impressão que causam é que os elementos que o constituem foram erigidos sucessivamente, a seguir a uma construção inicial mais reduzida. Na verdade, esses edifícios funcionam mais como se fossem peças que se juntaram do que partes integradas num todo preconcebido. Os cunhais encos tados ou o diverso alinhamento mostram nas paredes as construções sucessivas, que, por vezes, se reconhecem também nas águas e cumes do telhado. Acontece mesmo nos cantos de duas alas de casas os telhados não se unirem um ao outro e se apresentarem como se, na verdade, não fizessem parte do mesmo prédio.
263A relativa frequência de certos conjuntos em que dois corpos avançam até ao muito onde se abre a portaria (des. 54, 4.°), fazendo as suas empenas parte da fachada do bloco, não indica identidade de planta; não há ordem definida de disposição. É sempre, porém, com a ideia de fechar um pátio que todos esses elementos se foram – e vão ainda – edificando, no momento em que se tomam necessários.
264A entrada para esse quinteiro faz-se pela larga porta-fronha ; apesar, porém, da nítida tendência para o isolamento do conjunto fechado, é raro ser só ela a dar-lhe acesso. Acontece com frequência haver outra porta de carro, quando as circunstâncias indiquem a sua conveniência, e é rara a casa sem porta pequena para a horta, aberta na cozinha ou em qualquer outro compartimento.
265A porta-fronha é alpendrada se se abre num simples muro ou se dá directamente para o beiral. Em casas maiores, construídas em terreno inclinado, ela dá para um espaço coberto pela própria casa, a que se segue o quinteiro. Este está recoberto de mato e para ele soltam o gado, em grande promiscuidade com as pessoas.
266Na sua ideia fundamental, estas casas não divergem, pois, das grandes casas de lavoura actuais dos concelhos vizinhos. O mesmo factor psicológico e tradicional conduz à sua construção. Mas enquanto que aquelas se caracterizam pela solidez e conforto que lhes dá a abastança, estas são construídas com a penúria de materiais e recursos duma terra muito pobre e até há pouco isolada.
267O emprego de materiais variados na cobertura destas casas e o mau acabamento que apresentam os telhados de telha marselha aumentam o seu ar de ruína e acrescentam-lhe um aspecto lamentável de improvisado e provisório.
A cozinha rural do Minho e do Douro Litoral 5
268O local onde tradicionalmente ardia o fogo que preparava os alimentos e aquecia o ambiente foi, por quase toda a Europa românica, e ainda é por várias das suas regiões, uma lareira que ficava ao nível do pavimento, ou um pouco acima ou abaixo dele, e que se situava a meio ou a um lado do compartimento da casa no qual decorria toda a vida de relação familiar, e se recebiam os estranhos; apenas em algumas regiões meridionais, onde a vida se passa muito mais ao ar livre, a importância da lareira, e da própria cozinha, diminui, e aparece, para cozinhar, o fogão construído no exterior.
269Essa lareira baixa já há muito que foi elevada em alguns países, especialmente os nórdicos, parecendo ter sido esse o primeiro passo para o melhoramento que conduziria à construção do fogão de tijolo ou de pedra. E a localização a meio do compartimento foi-se também abandonando, passando a lareira tramos por todo o Portugal central e setentrional72; mas na área que agora nos interessa, esta última – forno construído do lado de fora, com a boca abrindo para o interior – é muitíssimo rara, reduzida a casos esporádicos, ou a certa frequência em áreas limitadas.
270Apesar da diversidade de aspectos que a maior ou menor abastança da casa permite, ou que é imposta por uma maior exigência de comodidades, familiar ou colectiva, as duas peças principais da cozinha – a lareira e o forno – situam-se no geral em lugar idêntico por quase toda a área do Noroeste português. Com efeito, a não ser em certas zonas restritas, ou em casos dispersos bastante raros, a lareira encosta-se aí a meio de uma das paredes (ou um pouco ao lado, mas não ao canto), e é ladeada pelo forno, este chegado ao canto (des. 58), por vezes mesmo um pouco metido na espessura das paredes.
271A lareira73 é formada por uma ou várias pedras ladeiras mais ou menos afeiçoadas, assentes no solo se a cozinha é térrea, ou apoiadas, se ela fica no andar, quer em fortes traves do soalho, quer em pilares ou «cepas» de pedra, que se erguem na loja. Especialmente em cozinhas térreas, de zonas mais arcaicas, ou em casas mais pobres e rústicas, a lareira é mais funda que o pavimento da cozinha, e esse degrau serve de banco onde as pessoas se sentam, viradas para o fogo (des. 57). Mas é igualmente vulgar a lareira elevar-se do chão uns 20 a 25 cm, que é a espessura das lajes de granito que a compõem (des. 58 a 61). Quando essas pedras são lascas de xisto, a sua altura é menor, confundindo-se por vezes com o pavimento. Só ultimamente, como dissemos, em pequenas áreas mais progressivas a lareira se tem elevado a uns 60 cm do chão, para maior comodidade de quem cozinha74.
272Atrás da lareira, contra a parede, fica a borralheira75, que é o lugar onde se deita e conserva a cinza, resguardada do fogo por uma pedra baixa, o trasfogueiro76, sobre o qual pousam as achas ou canhotos que ardem. A borralheira é coberta pelo poial ou pial77, longa laje apoiada sobre dois blocos de pedra78 a uma altura de 60 a 80 cm. Esta espécie de mesa toma algumas vezes aspectos inesperados de rudeza, não passando duma comprida lasca de pedra ajeitada apenas com algumas pancadas de marreta; mas o mais geral é ela ser bem acabada, rectangular ou de cantos cortados, sugerindo, na gravidade da sua forma, um altar aos lares romanos.
273Este conjunto borralheira-poial nem sempre é assim destacado da parede. Em inúmeros casos, especialmente por Basto, norte de Viana do Castelo, etc., ele recolhe-se dentro da sua forte espessura, tomando a forma de duas pilheiras sobrepostas, separadas por uma soleira que faz de poial (des. 56), à qual, pela região de Basto, chamam de preferência o lar. Em casos mais raros a pilheira de cima não existe, ou fica separada da de baixo por uma maior altura de parede79.
274Ao canto da lareira, e muitas vezes separado dela pelo banco ou escano, fica o forno do pão. Por toda esta área ele está dentro da cozinha; apenas poucos casos fogem a esta regra, principalmente em pequenas zonas (Viana, por exemplo), mas mesmo nessas condições a sua boca, como foi dito, abre para a cozinha. Esta boca é guarnecida com uma soleira80, e a padieira é muitas vezes igualmente avançada, como uma pequena cornija (des. 59). A construção do forno em local separado da cozinha, contudo, começou timidamente a divulgar-se há algumas dezenas de anos, por algumas pequenas áreas, deixando a cozinha mais livre, limpa, e sem recantos81.
275Em muitas casas abastadas há, além do forno do pão, no qual se cozem as fornadas regulares de boroa ou pão de centeio, um outro mais pequeno, para o arroz e os assados dos dias de festa, e onde se coze alguma pequena fornada acidental.
276Para a construção de fomos de pequenas dimensões utilizam-se os de barro, feitos de uma só peça, que se colocam no lugar e se revestem de barro. Os fornos maiores são de abóbadas de tijolo, alvenaria, ou xisto miúdo. E também se segue o processo de fazer um cone de achões de madeira, que se cobre com uma camada espessa de barro; quando este seca, acende-se o forno, as achas ardem, e o barro fica cozido e duro. O lastro é feito de grandes tijolos quadrados pouco espessos. Em certos lugares do concelho de Fafe dão aos blocos de granito que formam as paredes do forno o nome de antas.
277Por baixo do forno deixa-se com frequência um desvão, que é utilizado como cinzeiro, ou como local seguro onde as galinhas passam a noite.
278A lareira está limitada, a um ou aos dois lados, por bancos compridos. Geralmente um desses bancos isola-a do forno, enquanto o outro, se não se encosta à parede, a separa dum espaço onde se guarda a lenha ou ramusca que serve de combustível. Umas vezes esses bancos são grandes, pesados, nunca saindo do sítio, quase tão firmes como o forno. É raro atingirem por aqui a robustez e o bom acabamento dos escanos transmontanos, onde é vulgar aparecerem como respeitáveis peças de marcenaria, mesmo em casas modestas. Mas, como ali, e especialmente no Minho serrano, é frequente os escanos ou preguiceiras serem munidos de mesas de baixar, umas descendo em direcção perpendicular ao assento, e girando em dobradiças firmadas no alto do espaldar, outras baixando a todo o comprimento do banco. Existem também bancos mais leves, de feitura por vezes muito rudimentar, que podem substituir o escano, quando este falta.
279Como já dissemos, a lareira foi alteada apenas em poucas e pequenas áreas do Noroeste. Nas casas de pescadores da Póvoa de Varzim (des. 64) parece que tal alteamento se deu quando, pelo fim do século passado, a maioria das habitações de madeira foram substituídas pelas de pedra. Elevação semelhante vimos em casas de pescadores de Vila Chã (Vila do Conde) (des. 65), sem que pudéssemos obter quaisquer informes sobre a data em que ela se deu ; e o mesmo acontece em várias casas de lavoura do interior do concelho. Na zona a norte de Viana, onde em certas freguesias já custa a encontrar uma lareira baixa, essa mudança começou a dar-se também pelo virar do século; e essas cozinhas prin cipiam a ter agora novo melhoramento, com a construção do forno num anexo independente, e a introdução dum fogão de tijolo e ferro, cuja parte metálica é de origem espanhola. Timidamente, certas casas em que qualquer fogo deixou de ser aceso na lareira têm agora outra, de pequenas dimensões, num coberto anexo, em cuja chaminé se defuma a carne do porco, e que é construída expressamente para esse fim.
280Passemos agora ao factor que dá à maioria destas cozinhas a sua feição particular : a ausência da chaminé e o negrume que daí provém.
281A chaminé é de difusão relativamente recente por toda a área rural do Norte do País; e em grandes zonas dessa área só mesmo há muito pouco tempo começou a divulgar-se. Por isso, por muita parte, nem só nas casas mais pobres o fumo se escapa pela telha-vã, por telhas levantadas (des. 66), por frestas, ou pela própria porta. Pela Maia, por exemplo, são muito vulgares belas casas dos séculos xviii e xix, a que falta esse elemento; a cozinha, que se situa ali muito frequentemente num corpo térreo contíguo à casa, mantém-se, mesmo em boas casas de feição aburguesada, tão defumada e negra como uma cozinha serrana; e está na memória das pessoas idosas o número de chaminés ser, há cinquenta ou sessenta anos, muito menor que o actual. Também pelo Baixo Minho a chaminé é rara, e muitas das que existem « fumam » mal, num evidente desconhecimento ou pouca prática da sua feitura82.
282Isto não quer dizer, certamente, que a chaminé não seja presentemente um elemento corrente, mesmo naquela zona a norte do Porto, em casas mais recentes, ou como melhoramento de cozinhas antigas. Ela ocupa aí o largo sector duma das fachadas menores do edifício, nuns casos subindo até ao alto com a mesma largura da base, estreitecendo noutros para cima, sobre o cume do telhado (des. 68). Esta última forma é especialmente frequente na corda que se estende desde o concelho da Maia até Paços de Ferreira, Paredes e Penafíel ; a outra, muito mais vulgar e espalhada, ocupa metade ou mesmo toda a fachada lateral da casa, e tem quase sempre duas paredes de pedra – pela sua situação no cunhal – sendo as outras, uma vertical e outra oblíqua, de tabique revestido a chapa, lousa ou telha ; a boca de saída é protegida por telhas encostadas ou por uma chapa. É pelo litoral de Esposende que estas enormes chaminés mais abundam, com a boca muito larga, muito brancas e bem integradas no bloco maciço da casa, que ajudam a caracterizar (des. 69).
