Barcos
p. 152-174
Texte intégral
A – Barcos do tipo da lancha poveira usados na pesca do pilado
1Ao norte do rio Douro, os barcos grandes usados na pesca do pilado eram de quilha, roda de proa e cadaste, e leme, podendo andar a remos ou à vela, do tipo geral da lancha poveira (des. 36), mas de dimensões menores e construção mais simples do que ela. Dentro desse tipo geral, eles apresentavam-se sob duas formas um pouco diferentes: a) o barco do pilado, que se encontrava da Póvoa de Varzim para o norte, até Âncora, e b) o miranço, que se encontrava dali para o sul, até Matosinhos1.
a) O Barco do Pilado
2O modelo que passamos a descrever, dos raros dessa primeira forma que subsistem em bom estado na região, encontra-se em Montedor. Ele mede 8,10 m de comprimento por 2,90 m de largura, e não possui caleiras ao correr da borda, nem paneiros cobertos à proa e à ré. Para a proa e para a ré, para lá das cavernas com os seus braços ligados de lado, há um certo número de enchimentos formando V, os mais largos ligados por cangas. Tem 5 bancos, sendo o da proa–mantosta–muito largo; entre este e o segundo estão os barrotes com os entalhes que permitem várias posições ao mastro, o qual desce dentro da carlinga e enfia o pé na pia (des. 37 e 38). Duas empanas dividem o barco em três compartimentos: o do meio – o ensaio – fazia de escoadouro onde se juntava a água a escoar; e era aí que levavam a rede; nos outros vinha o caranguejo a granel. A borda é exteriormente reforçada por um verdugo em meia cana. A cada banda, para os toletes, há 5 chumaceiras e ainda mais uma à proa, a bombordo.
3Para trazer o barco dos barracos para a água, e vice-versa, empregavam-se as pranchas, espécie de escadas com cerca de 5 m de comprimento por 40 cm de largura, de degraus – travessas – fortes e encurvados, que ensebavam para que a quilha deslizasse com facilidade sobre eles (des. 39 a).
4Adaptado ao banco da ré, via-se um molinete–carro–, que usavam para colher a rede (des. 39 b).
5A vela era a latina do barco poveiro. O mastro, com cerca de 8 m de comprimento, e a verga, com 9,5 m, seguiam pousados nas forcas espetadas nos bancos da ré e da proa junto da borda, a estibordo2.
6O caique que acompanhava o barco grande era um pequeno barco de fundo chato, com uns 4,5 m de comprimento por 1,80 m de boca, de ré cortada e com a curvatura da roda de proa semelhante à dos barcos poveiros. A sua construção era muito ligeira, podendo-se relacionar com a simplicidade das masseiras. O costado era formado por duas tábuas, e a borda estava reforçada por um verdugo em meia cana. Este barco, como o grande, tinha leme e era movido a remo e à vela (des. 40).
b) O Miranço
7Ao sul da Póvoa de Varzim até Matosinhos, o barco empregado para a pesca do pilado – o miranço –, da mesma forma básica do que acima descrevemos, é porém muito mais leve do que esse, a sua construção ainda mais simples, e o alargamento da ré menos pronunciado do que nele – de facto as partes dianteira e traseira são quase simétricas (des. 41). Ele reduz-se aos elementos essenciais, o cavername e o tabuado são muito ligeiros, as duas dragas extremamente finas, e o verdugo que protege a borda não é mais do que um pequeno engrossamento da tábua superior do costado.
8É de Vila Chã o modelo que passamos a descrever.
9O tabuado (tábuas do costado) é formado pela cinta, em cima, segunda, fecho pequeno e fecho grande, tábua de sobrefundo e fundo ; o número de fechos varia, contudo, conforme a largura das tábuas empregadas. Além das cavernas com os respectivos braços, há 4 enchimentos à ré, e 3 à proa. À caverna mais larga davam o nome de caverna mestra. Interiormente, a cada bordo, no alto, correm as dragas, que são duas ripas estreitas ali pregadas nos braços a todo o comprimento do barco.
