I Parte. Apanha das algas marinhas
p. 13-23
Texte intégral
1A apanha, corte ou recolha das algas marinhas que crescem na penedia ou que o mar arroja à praia – o sargaço1, argaço2, ou limos 3– para adubação das terras de cultura, era certamente a mais importante dessas fainas agro-marítimas4, onde trabalhos que interessavam à lavoura se desenrolavam num quadro natural que normalmente lhes é estranho, e onde coexistiam, por vezes de modo muito sugestivo, formas agrícolas e piscatórias.
2Conhecida em vários paises marítimos da Europa – no Atlântico Norte, Islândia, países escandinavos e bálticos, Noruega, Dinamarca, ilhas Orkney e Hébridas, Escócia, Irlanda, Ilhas de Aran e do canal da Mancha, Bretanha, Espanha e países mediterrâneos, no Adriático oriental, ilha de Krk, etc.5, e também em Cabo Verde e nos Açores6 – ela ocorria entre nós de norte a sul do País; mas, enquanto que ao norte do rio Douro ela se praticava ao longo de todo o litoral e constituia uma actividade normal e extremamente frequente – e em alguns casos mesmo uma categoria económica fundamental–, ao sul daquele rio ela tinha lugar apenas, em muito pequena escala, perto de Peniche e em certos recantos das arribas da Ericeira e do cabo Espichel7 ; no litoral alentejano e algarvio, onde o mar arrojava à penedia quantidades por vezes enormes de algas – os limos, ou o golfo –, elas não eram praticamente aproveitadas.
3A possibilidade de produção das algas depende de certas condições, que se verificam com especial evidência precisamente nessa zona do nosso litoral, e nos lugares do sul onde esta actividade também tem lugar – nomeadamente, é necessário que a costa seja franjada de penedia onde as algas possam agarrar-se e medrar, mas de onde, ao mesmo tempo, o movimento das águas superficiais, nos temporais e marés agitadas e fortes, logre arrancá-las ; vêmos, com efeito, que é geralmente em seguida a esses factos que aparece mais sargaço nas praias. Para que esta actividade se possa exercer, importa além disso que a costa seja acessível, e que haja amplos areais ou espaço disponível para a recolha e secagem dessas algas – condições estas, que em conjunto, são características da orla marítima ao norte do Douro, e que não ocorrem com frequência ao sul desse rio.
4Por outro lado a apanha do sargaço pode relacionar-se, de certo modo, com a pequena propriedade e as culturas intensivas; é de facto nesses casos que a utilização das algas como fertilizante é especialmente eficaz e viável. E são precisamente estas as condições que se verificam nas zonas nortenhas do litoral, onde aquela actividade teve o maior relevo e onde, além disso, a procura do sargaço e o trabalho da terra se faziam, fundamentalmente, em regime de exploração familiar.
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5Ao norte do Douro, esta actividade apresentava aspectos muito característicos e originais. Ela estava na base de factos sociológicos e económicos expressivos, que ora se relacionavam com certos padrões locais relativos à distribuição dos diferentes trabalhos por sexos, ora com a natureza híbrida da própria actividade, na qual se articulou mesmo uma evolução ou mutação sócio-profissional específica – a transformação de uma forma de trabalho familiar, subsidiária da lavoura própria, numa actividade autónoma com finalidade comercial directa, feita progressivamente por gentes de outras categorias sociais que a ela se foram consagrando; e, nas vastas zonas de dunas da Aguçadoura, um movimento bem definido de aproveitamento e valorização das areias, iniciado nos finais do século passado, para a «descoberta do terreno», ou sejam terras de cultura hortícula intensiva – os «campos de masseira» típicos da região –, liga-se estreitamente com este fenómeno, que por um lado permitiu aquele movimento, e por outro foi por ele francamente incrementado. Em certos exemplos concretos – e é este um dos aspectos que se nos afigura mais importante e consequente –, a actividade sargaceira constituiu um factor essencial de povoamento costeiro, quiçá prolongando ou repetindo, em nossos dias, o processo demográfico que em tempos remotos deu origem a alguns núcleos populacionais hoje de grande vulto.
6Este trabalho implicava alfaias e técnicas próprias, e até, em certos casos, costumes e indumentária específicos, que por vezes sublinhavam muito expressivamente a natureza dos diferentes estratos sociais em causa.
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7A apanha do sargaço neste sector costeiro era originariamente exercida primordialmente por lavradores da zona litoral que, como faina subsidiária da lavoura, iam ao mar ao sargaço para consumo nas próprias terras (e por vezes também para venda)8. Esses lavradores viviam mais para o interior, em aldeias não raro muito antigas e caracteristicamente rurais –com amplas casas de lavoura de fachadas largas, de térreo e andar, telhados baixos de quatro águas, dispersas à face de estradas ou caminhos tortuosos e desertos entre muros, para onde abrem portais alpendrados, e com a igreja ao lado do adro e do cemitério –, na orla de pinheirais que as separam das freguesias vizinhas; e, nas praias que lhes correspondem viam-se, em locais convenientes, apenas os seus barracos de abrigo e arrecadação das algas, alfaias e barcos, «dependências da casa de lavoura», nas palavras de Rocha Peixoto.
