Traje
p. 116-119
Texte intégral
1Por toda a parte em geral, não existe um traje específico para a apanha do sargaço1 ; as pessoas, homens ou mulheres, envergam qualquer roupa vulgar – por vezes mesmo extremamente velha, sobretudo nos pontos onde tal actividade é exercida por essas gentes cabaneiras e pescadores muito pobres –, que, em certos casos, mudam, no fim do trabalho, por outra que haviam trazido de casa, e que está seca.
2No sector costeiro compreendido entre o rio Lima e a Apúlia, contudo, a apanha do sargaço comporta indumentária específica, e funcionalmente adaptada às características e exigências dessa actividade –o traje de branqueta2–, que pode ser masculino ou feminino.
3Traje de branqueta – A palavra «branqueta» designa propriamente o tecido especial de que este traje é feito – de lã na sua cor branca natural (que com o uso escurece sensivelmente); mas, por extensão, designa-se agora com ela também o próprio vestuário.
4Eis como Baldaque da Silva descreve este traje, referido à sua época: «Os sargaceiros do norte do país usam uma vestimenta especial que denominam branqueta. Os homens vestem um casaco branco com abas compridas, preso com um cinto abotoado na frente; na cabeça um chapéu preto de abas grandes, e as pernas nuas. As mulheres... um corpete do mesmo pano abotoado na frente, saia curta também de branqueta, chapéu como o dos homens, e também as pernas nuas»3. Por vezes, em vez do chapéu, o sargaceiro usava o carapuço de lã e borla, corrente em várias regiões rurais do País4.
5O traje, tanto do homem como da mulher, encontra-se hoje nestes termos, quase sem alterações : para o homem, ele consta verdadeiramente de uma única peça – um casaco comprido, descendo até meio da coxa, em que é evidente a sugestão das sobrecasacas masculinas do passado: gola baixa fechada, mangas compridas justas, cingido ao peito e preso à cinta por um cinto de couro, e alargando para baixo em pregas amplas, como um saiote curto, de modo a deixar inteiramente livres os movimentos das pernas, que ficam nuas, e com os pés descalços (figs. 150-152). Aberto à frente e abotoado de cima a baixo com botões que por vezes são feitos do próprio tecido5, ele é usado contra o corpo, sem qualquer roupa por baixo, que, com a longa permanência na água que este trabalho exige, acabaria por macerar a pele e talvez ferir, prejudicando a actividade do sargaceiro e até por vezes a sua segurança. Devido certamente a isto, os sargaceiros da Apúlia, e seguidamente outros, «do concelho da Póvoa (de Varzim) e de fóra» e que iam apanhar sargaço à Estela, foram objecto de reparo, e várias posturas camarárias deste Município recomendam a essa gente, em alusões claramente intencionais, «honestidade e decência» na vestimenta, e «vestuário honesto», impondo penas severas – 1500 reis ou 3 dias de prisão – aos que nesse trabalho «em todo o litoral do concelho da Póvoa (de Varzim) se apresentarem de maneira que ofendam a moral pública»6.
6Ainda hoje, como eco destes conceitos, a gente da Aguçadoura – que não usa a branqueta –, censura os sargaceiros vizinhos, da Apúlia para o norte, de «falta de vergonha»; e em Fão, os sargaceiros da área foram objecto de uma reclamação fundada numa visão idêntica. A acusação, que traduz uma incompreensão e um desconhecimento totais do que são o trabalho e as atitudes culturais do sargaceiro, é, para lá disso, totalmente injusta e injustificável : o talho especial com que é feita a branqueta, e a intenção com que esse traje é usado, garantem um recato perfeito, e só com grande malícia é possível descobrir nele a menor indiscrição. No peito, ele é de duas folhas sobrepostas, para proteger o melhor possível da água e abrigar do frio quem tem de sofrer o embate das ondas, às vezes durante algumas horas; e, do consenso geral, a sua eficiência, em todos os sentidos, é muito grande.
7A gola, os punhos e as frentes, são debruadas com um pesponto grosso e largo, geralmente duplo ou triplo, às vezes com um leve desenho em diagonais, que reforça e faz as vistas de uma barra. E sobre o peito, à esquerda, umas iniciais ou siglas identificam o proprietário da branqueta, para a distinguir no meio das demais, quando se amontoam as de várias pessoas em qualquer sítio onde andem todos ao sargaço ao mesmo tempo.
