Marcas
p. 113-115
Texte intégral
1Para identificação das respectivas alfaias, cada sargaceiro tinha uma marca especial, que inscrevia no cabo das suas gravetas, rodafoles ou rastilhas, nas pegas das carrelas, nas branquetas e suestes, que era diferente de pessoa para pessoa, e que toda a gente do lugar conhecia. Essas marcas eram por vezes simples iniciais; mas mais geralmente apresentavam-se como siglas características, constando de combinações muito singelas de traços – «piques» ou «trinques» –, em número e posição diversos, sós ou em conjunto com cruzes, «sino-saimões», etc., as mais das vezes entalhados à navalha, em bisel de ambos os lados ou de um só, e mais raramente pintadas.
2Em muitos casos, tais marcas eram estritamente individuais, escolhidas livremente por cada um. Mas, em certos lugares onde a actividade sargaceira revestia formas mais ricas e originais, como por exemplo em Fonte Boa, na Costa de Fão, embora sem grande rigor, elas correspondiam às diferentes casas de lavoura, e transmitiam-se hereditariamente com a própria casa. As pessoas usavam a sigla da casa a que pertenciam, e o filho que casava e saía de casa usava a sigla da casa para onde transitou ; e se criava casa nova, criava eventualmente também uma marca nova.
3O sistema de identificação por marcas com valor de nomes é conhecido sobretudo pelas siglas gravadas nas cantarias dos monumentos arquitectónicos medievais. Em Portugal, ele encontra-se, além disso, nos meios piscatórios, onde mostra aspectos muito complexos, e onde foi estudado pormenorizadamente por Santos Graça1. Em alguns pontos, tal como sucede com os sargaceiros, elas compõem-se simplesmente de iniciais ou de certos desenhos esquemáticos, que cada pescador escolhe, e que grava nos seus aprestos, para atestar a sua propriedade. Na Póvoa de Varzim, porém, elas constituem uma verdadeira heráldica, que indica, a quem conhecer a sua regra de leitura, o tronco donde o indivíduo provém, que corresponde à sua alcunha, e à sua posição na ordem de descendência, dada por outro sinal, feito de «piques», alinhados, cruzados, ou «gravados». Estas siglas, que, para registo, o pescador, quando casava, gravava à faca na mesa da sacristia da velha Matriz da Póvoa de Varzim, serviam para marcar a sua alfaia específica, encabeçava a sua conta no livro do tendeiro, e figuravam, finalmente, na sua lousa tumular, onde tomam «toda a característica de inscrição individual bem definida»2.
4Aquele Autor, porém, notara já a existência de siglas do mesmo género em populações da beira-mar nortenha que não eram caracterizadamente piscatórias, nomeadamente em alguns grupos desses «pescadores-seareiros», a que temos aludido, que as usavam nos seus aprestos marítimos; e faz uma referência especial à gente sargaceira da Aguçadoura, que marca com elas, na areia, a propriedade das mantas de sargaço que aí seca3. E Jorge Dias fala também nas siglas dos sargaceiros de Fão, como um traço cultural comum às gentes rurais e marítimas deste sector litoral4. Contudo, vê-se que as marcas hereditárias destes lavradores-sargaceiros distinguem-se de certo modo das siglas piscatórias, nomeadamente poveiras e buarcenses, que são dominadas sobretudo pelo princípio familiar, por forma que os vários filhos herdam todos, vivam ou não vivam em casa, a sigla paterna ou ancestral, embora acrescida de sinais distintos que a individualizam em relação a cada um. Mas é evidente que, remontando este costume, nas comunidades sargaceiras rurais, a uma época em que o regime familiar era dominado por conceitos patriarcais em que casa e família se identificavam essencialmente, a marca da casa era de facto a marca de todos os membros da família, porque todos nela viviam. Em todo o caso, esta diferença sublinha expressivamente o contraste que existe entre a estabilidade e a importância central da casa nos grupos rurais, e o seu carácter temporário e incerto no mundo piscatório, onde as pessoas estão dela totalmente desligadas.