8O trabalho era feito por eles próprios ou pelos seus familiares (de acordo com a estrutura económica da agricultura regional), individualmente mas a par com outros vizinhos da freguesia, e normalmente ao mesmo tempo que estes. Em certos pontos, quando esses lavradores possuiam barcos e estavam familiarizados com o mar – o que sucedia com grande frequência –, à apanha do sargaço acrescentava-se normalmente a pesca do pilado, e por vezes uma pesca para consumo próprio ou acidentalmente para venda local9. Ainda em nossos dias, e mormente até ao decénio de 60, por toda a parte, e em especial nos grupos a norte da Apúlia, a apanha do sargaço conservou muitos aspectos desse seu carácter originário. Contudo, é patente, de um modo geral, a tendência para o abandono destas actividades por parte do lavrador; e hoje, como imagem viva deste estado de coisas, os seus barcos de pilado e de pesca desfazem-se pouco a pouco esquecidos nos barracos desertados e arruinados, ou mesmo nos areais onde essa gente só muito escassa e raramente ainda vai. Isto é particularmente sensível nos grupos ao sul da Apúlia – na Aguçadoura e em Averomar, no Mindelo, Vila Chã e Angeiras, etc. – onde outrora a apanha das algas pelos lavradores teve a maior importância.
9Entre as populações rurais deste mesmo sector, houve porém sempre – como ainda hoje acontece – um estrato de gente muito pobre, cabaneiros, seareiros ou taraqueiros 10, vivendo também naqueles aglomerados do interior, mas que possuíam poucas ou nenhumas terras, e eram obrigados, para subsistir, a deitar mão a toda a espécie de serviços. Esses cabaneiros, procurando o seu salário, cumulavam mestéres agrícolas e marítimos conforme as oportunidades que se lhes deparavam, empregando-se como moços de lavoura ou trabalhadores a jornal, cultivando pequenas glebas arrendadas, e também pescando e apanhando sargaço para vender. A distinção entre estas duas espécies de sargaceiros – lavradores-sargaceiros e cabaneiros-sargaceiros– é feita muito claramente já em alguns dos documentos adiante citados ou transcritos, que estabelecem mesmo, para cada uma delas, regimes diferentes no que se refere aos tributos a pagar pela apanha do sargaço. Assim, na Provisão de D. João V, de 1742 (que pôs termo à velha contenda entre os governadores do castelo da Póvoa de Varzim e os lavradores ou moradores da vila, a favor destes últimos) fala-se em lavradores – e a própria designação de «lavradores» (aliás usada também nos diplomas relativos a Terras da Maia) já por si é plenamente significativa – que apanhavam sargaço para «únicos adubos das suas fazendas, sem os quais não dão pão», e em outras gentes que exerciam essa actividade «por ofício para vender e comprar pão» ; na Notícia da Vila da Póvoa de Varzim, de 1758, refere-se o «argaço que para adubos de seus campos tiram os lavradores, e para vender extraem os jornaleiros»11. Pelo seu lado, nos livros paroquiais de S. Tiago de Amorim e Santa Eulália de Beiriz, distinguem-se os fregueses que tiram sargaço para «estercar» terras próprias dentro da respectiva freguesia (que não têm que pagar dízimos por esse sargaço), e os que o fazem para venda ou troca «por lenha ou por outra cousa qualquer», ou os que não têm «terra de seu» e semeiam «pam nas terras alheias» (que ficam sujeitos àquela tributação)12. Do mesmo modo, em épocas menos distantes, vemos Baldaque da Silva, em 1891, aludir, relativamente a Moledo, a «lavradores que vêm à costa explorar esta actividade», e a «pessoas exclusivamente empregadas nela para negócio»13.
10Além destas, porém, outras gentes se encontram ainda em todos os locais deste sector onde se apanha sargaço, a par com os lavradores e cabaneiros (e, muitas vezes, fundidos e amalgamados com estes últimos) : gentes longinquamente originárias talvez também da terra, mas que desde há muitos séculos se dedicam exclusivamente à pesca (e que possivelmente se agregaram e fundiram com outros stocks étnicos e profissionais vindos de fora), e que assim elaboraram uma cultura e uma tradição caracteristicamente marítimas e piscatórias. Estas gentes piscatórias vivem geralmente em aglomerados ao lado da praia, alguns muito grandes, como é o caso da Póvoa de Varzim, Poça da Barca e Caxinas, o bairro ribeirinho de Caminha, Esposende, etc., outros pequenos e mesmo junto ao mar, como sucede em Âncora, e em Vila Chã e Angeiras, ao sul do rio Ave; em alguns casos eles residem mais para o interior, em núcleos diferenciados que não se misturam com a gente rural, como sucede em Fão, onde, na praia, existem só os barracos dos lavradores.