8O traje feminino é tal como Baldaque da Silva o descreve: do mesmo tecido de branqueta, compõe-se de duas peças: uma blusa lisa, sem gola, fechada como a branqueta masculina e abotoada, à frente de cima a baixo, e uma saia curta e rodada (fig. 153); na cabeça, um chapéu pequeno de abas largas e copa baixa, semelhante certamente àquele a que alude Baldaque da Silva, que segundo ele era igual ao dos homens, mas que, em relação a estes, desapareceu hoje completamente; e ainda, como os homens, naturalmente com as pernas nuas e os pés descalços.
9De um modo geral, pode dizer-se que o traje dos homens é de uso normal e da maior frequência em toda a área, enquanto que o da mulher, embora também exista, vê-se mais raramente; em S. Bartolomeu do Mar, por exemplo, quase todas as mulheres usam branqueta para irem à praia; de resto, elas, não raro, ali, entram também na água para ajudarem à recolha das algas. Mas em Fão e nas Pedrinhas, embora muitas o possuam, ele não se vê com frequência.
10Uma significativa mudança no traje masculino se nota, relativamente ao que se usava na época de Baldaque da Silva: a substituição do carapuço e do «chapéu preto de abas grandes», que, como vimos, deve ter sido igual ao que as mulheres ainda hoje usam, pelo sueste de tela impermeabilizada, com copa de quatro gomos, reforçados, e uma pala curta à frente e outra mais larga e comprida atrás, recobrindo e protegendo o pescoço – todo ele pintado, com iniciais ou desenhos a cores7. Esta mudança parece sem dúvida representar uma inovação devida ao contacto mais íntimo da gente sargaceira com as classes piscatórias e marítimas, em que essa peça indumentária é muito corrente, estabelecida porventura quando estas últimas começaram também a dedicar-se às actividades sargaceiras.
11O tecido da branqueta, que tem especialmente em vista este traje e certas peças do vestuário poveiro era, sem dúvida, primitivamente, uma espécie de bural caseiro – o tecido de varas 8–. Hoje, ele é fornecido pela indústria de lanifícios; é geralmente na Póvoa de Varzim que ele se pode obter, de preferência em certas lojas. A confecção da vestimenta é executada por alfaiates e o seu preço – tecido e feitio – era, em 1955, de 300$00.
12Os homens, quando iam à praia ao sargaço, saiam de casa vestidos com o seu traje normal de trabalho da terra: umas calças vulgares, camisola, casaco, ou uma simples camisa, socos nos pés, e chapéu. Descalços caminhavam assim depois pelo areal, até ao ponto que tinham escolhido para a apanha das algas, levando a branqueta e o sueste ao ombro, ou pendurados do cabo de uma graveta ou rodafole, que em certos sítios (como no areal da costa de Fão) carregavam num carrelo de rodas. Chegados a esse ponto, espetavam o rodafole ao alto, desnudavam-se da cinta para cima, vestiam a branqueta, e em seguida, perfeitamente cobertos, desenfiavam as calças. Da roupa que tiravam faziam uma trouxa, que ficava ao lado, na areia seca. Para se vestirem, terminada a faina do dia, repetiam a operação ao contrário, e regressavam pelo areal já de novo com a sua roupa habitual.
13As mulheres, ainda hoje, nos casos em que usam a branqueta, saem de casa com qualquer roupa velha, levando, se vão trabalhar na água, a branqueta numa trouxa; e mudam-se na praia, nos barracos ou em qualquer recanto abrigado das dunas (fig. 15) ; e, para regressarem, envergam, da mesma maneira, a roupa seca, que trouxeram vestida de casa. Se vão apenas ajudar a espalhar ou fazer qualquer outro trabalho com o sargaço, sem se molharem, podem também usar a branqueta, saindojá de casa com ela e sem se mudarem na praia.
14Hoje em dia vê-se, as mais das vezes, nos homens e nas mulheres, casacos de tela impermeável (divulgados depois da Segunda Grande Guerra Mundial, a princípio como refugo de material militar) ou materiais plásticos, recobrindo ou substituíndo o traje de branqueta, como melhor protecção contra a água e o frio.
Notes de bas de page
1 Em Afife, na área onde, em Portugal, o traje feminino tradicional apresenta formas mais ricas e variadas, ajustadas a múltiplas situações, de trabalho e de festa, definiu-se há poucos anos um «traje de sargaço», dentro do estilo geral da região, mas que não tem qualquer realidade funcional, e é usado apenas em cortejos ou certames congéneres. Compõe-se ele de saia rodada, de estopa branca, com «barra», em baixo, de riscado preto e branco; camisa simples, de manga comprida, de linho grosso também branco; colete de lã, preto e branco, muito decotado; lenço de cor, da cabeça, mas posto aos ombros e cruzado sobre o peito; chapéu de palha, de aba muito larga; sapatilhas brancas nos pés. De facto, para irem ao mar, as mulheres da região embora usem com grande frequência a saia branca, envergam, como por toda a parte, qualquer roupa velha de trabalho que não se importem de estragar.