10O miranço tem 4 bancos principais: o banco da proa (onde há o buraco para o mastro), segundo da proa, segundo da ré (onde vai o molinete), e banco da ré ; e há ainda um paneirinho, pequeno banco triangular junto ao bico da ré. Eles são fixados por duas peças encurvadas, a cada lado, os gatos. As remadouras são os cepos onde entram os toletes, que, por seu turno, entram em baixo nas chumaceiras ou castanholas, firmadas entre a draga de baixo e o costado; goivas são pequenas peças pregadas, uma ao bico da roda de proa, outra no alto do cadaste, com um rasgo para a passagem do cabo do ferro, à proa, e do cabo da rede, à ré. A união das tábuas laterais ao bico da proa, e das da ré ao cadaste, é feita com as cangas ou boçardas, ramo de sobreiro com a curvatura em V, que reforça as pontas desse tabuado. O mastro passava naquele buraco no banco da proa, e firmava a sua base num cepo forte – a carolina (carlinga) – presa entre o primeiro enchimento e a primeira caverna da proa.
11O barco é dividido pelas duas panas em três compartimentos: o quartel da proa, o quartel da ré, e entre estes o vertedouro ou esgotador, onde se tira a água, e onde se leva a fieira da rede do pilado e o cabo do ferro. Há 2 paneiros, um à ré e outro à proa. Este era, no regresso da pesca, colocado em cima do pilado, para sobre ele trazerem a rede.
12Quando a quilha começava a ficar gasta, reforçava-se com a labaça.
13O miranço não era pintado; a protecção era obtida com uma camada de resina e sebo dada em quente. A vela era a latina do barco poveiro3.
B – Barcos do tipo do barco do mar no Litoral Central
14Ao sul do rio Douro, os barcos usados na pesca do pilado, diferentemente, eram de fundo chato, sem quilha, de roda de proa e cadaste em bico elevado, podendo andar igualmente a remos ou à vela, de um tipo geral relacionado com o barco do mar da pesca da xávega, na região litoral central do País, designadamente a costa de Aveiro4.
15Dentro desse tipo geral, eles apresentavam-se também sob formas diferentes, em que, do norte para o sul, se vão definindo de maneira cada vez mais característica os seus traços fundamentais, e especialmente esse formato de meia-lua, em que os bicos da proa e da ré, e o arqueado do fundo, se acentuam progressivamente. São eles: a) a bateira da Afurada, de bicos pouco altos e fundo pouco arqueado, e que se encontra desde a Afurada até à Cortegaça ; b) as bateiras dos grupos da ria de Aveiro; c) a bateira do mar, de bicos extremamente elevados e fundo muito arqueado, semelhante, em mais pequeno, ao grande barco do mar, da xávega ; d) a bateira de Buarcos, de bicos pouco elevados e fundo muito menos arqueado; e) o barco de bico, da Nazaré, de bico de proa aguçado, mas de ré cortada muito larga.
a) A Bateira da Afurada
16O tipo de barco de fundo chato e proa levantada, empregado no litoral do Centro do país, tem na Afurada o limite setentrional da sua zona de expansão. A bateira da Afurada é um barco muito bem ajustado para o lançamento ao mar em praias arenosas, desabrigadas e de vaga alta, e a sua existência na Afurada, dentro do estuário do Douro, explica-se seguramente pelo facto da gente que formou esse povoado ser originária da ria de Aveiro. Baldaque da Silva notara já, nos finais do século passado, que «este centro de pescarias é constituído na maior parte pelos pescadores emigrantes da ria de Aveiro, principalmente da Murtosa, que exploram em grande escala o mexoalho, nome que começam aqui a dar ao caranguejo empregado para adubo das terras»5.
17A bateira é um barco alongado cuja proa se ergue até ao bico, ou ponta da bica (Espinho), numa curvatura sóbria mas bem lançada; ela tem um espaço coberto, o tapamento da proa, ou coberto, rematado por uma peça arqueada, o bertente ou arco da proa (Espinho), que prende nas bordas e de certo modo as trava, e na qual se abrem dois orifícios para a prisão da amura da vela. A cada lado do bertente corre uma ripa que impede o ferro de cair à água (enquanto navegam no rio). No coberto guarda-se a vela, a roupa e a comida. Saindo para fora deste tapamento da proa aparecem em algumas bateiras os dois golfiões, que são as pontas do primeiro par de cavernas. A característica bateira da Afurada não os possuia, por ali não ser preciso uma amarração forte e rápida, nem ser necessário puxá-la com frequência pelo areal acima.
