Utilização do sargaço e do pilado na agricultura
p. 181-186
Texte intégral
1No decorrer deste trabalho pôde-se avaliar a importância que o sargaço e o pilado como adubo tiveram nas terras próximas do mar, especialmente desde Caminha à Nazaré1. Se o segundo foi, ao longo de toda essa área, a adubação natural mais rica, o valor do primeiro, nos sectores onde era recolhido, ultrapassava-o pelo seu enorme volume e relativa regularidade da recolha anual.
2À sua riqueza em elementos fertilizantes junta o sargaço a vantagem da acção rápida, e de não conter sementes daninhas, factor importante especialmente em zonas de cultura intensiva. Segundo o estudo sobre a Aguçadoura já citado neste trabalho2, a sua composição química é a seguinte:
Fresco | Sêco | |
Azoto | 0,35% | 0,94% |
Ácido fosfórico | 0,35% | 0,89% |
Potassa | 0,94% | 2,54% |
Cal | 1,14% | 3,08% |
3Esta composição é contudo sensivelmente inferior à do pilado, o qual contém em seco:
Azoto | 3,36% |
Ácido fosfórico | 5,27% |
Potassa | 3,45% |
Cal | 18,25% |
4A despeito da sua maior riqueza em substâncias fertilizantes, o pilado estava menos generalizado do que o sargaço, porque era mais caro e incerto, existia em menores quantidades e a sua decomposição era de acção menos duradoura3 : além disso, pressupunha uma estrutura agro-económica mais desenvolvida – a sua pesca demandava um equipamento elaborado, enquanto que a apanha do sargaço era acessível a qualquer pessoa –.
5O consumo do pilado variava conforme os anos; às vezes, era quase nulo; e na região da Aguçadoura a área de cultura da batata chegava mesmo a depender da sua abundância.
6Quando colhido em tempo chuvoso, o sargaço era empregado fresco, em «verde», ou misturado a curtir com estrume e matos, por vezes nas cortes do gado, ou nos campos. Mas a maior parte era seco, e conservado em pilhas até ao momento do emprego.
7O pilado, pelo seu lado, era empregado igualmente ora «em verde», quando pescado nos meses chuvosos do outono e inverno, ora, ao norte do rio Douro, depois de seco, quando pescado nos meses do verão, ou, ao sul desse rio, depois de salgado, misturado com areia, que se embebia da sua «gordura».
8A área em que o emprego do sargaço e do pilado foi porventura maior e mais diversificado corresponde à zona a norte da Póvoa de Varzim, nas terras de areia cuja fertilidade se apoia quase só nesses dois produtos tirados do mar. Eles constituíram elementos importantes na economia dessa área, especialmente nos «campos de masseira» da região da Aguçadoura, tanta vez citados neste trabalho, que representam o aproveitamento, pela técnica da «descoberta do terreno», posta em prática por volta de 1880, das extensíssimas dunas até aí totalmente improdutivas, e que, com o uso maciço desses produtos, mormente do sargaço (cuja apanha contribuíram para incrementar) são hoje modelos extremamente férteis de culturas intensivas4.
9Sargaço e pilado eram fertilizantes aplicados em quase todas as culturas da região, até porque, com esse carácter fortemente intensivo da exploração, muitas aproveitavam a adubação da anterior, por estarem com ela durante um tempo consociadas.
10Era sobretudo na adubação da batata que o consumo do sargaço e do pilado, em conjunto com estrume, era maior : uma adubação média por hectare compreendia 20.000 kg de estrume, 10.000 kg de argaço, 3.000 kg de pilado seco. Nem sempre se empregavam todos estes fertilizantes; a falta de um compensava-se com os outros. O estrume e o sargaço eram lançados no fundo do rego da plantação, e cobertos com uma leve camada de areia, sobre a qual se dispunha a batata. O pilado distribuía-se aos molhos – 4 ou 5 caranguejos –. entre o espaço dos tubérculos, ou em todo o comprimento do rego, a um lado, sendo aqueles dispostos do outro lado. Nas fertilizações mais fracas, cada caranguejo alternava com a batata. O compasso adoptado geralmente era de 25 a 30 x 20 a 25 cm.
