Barcos, masseiras e jangadas
p. 92-102
Texte intégral
1O corte ou apanha das algas que se encontram fora do alcance da utensilagem que se maneja da praia, são feitos de dentro das embarcações que existem nesta faixa costeira – barcos ou masseiras, e jangadas. De um modo geral pode dizer-se que as masseiras se encontram no sector compreendido entre os rios Minho e Lima; deste até ao Ave, encontram-se – e principalmente encontravam-se – as jangadas, ao mesmo tempo que certos tipos de barcos; e do Ave ao Douro, usavam-se apenas barcos. Passamos por isso a descrever e estudar as diversas formas que apresentam estes três géneros de embarcações.
A – Masseiras
2As masseiras ou gamelas são, como o seu nome sugere, pequenas embarcações de proa e ré cortadas, e de fundo chato ligeiramente arqueado (des. 17 e fig. 126). A sua construção é muito simples: todas as tábuas que formam o fundo, as bandas e os testeiros são espessas, e as suas ligações macheadas. O testeiro da proa é mais estreito do que o da ré; dos quatro bancos um é amovível, permitindo maior arrumação para certas pescarias; e são recobertas interior e exteriormente por uma camada de breu negro. A masseira é tripulada por dois homens, acidentalmente três. Bolina menos mal, graças ao grande leme que possui. Navega a remo ou à vela.
3A masseira encontra-se presentemente desde Caminha até ao Neiva. Baldaque da Silva, à data do seu trabalho, menciona-as apenas entre o Minho e o Lima; Santos Graça, alargando a sua área, refere-se à sua existência na Póvoa de Varzim até ao princípio deste século1. Daí para o sul não possuímos qualquer informação que indique o seu uso. São muito numerosas em Âncora e Caminha, constituindo, depois do desaparecimento (que teve lugar em nossos dias) do barco de tipo poveiro para a pesca do largo, a totalidade das suas embarcações de pesca.
4A masseira manobra bem nas passagens estreitas entre penedos, é muito sólida, e, talvez mais que os barcos de outro tipo, é ajustada às actividades sargaceiras.
B – Barcos
5Os barcos para o sargaço não diferem dos que são usados exclusivamente para a pesca e apresentam-se segundo dois modelos:
a) Catraias de tipo poveiro
6Da Apúlia para o sul é este o tipo de barco que presentemente se vê por toda a parte. De construção muito ligeira, aparece como um barco poveiro reduzido quase apenas às suas partes essenciais. Estas catraias, de uns 4,50 a 5,50 m de comprimento, têm-se divulgado também para o norte, substituindo na Apúlia, e principalmente em Fão, os antigos barcos de fundo chato, de que falaremos a seguir; e encontram-se também, em grande número, em Castelo de Neiva (figs. 24, 30, 45, 46, 47, 49 e 50).
b) Pequenos barcos de fundo chato, do tipo do canote de Fão
7Por toda a costa da área de Esposende, existiu um barco de rodas de proa e ré e fundo chato (fundo de prato), muitas vezes sem leme quando utilizado na pesca costeira (des. 18-20 e fig. 127) ; mas, como dissemos, ele está a ser rapidamente substituído pela catraia de tipo poveiro acima mencionada, mais vantajosa para a pesca fora da zona dos recifes. Este tipo parece ter sido vulgar também na costa a norte desta área, e era possivelmente em barcos destes que a gente de Anha saía ao sargaço até às alturas de Montedor.
8Por informações colhidas em Fão, existiram ali, até há cerca de sessenta anos, também barcos de fundo chato, de ré cortada. Lixa Filgueiras admite que eles tenham «constituído o modelo que precedeu o actual»2. A confirmar-se esta hipótese, tal barco teria servido, então, possivelmente, para a apanha do sargaço. Vêmo-lo ainda a norte de Viana do Castelo, em Montedor, utilizado pelos lavradores principalmente como barco auxiliar do grande barco da pesca do pilado (des. 40).
9Estas pequenas embarcações, a que rapidamente nos referimos, guardam-se nas barracas, junto dos barcos do pilado, agora inúteis e na maioria desfeitos, pelo abandono a que foram votados depois do desaparecimento deste crustáceo.