283Pela região do Baixo Douro e Tâmega, surge, além desta, outra forma de chaminé ainda mais avantajada, espécie de torre coberta por um vulgar telhado, no alto de cujas paredes se rasgam delgadas fendas para a saída do fumo (des. 69). O tamanho destas chaminés, construídas assim por mero desejo de ostentação e vaidade, provoca uma tiragem ainda menor que nas outras, e a consequente fuga de calor.
284A estas diversas formas de chaminé corresponde, dentro da cozinha, uma grande saia, guarnecida muitas vezes com a prateleira onde se pousam peças de louça maiores; vulgarmente feitas de tabique, as saias feitas de padieiras de pedra assentes em pilares do mesmo material, embora raras, não são excepção em regiões de granito. As saias cobrem geralmente todo o espaço da lareira e do forno (des. 68) e não raro ocupam um topo inteiro da cozinha. No caso das enormes chaminés-torres que, como vimos, aparecem com certa frequência pelos concelhos de Amarante, Marco e Cinfães, a saia de pedra suporta a parede que a prolonga para o exterior, e tem por isso de ser apoiada sobre grossos pilares, ou mesmo em arcos que dão à cozinha um aspecto monumental.
285A estas diversas formas de chaminé corresponde, dentro da cozinha, uma grande saia, guarnecida muitas vezes com a prateleira onde se pousam peças de louça maiores; vulgarmente feitas de tabique, as saias feitas de padieiras de pedra assentes em pilares do mesmo material, embora raras, não são excepção em regiões de granito. As saias cobrem geralmente todo o espaço da lareira e do forno (des. 68) e não raro ocupam um topo inteiro da cozinha. No caso das enormes chaminés-torres que, como vimos, aparecem com certa frequência pelos concelhos de Amarante, Marco e Cinfães, a saia de pedra suporta a parede que a prolonga para o exterior, e tem por isso de ser apoiada sobre grossos pilares, ou mesmo em arcos que dão à cozinha um aspecto monumental.
286É de notar em certas áreas esta falta de correspondência da chaminé no exterior, com a saia dentro da cozinha (casos destes são numerosos pela ribeira de Ancora, por exemplo). Vemos assim que a existência da saia nem sempre exigiu a presença da chaminé propriamente dita. Contudo o mais vulgar é a falta da chaminé exterior indicar que o fumo se espalha por toda a cozinha, para sair depois pelo intervalo das telhas, ou pelo levantamento de algumas destas, ou por frestas abertas nas empenas. Nas casas cobertas de colmo, as aberturas no telhado são mais raras, e a saída do fumo pela porta ou por qualquer postigo é muito deficiente. Por isso nelas a camada de alcatrão que se acumula no madeiramento e no colmo é negra e brilhante, e por vezes espessíssima.
287A mais de dois metros sobre a lareira, assente em barrotes passados da armação do telhado à parede, ou metido já na saia da chaminé nos casos em que esta existe, o caniço era, até há algumas dezenas de anos, extremamente frequente. Na sua forma mais vulgar ele era um encanastrado de varas, ou um ripado de madeira ou de canas, utilizado para conservar a castanha, e também para guardar a lenha no Inverno, que ali se mantém seca e pronta a arder. Também era local onde se secava rapidamente a roupa, e tinha a utilidade de impedir que as faúlhas se pegassem ao madeiramento ou colmo do telhado, evitando um incêndio. Com a quase total extinção dos nossos soutos de castanheiros, o caniço deixou de ter em muitos sítios a primeira daquelas funções, ou mesmo desapareceu na maioria dos casos. Em terras de xisto era frequente o caniço ser de grandes lâminas de lousa, e pelas serras de Arouca ainda se podem ver muitos feitos desse material, destinados somente à chamiça e à carqueja, que ali servem de combustível (des. 76) ; e pelo Sul do concelho de Paredes, enquanto as casas foram cobertas a colmo, aprégua, que era o nome que aí lhe davam, tinha sobretudo a função de evitar os fogos.
288O local, porém, onde mais correntemente se arruma a lenha não Sé sobre o caniço, mas no chão, atrás do preguiceira ou em outro qualquer canto83, e também, em certas casas de algumas áreas, sobre o forro dos quartos contíguos à cozinha, a entrada do qual fica aberta para este compartimento84.
289A cozinha, que é em regra o maior compartimento da casa, é soalhada, lajeada, ou, muitas vezes, total ou parcialmente em terra batida. A sua situação no andar sobradado ou no rés-do-chão depende um pouco da região, apesar das numerosas excepções motivadas pela conformação do terreno e pelos variados factores que foram compondo, ano após anos, o conjunto da habitação. A localização no sobrado é naturalmente a mais frequente, dados os dois pisos característicos da habitação nortenha e a falta tradicional da chaminé. Mas já nos referimos a grandes casas de lavoura dos arredores do Porto, em que a cozinha se situa num corpo térreo anexo à casa. No rés-do-chão ficam também as cozinhas das povoações piscatórias da beira-mar. E o mesmo sucede nas áreas serranas do Montemuro, onde ela está geralmente num edifício térreo, muitas vezes separada do resto da habitação. E também, escusado será dizê-lo, em casas pobres de um só piso.
290No Douro, onde a inclinação do terreno dá lugar a casas cujo sobrado cobre uma loja ou adega curta, e se prolonga para trás, de modo a ficar aí ao nível do solo, é nessa extremidade térrea que fica geralmente a cozinha. Esta forma de casa e de localização da cozinha é, de resto, frequente em terras acidentadas; pela baixa bacia do Paiva, nos concelhos de Arouca e Cinfães, multiplicam-se os exemplos duma versão modesta deste tipo de habitação, cujo térreo ocupa parte do seu comprimento, ao qual corresponde no andar um ou dois quartos, enquanto que a cozinha, que lhe dá comunicação, se situa à retaguarda directamente sobre o solo; estas casas são cobertas por um telhado a três águas, com o rodo para a frente; e é contra a empena das traseiras que se encosta a lareira, e se apoia a chaminé, quando existe85.
291Como não bastasse o alcatrão depositado nas paredes e no telhado para tornar as cozinhas escuras, abrem-se para o exterior apenas pequenas e raras janelas ou postigos, cujos vidros defumados pouca luz deixam coar. E muitos casos há em que a porta é a única abertura para o exterior. Por isso esta fica aberta quando o tempo o consente; e é para impedir a passagem da bicharada ou das crianças, permitindo ao mesmo tempo a entrada da luz e saída do fumo, que ela tem a metade superior abrindo como um janelo.
292Pelo Sul do concelho de Vila do Conde, era até há poucos anos muito vulgar abrirem-se numa das paredes da cozinha postigos que davam directamente para a manjedoura dos bois de engorda, fechados por portinholas de correr, e pelos quais a própria dona da casa ia deitando, no decorrer da sua lida, fartas braçadas de penso (des. 49). O seu número mais usual era de dois ou três; mas numa casa de Labruge podem ver-se ainda sete (três dos quais entaipadaos), em duas paredes opostas da cozinha; « o actual dono ainda se lembra da satisfação do avô, ao comer as refeições, olhando o gado à sua volta»86. As actuais noções de higiene tomaram estes postigos muito raros; mas eles estão talvez na origem das janelas dos aidos, através das quais se lança a comida, vulgares apenas por esta limitada zona do Noroeste do País.
Zona serrana
293Nas zonas serranas do Noroeste, embora a vida rural apresente certos aspectos típicos da lavoura das terras baixas, nomeadamente o cultivo do milho, que se mantém nos vales abrigados e à volta das povoações, e que constitui aí também a base da alimentação, a economia geral e a vida social das populações tomam novas formas, sob a influência de condições geográficas e históricas peculiares a esse tipo de paisagem. De facto, a par com a agricultura, aparece uma importante actividade pastoril e ganadeira que se vai definindo mais vigorosamente na zona montanhosa de Trás-os-Montes, e a respeito da qual imperam conceitos e sentimentos que parecem beber a sua origem em remotos regimes comunitários, certamente outrora dominantes na região ; subsistem os rebanhos colectivos, ou « vezeiras », sujeitos a uma regulamentação precisa e minuciosa, que exprime uma forte coesão vicinal, e que se integra numa organização político-jurídica especial, que marca a prevalência de noções comunitárias sobre o individualismo que se nota no resto da província.
294Traduzindo esta feição, o povoamento é aqui, como nas terras transmontantes confinantes, rigorosamente concentrado; as casas agrupam-se em bloco compacto, vetustas, contíguas e quase misturadas umas nas outras, a emergir da rocha natural, à face dos rudes arruamentos da aldeia, reflectindo a solidariedade da sua acção ; acima do agregado familiar, que tão bem se exprime nos casais isolados das terras baixas, aqui domina a «aldeia», de que cada família é parte. De facto, cada família é uma casa; em muitos sítios mesmo um sistema especial de morgadio, em vista ao equilíbrio dos recursos escassos, impediu a multiplicação das famílias, e a sua subordinação à casa; é a casa que tem parte na « vezeira » e nas « juntas », ou «conselhos» dos vizinhos, onde se delibera sobre tudo que interessa à vida da comunidade; a unidade é a casa, representada pelo seu chefe. Desse modo, integrada na aldeia, mergulhada no tempo, a casa serrana, como expressão palpável e viva duma realidade material, histórica e social, toma toda a sua verdadeira importância e sentido mais fundo.
295A casa serrana apresenta as características fundamentais da casa típica do Noroeste, com a sua planta rectangular, o seu aparelho de pedra, os seus dois pisos funcionalmente distintos, a varanda, a escada exterior; mas, comparada com essa, tem uma feição mais rude, arcaica e pobre, e sofre a acção do povoamento aglomerado em que está integrada, que impõe modificações a alguns dos traços que apontamos. De modo geral, ela corresponde precisamente à casa que atrás definimos em função da rudeza primitiva da sua construção, com os seus toscos muros de pedra solta, que muitas vezes fica à vista, os seus telhados de 4 ou menos frequentemente 2 águas, as suas raras aberturas, podendo dizer-se que representa aí o tipo local característico ; a casa do proprietário mais abastado tem uma estrutura idêntica à dos seus vizinhos mais pobres, e só pelos acrescentos que lhe faz para um lado ou para outro, ou pela multiplicação dos edifícios, obtém ele o espaço para abrigar a sua gente, gados e palhas; mas quer sejam casas de habitação ou edifícios com outras funções, em todos os casos a construção é igualmente rude e tosca. Em aldeias de casario menos denso, estas casas, embora agrupadas, vêem-se muitas vezes isoladas umas das outras, mostrando a simplicidade da sua traça; è mesmo no núcleo mais compacto das povoações, bordando os caminhos tortuosos, elas acusam a sua factura elementar, no avanço ou recuo das fachadas individuais ou na diferente altura de cada telhado.
296Estas casas são geralmente de rés-do-chão e andar, para o que, quando possível, aproveitam o declive do terreno. O rés-do-chão é térreo e serve de corte do gado; o andar é sobradado, e nele fica a parte de habitação de pessoas e os palheiros. As paredes mostram, exterior e interiormente, blocos apenas empilhados, por vezes grandes calhaus redondos, com total despreocupação de alinhamento, e até de prumo, utilizando mesmo, quando calha e tal é possível, os afloramentos naturais da rocha mal desbastada87. Nas regiões graníticas, contudo, não é raro verem-se casas de blocos esquadrejados, em que todo o trabalho da pedra é bastante cuidado, sem que isso altere a simplicidade estrutural da construção.
297Quando o declive permite entradas para os dois pisos, vêem-se duas portas, cada uma no seu nível. Se a escada é necessária, ela é então exterior, de pedra, e fica encostada à parede, na fachada frontal, a partir da rua, mostrando um patim no alto. A cobertura deste patim, que dá lugar a soluções de alpendre, e também uma ou outra varanda que se mostra nestas casas ultrapassam a simplicidade elementar e fazem delas casas mais evoluídas.