2 Vê-se assim que a área geográfica deste traje coincide muito aproximadamente com a área das jangadas, sendo de admitir a existência de uma relação entre estes dois elementos culturais. A fotografia fig. 152, mencionada na nota 130, mostra, como dizemos, um jangadeiro de Anha, que à beira mar corresponde à actual praia de Viana do Castelo, imediatamente a sul da foz do rio Lima; e embora actualmente não existam jangadas nesse ponto, vemos que Baldaque da Silva insistia na sua existência ali no seu tempo, falando mesmo nas expedições que elas faziam a norte de Viana do Castelo, em busca do sargaço. Por outro lado, ao sul da Apúlia, o traje desapareceu completamente, e o facto que apontamos da gente da Aguçadoura se referir ao seu uso por parte dos sargaceiros seus vizinhos do norte numa atitude crítica, marca claramente o limite da área; e nesta localidade não existem – nem temos conhecimento da passada existência – de jangadas. Da nossa hipótese há portanto que exceptuar apenas Averomar, onde o traje não é conhecido, e pelo contrário os cortiços existem de longa data, sendo mesmo hoje muito abundantes.
3 Baldaque da Silva, op. cit., p. 366.
4 Numa velha fotografia inserta na pequena nota de Leandro Quintas Neves, intitulada «O sargaceiro de Castelo de Neiva», Quatro Ventos, 2.a Série, 3-4, Braga, 1959 (e que conhecemos também de um postal editado pela Casa Couto Viana, com a legenda : Jangadeiro de Anha que aqui reproduzimos (fig. 152), vê-se um sargaceiro com a vara da jangada usando a branqueta e o carapuço, a que o Autor dá o nome de catalão, que porém corresponde a um tipo diferente de carapuço, usado pelos pescadores poveiros. O Autor ensina que essa fotografia pertence a uma colecção adquirida pelo Comendador José Albino Pereira de Carvalho entre 1820 e 1850, já nessa altura designada por «Trajes populares antigos». Esta cronologia parece-nos contudo excessivamente recuada, tendo em atenção a data em que se divulga a arte fotográfica ; mas é apesar disso um índice seguro da sua antiguidade.
5 A abotoadura à frente, é direita e corrida, da Apúlia ao Cávado; daí para o norte o saiote tem, porém, em baixo, uma presilha com casa, que vem apertar mais dentro; e encontramos este pormenor já na imagem do «Jangadeiro de Anha», a que aludimos na nota anterior (fig. 152).
6 A Postura camarária da Póvoa de Varzim de 22.III. 1865 dispõe que : «É permitido aos da Apúlia apanhar sargaço, polvos e lançar espinhéis na Esteia, com armas e utensílios iguais aos que usam os povos da Esteia, como também vestidos com honestidade e decência, compatíveis com aquele emprego». Esta permissão e restricções foram tornadas extensivas aos povos do concelho e de fora pela Postura camarária de 20.XII desse mesmo ano: «para que somente o possam fazer com instrumentos e vestuário honesto...». Finalmente, a Postura camarária de 9.VIII.1871 assim dispõe (art.° 15): «É proibido tomar banho em estado de nudez em todo o litoral do concelho da Póvoa de Varzim, sob pena de 1.500 réis e 3 dias de prisão. § único – Nas mesmas penas incorrem todas as pessoas que andando na apanha do sargaço ou rapilho e estrumes, ou puxando barcos da água, se apresentarem de maneira que ofendam a moral pública». Cândido Landolt assim se refere a estes diplomas: «Com relação... (ao) vestuário, tudo leva a crer que os povos da Apúlia se apresentavam quase nus... dando motivo a que a Câmara os obrigasse a apresentarem-se de modo que não ofendessem a moral pública...
Supomos que se trata, mais uma vez, dessa total incompreensão com que espíritos viciados por uma óptica falseada interpretam a branqueta, traje excepcionalemnte bem concebido, e que era já, sem dúvida, aquele que os sargaceiros usavam no tempo das Posturas camarárias que transcrevemos.
7 Note-se que, em certos pontos, as mulheres sargaceiras começam também hoje a usar o sueste.
8 Leandro Quintas Neves, op. loc. cit., p. 8.
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