C – Jangadas
10As jangadas foram, noutros tempos, usadas em escala muito mais larga do que hoje. Baldaque da Silva refere a sua existência nas últimas décadas do século passado em toda a área compreendida entre Anha, ao sul de Viana do Castelo, e a Aguçadoura, ao norte da Póvoa de Varzim, e até há cerca de 50 anos ainda aí, e mesmo mais ao sul, eram muito vulgares, quer para a recolha de sargaço, quer apenas para a passagem até às rochas descobertas na baixa-mar, onde se pesca o polvo com o bicheiro, ou se apanham mariscos, quer até, incidentalmente, para uma pequena pesca – em parte também feita por gente rural que ia à praia ao sargaço.
11Presentemente, porém, elas desapareceram praticamente por toda a parte, excepto em Castelo de Neiva e Averomar (encontrando-se também algumas ainda nas Marinhas e na Apúlia). De facto, embora tenham sobre os barcos a vantagem de poderem trabalhar sobre pedras pouco submersas, que são perigosas para qualquer outra embarcação, a dificuldade de manobra tem levado à sua substituição por pequenas catraias ; de resto, em vários locais, é já quase só o pescador quem se dedica à colheita de algas feita de bordo, aproveitando os seus barcos de pesca.
12Em relação ao passado, são escassas as informações que ainda se podem colher nos locais onde as jangadas foram usadas; a memória do povo não conserva nítida a imagem das coisas vistas apenas na infância, e que perderam a sua utilidade. A única fonte de notícias que possuímos, é o livro de Baldaque da Silva, referido a 1892 ; mas supomos que muitos dos elementos consignados, e em especial os que dizem respeito ao sargaço, não assentam em observações directas. Descreveremos por essa razão em primeiro lugar todas as jangadas que nós próprios encontramos e, em apêndice, compararemos as nossas observações com os dados extraídos daquela obra.
13Quem desce a costa encontra em Castelo de Neiva as primeiras jangadas, ainda em 1938 em número de 434, reduzidas em 1970 a umas escassas dezenas, e hoje a menos de uma dúzia (figs. 22, 23, 24 e 120) ; as da vizinha povoação de Amorosa haviam já passado para esta freguesia, em consequência do abandono a que os lavradores dali as votaram, deixando de as usar há já vários anos.
14Essas jangadas são constituídas por um estrado de troncos de choupo ou vime (borriço), grosseiramente talhados a machado, e ligados uns aos outros por duas travessas espigadas; as juntas são tomadas por tábuas ou troncos finos, pregados apenas onde se abre a boca duma fenda mais larga. O tronco do meio, pau d’apor, e os dos lados, beiras, são sensivelmente mais compridos que os outros, e as pontas, mais finas, recurvam-se um pouco para cima; sobre cada um desses laterais está um pau mais delgado, guarda, que forma uma espécie de borda impedindo o sargaço de cair da jangada. As guardas são fixadas às beiras por dois tornos de madeira, justamente na altura em que prendem também as travessas que unem o estrado. Todos os troncos principais da jangada são numerados, para se reporem na mesma ordem no caso do conjunto ser desarmado, o que acontecia por vezes para facilitar a arrumação da jangada nos barracos onde eram guardadas durante a época morta. As pontas das beiras e do pau de apor tem uns entalhes por onde os agarram quando querem levantar ou empurrar a jangada (des. 21). Este estrado tosco desloca-se, em terra, em cima de um rodado, sobre cujo eixo pousam os troncos mais espessos, entre dois pares de tornos de madeira, amovíveis, que se espetam entre os troncos desse estrado. As rodas, em certos casos, são semelhantes às dos carros de bois, de miúlo e cambas, apenas mais leves; noutros casos, elas são de duas folhas de tábuas cruzadas e pregadas. Deslocadas até ao mar, o rodado fica solto, em seco (fig. 27), enquanto a jangada se desloca à vara (fig. 33, 34, 35), longa haste de pinheiro delgada, munida na extremidade inferior de uma forte ponteira de ferro. Para a manter fundeada, cravam um pau no estrado da jangada e nele amarram o cabo da poita (des. 21-8).
15Estas jangadas são tripuladas indistintamente por uma ou duas pessoas, homens ou mulheres, não se afastando muito da praia para norte ou para sul (figs. 28 a 35).