298Na serra, predominam os telhados de duas águas, com cobertura de colmo; então, quer os edifícios sejam de granito quer de xisto, as paredes laterais são rematadas geralmente por um capeado horizontal, saliente na face exterior, que desempenha o papel de beiral e representa um sistema antigo para assentamento da palha. Nas regiões graníticas, as cápeas podem ser simples lascas muito toscas, ou, correspondendo às casas de aparelho mais cuidado, lajes rectangulares delgadas, acabadas a pico grosso. O mesmo acontece nas zonas de xisto, em que as longas placas de lousa (beirais, no Marão ; algerozes, Valongo e Paredes) são, em muitas casas recentes, serradas nos canteiros de Valongo.
299A cobertura de colmo, que foi sem dúvida a regra na serra, é ainda muito frequente, embora venha desde há muito a ser substituída progressivamente pela telha caleira, e ultimamente pela telha marselha. Nesses telhados, o colmo é protegido contra o vento por processos variados; o mais corrente e sugestivo, que é próprio das regiões graníticas e define um tipo de casa, é o dos guarda-ventos : sobre as cápeas das empenas, ergue-se uma fiada de pedras postas de cutelo, contra as quais a palha se encosta88. A colmadura ou as telhas aparecem também presas nas empenas por cápeas alongadas assentes num alteamento da parede, que se eleva acima do nível da cobertura, formando anteparo. Este sistema, relativamente frequente no Minho Serrano, conhece-se também, em cápeas, em certas casas irlandesas e bretãs ; e é também muito frequente em determinada categoria de espigueiros. Ele acompanha hoje a cobertura de telha, sendo digno de nota o facto de o sistema tradicional ter perdurado, aplicado aos novos materiais, que contudo o não requerem expressamente. Em alguns casos os guarda-ventos das empenas são rematados por placas dispostas horizontalmente sobre o alteamento da parede, formando como que os degraus de uma escada que sobe até à altura do bico do cume.
300Estes diversos sistemas, porém, não dispensam as pedras ladeiras pousadas ao longo do cume e, em locais muito ventosos, os paus que, dispostos sobre o telhado, cingem a palha como braços. Esses paus, aos pares, unidos e amarrados sobre o cume, são o processo mais usual que se encontra pela Peneda e Soajo, e também pelas serras da Freita e da Gralheira ; noutras zonas, como o Barroso, as varas são de preferência dispostas horizontalmente, as da beira amarradas a tomos cravados no capeado, e as restantes aos caibros da armação. Por vezes, por exemplo em certas «brandas» da Peneda, em lugar destas varas horizontais usam-se arames levando nas extremidades pedregulhos que ficam dependurados à vista nas fachadas das duas empenas para os manterem esticados e firmes no telhado.
301Nas zonas de xisto, em que o capeado é formado por placas dessa pedra, a palha ou a telha deixam a toda a periferia do telhado uma orla desse capeado à vista. Mas onde o xisto se pode cortar em lâminas com facilidade, toda a cobertura é mesmo desse material (Marão, Arouca, etc.). Os cumes são aí vedados tradicionalmente com torrões, ou, se há granito na proximidade, com caleiras invertidas dessa pedra, a que chamam « telhões ». Nas áreas serranas e nas dos telhados de colmo em geral, pode dizer-se que a chaminé ainda não penetrou. Na grande maioria das casas de colmo, o fumo sai pelas portas e janelas abertas, pois os orifícios que deixam entre a cobertura e a parede são insuficientes. Em alguns casos raros, porém, vêem-se bocas de saída mais ou menos regulares, praticadas na colmadura.
302A casa serrana tem escassas aberturas e elementos decorativos, e estes, de uma feição muito tosca. A porta é de um só batente, emoldurado no lado externo, pelo aparelho mais cuidado das ombreiras e padieiras ; as janelas muitas vezes são simples portadas de pau, sem qualquer vidraça; não raro vêem-se, ladeando estes rasgos, pares de «cachorros» ou de « mísulas » de pedra, onde se colocam vasos de flores; com frequência uma tábua entre esses cachorros forma uma prateleira, que serve para o mesmo fim. Mais raramente encontram-se também nichos, inscrições, etc.
303A varanda é geralmente baixa, escura e atarracada, e situa-se muitas vezes na fachada que dá para a rua, formando a entrada da casa, para onde ascende a escada exterior de pedra; ela assenta em paredes fechadas, colunas, pilares ou cachorros de apoio. E embora este elemento seja essencialmente o mesmo que se vê nas casas da lavoura das terras baixas, grande e espaçosa, as suas dimensões, o seu rusticismo e o seu carácter geral marcam para com esse uma diferença que não pode deixar de se impor decisivamente.
304Quando estas casas ficam um pouco mais isoladas, é frequente mostrarem à frente, sobre a rua, um pequeno recinto murado, que faz de átrio ou vestíbulo exterior; o muro baixo que circunda esse recinto é de pedras mal encasteladas, e nas zonas de xisto, muitas vezes, de enormes blocos tabulares desse material, postos de cutelo. Outras vezes são precedidas de um quinteiro que abre para a rua por um alto portal alpendrado, ficando a casa ao fundo, com a sua varanda corrida, à frente, não raro de madeira.
305Interiormente, o tosco aparelho das paredes fica geralmente à vista, sem qualquer reboco, e as raras divisórias são de madeira. O compartimento principal, maior e mais importante, centro da vida familiar, sobretudo no Inverno, é, de acordo com regra, a cozinha, que se situa ora no térreo ora no piso superior, que, nas casas localizadas em terreno inclinado, fica ao nível do solo desse lado. Aí se reúnem as pessoas da casa e se recebe quem aparece de fora, se cozinha, se come, se trabalha, os homens compondo alfaias, as mulheres fiando e cosendo; são frequentes aqui também os nichos e os armários embutidos nas paredes. A sala é mais rara e mais pobre, e para as funções cerimoniais improvisa-se, quando é preciso, um recanto asseado. Estas casas conferem às aldeias serranas uma expressão rude e antiga, que se acentua pela sujeição que o terreno impõe ao conjunto do casario. Aparecem casas encostadas a enormes afloramentos de pedra, que formam parte das suas paredes; outras erguidas sobre qualquer fraguedo mais elevado, emergindo, como torres, acima dos telhados das vizinhas; e outras ainda, procurando soluções primárias, que nos reportam aos tempos dos primeiros ocupantes dessas áreas, preservadas nas formas primitivas pela força arcaizante do seu isolamento. Mas deve-se notar que existe este tipo de casa em regiões que hoje nada conservam desse carácter primitivo, mas que fazem parte de áreas que o foram até há pouco tempo.
Zona transmontana
306A barreira montanhosa que vai do Gerês ao Marão e do Montemuro à cordilheira central, vedando o acesso para leste às influências oceânicas, marca o limite interior da zona climática atlântica e, com ela, do panorama geográfico-cultural que atrás descrevemos. Passada uma área de transição, entra-se no distrito de Bragança com uma paisagem nova, de amplas ondulações monotónicas desdobrando-se na vastidão do horizonte em intermináveis faceiras abertas, de cereal – trigo e hoje sobretudo centeio, em que apenas a direcção dos sulcos marca por vezes diferenças de lavouras e onde se não vê ninguém – alternando com folhas de restolho seco e requeimado, e grandes montados bravios e desertos, cobertos de vegetação arbustiva espontânea, onde vagueiam rebanhos, com o seu pastor, perdidos na imensidão silenciosa – a Terra Fria Transmontana. É a região planáltica e montanhosa que a erosão limou, prolongamento da meseta castelhana, de terrenos arcaicos de cor amarela, barrentos e secos, retalhados de profundos vales abruptos e rios muito encaixados, e onde predomina o xisto. O clima é de tipo continental, excessivo e rude: chuvas muito abundantes, neve e frio glacial, no Inverno; calor sufocante e uma secura que seca rios e fontes, no Verão – a Ibéria Seca. A vegetação e o arvoredo rareiam : manchas isoladas de castanheiros e negrilhos, e nas terras mais quentes, olivais, sobreiros e certas espécies mediterrâneas.
307O gado grosso tem lugares permanentes de pastagem – os lameiros – nas depressões e encostas onde houver água; os lameiros são abertos, e vedam-se apenas no período de crescimento dos fenos. O gado alimenta-se então com a palha do cereal, que se conserva em grandes medas maciças, junto às eiras ou eira comum, de terra batida. O gado miúdo pasta nos montes e nas folhas de pousio, e na vastidão das terras incultas.
308A economia primitiva transmontana, especialmente na Terra Fria, era sobretudo pastoril; relacionada com essa economia e apoiada nela, a estrutura social da província era, até há cerca de um século, em grandes sectores, de feição marcadamente comunitária. Nas regiões serranas, de terras aráveis mais reduzidas e pobres, nas remotas áreas fronteiriças, desde a serra minhota até à lombada de Bragança, preservadas até hoje pelo seu isolamento e pela força arcaizante da montanha, a tradição ancestral mantém-se viva, e por toda a parte se encontram vestígios desses velhos costumes pastoris e comunitários. Em muitos sítios os rebanhos – de carneiros, cabras, às vezes vacas e bois e, mais raramente, porcos – são comuns, constituem o elemento económico fundamental, e têm pastos também comuns – as lamas do povo. São frequentes os edifícios comuns – moinhos, lagares, fomos, e até forjas do povo, por vezes touros e bezerros de cobrição, máquinas agrícolas, etc., que são pertença de todos e de que cada um pode dispor segundo certas regras. Em várias aldeias encontram-se restos mais ou menos fragmentários das assembleias de vizinhos – juntas, acordos ou conselhos –, representantes de todas as casas ou famílias do lugar, que se reúnem, periódica ou ocasionalmente, ao toque do sino ou da buzina, para resolução de assuntos importantes ou de interesse colectivo, etc.
309Nas terras mais baixas e férteis, onde hoje predomina a agricultura e onde a repartição dos comunais, a apropriação individual e o crescente aproveitamento dos bravios para terras de cultura fizeram decisivos progressos em prejuízo do pastoreio, esta fisionomia perdeu muito do seu vigor; de facto, o pastoreio é, em si mesmo, uma forma colectiva, ao contrário da agricultura, que estimula o sentimento de posse individual da terra. Mas mesmo aí aparecem traços que parecem beber a sua origem nessas antigas organizações pastoris e comunitárias; assim, mesmo onde a pastorícia é já apenas subsidiária, subsistem os contratos especiais, com os pastores, de tipo tradicional; em muitas aldeias, como vimos, a eira é comum a toda a povocão ; etc. Pode-se por isso dizer que a feição própria da província é esse velho espírito pastoril e comunitário, que em Rio de Onor se refugiou e persiste na sua maior pureza originária e viva.
310Em Trás-os-Montes a densidade populacional é muito inferior à da área atlântica e o povoamento é rigorosamente concentrado. A razão clássica da concentração – o povoamento aglomerado à volta das nascentes de água, aqui escassas, é insuficiente neste caso, e por vezes inadequada, embora, sem dúvida, as povoações se situem sempre em tomo da fonte do lugar, muitas vezes de mergulho. A aglomeração parece por um lado relacionar-se com a exploração extensiva de cereais em terras secas e em campos abertos e afolhados, e por outro com a pastorícia de gado miúdo em grande escala – duas formas económicas que não se regem apenas por iniciativa particular e requerem uma acção conjunta-, podendo também fundar-se em razões de defesa semelhantes às que, na paisagem castreja, presidiram à escolha de sítios altos. Em Trás-os-Montes estes motivos sublinham vigorosamente a realidade histórica: a aglomeração exprime a própria organização comunitária, que pressupõe o bloco dos vizinhos deliberando no seu conselho acerca de trabalhos comuns, edifícios do povo e rebanhos colectivos.