5A origem destas siglas é hipotética. Santos Graça, pela sua configuração, identifica-as com os sinais alfabetiformes que aparecem nas lápides funerárias ibéricas, que interpreta como marcas pessoais, em oposição às teses alfabéticas que vêem nelas caractéres de uma escrita original ainda não decifrada5 ; Jaime Cortesão, pelo seu lado, a respeito da Póvoa de Varzim, explica-as pela filiação do grupo poveiro nas populações castrejas da região, entendendo que: «...o processo de assinalar todos os objectos de propriedade individual ou de família e os de «companha» com siglas próprias, radica na tradição pré-histórica das marcas do gado, com que se distinguiam as reses do clã»6. Este mesmo Autor, em apoio da sua hipótese étnica, fala ainda na existência, na cultura poveira, de instituições de fundo comunitário, que aproxima das serranas, as quais, de acordo com Jorge Dias7, parecem constituir sobrevivências dos vetustos comunitarismos castrejos. Contudo, não se pode afirmar que o costume das siglas hereditárias, por parte dos lavradores-sargaceiros, venha de tão longe; embora essas marcas fossem já «de avôs e bisavôs», o seu uso funda-se sobretudo em razões funcionais, que diluem o seu aspecto de meras sobrevivências, e elas aparecem sem dúvida relacionadas expressamente com a natureza conjunta do trabalho na praia, onde existe o perigo da apropriação ou troca de ferramentas por outrem, que elas neutralizam; com efeito, os mesmos lavradores que marcam com a sua sigla privativa os seus aprestos de sargaço, nada de semelhante fazem à sua alfaia agrícola, porque isso é aí desnecessário8. De resto, elas podem também explicar-se pelo contacto desta gente rural com os pescadores de outros lados, que. esses, as usavam em nome de um princípio ancestral, e a sua hereditariedade seria menos um direito que um facto, resultante imediato da própria transmissão dos objectos em que elas se encontram entalhadas.
6Como testemunho do cumprimento de promessas, em especial as que fazia em nome colectivo da «companha», o poveiro inscrevia nas portas, cercaduras de madeira, mesas de sacristia, etc., dos templos dos santos da sua devoção, no dia da respectiva festa, a sua sigla, que toma aí o sentido de uma marca votiva9 ; e, a atestar a sua passagem, o mesmo fazia nas suas arribadas à costa norte, nas portas das capelas que por aí se encontram, nomeadamente a de Santa Tecla, em La Guardia (Galiza), e a da Nossa Senhora da Bonança, no areal ao sul de Fão10. Nesta última, elas alternam com as siglas que mencionamos dos lavradores-sargaceiros da região11, que pelo seu lado aí as gravavam igualmente como marcas votivas, em cumprimento de quaisquer promessas feitas em momentos de aflição durante as expedições da pesca do pilado que não raro tinham lances perigosos.
Notes de bas de page
1 Veja-se Flávio Gonçalves, «Um templo desaparecido: a antiga Igreja Matriz (depois igreja da Misericórdia)», Póvoa de Varzim, Boletim Cultural, III-2, Póvoa de Varzim, 1964, p. 202, nota 4, a bibliografia acerca das siglas dos monumentos românicos e góticos portugueses.
2 A. Santos Graça, Inscrições tumulares por siglas, p. 21. Em Buarcos, onde a marcação de aprestos piscatórios por siglas é também conhecida, a individualização da sigla familiar é feita, não por «piques» acrescentados à marca principal, como na Póvoa de Varzim, mas pela junção a esta da inicial do prenome do filho – o que constitui uma inovação resultante do progresso da instrução (op. cit., pp. 36-37) ; é de notar que, nesta localidade, a sigla dos «Cegos» são os fois, isto é, a esquematização do rodafole.
3 A. Santos Graça, op. cit., pp. 41-42.
4 Jorge Dias, «Las construcciones circulares del Noroeste de la Península Iberica y las citanias», pp. 193-194, e «Construções circulares no litoral português», p. 194.
5 A. Santos Graça, Inscrições tumulares, pp. 69-83.
6 Jaime Cortesão, «A Póvoa e os Poveiros», O Primeiro de Janeiro, 26.VII.1965 ; esta apoiaria notavelmente a hipótese da identidade originária de certos grupos marítimos e rurais desta região a que tantas vezes nos referimos neste trabalho.
7 Jorge Dias, Vilarinho da Furna, uma aldeia comunitária, Porto 1948 ; e Rio de Onor, comunitarismo agro-pastoril, Porto, 1953.
8 Excepcionalmente, vimos uma sigla num cambo de carro de bois; mas o facto explica-se porque os carros de bois também vão à praia, buscar o sargaço seco.
9 A. Santos Graça, O Poveiro, pp. 31-32. V.g. na Senhora da Abadia e S. Bento da Porta Aberta (Terras de Bouro) ; S. Torcato (Guimarães) ; Senhora da Guia (Vila do Conde); Santa Cruz (Balazar); etc.
10 Acerca de Santa Tecla, na Galiza, Santos Graça nota a coexistência de siglas de pescadores portugueses – poveiros e de outros aglomerados piscatórios – e galegos, aludindo à sua ascendência comum e às inúmeras ligações e relações que existiam entre uns e outros, provenientes em grande parte de casamentos, uma vez que, pela força desse sentimento de classe, eram-lhe menos estranhas as pescadeiras galegas do que as filhas dos «peixes de couro» portugueses (Inscrições tumulares, pp. 45-46).
11 Jorge Dias, «Construções circulares no litoral português», p. 194.
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