16Nas Marinhas perdura ainda um pequeno grupo de corticeiras, pequenas jangadas que não passam dum caixilho de tábuas, dentro do qual, postos de cutelo e no sentido longitudinal, estão apertados bocados de cortiça. O conjunto é firmado por travessas espigadas nas tábuas compridas que formam os lados, e apertado por arames que se cruzam em X na face exterior dessas mesmas tábuas, ou cavilhando as pontas das travessas. As tábuas laterais estreitecem nas pontas, de modo a servirem de pegas (des. 22).
17As corticeiras ficam no areal, fora do alcance das ondas, pousadas sobre suportes espetados na areia, para que esta as não cubra quando vem arrastada pelo vento (fig. 121).
18Estas pequenas jangadas são empregadas apenas para a passagem para as pedras, onde apanham polvos.
19Nas dunas de Fão, entre a Senhora da Bonança e o agrupamento das Pedrinhas, encontrava-se uma jangada formada por um estrado de tábuas que apoiava numa grade composta lateralmente por troncos de choupo cujas pontas ficavam salientes, fazendo de pegadeiras, e em que entalhavam, pela face inferior, à frente e atrás, duas travessas pregadas e amarradas com arames; sobre cada um desses paus laterais havia três asas fortemente pregadas, por onde pegavam os homens quando as queriam transportar pelo areal (des. 23). Num último exemplar ali existente, o dono tinha aplicado à grade um rodado solto e de eixo móvel, que encaixava em pequenos rasgos, talhados junto de cada topo, ora à frente ora atrás conforme as conveniências, e que permitia a sua mais fácil deslocação em terra (des. 23 b e fig. 122).
20Em Sedovem existem ainda algumas jangadas cuja forma primordial se parece bastante com a das corticeiras das Marinhas. Estas jangadas, a que ali dão o nome de barças, têm o aspecto de um grande caixilho composto de duas tábuas laterais postas de cutelo, afastadas uma da outra um pouco menos de 1 m, e com cerca de 2,50 m de comprimento e 30 cm de alto, ligadas por quatro travessas delgadas, espigadas em cada um dos seus dois bordos, superior e inferior. Dentro desta espécie de caixilho ou caixa dispõem-se pedaços de cortiça; e um arame passado entre as duas tábuas, à frente e atrás, impede que eles se desloquem. A parte com cortiça não ocupa todo o comprimento das tábuas, que ficam, numa das extremi dades, com as pontas salientes, de modo a fazerem de pegas ou mãosciras. Para o seu transporte no areal, estas barcas são ou pousadas, à frente, sobre um rodeiro solto composto de um eixo com duas rodas, que se larga ao entrar na água (des. 24 e fig. 123), ou atravessadas sobre um carreio (fig. 124), o qual é por vezes usado também para transportar o sargaço, pousando-se sobre ele uma carrela carregada. O eixo do rodeiro mede cerca de 1 m entre as rodas, que por sua vez se compõem de duas folhas de tábua de 28 mm de espessura, com os veios desencontrados, num total de 5,6 cm cada roda, e com 55 cm de diâmetro. O dono de uma delas, nascido por volta do princípio do século, diz tê-las conhecido sempre deste tipo, desde os tempos de rapaz; elas eram utilizadas apenas para atravessar para as pedras.
21Averomar continua a manter um grande grupo de jangadas, a que dão o nome de cortiços. Estas jangadas são com efeito formadas por quatro rolos de cortiça, os molhos, com cerca de 1,40 m de comprimento, cingidos por uns poucos de arames, e atravessados por duas pernas de pau, que os prendem uns aos outros e servem simultâneamente de pegas. Nos extremos da face que escolhem como superior, fixam-se dois sarrafos de madeira, os testeiros, que desempenham o papel de bordas, não deixando escorregar o sargaço. Toda esta rudimentar estrutura é atada com arames logo que começa a desconjuntar-se (des. 25).
22Os cortiços são tripulados por uma só pessoa – que é sempre um homem –, e empregados quase que exclusivamente na apanha do sargaço (figs. 91 a 94). No areal colocam-nos de pé, encostados a espeques, para a cortiça se manter arejada (figs. 89 e 125). Um cortiço carregado dá três a quatro carreladas. Ultimamente há grande dificuldade na compra da cortiça; é-lhes difícil pagarem o preço oferecido pelas fábricas e não conseguem fornecedor.
Notes de bas de page
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