18Cada caverna tem um braço feito da mesma peça de madeira que ela, sendo o outro ligado, sobreposto, em bisel; as ligações são em posições alternadas. Por baixo do coberto há ainda 3 cavernas, e destas até ao bico, vários pares de peças em V, as agulhas.
19Nas cavernas está pregado o tabuado, o fundo e as bordas, estas constituídas por três tábuas: o cóvedo (no fundo), o verdegar e a falca.
20Ao longo da borda corre, pelo lado de dentro das cavernas, a draga; e pelo exterior, desde o bico da proa à ré, a cinta. O verdugo é uma vara de pinheiro esfiada a meio, pregada na borda, do bertente para a ré, e que além da consolidação que lhe dá, serve para sobre ele deslisar a rede.
21A bateira é dividida em três compartimentos. A divisão é feita pelo traste, perto da proa, e pela antepara ou amparagem, mais à ré. No traste abre-se o buraco do mastro, e a ele está encostado um tapamento de tábuas delgadas. A antepara é uma divisão semelhante, apoiada num barrote que vai de borda a borda. O fundo dos compartimentos da proa e da ré são cobertos por paneiros, enquanto que o do meio fica livre, com as cavernas à mostra, para poderem despejar a água.
22Debaixo do traste está a pia, ou talinga, onde entra o pé do mastro.
23A bateira tem dois remos: o proa e o maião. O proa, manobrado pelo arrais, de pé, e virado para a frente, é, contra o seu nome, o da rectaguarda. Para que o arrais se possa firmar, está pregada no fundo e ao lado uma pequena ponta de tábua inclinada a que chamam o finca-pé. Ao maião agarram dois homens sentados no toste, tábua pousada nas dragas junto ao bertente.
24O remo é formado pelo cano, que os remadores empunham, a pá, que mergulha na água, e duas peças de madeira espessa amarradas com cordas ou arames, e que jogam sobre a chumaceira, remadoiro ou toleteira, fixada na borda da bateira. A maior, o cáguedo, tem o orifício onde entra o tolete ; à outra, mais delgada, chamam tarma.
25A vela dantes empregada era a que se encontra em Espinho e mesmo na Aguda, e que é muito semelhante à do barco valboeiro. Era uma vela quadrangular, munida duma retranca e duma espicha, e que não permitia navegar à bolina. Por isso foi substituída pela da lancha poveira, pois as bateiras iam por vezes pescar até alturas de Espinho, e tinham de regressar contra a nortada.
26As velas eram tingidas com uma infusão de casca de salgueiro ou, mais tarde, banhadas em água com roxo-rei, que, dizem, lhes dava boa conservação. Mastro e verga iam pousados no traste e enfiavam as pontas no tapamento da proa.
27O leme acompanha a forma da ré e passa pouco abaixo do fundo da bateira. Os seus machos engatam nas femeas da roda da ré. É manobrado com a cana (des. 42, 43 e 44).
28A bateira bolinava mal; faltava-lhe a quilha e o enorme leme da lancha poveira. Assim, conforme diz a gente da Afurada, «arrola mais». Por isso não era barco de alto mar como aquela, empregando-se de preferência na «mugiganga» (arrasto), para o que tinha boas qualidades.
29Uma bateira média mede uns 8 m de comprido, 1,90 m de boca, e 0,60 m de altura (a meio do barco).
b) Bateiras dos grupos da ria de Aveiro
30D. José de Castro indica, na ria de Aveiro, para a pesca lagunar, três tipos de bateira: a mercantel, para a arte berbigoeira ; a labrega, para as artes de chinchorro, mujeira e garateia; e a caçadeira, para as artes de espinhel e bolsa. Lixa Filgueiras, por seu turno, indica, além das citadas bateiras mercantel (de transporte e pesca), caçadeira, e labrega (que considera murtozeira), a bateira chinchorro ou esguicho (que também considera murtozeira), o varino (que considera ílhavo) e a pequena bateira marinhoa6.
c) A Bateira do mar
31Como dissemos, o barco usado na Costa de Lavos para a pesca do pilado tinha a mesma forma dos grandes barcos da xávega, com o fundo chato muito arqueado, e a proa e a ré muito erguidas, mas aquela avançando e subindo num movimento forte, extremamente bem lançado; e não tinha leme. É pois um dos barcos chamados geralmente de meia-lua. O seu comprimento rondava os 8 m, com 2,40 m de largura; o barco desenhado era dos pequenos (des. 45 e 46).