11O pilado, para a cebola, era empregado juntamente com estrume e sargaço, tanto na adubação da terra como na preparação dos alfobres do cebolinho. Para estes, abria-se no terreno arenoso uma caixa, forrava-se-lhe o fundo com uma camada de sargaço que se cobria com outra de estrume, e por cima deitava-se algum pilado; calcava-se bem, cobria-se tudo com areia, e lançava-se então a semente, que, em seguida, se recobria com outra ligeira camada de areia.
12O pilado era também enterrado na terra para couves, pencas e couvões, tenras e saborosas, muito procuradas nos mercados da faixa litoral a norte do Douro. Nesta cultura das diversas qualidades de couve, ele era frequentemente usado em cobertura, seco ou «verde», desempenhando o papel de um nitrato. Algum pilado seco empregava-se na preparação de alfobres de couves, previamente ralado, e espalhado como se fosse farinha.
13Fora da área dos campos de masseira, por toda a região costeira desde o Porto a Caminha, o sargaço e o pilado adubavam as culturas de cereais, ervas, batatas, nabos, etc., incorporados na terra com uma lavoura. Sobre o estrume estendido no campo, muita vez já curtido com o sargaço, o pilado era espalhado com uma pá de ferro, para um lado e para o outro, enquanto o carro de bois ia avançando. Preferiam o sargaço miúdo, pois as fitas grandes das taborras eram de preferência, usadas apenas em terras mais lentas. Para o caso do centeio e do trigo, a sementeira era feita a lanço directamente sobre a camada de estrume, sargaço e pilado, sendo a semente depois coberta pela terra afastada pelas aivecas do assucadouro, na técnica do margeado corrente na região.
14O pilado era também lançado em cobertura sobre prados permanentes, e sobre talhões de couves como na Aguçadoura. Entrava ainda na adubação de videiras, especialmente nas vinhas de Perre e de Outeiro, perto de Viana do Castelo5.
15Para sul do Porto até à Nazaré não temos notícia de secarem o caranguejo. O que não era empregado em «verde» era, como dissemos, salgado juntamente com areia, que se embebia da sua «gordura». O seu emprego como adubo foi também importante, à excepção das terras vizinhas da ria de Aveiro, onde o moliço é o fertilizante mais usual.
16Na Cortegaça ele era espalhado em «verde» nas terras para ervas e nabais, deixado 3 a 4 dias ao sol, e só depois lavravam. Para a batata, incorporavam-no na terra com muita antecedência; era enterrado logo que colhiam o milho, e a terra ficava em descanço, bem gradada, até uns dias antes da plantação, ocasião em que a revolviam com o antigo arado de pau, e alisavam com as costas da grade, fazendo-se em seguida a sua plantação à enxada. O caranguejo salgado era só para terras lentas, com águas de lima.
17Em Quiaios, já perto da Figueira da Foz, era com o pilado que conseguiam um maior volume de fertilizante, misturando-o com estrume e mato (a Serra estava nessa altura muito mais agricultada, que hoje). O caranguejo era também misturado, nas cortes do gado, com caruma de pinheiro (moliço), e ali ficava a curtir, calcado pelos animais. Era usado como estrumação geral, com exclusão do milho.
18No Louriçal informaram que o caranguejo fresco, trazido em carros da praia, era empilhado, em camadas alternadas de areia, caranguejo e sal. Deixava-se curtir, e enterrava-se para a sementeira de ervas ; e só para isso. Deitado no milho, este crescia amarelo e com uma doença a que chamam farpece.
19Na Cova curtiam o caranguejo da mesma maneira, e também aí o não usavam para o milho. O caranguejo fresco era empregado na batata, espalhando-o no fundo do rego, cobrindo-o com areia, e dispondo sobre ele os tubérculos.
20No sul do País, como dissemos anteriormente, o consumo de algas para adubação de culturas apenas se verifica na costa algarvia, e em muito pequena escala.
21Na Bordeira, Carrapateira e em Sagres, o golfo, correias e limos, que iam buscar propositadamente às praias, principalmente para a plantação de couves, era enterrado logo, uma pequena quantidade em cada cova (diziam 3 : casear, abrir a caseira).
22Em Burgau não usavam as algas, e o pilado apenas se aproveitava quando vinha em grandes quantidades nas redes de pesca; era enterrado com uma lavoura, e aí ficava incorporado na terra até à sementeira do trigo. Era também usado para hortas, e figueiras e outras árvores de fruto.