311Na verdade, as aldeias transmontanas são compactas, feitas de casas contíguas e muito uniformes, escuras e de feição rude e arcaica, arruadas ao lado da igreja local, que é ela também de pedra à vista, com um campanário baixo a meio da fachada, acima do cume. Por vezes, vistas de longe, as casas parecem ter um telhado único e corrido para todas elas.
312Ao lado do bloco da aldeia fica o amplo largo, plantado de negrilhos, as hortas e as vinhas; adiante, as terras de cultura, abertas e afolhadas, e os lameiros; e entre as aldeias, raras e distantes umas das outras, as grandes faceiras onduladas de cereal ou restolho, a perder de vista, e os montados incultos. E é difícil conceber-se algo comparável à rudeza primitiva dessas povoações remotas, com as suas casas de pedra solta de raras aberturas, cobertas às vezes de lousa ou colmo, sem qualquer reboco que esconda o aparelho tosco do granito ou do xisto, tal como nos redutos castrejos.
313Nascida desta paisagem, e a ela ajustada, a casa popular transmontana, embora incluída na categoria geral da casa nortenha, de pedra, de rés-do-chão e andar funcionalmente distintos, e com a varanda e escada exterior, apresenta aspectos muito diversos da casa do Noroeste atlântico, e pode-se considerar uma forma própria característica, postulando talvez a natureza específica de certos elementos e mesmo o exclusivismo das suas origens. Como naquela, na casa transmontana o rés-do-chão destina-se a arrecadações e lojas de gado.
314As casas grandes, ou aquelas que se encontram isoladas das demais, possuem, como traço característico, um pátio que fica ao lado ou no meio da casa, e para onde dão as lojas, e onde se acumulam os estrumes, e que leva o nome de curral ou curralada.
315Quando é lateral, a curralada abre para a rua por um portal de dois batentes (que em terras de Miranda é recoberto por um pesado e avultado alpendre) que se segue à fachada da casa e faz a serventia de animais e carros; e em redor dela dispõem-se certos anexos, palheiros, o cabanal de recolha de alfaias e carros, etc. ; e por vezes também a passagem para uma horta ou cortinha. Nas antigas casas mirandesas, ao lado da curralada via-se um sobrado elevado de um ou dois metros acima do solo, e recoberto por um tejadilho que se apoia numa coluna monumental de granito, onde se empilhava o estrume, e a que davam o nome de teatro do feno.
316Quando a curralada fica no meio da casa, ela é rodeada por três e às vezes quatro alas ou fachadas, como um claustro. O portal de acesso rasga-se na fronteira da casa, e dá para uma espécie de vestíbulo de arrumação sob o andar.
317Nas casas pequenas e arruadas, que se soldam paredes meias às vizinhas, a curralada não existe ou localiza-se nas traseiras; e neste caso, o portal, como na situação anterior, rasga-se na fachada e abre para o vestíbulo sob o andar. Quando não existe, os estrumes curtidos ficam nas lojas, e, outrora, empilhavam-se na rua em frente da casa.
318O material de construção predominante é o xisto, impondo as peculiaridades a que já aludimos. São dignas de menção especial as colunas feitas de pequenos blocos ou lascas desta pedra, de forma cilíndrica ou ligeiramente cónica, como suportes de varandas ou alpendres, que se usam em grandes áreas desta província, e que na aldeia de Bagueixe (Macedo de Cavaleiros) atingem diâmetros muito avultados. Em Quintanilha (Bragança) as peças mestras das padieiras e cunhais são muitas vezes igualmente de xisto, em belos blocos de um material duro e azulado, comportando mesmo inscrições e certos ornatos rudimentares lavrados.
319Nas áreas de granito também, geralmente apenas essas peças são aparelhadas, destacando-se contra os blocos toscos do resto das paredes.
320A escada, como dissemos, é normalmente exterior, de pedra, e conduz sempre à varanda ou, em casos típicos, a um patamar de entrada. Nas casas arruadas ela situa-se quase sempre na frontaria, partindo da rua, encostada ou perpendicular à parede. Em Rio de Onor as escadas de duas casas contíguas descem junto à parede, voltadas uma para a outra, reunindo-se em baixo em dois ou três degraus comuns.
321Nas áreas do xisto os degraus são muitas vezes de placas desse material, de um aparelho extremamente tosco.
322Em Trás-os-Montes, embora sejam frequentes os telhados de quatro águas, especialmente em casas isoladas ou de maior vulto, predominam os de duas águas, que são em geral compridas e pouco inclinadas. Mas, como já tivemos ocasião de notar, estes telhados diferem essencialmente dos telhados do mesmo tipo, da zona atlântica serrana, de colmo, com cápeas e guarda-ventos. Em certas aldeias, as casas contíguas mostram muitas vezes um telhado seguido – quase único –, que as recobre a todas ou a parte delas; e em Presandães (Alijó), Palheiros (Murça), etc., um buraco quadrangular irregular nesse telhado acusa a localização de uma curralada ou de um pátio interior aberto.
323A cobertura, na maioria dos casos, é de telha, pelo menos actualmente ; mas são numerosas as zonas onde ela é de placas de xisto, nomeadamente na Campeã (Marão), e em Rio de Onor vê-se este sistema no telhado comum de várias casas. Na região de Vinhais ainda se usa muito o colmo, sobretudo na cobertura de palheiros, e o mesmo sucede no Barroso, Alvão e Larouco, na faixa de transição para a área atlântica; mas aqui as casas mostram cápeas e guarda-ventos que as aparentam com a casa serrana do Noroeste.
324Na área do xisto são frequentes os beirais deste material, sobre os quais assenta a telha; e mesmo nas zonas de contacto vêem-se casas com paredes de granito que têm esses beirais de xisto. Na Mofreira, no extremo norte do concelho de Vinhais, além dos beirais, também a parte inferior das águas dos telhados é de xisto, enquanto o alto é de telha; estes telhados tomam aspectos curiosos, pois é ali vulgar segurarem as telhas com blocos de quartzo muito brancos. Pelo seu lado, no Alvão, o colmo termina em baixo num beiral de telha, assente numa espécie de cornija feita de lâminas de granito bem afeiçoadas89.
325Na Lomba de Vinhais e na Lombada de Bragança as placas de xisto que formam o cume engrenam umas nas outras em dentes nelas cavados, para desse modo se firmarem. Em Vinhais o colmo é seguro por paus amarrados com cordas de palha e em Lagoaça (Freixo de Espada à Cinta), o cume dos palheiros cobertos de colmo é feito de pequenas manadas ou feixes que emergem alternadamente acima do ângulo formado pelas duas águas do telhado.
326Estes telhados não mostram quaisquer elementos decorativos, e mesmo as chaminés são raras e de divulgação recente. Dão a estas o nome de chupões ou bueiros, e são geralmente baixas, com a forma de paralelepípedos estreitos, ou, muito mais raramente, de pirâmides truncadas. Onde a cobertura é de xisto, é também desse material que fazem os chupões ; nos outros casos eles são normalmente de chapa.
327Na povoação de Felgar (Moncorvo), onde existe uma pequena indústria caseira de olaria, utilizam como chaminés as partes superiores de potes ou talhas partidas, colocadas sobre o telhado. Quando não existe chaminé, o telhado fica em telha-vã ou o forro deixa um espaço aberto sobre o lar, por cima do qual levantam algumas telhas.
328O elemento fundamental destas casas, e que marca sem dúvida a sua originalidade, é a varanda, que se pode considerar de uso absolutamente geral, e que, embora comparável à varanda da casa do Noroeste, mostra características próprias e especiais.
329A varanda não tem lugar definido na casa transmontana.
330Nas casas com curralada lateral, a varanda situa-se na fachada que dá para esse lado, e a escada que ascende a ela nasce do portal alpendrado e pode dispor-se no seu prolongamento encostada àquela fachada, ou perpendicular a ela, a meio ou num dos seus topos.
331Se a curralada ou pátio é no meio da casa, a varanda corre geralmente ao longo das três ou quatro fachadas que a circundam, ao nível do andar; e a escada de acesso parte do vestíbulo do térreo. Muitas vezes, além desta, existe outra varanda exterior, sobre a rua ou sobre a outra fachada.
332Nas casas contíguas umas às outras, mais ou menos estreitas, que bordam as ruas das aldeias, as varandas geralmente dão para esse lado, ocupando toda a parte da fachada, apenas a um lado ou a meio dela, ora em recuo, assentes na parede mestra, ora à face desta, ora salientes, apoiadas, nestes últimos casos, em varões de pau ou ferro, esteios – às vezes simples blocos ou lascas em bruto – ou cachorros de granito ou xisto. Não raro também a varanda assenta apenas nas pontas salientes das traves do soalho, sem qualquer apoio no solo; e muitas vezes os seus baixos servem de arrumação ou alpendre, galinheiro ou pocilgas, e até de taberna ou oficina. Excepcionalmente, em certas terras, a varanda situa-se preferentemente nas traseiras da casa.
333A varanda é sempre coberta pelo telhado ou por um seu prolongamento; quando ela é comprida, o frechai que lhe corresponde pousa em prumos que se erguem do peitoril, geralmente simples barrotes de madeira postos ao alto, com cachorros do mesmo material, por vezes rudimentarmente decorados, outras disfarçados sob galerias de fantasia; mas, em casos mais raros, esses apoios podem ser belas colunatas de pedra.
334Como grades ou resguardos, estas varandas podem mostrar apenas um varal horizontal, apoiado em prumos espaçados ou em balaústres, que podem ser lisos ou vazados e abertos em arabescos e desenhos vários, ou ainda em grades de ferro, simples ou com lavores. Em certas regiões usam-se também grades de ripas ou uma vedação de tábuas de forro. Nas casas urbanas, onde a varanda é também o elemento característico, a grade é geralmente de balaústres lisos; mas em Vila Real vêem-se ainda alguns exemplos de rótulas, com caixilhos móveis de tabuinhas, como certas gelosias.
335Quando as casas têm mais de um andar sobradado, encontra-se geralmente no último uma varanda que, normalmente, é estreita. Não é raro mesmo verem-se varandas sobrepostas, às vezes de tipos diversos, nos dois ou mais andares do prédio.
336A varanda no andar superior é uma solução frequente na casa urbana transmontana, nas cidades e vilas da província, e até em certas aldeias de feição urbana; deste tipo são particularmente notáveis as casas de Lebução, no concelho de Chaves, e de Carrazedo de Montenegro, no de Valpaços. E o costume tem uma força tão grande que se vêem varandas que se elevam acima do telhado ligadas à casa apenas por uma porta que abre para o sótão.
337Pela sua função e forma geral, a varanda transmontana aproxima-se, como dissemos, da varanda minhota. Num caso como no outro, os antigos « nela espadelaram e fiaram o linho, seroaram no Verão, secaram o cereal, estenderam a roupa, guardaram a alfaia, rezaram o terço, fizeram as bodas » ; ela serve de refugio no Verão, de repouso nocturno, de agasalho no Inverno; e até nela se põem os vasos de flores que o povo tanto aprecia. Mas ela difere essencialmente daquela: enquanto a varanda minhota é larga e assenta normalmente em grande pilares e padieiras de granito, a transmontana é toda de pau. A varanda minhota é, na verdade, um anexo da lavoura; em Trás-os-Montes, para lá desse aspecto, que tem aliás grande relevo, ela é uma parte integrante da casa, relacionada além disso com a vida doméstica e colectiva da aldeia; a varanda transmontana tem a mesma natureza, em ambos os casos, e, sobretudo na varanda alta e estreita – desconhecida no Minho –, sobreleva mesmo o carácter urbano.