32Na proa há um espaço coberto, o cachulo, cuja boca tem, em cima, uma peça arqueada, o alvaçuz, firmada nas bordas contra um par de braços, e cujo fundo é um estrado fixo, já debaixo do cachulo ; funcionando como caverna e braços, há 2 peças largas, recortadas de modo a deixarem em cima uma abertura semicircular, e cujas pontas superiores, passando acima da cobertura, formam as mãosinhas para amarração do cabo do ferro. À ré há um pequeno banco rectangular.
33Os braços do cavername têm, a quase todo o comprimento do barco, a mesma curvatura e inclinação ; apenas junto da proa e da ré estas variam. No sector em que estão os talabardões, nos quais assentam as barras que servem de chumaceiras dos remos, os braços do cavername são, em cima, cortados horizontalmente; nos restantes braços, essa parte é cortada parcialmente em bisel, o que dá origem à inclinação do interior da borda.
34Tanto a roda da proa como a da ré têm secção losangular e são cuidadosamente executadas. A da proa é, no bico, talhada de modo a simular o prolongamento da cinta. A da ré é ainda mais elaborada, e a ela se adapta um remate que do mesmo modo prolonga a cinta e a borda falsa (des. 46 b).
35O barco é movido a dois remos.
36Como o barco pode varar de proa ou de ré, há no exterior do costado 2 ganchos a cada lado. Cravada na roda da ré há uma peça de ferro para a alagem do barco.
37A bombordo, logo adiante do banco da ré, e adaptada a 3 braços do cavername, há uma tábua larga fazendo um banco a meia altura do costado. Banco semelhante mas mais pequeno está a estibordo, logo à frente da antepara da ré.
d) A Bateira de Buarcos
38Em Buarcos, e em certos casos na Gala, o barco usado na pesca do pilado tinha, ao contrário do que sucede com as bateiras da Afurada e da Costa Nova, a proa e a ré pouco elevadas, certamente porque tal é desnecessário, abrigado como ali está o mar pelo esporão da serra da Boa Viagem; pode-se supor mesmo que essa pequena elevação representa apenas uma influência do tipo geral do barco do litoral central (des. 47).
39O barco é de fundo chato, com uma roda de proa avançando muito inclinada. À frente existe um espaço abrigado, o cachulo, fechado geralmente por um tapume com porta. A cobertura do cachulo é de tabuado disposto em dois sentidos: transversalmente desde o bico até aos fiéis, espécie de braços, a cujas pontas salientes, as mãosinhas, se amarra o cabo do ferro ; e longitudinalmente, daí até ao albaçuz que o limita. É a este albaçuz que está fixada a argola de ferro, o escalamão, em que entra o mastro. Ainda no cachulo, perto do bico, está a argola para a prisão da amura.
40As cavernas, em número de 12, são largas, pouco altas, e os braços adelgaçam para cima; cada caverna tem um braço da mesma peça de madeira que ela, e um braço emendado, sendo alternadas as posições destas emendas.
41No exterior, a borda é reforçada pela cinta ; e do cachulo até à ré toda a sua largura é tapada pelo alcatrate, apenas interrompido pelo assentamento das chumaceiras dos toletes. Destas até ao bico da ré, sobre o alcatrate, está pregado um verdugo boleado para deslizamento da rede.
42O barco tem dois bancos, o da proa e o da ré.
43Dois anteparos dividem-no em três compartimentos – o de vante, junto ao banco da proa, e o outro junto ao da ré, ou da caverna seguinte. Só o compartimento do meio (onde se deita o pilado) não tem paneiros.
e) O Barco de bico da Nazaré
44Na Nazaré, como dissemos, a pesca do pilado fazia-se, ao contrário do que sucedia em geral ao sul do rio Douro, com dois barcos, que eram iguais – barcos de bico – (des. 48, 49, 50 e 51).