23Em Lagos parece usarem algas apenas para adubação de hortas. Em Armação da Pera, Albufeira, Silves e Faro, disseram não terem empregado nem algas nem pilado, recorrendo porém ao guano, nome que davam aos restos do peixe.
24Em Olhão, Fuzeta e Tavira, a ceba e a cebarrinha eram misturadas com estrume nas cortes e pocilgas, pois enterradas sem curtirem em terras muito secas não se desfaziam e prejudicavam as culturas. Pelo contrário, nas vizinhanças de Vila Real de Santo António e Monte Gordo, terras planas com bastante água, aquelas algas e a palhaça do rio eram secas e espalhadas na terra para serem enterradas.
25No Sotavento algarvio, contudo, o fertilizante natural mais usado e apreciado foi o dos restos de peixe recolhidos nos cais, e ai vendidos aos lavradores. Em Santa Luzia metiam esses restos em covas, cobriam-nos de terra, e iam buscar aos poucos as quantidades que precisavam de empregar. Em Vila Real de Santo António, eles eram empilhados às camadas entremeadas de sal, «para não entrar o bicho», sendo depois cozidos e espalhados ao sol a secar; numa maneira mais fácil, os restos eram apenas secos na eira. Assim seco, o material era pulverisado, batendo-o a pau ou calcado a pé de gado. Guardado, era usado como se fosse adubo químico, nas sementeiras e especialmente ao encubatar (fazer covas) para tomateiros e pimenteiros; para a batata era espalhado sobre a terra, enterrado com uma cava ou uma lavra, e os tubérculos metidos um a um, a cavadelas.
26O guano de peixe, preparado em fábricas, foi fertilizante muito usado no Algarve, especialmente de Olhão a Vila Real de Santo António.
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* *
27Como dissemos, a apanha das algas como fertilizante é hoje pouco vultosa, e continua a fazer-se apenas am alguns locais, as mais das vezes para venda. Ela manteve o seu carácter de generalidade enquanto a economia agrícola era essencialmente qualitativa, familiar e artesanal, e se tinha por norma o aproveitamento de todos os recursos locais que se julgavam úteis, independentemente da consideração do seu custo de obtenção. Com a quantificação progressiva dessa economia, orientada exclusiva ou primordialmente em vista ao lucro individual, e suas consequentes maiores disponibilidades de numerário, o êxodo rural e a emigração, conjugadas com a generalização do emprego de adubos químicos, que se traduz imediatamente numa tão visível economia de tempo e esforços, esta actividade, nos seus moldes tradicionais, não podia deixar de se apresentar como falha de rentabilidade e de entrar em decisivo declínio – tal como a própria agricultura em que ela se integra, retrógrada e pouco remuneradora–, tanto mais que se trata de um trabalho moroso e pesado que hoje em regra as pessoas recusam6.
28Agora, porém, que a poluição química e o perigo de esgotamento dos recursos naturais do globo por uma exploração maciça das suas reservas tomam aspectos particularmente graves e suscitam problemas iminentes de sobrevivência, entendemos que a questão da apanha do sargaço deve ser revista sob novas luzes.
29O sargaço é com efeito um fertilizante orgânico comprovadamente bem qualificado7 e inteiramente disponível, cuja recolha em devidas condições – das algas soltas e das presas observando-se o defezo no período da sua germinação e crescimento – não acarreta o menor empobrecimento da Natureza. Pelo contrário, o que num plano mais lato não podemos deixar de considerar eminentemente anti-económico é o desaproveitamento desse excelente fertilizante que aflora às praias, por vezes em massas enormes, e que ninguém vai buscar, ficando aí a desfazer-se aos poucos, sem qualquer utilidade.
30Noutro contexto social, em que a produção seja orientada por princípios diferentes, em vista sobretudo à melhoria das condições de vida do Homem, passando a consideração da sua rentabilidade, em termos de lucro, para um plano secundário, a recolha das algas no litoral português aparece-nos como uma actividade plenamente válida e recomendável. Sem dúvida, impõe-se estruturá-la tecnicamente em bases mais racionais, para dela se extraírem maiores benefícios: caberia aos nossos técnicos, a partir da experiência do passado, estudar processos de recolha actualizados e mais adequados, que permitissem realizar essa operação com eficácia e autêntica economia; e aos nossos agrónomos, as melhores condições de utilização deste fertilizante, no que se refere tanto às diferentes espécies de cultura como à maneira de o aplicar.