338Interiormente, a casa transmontana não apresenta quaisquer particularidades distintivas. Como na área atlântica nortenha, também aqui a cozinha é a divisão essencial da casa, onde decorre o mais importante da vida de relação familiar. Ela situa-se geralmente no andar, e, como a chaminé é rara, é de telha-vã, para permitir a saída do fumo. Na ponta extrema do Nordeste da Província a cozinha é frequentemente mais pequena e o lar fica, em certas regiões, no centro do compartimento. Ela abriga, como no Minho, geralmente o forno; mas nas aldeias serranas onde se conservam costumes comunitários o forno caseiro não existe, porque toda a gente coze no forno comum do povo. No Barroso o forno comum é, por vezes, uma sólida construção rectangular de granito geralmente bem aparelhado e com as paredes reforçadas com poderosos « gigantes » e coberta de grandes lajes da mesma pedra, servindo tradicionalmente de lugar de reunião dos homens no Inverno, e de pernoita de mendigos.
339Como no Noroeste, também na cozinha transmontana se vê sempre, ao lado da lareira, um grande banco – o escano –, que em terras de Miranda é de dimensões muito avultadas.
340É usual na cozinha transmontana o cubo ou embúdio, funil que comunica com a pia dos porcos, no rés-do-chão, por onde se lança a vianda para esses animais.
341No Alto Douro – a Terra Quente mais qualificada – predomina a construção de xisto, com as suas características usuais; mas aqui, com grande frequência, e progressivamente, as casas vão sendo rebocadas e caiadas. Os telhados são normalmente de quatro águas, vendo-se os de duas – e por vezes mesmo os de uma só – em adegas, cortes e outras dependências isoladas, ou em casas mais modestas ou recentes. Muitas vezes os telhados são caiados de branco, em toda a sua superfície ou apenas em faixas que alternam com a cor natural da telha. Nas casas melhores é corrente a grande chaminé larga, numa fachada de topo. Como se trata de uma região de grandes desníveis bruscos, são frequentes, isoladas ou nas aldeias, casas muito altas, em que, nas traseiras, o andar superior fica também ao rés-do-chão.
342O elemento mais característico da casa desta região é o andar de tabique, geralmente em ressalto sobre a parede de pedra do rés-do-chão, apoiado nas pontas salientes das traves do soalho, em varões oblíquos de ferro, ou em pilares de pedra.
343Estes tabiques, no sistema de fasquio, caiados as mais das vezes de branco e com as esquinas, faixas e guarnições de madeira pintada de cores berrantes ou, outras vezes, revestidos de lousa, apresentam-se ora como um simples andar, recoberto pelo telhado normal da casa, de quatro águas, ora como um acrescento de fantasia, com um telhado de duas águas muito inclinadas e de entablamentos rendilhados, como uma espécie de grande trapeira. Esta última forma, que, embora muito corrente, tem sempre um aspecto estranho à paisagem natural, parece filiar-se num tipo que se divulgou nesta área a partir dos fins do século passado, conhecendo então grande voga, e enxertando-se e adulterando a linha arquitectónica mesmo de belas casas solarengas de andar corrido; mas ela prolonga uma antiga tradição, mais pobre e singela, da construção regional, enriquecida com elementos de importação estrangeira. Com efeito, por certas zonas do concelho de Castro Daire e São Pedro do Sul, na bacia do Paiva, encontram-se ainda casas ou palheiros muito velhos com a fachada frontal do andar de madeira. Sobre um rés-do-chão de pedra, esse tabuado ora fica à face da parede ora em avanço sobre a rua, apoiado apenas nas traves do soalho ou, se a saliência é maior, em barrotes postos a prumo; com muita frequência a madeira firma-se mesmo entre os topos das paredes laterais de pedra, que ficam à vista; e o telhado que recobre este corpo é geralmente de duas águas. O parentesco com o acrescento de tabique duriense parece evidente, e cremos que é legítimo estabelecer uma área deste tipo de construção compreendendo as povoações que sobem as encostas do Douro médio vinícola e as regiões confinantes das Beiras.
344A varanda é, aqui também, muito frequente; ora se apoia em grossos pilares de pedra ora, saliente ou recolhida, se situa a meio da fachada, com um cubículo de tabique em cada uma das suas extremidades e o conjunto coberto pelo telhado normal da casa.
345Em casas de proprietários abastados ou medianos, isoladas das demais e construídas em terrenos declivosos, a entrada situa-se geralmente nas traseiras ou ao lado, ao nível do solo, ou com um curto lanço de escadas exteriores. No rés-do-chão ficam as adegas e lagares ou armazéns, com portal largo a abrir para o caminho, para a entrada e saída de cascos. A cozinha é umas vezes incorporada no bloco principal da casa e outras situada numa ala saliente, sendo então térrea e de telha-vã ; sobre a lareira, a grande saia da chaminé, em cujo rebordo se vêem pousadas as tigelas da sopa dos trabalhadores. É vulgar existir uma escada interior, da cozinha para a adega.
Zona interior das Beiras
346A casa popular típica da região beiroa interior rural, área de granito e xisto como o Minho e Trás-os-Montes, tem os caracteres gerais da casa nortenha que atrás descrevemos. Como elas, é uma construção de térreo e andar sobradado, de planta rectangular, de pedra geralmente à vista e sem cimento: em blocos rudes, por vezes com as guarnições de portas e janelas caiadas de branco, mostrando as lojas de gado, celeiros, lagares, etc., nos térreos e a parte da habitação das pessoas no andar sobradado. A escada exterior é igualmente de pedra, nos termos descritos; ela situa-se na frontaria da casa, a partir da rua, e leva à varanda ou patamar coberto – o balcão –, que, como nas regiões mencionadas, serve igualmente de sequeiro do milho ou madureiro de fruta, e onde se malha o feijão e se dorme nas noites quentes de Verão. O seu tejadilho apoia-se geralmente em prumos de madeira, mas aqui – e sobretudo nas zonas graníticas a nordeste da região – abundam belos exemplares com guardas lavradas e colunas de pedra, num modesto neoclassicismo que é corrente na nossa arquitectura popular.
347Sob o balcão rasga-se geralmente a porta da entrada para as lojas; e é também aí que, muitas vezes, se situa o galinheiro ou poleiro.
348Parece predominarem os telhados de duas águas, embora não sejam excepcionais nem raros os de quatro. A cobertura mais vulgar é de telha, que nas regiões ventosas é segura com grandes pedras ladeiras; mas em zonas de xisto ela é, em muitos casos, desse material. O colmo e a giesta, de um modo geral, são menos correntes; quando se usam, são presos por ramos atados a pedras com cordas de palma.
349Em certas casas melhores o portão de entrada, que não raro mostra belos ornatos arquitectónicos – pináculos, cruzes, etc. –, com o seu coberto onde no Outono se seca a fruta, precede ou segue-se à frontaria, abrindo para um pátio ou terreiro – o zagão – onde se empilha o mato. Para este pátio, muitas vezes dá a varanda; e é sempre para ele que abrem as cortes do gado. E também nele que, em certas regiões, se encontra o forno do pão, redondo e de cobertura cónica, com dois tijolos cruzados sobre a boca, para protecção da fornada.
350Na região da Guarda, Sabugal, etc., algumas casas de maior vulto desenvolvem-se mesmo em volta desse terreiro. Com frequência o gado é alojado em palheiros independentes da casa, que se situam ao lado dela, e que são geralmente duma construção semelhante mas mais precária.
351Interiormente, estas casas pouco se distinguem daquelas que descrevemos, próprias das outras regiões nortenhas. Aqui, também, a divisão fundamental é a cozinha que, contudo, é geralmente mais pequena do que na casa do Norte, tendo porém, do mesmo modo que ali e em termos idênticos, como peça fulcral a lareira onde se preparam as refeições e se convive.
352Os quartos são quase sempre pequenos, muitas vezes no tipo de alcovas-cubículos; e a sala, quando existe, tem também sobretudo natureza cerimonial. Aparece uma divisão com funções múltiplas e imprecisas e com uma designação especial – o meio da casa : ora faz as vezes da sala, sendo o compartimento de luxo da casa, situado à entrada, ora é um local central e amplo, de serviço, onde come o pessoal assalariado, ceifeiros ou « homens à geira », e onde se encontram as cantareiras, ora ainda uma simples sala se trabalho; ultimamente o meio da casa tende a ceder o lugar a um corredor. Finalmente, em muitos casos, sobre o forro dos quartos e da sala existe um sótão ou sobrado, com acesso pela cozinha por uma escada fixa ou móvel, e que serve de arrecadação diversa, de fruta, batatas, cebolas, feijão, tulhas de cereal, etc.
353Carácter também de tipo de transição entre a habitação nortenha e a do Sul alentejano nota-se na casa do Sudeste da província beiroa, nas várias sub-regiões do distrito de Castelo Branco. Na serra e na « Charneca » – terra muito pobre no recanto sudoeste do distrito – as casas relacionam-se ainda com o tipo nortenho, da cordilheira central e da Cova da Beira, escuras, defumadas, precárias, e mostrando ainda, por vezes, escadas exteriores de pedra; mas no « Campo » e na « Arraia », na zona fronteiriça ao sul da Gardunha, embora sejam, como no Norte, de andar sobradado, elas têm, como no Sul, uma função especializada e exclusiva de habitação : os térreos já não se destinam ao abrigo dos gados, que são recolhidos em dependências próprias – os palheiros – afastados das casas e reunidas em conjunto a um topo da aldeia. Além disso, não possuem alpendre, varanda nem escada exterior, e a cozinha situa-se sempre no andar. E vemo-las já caiadas interiormente, com o aspecto limpo e cuidado que falta no Norte e é a nota dominante da casa do Sul.
354Numa região de granito, xisto e terrenos terciários, a construção popular utiliza estes materiais, e é por eles modelada; aparecem casas de pedra, de uma ou outra espécie, alternando às vezes o xisto e calhaus rolados, e casas de adobo nas manchas de terciário.
355Os telhados são geralmente de duas águas pouco inclinadas, com cobertura de telha e sem chaminés; nas paredes exteriores, de pedra à vista, são caiadas ora apenas as molduras das portas e janelas, ora uma faixa na fachada, ora toda esta; mas é na verdade preciso passar o Tejo, para se encontrar «a casa rebocada, caiada, provida de chaminé, geralmente térrea, muito branca e graciosa», segundo os termos com que Orlando Ribeiro define a casa do Sul.
356Como aspectos, formas, ou variantes regionais desta categoria geral de casas, ou como tipos locais especiais, apontaremos, no pendor meridional da Estrela, as varandas de madeira, que aí são muito abundantes; na aldeia de Cortes, por exemplo, elas apresentam-se por vezes como uma balconada corrida, em três ou mesmo nas quatro fachadas da casa; nesta povoação, além disso, vêem-se casas estreitas e altas, não raro com três pisos, dos quais apenas o rés-do-chão não é de tabique, e com a varanda no último, recoberta por um beiral muito saliente que forma tejadilho sobre ela. Por outro lado, na aldeia serrana de Vasco Esteves, no concelho de Seia, situada no fundo de um vale muito encaixado, casas de três, quatro e até cinco pisos, com as adegas, lojas, cortes de gado, estabelecimentos, etc., no rés-do-chão, salas e quartos nos andares a seguir, e, no último, a par destas divisões, a cozinha; no forro, as arrumações, lenhas, etc.
357No Paul dominam as casas de três pisos, o primeiro destinado aos gados, alfaias e arrecadações, os outros dois ligados à habitação por uma escada interior de madeira. As paredes são não raro de calhaus rolados, intercalados com rachas de xisto, argamassados com barro, e com cunhais, vergas e ombreiras de granito. As varandas de pau situam-se no último piso, corridas a toda a largura da fachada, com balaústos de madeira por vezes muito recortados. Nas paredes dos andares superiores usa-se a taipa de ripado e barro.