45Este barco é de facção rude, sólido, com um comprimento regulando cerca de 4,70 m, e com a largura de metade desse comprimento. O fundo é chato, e encurva-se na frente, acompanhando o movimento francamente ascendente da proa, que termina em bico aguçado; e liga-se, em curva, à ré, que é cortada e larga.
46O alteamento da proa acompanha a forma geral da embarcação do litoral central, imposta pela natureza das praias; o bico aguçado é, no dizer dos informadores, só um enfeite; ele é geralmente revestido de chapa. E enfeite é também a tábua que corre junto às bordas entre os bancos do meio.
47À proa, acompanhando a sua acentuada subida, há um espaço coberto, a polé, e na beira desta polé vêem-se dois pequenos rectângulos de tábua, que servem de assento aos remadores da proa. Na verdade, só há poucas décadas tem este barco 4 remos; anteriormente, os remos eram apenas 1 por banda, e dai a precaridade dos citados assentos. O barco tem 18 cavernas; a 9.a a contar da ré é a asa-de-água, onde se junta a água, para escoar com o vazadouro; as duas últimas da proa ficam já sob a polé.
48A borda é constituída por um barrote de secção quadrangular. Na proa, os braços de duas cavernas sobem acima dela, formando 4 malaguetas a que se amarravam os vários cabos. Alguns barcos têm também uma malagueta à ré, a bombordo.
49A peça que dá à ré grande solidez é o cepo da ré, barrote espesso de secção angulosa; é sobre ela que assenta o rebordo da ré e que prega o tabuado da ré. Tabuado é, de resto, o nome das tábuas quer dos costados quer do fundo. O tabuado do costado desce abaixo do do fundo uns 3 cm; e no terço dianteiro do barco, essa beira é reforçada com uma ripa a cada lado.
50Para alar o barco há, na ponta aguçada do fundo, junto à peça que faz de roda de proa, um gancho; e um pouco mais abaixo e mais atrás, uma argola, a que chamam cabesteira 7.
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51Da maioria das praias ao norte do rio Douro, ia-se pescar o pilado sobretudo aos limpos da Aguçadoura, de Afife e de Âncora, o que, muitas vezes, representava deslocações de várias dezenas de quilómetros. Nesses casos, à ida, caminhava-se rumo ao Norte, ou seja, na quadra do verão em que a pesca do pilado era mais frequente, contra o vento dominante da região – a nortada –, que sopra com grande força por toda a beira-mar. Quando não era possível bolinar, o percurso obrigava a remar muitas horas nessas condições, o que constituía um trabalho extremamente pesado. O regresso, para o Sul, a despeito de se trazerem os barcos carregados, era geralmente mais leve, porque se vinha à vela, aproveitando a nortada, que então era de feição.
52Em Âncora – onde designavam o barco do pilado pelo nome genérico de bolantim –, a pesca, no verão, tinha lugar perto, geralmente a uns 2 ou 3 km da praia; por isso, para ela não usavam a vela. Os barcos largavam de madrugada, pescava-se ainda com noite, e regressava-se por volta do meio-dia. Pelas 8 ou 9 horas da manhã as mulheres iam, nas gamelas, levar o comer aos homens que andavam a trabalhar. Por vezes, iam também nas gamelas, isolados, pescar mais perto, com os arrastos do camarão.
53De Montedor, ia-se sobretudo pescar o pilado aos limpos de Afife e de Âncora, a 4 e 8 km de distância, trabalhando aí a cerca de 1 a 2 milhas da costa, a uma profundidade de cerca de 12 braças. À ida, remavam 2 homens na mantosta, 2 a seguir, e 2 na pana (no ensaio não ia ninguém, porque era aí que se levava a rede) Quando voltavam, com o barco carregado, aproveitavam o vento, ou, se não, um homem remava na proa, 2 no ensaio, e 2 a seguir ao ensaio, e o mestre à ré; a rede vinha no caíque.
54De Castelo de Neiva, ia-se também até Afife e Âncora, saindo de noite ou de madrugada. Contam de uma vez que, tendo saído de madrugada, a remar contra o vento, só pelas 3 horas da tarde conseguiram chegar às alturas de Montedor, em cujo portinho se abrigaram, regressando à noite à sua terra, sem terem podido pescar. A gente de S. Paio d’Antas, que aportava a Castelo de Neiva, para varar aguardava a enchente, contrariamente à regra geral, porque entrava pelo rio para tal, e só assim o podia fazer.