31Estas considerações encontram aliás total apoio nos conceitos que enformam as diversas orientações da chamada «agricultura orgânica» ou «biológica», que, todas elas, preconizam a utilização de fertilizantes naturais, que enriquecem os solos e, desse modo, aumentam as resistências e a vitalidade das plantas, por oposição aos adubos químicos, os quais, a longo prazo, produzem efeitos que consideram nefastos.
32Entre nós, conhecemos um expressivo exemplo do aproveitamento das algas como fertilizante, onde todos os aspectos apontados se desenham com particular evidência: a área das dunas a norte da Póvoa de Varzim, que começaram a ser agricultadas precisamente à base do emprego em grande escala do sargaço, que abundava na zona, continuando agora a utilizar-se apenas esse fertilizante, não só porque ele se integra na técnica rural local e tradicional, mas também porque os lavradores chegaram empiricamente à conclusão de que os adubos químicos, ali, não são convenientes, e só os orgânicos, e sobretudo o sargaço, garantem a produtividade daquela notável agricultura intensiva. Por isso, nessa região, as actividades sargaceiras prosseguem como outrora, e vemos a gente da Aguçadoura comprar sargaço recolhido pelos sargaceiros de diferentes localidades e exercer essa actividade ali e noutras partes – em Montedor, Vila Chã, etc. – em vista aos seus «campos de masseira».
Notes de bas de page
1 A norte de Viana do Castelo, certos tipos de algas – a botelha – eram também utilizados como alimento para suínos. E temos a indicação de, na Póvoa de Varzim, em épocas de crise, os pescadores as fumarem em lugar de tabaco.
2 Aguçadoura. Além dos números mencionados, grande parte das informações, a propósito da área da Aguçadoura a seguir citadas, foram extraídas, ou mesmo transcritas, desse estudo.
3 Na Aguçadoura diz-se : enquanto o pilado na batata puxa rama, o argaço puxa fruto.
4 Ver atrás, p. 22.
5 A importância do pilado pode avaliar-se pela recordação que o lavrador conserva do seu emprego, que se revela em frases como estas: «era bom para tudo !», «faz muita falta às nossas terras», «hoje, mesmo que o houvesse, já não se encontrava gente que o soubesse ir buscar
6 Claude Aubert, Alimentos, saúde e agricultura, Col. «Viver é preciso» – 1 (Afrontamento), pp. 110-111, àcerca do caso especial –e paralelo– dos pesticidas, citando o Dr. Van der Bosch, diz : «A luta cultural é praticamente uma arte desaparecida, tanto nas agriculturas avançadas como nas primitivas. Isso deve-se aos poderosos insecticidas actuais, já que, quer seja o especializadíssimo director de uma empresa altamente mecanizada no vale de S. Joaquin, na Califórnia, ou um camponês africano possuidor de meio hectare de algodão ou amendoim, o agricultor cada vez mais se voltou para a facilidade em matéria de protecção das plantas: a luta química»... «Cada vez nos chocamos mais com a seguinte atitude : para quê preocupar-se? Os pesticidas podem fazer o trabalho de modo eficaz, mais barato e com menos esforço ! Na realidade, esse ponto de vista é contestável, e é o ponto de vista inverso que deveria prevalecer : por que razão usar pesticidas, quando existem métodos culturais de luta ?»
7 China, Estados Unidos, Terceiro Mundo. Col. «Viver é preciso» (Afrontamento, 2). Porto, 1975 – Jerry Goldstein. «A agricultura orgânica dos Estados Unidos», p. 104. Os tratamentos com algas têm efeitos diversos, tais como o acréscimo da germinação das sementes, a melhoria do metabolismo das plantas, o acréscimo do rendimento das culturas, a diminuição do apodrecimento dos frutos, e o aumento do teor em açúcar do milho açucarado». «As algas contêm apenas fraquíssimas quantidades de azoto, fósforo e potássio», mas «são ricas em oligo-elementos».
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