358Em Piódão, as casas estão implantadas em terreno de forte declive e mostram geralmente três pisos, com acesso directo, aproveitando o desnível desse terreno. São feitas de xisto, com dois paramentos, um exterior de pedras maiores, o outro interior, de pedras mais pequenas; entre os dois o espaço é preenchido com cascalho e terra. As padieiras de janelas e portas são feitas de troncos de castanheiro falquejados. As coberturas são de lajes de xisto com juntas tomadas com terra. A espessura das paredes diminui gradualmente do primeiro para o último piso, criando um pequeno degrau onde assenta o vigamento.
359A ocupação desses três pisos é perfeitamente diferenciada: rés-do-chão para animais, médio para as pessoas, e último para armazenagem dos produtos da terra.
360Em Malpica do Tejo o xisto fica à vista, com os vãos rebordados a cal, ligados verticalmente quando sobrepostos. Não existem escadas exteriores nem varandas. As casas são caiadas por dentro, impecáveis de asseio, com pavimentos amarelos, de barro e bosta, muito lisos e limpos, e cantareiras praticadas nas paredes onde se colocam louças em prateleiras de xisto. A cozinha situa-se no andar; a sala, no rés-do-chão.
361Além disso, como dissemos ao tratar da casa popular do Alto Douro, a faixa setentrional destas terras beiroas e certas regiões da serra da Estrela estão incluídas na área típica do tabique exterior, do tipo que descrevemos, semelhante ao do Douro vinícola.
362Finalmente, nos núcleos urbanos da Beira Baixa, tais como a Covilhã, o Fundão, etc., encontra-se também com profusão o tabique exterior – a taipa beiroa – caiado de branco, que dá uma fisionomia muito especial às velhas ruas dessas terras; predominam aí os telhados de duas águas, e vê-se com frequência a varanda de pau no último andar, do tipo transmontano, bem como, em casos actualmente raros, rótulas nas pequenas varandas individuais. São também muito característicos os largos beirais de madeira com os caibros à vista, pintados de vermelhão.
Notes de bas de page
1 Por toda esta área, porém, como dissemos, e correspondendo a um nível económico inferior, encontram-se com grande frequência casas elementares térreas, mas do mesmo estilo rude e primitivo das outras. Em terras da Maia, aparece um tipo de casa térrea que também nada tem de elementar, e que é ali um tipo local muito definido; ele oferece um plano característico, que adiante mencionaremos, composto de sala e duas alcovas, com um corredor entre elas, conduzindo à cozinha, e um alpendre lateral aberto, com dois corpos nos seus extremos, o da fachada principal recoberto por uma ala especial do telhado.
Por outro lado, e igualmente difundidos por toda a área norte, à mistura com os outros tipos, vêem-se, embora em menor quantidade, exemplares característicos de casas-torres, de planta quadrada, com altas paredes maciças e raras ou nenhumas aberturas nos baixos, além da porta.
2 O duplo aparelho encontra-se já na construção castreja, que mostra geralmente o exterior mais cuidado – no tipo poligonal ou helicoidal –, e o interior em blocos miúdos ; mas então desconhecia-se o sistema dos « juntouros ».
3 Vitrúvio, II-I. Segundo Dauzat (op. cit., pág. 54 e também 50 e 53 – vide nota 1 da pág. 2). o sistema de travejamento com cume deve ser de invenção gaulesa (certa) e não germânica.
4 Demangeon (op. cit., pág. 264) fala no «ar de uniformidade impessoal que resulta do emprego de materiais de formas geométricas e bem calibradas», que é precisamente o caso a que aludimos.
5 Com efeito, no Norte, a chaminé nos níveis populares falta nas regiões mais arcaizantes, e mesmo nas terras baixas mas evoluídas, as informações concordam em indicar a sua maior generalização há cinquenta anos para esta data.
6 Isto sucede quando a cozinha fica incorporada no bloco da casa, cujo telhado tem então três águas.
7 A chaminé pequena, estreita e alta parece, por toda a parte, ser de introdução recente, e por via urbana, embora mostre em algumas partes uma certa tendência a generalizar-se.
8 Wilhelm Giese, «Algumas palavras sobre janelas e ralos nos Açores », in : Açoriana, Angra do Heroísmo, 1938, vol. II, n.° I, págs. 21-22.
9 É precisamente a partir da consideração destes três elementos combinados: o díptico essencial térreo para lojas e andar para habitação, a escadaria exterior e a varanda assente sobre colunas ou pilares – de facto, o emprego da coluna na construção em geral – que Frankowsky formula a sua hipótese explicativa da casa deste tipo, a que dá o nome de «casa portuguesa», que filia nas construções palafíticas, entendendo que estas corresponderam a uma civilização lacustre muito largamente difundida no Noroeste Peninsular, e da qual restam numerosos vestígios e sobrevivências em achados arqueológicos, nas lendas de cidades submersas, frequentes na Galiza, neste tipo de casa, e ainda nos « hórreos » asturianos e nos espigueiros galaico-portugueses, que além disso ilustram o processo evolutivo desse tipo de construção, a partir dos «canastros» de vime, até aos espigueiros de madeira e, finalmente, os de pedra. Segundo o mesmo autor, esta casa nortenha derivaria, assim, duma primitiva casa de madeira, onde os traços característicos que apontamos corresponderiam a funções necessárias. – Cfr. Eugenius Frankowsky, Hórreos y Palafitos de la Península Ibérica, Madrid, 1918, págs. 135-6.
10 Noutros lugares, a parede que esconde a varanda, de perpianho esquartejado em fiadas de igual altura, apoia-se em pilares e compridas padieiras, sendo este conjunto que geralmente faz a fachada principal da casa, virada para a estrada.
11 Nas casas de pescadores da ilha de Marken, no antigo Zuiderzee (Holanda), onde as acomodações eram muito precárias – apenas uma divisão de entrada, servindo a cozinha e quarto com duas alcovas contíguas –, vê-se uma pequena sala lateral que serve unicamente para nela se disporem os objectos de adorno e decoração mais ricos da família; uma das alcovas, do mesmo modo, é apenas de aparato, e enquanto a gente nova dorme no chão, exibem-se nela as cobertas e travesseiras de luxo, das bodas do casal. É assim, aqui também, um expressivo exemplo do predomínio, na casa, do elemento cerimonial sobre as considerações de utilidade funcional (ver adiante Casas de Pescadores da Póvoa de Varzim.
12 Em algumas zonas litorais mais progressivas, há umas dezenas de anos a esta parte, assiste- – se ao desaparecimento progressivo da lareira baixa – os lares de Canidelo (Vila do Conde), e as pedras da lareira de Montedor (Viana do Castelo) – e à sua substituição, para maior comodidade de quem cozinha, por um verdadeiro estrado de pedra, de cerca de 70 cm de altura.
13 Por Vila do Conde dão também a esta peça o nome de poial : e por um lado, em vários lugares, chamam trafogueiro aos utensílios de ferro que servem para levantar ? a lenha que arde, ou ao barrote pendente do travejamento, sobre o qual se pousa a lenha que serve para secar ao calor do fogo.
14 À qual em Montedor chamam lar.
15 Em Canidelo (Vila do Conde), chamam forninho a este forno mais pequeno e é ele que se utiliza quando « cozem de arroba».
16 Por exemplo, em Krefeld, na Alemanha Ocidental. Vide Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, Alguns Elementos das Casas de Matosinhos, Maia e Vila do Conde.
17 Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, Sistemas de Atrelagem dos Bois em Portugal, Lisboa, Centro de Estudos de Etnologia, 1973.
18 A pintura deve, com efeito, ser recente, e originariamente as madeiras deviam estar na sua cor natural ; é o que se depreende da comparação com inúmeras casas vizinhas, onde assim sucede, sempre que os madeiramentos estão à vista.
19 Um pequeno ferro onde entrava a dobradiça no canto inf. esq. dos alizares da janela sobre a eira, e o mesmo ferro, tendo ainda a própria dobradiça, no canto sup. esq. dos alizares da janela do quarto maior ; em todos os outros alizares vêem-se nitidamente os sinais da cravação das restantes ferragens, hoje desaparecidas. Tais ferragens aparecem, de resto, com muita frequência – e às vezes muito completas –, em casas desta época.
20 Numa outra casa deste tipo, também em Aldoar, ainda se encontram portadas destas em uso (des. 16).
21 Não vemos razões para supor que a casa, embora de construção independente de tal portal, seja de data posterior a ele; pelo contrário, o corpo principal e primitivo da casa, que é certamente antigo, situa-se no centro rural que justifica o portal, e é, portanto, talvez até um pouco anterior a este. Se a data se refere a obras posteriores (que houve, certamente, v. g. o corpo situado no topo do patim), elas não afectaram esse corpo principal anterior, que já existia – e que constitui a casa-tipo que nos ocupa.
22 Numa parte da casa, que adiante analisaremos, a caiação é feita directamente sobre a pedra, sem argamassa; mas cremos que esta parte é mais recente do que o restante, e que o pormenor que aqui apontamos é mais uma razão a apoiar esta nossa suposição.
23 Alhar é um móvel ou uma parte da cozinha, atrás do banco que ladeia a lareira, onde se guarda a lenha.
24 Os actuais proprietários falam de « obras » feitas na velha casa, pelos seus avós, para a construção deste cubículo – que, portanto, não é da primitiva traça; segundo eles, a escadaria original apresentava um pequeno patim em cima, na altura da porta de entrada, e lanços para cada lado dispostos simetricamente, de que se conservou apenas um. Na verdade, exteriormente, a construção do cubículo é diversa da da casa.
25 Vimos que, em Aldoar, dá-se este mesmo facto, em relação, como aqui, à parede de topo do patim (donde concluímos que a construção da escadaria e patim era, de certo modo, independente da do resto da casa) ; e em Nevogilde, o acrescento do cubículo fez-se sobre o patim ; aqui, porém, a ser exacta a informação dos actuais proprietários que consignámos na nota anterior, passou-se coisa diferente : o cubículo representa, como em Nevogilde, uma construção ulterior, mas que se fez desde a base e não apenas desde o patim, visto que o que existia primitivamente era uma outra escadaria, de dois lanços. De facto, não existe nenhuma divisória horizontal, que marcaria o parapeito do antigo patim, como se vê em Nevogilde.
26 Existe aí uma casa grande, com uma única escadaria e patim, mas cuja divisão interior se apresenta como se fossem duas casas iguais às que descrevemos, entre as quais se intercalam mais dois compartimentos que estabelecem a solução de continuidade; cada uma dessas partes mostra muitos dos pormenores fundamentais que temos apontado – o plano interior com a sala e os dois quartos e o sistema de travejamento dos tectos de masseira, com os barrotes decorados, etc. ; nota-se, porém, que a escada interior se situa numa das divisões intermédias que mencionámos, e não num dos quartos, e, principalmente, que a cozinha ocupa um edifício não só de construção independente mas mesmo separado do corpo da casa (des. 14). Ouvimos aí chamar a esta Casa de Casal, por oposição às outras, a que chamaram Casas de Meio Casal. O acesso faz-se, como nos demais casos, por um portal alpendrado que abre para um terreiro para o qual dão as várias dependências da lavoura, a cozinha, a casa, etc., e, num dos lados, a passagem para os campos de cultura. Em Nevogilde vimos também casas deste género; numa delas encontra-se a escadaria de dois lanços, que mencionámos na nota 1 da pág. 56 ; a casa foi, porém, muito remodelada, do que resultou ficar de certo modo confusa (des. 15). Na outra, que é de resto uma casa extremamente complexa, combinam-se elementos destas casas, adaptadas a circunstâncias especiais, com elementos das casas da Maia.
Parece ter havido um certo número de casas com patim curto, a que se ascendia por um lanço de escadas, ou por dois, como na atrás citada. Esta variante já não é visível, em virtude da construção do cubículo junto ao umbral da casa, mas perdura ainda na recordação de alguns moradores.