55De S. Bartolomeu do Mar, ia-se igualmente pescar a Afife e Âncora ; os dois barcos nevegavam lado a lado, e levavam 8 a 10 horas a remar. Em Âncora trabalhavam por vezes a 4 braças de profundidade; em Afife, era mais fundo. Para o regresso, se não havia vento (o que sucedia raramente) e o barco vinha carregado, os 3 homens de cada barco remavam só com dois remos, porque não havia espaço para mais ; se vinha pouco carregado, remavam com 4 remos, remando o mestre com dois remos.
56Na Apúlia pescava-se pilado em frente à praia, a 20 ou 30 braças de profundidade; mas ia-se sobretudo, também, até Afife e Âncora. Se o vento permitia que fossem a bordejar, levavam cerca de 6 horas a chegar, entrando por vezes 20 e 30 milhas pelo mar dentro, a bolinar, perdendo de vista a terra. Se não havia vento e tinham que ir a remo, seguia um homem no banco da proa com 2 remos mais leveiros, e 2 homens a seguir, cada qual com um remo, de cada lado; se, pelo contrário, o vento era muito forte e não permitia bordejar, toda a companha seguia no barco da rede, a remar, não ficando nenhum homem no outro barco, que ia a reboque. Em Âncora, ficavam às vezes 15 dias e mais, vendendo lá o pilado que iam pescando. As companhas tinham uma certa estabilidade; e cada um dos dois barcos – que eram iguais – ficava, à vez, barco do ferro e barco da rede, com os respectivos aparelhos.
57Na Aguçadoura, pescavam muitas vezes em frente e perto da praia, a 20 ou 30 braças de profundidade ; mas iam também até Afife e Âncora, saindo então de manhã e regressando no dia seguinte à tarde, fazendo uma viagem rápida se o vento era favorável; em Afife, trabalhavam nas calas, a 5 ou 6 braças de profundidade.
58Em Averomar, pescavam em geral igualmente em frente e perto da praia, a 20 ou 30 braças de profundidade; por vezes, quando o pilado aparecia mesmo na beirada, a 4 ou 5 braças de profundidade, saíam a pescá-lo de noite. Mas iam também até Afife – onde trabalhavam nas calas – e a Âncora, demorando o regresso cerca de 4 horas com vento de feição. O barco era de 6 remos, mas nestas pescarias só utilizavam 4 : um homem remava à ré com 2 remos, e os outros dois a meio, cada um com um remo.
59Na Póvoa de Varzim, iam pescar sobretudo a Âncora, onde chegavam a juntar-se 30 a 40 barcos poveiros ; a remar, levavam 9 horas até Viana do Castelo. Quando trabalhavam com dois barcos, o caceio seguia vazio, e ia geralmente mesmo dentro do barco grande: no local da pescaria, para darem o cerco, arriavam-no, e 3 ou 4 homens da tripulação saltavam para dentro dele; findo o trabalho, e quando a carga era pouca, para o regresso, o caceio vinha outra vez dentro do barco grande, ou seguia a reboque com a rede; quando a carga era grande, não raro deixavam-no no portinho de Âncora, onde o tinham à disposição para a próxima vez.
60No Mindelo, pescavam geralmente perto, em certos locais onde o pilado abundava – Mosteiro, Lamarão, Lanchão, Barro da Vila, Lage, Socorro, mais raramente no Mar dos Paus (perto de Angeiras), e outros –. No regresso, não raro os barcos não podiam varar, pela força do mar, e tinham que ir até Matosinhos, onde esperavam melhor tempo para então regressarem à sua terra.
61Em Vila Chã, pescavam geralmente em frente e perto da praia, a cerca de 1 hora de percurso. Trabalhavam sobretudo de dia, mas por vezes também de noite, quando era conveniente. Um dos homens ia a remar sentado no banco da proa, de costas para a marcha do barco; e o outro ia de pé (com um pé adiante e outro atrás), encostado ao segundo (banco) da ré, de frente, a ver; apenas quando se sentia cansado, ou se o vento era muito forte, se sentava (e então de costas, no segundo da proa). De regresso, se tinham que esperar pela baixa mar, ou se por qualquer razão a maré não permitia que chegassem até à beirada, deixavam os barcos ficar carregados, fundeados em frente à praia; por vezes, os homens vinham para terra, e volviam depois buscá-los, quando as condições se tornavam convenientes; outras vezes, ia um barco de terra até eles aliviá-los da sua carga, para lhes permitir manobrarem mais à vontade. Em tempos mais antigos, e em geral quando se tratava de companhas de lavradores, os dois barcos eram ambos iguais, do tipo do miranço ; mais tarde, os pescadores usavam um barco do tipo do miranço e uma catraia ; e por vezes usavam mesmo apenas duas catraias.
62Em Angeiras, geralmente pescavam perto; mas por vezes, iam até à Póvoa de Varzim ou à barra do Porto, à vela ou a remo.
63Do Pampelido, iam pescar a Angeiras e a Leixões. Ao darem o cerco, remavam dois homens a cada um dos dois remos, e o quinto lançava os cabos e a rede. À largada, quando o mar estava muito forte na Mareta. tinham de ir a pé pelo areal, levando o barco a ombros, até à praia da Memória, que é a mais abrigada, para poderem sair.
64Ao sul do Douro, de um modo geral, a pesca do pilado fazia-se em pontos pouco distantes das praias de origem, trabalhando-se a remo ou à vela. Da Afurada, iam até à Boa Nova, Senhor da Pedra, Espinho, etc., pescando de dia a cerca de 20 braças de profundidade, e de noite a cerca de 6 a 7. Baldaque da Silva8 nota que os pescadores desta praia faziam varadouro para as suas embarcações em Lavadores e na Granja, quando o peixe escasseava no rio Douro, e eles iam pescar ao mar; para pescarem no rio, o ferro ia em cima do coberto; no mar, ia dentro. Quando iam a remo, remavam 2 homens a cada remo.
65Da Aguda, iam até Ovar, pescando a cerca de 15 braças de profundidade: saíam com o cair do dia, ainda com sol, trabalhavam toda a noite, e regressavam de manhã.
66Da Torreira iam sempre pescar ao mesmo ponto, em frente à praia, a cerca de 1 milha e meia da costa.
67Os pescadores do pilado dos grupos da ria de Aveiro, da Murtosa, S. Jacinto e Costa Nova, tinham os seus barcos na ria, junto aos palheiros de S. Jacinto; e era daí que eles largavam para pescar no mar, nos bancos exteriores da barra e suas imediações : se o mar estava bom –anunciado pelo pendão que então não se encontrava ao alto –, eles esperavam pela vazante para sair, trabalhando, no verão, logo ao lado da barra e no Espalhado 9, ou rumo a Oeste, ou em frente à Costa Nova e S. Jacinto, etc., por vezes a mais de 20 braças de profundidade. Em certos casos, com bom tempo, saíam à noite. De regresso, esperavam pela enchente para entrarem a barra, evitando desse modo terem que remar contra a corrente do rio; e vinham aportar de novo a S. Jacinto, onde, como dissemos, descarregavam o pilado para a venda. Transcrevemos a seguir a descrição de uma saída para estas pescarias, referida aos primeiros anos do século: «Esta pesca é perigosíssima porque os barcos não têm nem capacidade nem estrutura para resistir à menor ondulação que repentinamente se levante, e os quatro ou seis da companha carregam sempre a amarração (o conjunto dos dois barcos – iguais – que nesta zona constituem uma companha do pilado) até as bateirinhas porem a borda rés-vés com a água. É claro que só com muito bom mar e tempo seguro, além de marés favoráveis no decurso do dia, eles se aventuram fora da barra. Ainda assim, no outono, que é a época da força do mexoalho, o mar é muito inconstante em toda a costa de Portugal, sobretudo para o norte das Berlengas, e mais do que em nenhuma parte na barra de Aveiro, extensamente esparcelada, sucedendo aos caranguejos por várias vezes mudar-se-lhes o mar-chão em mar-ondulado quase de repente e sem nenhum aviso ou prenúncio.