27 Não podemos dar razões decisivas para esta suposição ; de facto a casa de Aldoar parece mais antiga do que as demais, mas este carácter aparente infere-se de pormenores difíceis de precisar : o género de talha do nicho, menos exuberante do que a talha joanina, o tipo das colunas, baixas e rudes, um tom geral de vetustez, etc.
28 Esta cronologia parece-nos inteiramente de aceitar. Vimos já que a inscrição do portal da casa da Barranha fixa para esta, como data mais tardia, o ano de 1694, e que a de Aldoar lhe deve ser anterior – (vid. nota anterior) – portanto de plena segunda metade do século xvii. É certo que as actuais janelas destas casas são todas do sistema de guilhotina, que se difundiu em Portugal apenas depois dos princípios do século xviii – mais concretamente, a seguir ao afluxo de gente inglesa que aqui, especialmente no Porto, veio instalar-se após a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703 (vid. Wilhelm Giese, «Algumas palavras sobre janelas e ralos nos Açores », in : Açoriana – Revista de Estudos Açorianos – Boletim da Sociedade Afonso Chaves, Angra do Heroísmo – Açores, vol. II, n.° 1, 1938, págs. 21-22). Mas mostrámos também que nelas existiam primitivamente portadas exteriores, hoje desaparecidas, donde concluímos que a vedação original deve ter sido pelo velho sistema português de janelas com portadas exteriores e interiores, sem vidraças e que, portanto, as janelas de guilhotina são certamente uma inovação mais moderna do que a construção primitiva, em certos casos mesmo – como o de Barranha – averiguadamente recente. A ausência de vidraça vê-se ainda no rasgo que ilumina a escada interior, que não tem qualquer resguardo.
Isto de resto concorda com o que se depreende da comparação que a seguir faremos destas casas com as casas da Maia do tipo B (Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da Maia», in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XV, fasc. 1-2, págs. 55-72), para as quais fixámos a data geral da segunda metade do século xviii – um século, portanto, mais novas do que estas, que de facto lhes são anteriores lógica e morfologicamente e, portanto, também cronologicamente.
29 Tal como sucede com as casas da Maia do tipo B, mencionadas na nota anterior (op. e loc. cit., pág. 64), que são sempre à face da rua, mas que voltam para esta uma fachada só com janelas, dando a escadaria para o terreiro central, ao qual se ascende através de um quinteiro ou coberto que se segue à casa, onde se rasga o portal, geralmente alpendrado, que abre para a rua.
30 No terreiro de quase todas estas casas encontra-se um poço, de guarda redonda e alta, feita de blocos de granito com a curvatura apropriada, e, muitas vezes, ainda com restos de sarilhos de tirar água.
31 Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, op. e loc. cit.
32 Ibid., pág. 71.
33 É também o que se passa com a casa do lugar de Santana (Leça do Balio), descrita no citado estudo, pág. 65, des. 7, com a diferença de que a escada interior se apresenta ainda como nas casas dos arredores do Porto.
34 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da Maia» in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XV, 1-2, Porto, 1954.
35 Com efeito, o estado actual da nossa investigação permite-nos desde já afirmar que ela ocorre em várias outras partes do País, nomeadamente na zona noroeste, embora não nos seja ainda possível delimitar exactamente a área mais vasta da sua difusão.
36 Vimos uma destas casas, em Freixieiro, em que, da loja que fica por baixo do quarto, sobe uma escada tosca e íngreme, que para ele dá acesso através desse alçapão. Na loja maior, o chão era em parte lajeado.
37 Um carpinteiro chegou a dizer não precisar tirar medidas à caixilharia das diferentes casas deste tipo, pois todas apresentam as mesmas dimensões. Por outro lado, aparecem inúmeras casas inteiramente novas e modernas, que repetem certos detalhes externos característicos deste tipo : planta em L, forma do telhado, escada, colunas, etc.
38 Já há tempo o Dr. Andrêa da Cunha e Freitas nos mostrara, em Moreira, uma casa deste tipo.
39 E especialmente digna de nota, a este respeito, a arrecadação, nesses quinteiros, do sargaço em pilhas. O tipo rural desta região é fundamentalmente o mesmo de toda a zona litoral do Minho : pequena propriedade de exploração directa, a que corresponde um povoamento muito disperso; horticultura e milho (e feijão), pouco vinho, gado vacum, pinheiro e mato, para adubo, que aqui se enriquece com produtos do mar – pilado e sargaço – cuja apanha constitui uma actividade característica da região.
40 Quando estas chaminés aparecem a meio, elas pertencem por via de regra a casas que sofreram um acrescento relativamente à sua primitiva traça, que terminava na altura da chaminé.
41 Conforme a seguir veremos, muitas destas casas apresentam um telhado de forma mais complexa, com uma ala lateral, que corresponde a uma planta em L ; nestes casos, as duas modalidades que mencionamos no texto, no que interessa à localização da chaminé, verificam-se no que respeita ao corpo principal do edifício.
42 No caso de chaminé de topo, a toda a largura da casa, ela tem mesmo três faces verticais de granito, e a outra, inclinada, de tabique.
43 Este prolongamento aproxima estas casas, exteriormente, das casas dos tipos A’ e B, da Maia (vid. estudo anterior).
44 Quando há dois destes cubículos, um deles é, por vezes, dividido a meio, e uma das metades utilizada como retrete.
45 As varandas abertas parecem ser mais frequentes nas freguesias afastadas do mar. Não será já a passagem para as casas de varanda aberta do interior do Minho ? Em Gemezes de Cima vimos uma com um ripado de levantar, que quase a transforma num varandão para secar produtos do campo.
46 Não só na sua estrutura e decoração são estas salas, com muita frequência, peças dignas de nota pela sua beleza e estilo; o seu mobiliário, que se repete com muita regularidade, acentua a uniformidade desse estilo, e o seu carácter local. Assim, em todas elas se encontra um relógio alto, de parede, de mostrador ornamentado, uma ampla cómoda, geralmente de vinhático, um santuário com talha, uma arca, etc. Este mobiliário, de resto, contrasta com a modéstia dos móveis das demais divisões da casa.
47 Quando o terreno é inclinado, a cozinha fica geralmente no lado mais elevado, e as lajes do lar estão assentes no chão. Quando a cozinha é alta assentam sobre o entulho dum espaço roubado às lojas.
48 E mesmo nas zonas rurais suburbanas da própria cidade do Porto.
49 Este género de portal abunda, como é natural, por toda a região, vendo-se em Calquim (Gondim) um exemplar datado de 1624, que se liga à casa a que pertence por uma ponte de pedra privativa, atravessada sobre o caminho público. Do século xvii, vimos mais alguns, em outros lugares (Perafita, 1690 ; Barranha, Senhora da Hora, 1694 ; etc.) ; do século xviii existem muitos, não raro com belos trabalhos de cantaria, e um ou dois bancos encostados aos muros laterais (Freixieiro, 1727 ; Perafita, 1794 ; etc.). Vêem-se também, com muita frequência, portais monumentais, com motivos correntes de arquitectura civil e religiosa do século xviii ; e, por outro lado, portais singelos, abertos em muros de campos ou quintais, contíguos ou separados de casas dos vários tipos que existem na região. Neste caso, eles são muitas vezes recobertos por um alpendre autónomo, geralmente de duas águas – e, em exemplares mais ricos ou mais recentes, também de quatro –, com o seu cume corrido sobre o rasgo do portal. No Largo de Nevogilde, já no termo do Porto, vê-se um deste género, muito restaurado, datado de 1692. Note-se também que esta forma particular ocorre com grande regularidade em alpendres de portais de terras de lavoura na região litoral ao norte de Esposende.
50 É este o tipo de portal alpendrado que mais abunda por toda a região, encontrando-se exemplares de todos os níveis, desde os mais simples e toscos aos mais elaborados. São muito numerosos os que se apresentam datados a partir de meados do século xviii, e em Santa Cruz do Bispo existe um, de aspecto vetusto, de 1710, com um banco ao lado; em Silva Escura, outro, de 1713. A sua simplicidade não exclui, por vezes, certos ornatos, tais como datas ou iniciais ou símbolos religiosos, com elas combinados, no fecho das padieiras ; em Silva Escura, por exemplo, um outro portal, oitocentista, mostra, num dos lados, uma mísula ou cachorro e, embora rara e excepcionalmente, alguns há de proporções avultadas. Este último caso dá-se nomeadamente quando o alpendre abre para qualquer largo ou espaço público mais amplo do que o caminho, apresentando-se então de três águas, com as travessas de apoio, oblíquas, firmadas na base das ombreiras.
51 Estes portais de coberto, quadrangulares e formando recanto reentrante alpendrado, uns muito profundos, altos e largos, outros apenas da espessura da parede em que se situam, com dois, um, ou sem bancos laterais, por vezes muito toscos, encontram-se também espalhados por toda a região, e, embora não se possam considerar em extremo abundantes, são muito característicos. Foi no Paiço que vimos o exemplar mais antigo, datado de 1730 ; e em Freixieiro, Labruge, Gueifães, Gondim, etc., outros existem também do século xviii. No Paiço, existe um destes vestíbulos, em que um dos lados é uma parede construída propositadamente para apoiar o alpendre, o que mostra claramente a força de apego a essa forma cultural ; e o mesmo se depreende do facto de aparecerem alpendres destes muito recentes, afirmando a persistência de um estilo que as circunstâncias de modo nenhum exigem (por exemplo, na Aveleda, um, de 1945).
52 Na sua forma típica perfeita, estes alpendres são porém muito pouco frequentes. Existem alguns em Angeiras e em Perafita, e no Paiço um, especialmente formoso e vasto, mas anómalo em relação ao tipo descrito. Em Gondivinho, perto de Esposade (Custóias), vê-se um, muito característico, aberto numa dependência anexa à casa principal, mas que tem andar (fig. 6, ao centro).
53 Já nos referimos a alguns, nas notas da pág. 89 ; notaremos as molduras no portal de recanto do coberto duma casa de Calquim (Gondim), datado de 1872 ; um belo fecho de padieira, com desenho, em São Salvador ; e em especial o portal vestibular de Gueifães, enorme, com um banco e uma prateleira de pedra, corrida, do outro lado, datado de 1756.
54 Assim como os portais do mesmo género, de coberto ou outras dependências acessórias, também os portais quadrangulares simples, de fachada, são naturalmente muito abundantes. Vimos um, em Casal (Silva Escura), datado de 1691.
55 Vimos casos destes em Labruge, Lavra, Santa Cruz do Bispo, etc., e um, com dois bancos muito toscos e a inscrição da data de 1765, em Casal (Silva Escura). Mas a despeito desta disseminação, e embora, como os de coberto, deste género, os portais deste tipo se possam considerar característicos da região, eles não são frequentes.
56 Por vezes, encontram-se portais deste tipo de forma irregular ; mas eles abrem-se então geralmente não na própria fachada da casa, mas em qualquer edifício anexo, de andar, palheiro ou arrumação, que é sempre um acrescento ulterior construído sobre a parede do primitivo coberto térreo. Quer dizer : esses portais irregulares não eram originariamente portais de fachada, mas sim de coberto.
57 Encontramos o arco na fachada das casas do tipo especial que descrevemos, em Gonçalves, Santa Cruz do Bispo, Pedras Rubras, Labruge, Lavra – onde um dos exemplares mostra uma concha de Santiago no fecho da padieira –, Perafita, Angeiras, Real (Modivas), etc. Todos os exemplares datados são do século xix (em Gonçalves, 1900, 1905 ; em Santa Cruz do Bispo, 1881 ; em Labruge, 187 ?), etc. Como exemplos de arcos que se abrem em toda a espessura da parede, formando como que um pequeno recanto, ao fundo do qual se encontra o portal propriamente dito, geralmente quadrangular, notaremos os casos de Modivas, datado de 1893, com bancos; Vermoim (Real), todo forrado a pedra, e com cantoneiras ; Gondim (São Salvador), com uma flor-de-lis no fecho, e um banco exterior, ao longo da parede da casa; Gião, rude e tosco; e principalmente no formosíssimo exemplar de Custóias, muito abatido, com os seus bancos de canto e o seu acabamento perfeito.
58 Como arcos de portais vestibulares de fachada, encontramos exemplares muito formosos em Labruge, com bancos de pedra, um com tecto de lajes e outro datado de 1898 ; em Freixieiro ; em Lavra; em Calvelhe, de 1902 ; em Aveleda, de 1883 ; em Real (Vermoim), de 1857 ; em Gueifães, de 1851 (foto 15) e 1884 ; etc., etc. E ainda o exemplar mais significativo e que nos parece lançar um pouco de luz sobre o problema das origens deste elemento tão característico e notável, que se encontra numa casa também daquele mesmo tipo, em Malta (Gião), datado de 1759 (foto 17), e de que nos ocuparemos no texto.
59 Como portal de dependências anexas, e principalmente quando à frente desse vestíbulo aberto, o arco é raro, e pode aparecer associado a quaisquer tipos de casas, tal como sucede com os portais quadrangulares (vide nota 1 da pág. 88). Contudo, dado o carácter marcado de elemento de luxo do arco em geral, ele é, mesmo quando portal de coberto, próprio em especial de casas de maior categoria – precisamente as casas do tipo que definimos de início, que são facilmente casas de certo vulto e maiores do que as outras. Por outras palavras: embora não se possa considerar elemento definitório desse tipo de casa, pode dizer-se que o arco aparece apenas aí, como portal de fachada ou mesmo de coberto, simples ou vestibular. Como exemplos de arcos simples, de coberto, podemos indicar um caso em Lavra, situado numa dependência de feitura esmerada; outro em Real (Vermoim), largo, num edifício sobradado anexo à casa, datado de 1882 ; e outro ainda em Real (Soutelo). Como exemplo de arcos em portais vestibulares, de coberto, citaremos o caso de Real (Soutelo), datado de 1888, largo e grande, com bancos, numa dependência contígua à casa – porventura o mais formoso, perfeito e característico de quantos vimos (foto 16).
60 O arco, em construções avulsas, aparece documentado na região, em formas elaboradas e complexas, nas portas das igrejas de Santa Cruz do Bispo e da Aveleda, no portal da Quinta de Santa Cruz, nos portais oitocentistas de certas casas de feição solarenga em Cabanelas e Silva Escura, com os seus pináculos e cruz embutidos, este último datado de 1834, e principalmente nas expressivas passagens abertas em túnel sob a torre sineira das igrejas paroquiais de Labruge, Lavra e Malta; em Lavra, essa igreja tem a data de 1721, e em Malta, a de 1637 ; mas em ambos os casos, o arco em questão parece ser de construção ulterior. Os arcos que rasgam paredes interiores, sobretudo para a passagem sob o andar, existem com grande abundância por toda a região.
61 Vide nota 1 desta página.
62 Vide nota 2 da pág. 88.
63 Vide nota 1 da pág. 92.
64 Vide notas das págs. 92 e 93. Mesmo nos casos que conhecemos onde o arco aparece em casas ou outros edifícios anteriores a essa data (à excepção dos portais monumentais em estilos ricos setecentistas) – como por exemplo a casa de Santa Cruz do Bispo, do tipo B da Maia, cuja cronologia computamos em meados do século xviii (Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da Maia», in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XV, fasc. 1 -2), e nas torres sineiras das igrejas de Lavra e Malta, datadas de 1721 e 1637, respectivamente –, ele parece fazer parte de alterações introduzidas posteriormente à construção primitiva.
65 Assim sucedeu, por exemplo, numa casa do lugar de Paredes (Mindelo), em que o lado das janelas foi aproveitado para a construção de três quartos pequenos. O des. 46 mostra a planta esquemática dessa casa antes da transformação.
66 O lavrador fazia segredo do estado de engorda destes bois. Por isso as cortes em que eles ficavam estavam muitoas vezes fechados à chave, e esta no bolso do dono, para nenhum estranho ter possibilidade de os ver.
67 Em Bencatel (Vila Viçosa) vimos um postigo de cortes abrindo para a cozinha.
Falaram-nos também deste elemento em certas casas de lavoura da Alemanha Ocidental, por exemplo em Krefeld, junto à fronteira com a Holanda.
68 Cândido de Figueiredo define alhal, com a variante alhar, como « Lugar na cozinha onde se faz a provisão da lenha, quase sempre por baixo do forno», e pergunta se o vocábulo, nesta significação, « será acepção, ext. ou fig. de alhal », no sentido de : campo onde crescem alhos. Maximiliano de Lemos (Enciclopédia Portuguesa) dá a mesma definição, mas não menciona a variante alhar. Morais conhece alhal e alhar neste sentido, mas localiza-os, menos claramente, « debaixo do forro». Caldas Aulete (Lisboa, 1925), J. T. do Silva Bastos (Dic. Etimol., Prosód. e Ortog), Laudelino Freire, J. L. de Campos (Rio de Janeiro) e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, de 1940, consignam do mesmo modo as duas formas, que definem como Cândido de Figueiredo, mas não falam da localização do alhar. Por outro lado, Cândido de Figueiredo, Morais, Caldas Aulete e Silva Bastos consideram o termo um provincialismo minhoto. São omissos em relação a alhar e alhal neste sentido geral (porque alguns consignam alhal na acepção de : campos de alhos) : Bluteau, Viterbo, Antenor Nascentes, Lacerda, Vieira, Morais e Silva, Faria, o Dicionário Contemporâneo, de 1881 (Lisboa), etc.
69 O mancebo deixou quase por completo de ser usado na aldeia, embora a iluminação continue a ser à luz da candeia de petróleo. Nesta casa há também, para o mesmo fim, o piasco, braço de madeira que j oga numa dobradiça fixa à parede por detrás da lareira, e que permite trazer a candeia para vários lugares; não é usado nas restantes casas.
70 Já nas povoações próximas de Recarei e Terronhas é frequente o revestimento de toda a parte habitada, o que se pode explicar pelo maior contacto com a cidade.
71 A pouca altura das paredes, pequenez das janelas, as duas águas do telhado evidenciam a identidade entre esses dois tipos de casas, a que só os materiais empregados dão aspectos diferentes.
72 O forno exterior encontra-se em Portugal, como construção independente, a sul do Tejo. E o encostado ao lado de fora da parede, com a boca abrindo para a lareira, é a forma corrente pelo litoral do Centro.
73 O termo mais geral é lareira, ou lar, a norte de Viana, em Carreço e Afife, parece preferirem pedra da lareira, dando o nome de lar à soleira saliente da boca do forno; em Esposende ouvimos telho do lar, no Soajo, borralho.
74 Isto verifica-se nomeadamente na área a norte de Viana (des. 61), pelos concelhos da Maia e Vila do Conde, nas cozinhas de pescadores poveiros, etc.
75 Borralheira é termo vulgar no distrito do Porto e Baixo Minho; torreira no Barroso; lapeira ou lipeira, nas serras de Arouca ; também cinzeiro ou pilheira da cinza.
76 Trasfogueiro (ou termos derivados) é também o nome da peça de ferro sobre a qual se pousam os achões que ardem. Em Vila do Conde o trasfogueiro é também um barrote dependurado do telhado, sobre o qual pousam lenha verde para secar. Talvez erradamente deram, em mais que um sítio, este nome ao próprio poial.
77 Parrogueira, na região de Montalegre ; por Braga, pedra do lar, em Esposende, borralheira tanto é o cinzeiro como o poial.
78 Tranqueiras, Minho; moirões, Montemuro.
79 Em casos mais raros a pilheira da cinza não existe, passando o cinzeiro para debaixo do forno.
80 À soleira chamaram lar em Montedor, Viana do Castelo; coradouro, Soajo ; braseira, Braga.
81 E o que acontece por Vila do Conde, e também na área a norte de Viana, zonas onde a lareira sofreu o alteamento de que falámos atrás.
82 Vem a propósito falar da antiga cozinha da Casa da Cruz de Pedra, em Sá, Ponte de Lima. A saia, de granito, apoia-se sobre duas colunas recortadas, e tem aberta por cima da padeira fundeira, e a quase todo o seu comprimento, uma fenda de uns 5 cm de largura. Dizem que nos dias húmidos a chaminé tem má tiragem, e o fumo sai então por essa fresta horizontal, a nível superior à cabeça das pessoas.
83 No Soajo designam esse espaço por canto da lenha. Alhar é usado pela área entre Porto e Braga; em Mourão (Vila do Conde), « alhar » designa mesmo uma espécie de grande tabuleiro adaptado à retaguarda do preguiceiro. (Ernesto Veiga de Oliveira e F. Galhano, «Alguns elementos das casas de Matosinhos, Maia e Vila do Conde», in : Boletim da Bibl. Públ. Mun. de Matosinhos, 5.)
84 Este aproveitamento do forro é especialmente frequente pela bacia inferior do Paiva.
85 O grande número de casas com telhado a três águas que surge por este canto do País relaciona-se, na verde, com a colocação da cozinha no topo da casa. A existência aí da chaminé larga obriga a parede a subir à altura do cume; e, mesmo não havendo chaminé, o telhado de duas águas dá, pela sua maior altura sobre o fogo, nítida vantagem.
86 Ernesto V. de Oliveira e F. Galhano, op. cit.
87 São, contudo, frequentes, nas casas serranas e primitivas, acréscimos ou partes de paredes de madeira, precários.
88 Este sistema é muito corrente no Montemuro e Barroso. No Montemuro vimos « cápeas » que, nas empenas, se dispunham em escama, formando às vezes verdadeiros pequenos degraus, fazendo como que uma transição das « cápeas » para os « guarda-ventos ». Dauzat (op. cit., págs. 50-51) fala, a propósito da «casa gaulesa», das «placas escalonadas ao longo da empena sobre o rebordo do telhado de colmo», que ilustra com gravuras de casas do Auvergne e do Isére, e que sugerem, em facção mais perfeita e definida, essa forma de transição das « cápeas » para os guarda-ventos », que vimos no Montemuro. É curioso notar-se que o mesmo autor entende que essa empena em escada, estilizada pios arquitectos, veio a dar a empena « à redan » da casa flamenga e de certas outras regiões nórdicas.
89 Estes telhados de colmo com um beiral de telha existem também em certas casas antigas do Nordeste da França, na Flandres, Artois e Picardia.
Notes de fin
1 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, « Um tipo de casa rural dos arredores do Porto», in : Douro Litoral – Boletim da Comissão de Etnografia e História – sétima série – VII-VIII, Porto, 1956.
2 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas de Esposende », in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XV, 1-2. Porto, 1954.
3 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Alguns elementos das casas de Matosinhos, Maia e Vila do Conde», in : Boletim da Biblioteca Pública Municipal de Matosinhos, n.°5, 1958,
4 Fernando Galhano, «Casas de pátio fechado no concelho de Paredes », Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, XXIII Congresso Luso-Espanhol– Coimbra, 1956.
5 Fernando Galhano, «A cozinha rural do Minho e do Douro Litoral», in : Revista de Etnografia, III-2, Porto, 1964.
a ocupar geralmente um canto, ou o meio duma das paredes, contra a qual se encosta. Em Portugal, o alteamento da lareira em tempos não recentes só se verifica em poucas regiões (por exemplo, a saloia). Na área nortenha de que hoje nos ocupamos, os casos de lareiras elevadas agrupam-se em duas ou três zonas reduzidas, e tal alteamento parece ter-se iniciado há pouco mais de cinquenta anos.
O forno do pão, pelo seu lado, encontra-se construído no exterior apenas em regiões da Europa Meridional, onde a benignidade do clima não o chamava para o interior da cozinha, ou, pelo menos, não impunha a abertura da sua boca para esse interior. Estas duas últimas localizações do forno são as que encon-
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