68Saem a barra sempre no fim da vazante, para a todo o tempo poderem arribar para dentro com a maré de enchente. De ordinário, regressam no fim desta, parte do colo do préamar, e se o mar oferece algum risco, logo que está safa da ondulação paira nessa altura aguardando as outras, para socorrer as que porventura naufraguem.
69Quando algum barco se enche de água ou se volta, a corrente a encher traz tudo praia dentro, embarcação e tripulantes, uns a nadar, outros agarrados ao casco, e se está amarração sobre remos cá dentro, tudo se salva – menos a pescaria, está bem de ver –, não se chegando às vezes a perder nem um remo»10.
70Em Buarcos, pescavam em certos locais pouco afastados – Monte Teimoso (perto do farol da Boa Viagem), etc. – a cerca de 7 a 15 braças de profundidade; um homem ia sentado, à ré, o arrais a estibordo, a colher, e dois para trás do banco de trás, também a colher. Deitavam o pilado solto no compartimento do meio, separado do da proa e da ré – onde iam as nassas e a rede – pelos anteparos.
71Na Gala e na Cova de Lavos, os pescadores do pilado tinham as suas embarcações na Gala, já sobre o rio Mondego; e, de cada vez, saíam a barra com a vazante, regressando depois com a enchente como nos grupos da ria de Aveiro. Iam pescar em frente às praias da Leirosa e de Pedrógão, a remo e espadilha, ou à vela e leme, e cada bateira das grandes chegava a carregar cerca de 15 carros de bois de pilado, ao que parece.
72Na praia de Vieira de Leiria não pescavam o mexoalho ; aquele que vinha na rede da xávega era geralmente deitado ao mar, quando o saco chegava à beirada e se abria; por vezes, porém, aproveitavam-no, guardando-o nos armazéns das companhas, depois de o salgarem, e vendiam-no depois aos lavradores da região. Alguns pescadores locais iam porém trabalhar no pilado nas companhas da Nazaré, por conta de gente dali.
73Na Nazaré, os dois barcos saíam ao mesmo tempo, e trabalhavam geralmente em frente à praia, em locais mais ou menos distantes. Para o regresso, se o mar estava bravo, toda a tripulação, como dissemos, seguia no barco da rede, e o do ponto vinha a reboque, carregado apenas com o pilado; e mais do que uma vez ele virou na rebentação e teve de ser puxado para terra pelo cabo que o rebocava, perdendo-se o produto da pesca.
Notes de bas de page
1 Lixa Filgueiras, «O Barco Poveiro», III-I, pp. 78-79, a propósito do barco do pilado, nota que este possuía um par de castanhas a bombordo e outro a estibordo, « de modo a permitir a colocação das forqueias de descanso do mastro e da verga a uma ou a outra borda, consoante as direitas do barco que vai lançar».
2 Lixa Filgueiras, no estudo do barco poveiro, indica em pormenor as variantes que caracterizam certas embarcações com ele relacionadas, nomeadamente o barco do pilado, da faixa costeira a norte da Póvoa de Varzim, e o miranço, a sul («O Barco Poveiro», III-l, 1964, pp. 78-85).
No barco do pilado aqui estudado, de Montedor, o pau da verga media, a meio, 8 cm. de diâmetro, e as espias, à ponta, de 9,5 a 11 cm.
3 Para a descrição e caracterização tecnológica do miranço, ver Filgueiras, op. loc. cit., pp. 79-85.
4 Filgueiras, Barcos, Enciclopédia Focus, I, considera este barco de «tradição tecnológica multimilenar», e de «provável origem na região mesopotâmica» (Barcos, in Dicionário de História de Portugal).
5 Baldaque da Silva, p. 107.
6 Ver a descrição deste barco em D. José de Castro, op. cit., Pescadores, pp. 62-63.
7 Acerca deste barco, ver Filgueiras, Barcos in Arte Popular em Portugal, III, pp. 383-384.
8 Baldaque da Silva, p. 110.
9 Regalia, p. 39.
10 Affreixo, V, 1, p. 9. Do mesmo autor, IV, 8, p. 118, àcerca das condições desta pescaria : «Por sobre isto, avulta o estado do mar, não só ao largo como na borda. Inúmeras vezes apresenta-se completamente chão à distância, e a arrebentação na praia conserva-se alterosa e puxada, não permitindo que os barcos caiam na água e vão fazer o lance».
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