11Alguns desses aglomerados, como a Póvoa de Varzim, são muito antigos, e a população piscatória há séculos que se encontra definida. Outros, pelo contrário, foram constituídos há menos de um século por gente vinda de grupos próximos, por movimentos que estão ainda na memória viva dos seus componentes; tal é o caso da Poça da Barca e de Caxinas, que são satélites recentes da Póvoa de Varzim ; é-o igualmente o de Âncora (Lagarteira), antes uma povoação rural, que como porto de pesca se formou em época não muito distante por uma colónia de pescadores galegos de La Guardia que aí se estabeleceram, como relata Baldaque da Silva14 e a tradição local confirma; e é-o também certamente o dos dois grupos referidos a sul do rio Ave.
12Em todos eles se encontra o típico viver ruidoso e promiscuo dos pescadores: os homens sentados no chão, na rua, compondo redes, fumando, olhando o mar, à porta aberta das casas (as mais das vezes térreas, que se alinham em longos arruamentos rectilíneos), ou em grupos animados, na praia, na faina da largada e da chegada, ou na taberna, nas horas de ócio, em terra. E todos eles parecem sofrer, pelo menos actualmente, uma forte influência profissional, demográfica e cultural, da Póvoa de Varzim, que é o grande núcleo piscatório do norte do País.
13Esta gente, tradicional e exclusivamente pescadora, porém, não considerava a actividade sargaceira própria da sua classe, e não a exercia verdadeiramente. Mesmo nos grupos ao Sul do rio Ave, em Vila Chã e Angeiras, onde hoje apenas se encontram pescadores, essa actividade, como dissemos, era outrora praticada – e em larga escala – por lavradores e também por cabaneiros, que faziam uma pequena recolha – a que alude Rocha Peixoto – para venda aos lavradores. Com o andar dos tempos e o estabelecimento dos cabaneiros-sargaceiros na praia, e, na sua peugada, dos pescadores ao seu lado, a apanha do sargaço para venda, que toma grande incremento, começa a ser praticada de forma normal também por estes últimos, juntamente com os cabaneiros. Hoje, por toda a costa, o pescador deita mão a essa actividade como meio suplementar de ganhar a vida, mas por vezes com determinadas restrições : assim, em Fão, só em barcos; noutros lugares, os homens só em barcos, e a pé só as mulheres; em Matosinhos, na Póvoa de Varzim – aqui porém desde há muito tempo– só a pé, e só por mulheres; etc.
14Esses cabaneiros pobres que, como vimos, viviam no interior mas exerciam na praia grande parte das suas actividades, nomeadamente a apanha do sargaço, certamente nos locais onde esta já antes se praticava e os lavradores e eles próprios tinham os seus barracos de abrigo, e aonde iam ora isolada e esporadicamente ora em grupos que se definiram localmente de mais ou menos longa data, foram-se pouco a pouco deslocando para os areais da beira-mar, até acabarem por aí se instalar definitivamente (porque nessa zona encontraram facilmente terrenos disponíveis e baratos), sobretudo quando, por razões que adiante exporemos, a procura das algas aumentou e a sua recolha passou a constituir um modo de vida regular e constante, uma verdadeira categoria profissional exclusiva ou que cumulavam com a pesca ou outros trabalhos afins. Atrás deles vieram mais populações congéneres ou igualmente pobres oriundas de outras áreas rurais ou, como dissemos, de grupos qualificadamente piscatórios da vizinhança; e são essas gentes – que sob o ponto de vista profissional e sócio-económico apresentam um carácter híbrido e equívoco –, que estão na base da formação de certos aglomerados que encontramos hoje já constituídos e estabilizados, junto ao mar, por toda esta faixa, nos quais se combinam ou predominam, conforme os casos, feições piscatórias ou rurais.
15Tais aglomerados são, na sua maioria muito recentes ; o seu aparecimento e paulatino desenvolvimento são geralmente dos nossos dias, coincidindo expressivamente com a data em que teve lugar o incremento e expansão das actividades sargaceiras a que aludimos; e nasceram, as mais das vezes, dos barracos de abrigo que os lavradores ou eles próprios possuiam nesses locais, existindo, por isso, quase sempre a velha aldeia rural do interior, ligada a tais barracos por caminhos ou estradas vicinais serpenteando no meio dos campos. Os antigos barracos, muito precários, umas vezes subsistiram como tais, outras foram adaptados a casas de residência permanente, imprimindo ao casario das povoações nascentes um aspecto especial. É o caso de numerosos aglomerados da praia existentes na zona, e que têm os seus duplicados rurais no interior : de Amorosa e do Castelo de Neiva, entre Esposende e Viana do Castelo; de Averomar e de Aguçadoura, a norte da Póvoa de Varzim ; do Mindelo, Vila Chã e Angeiras, ao sul do rio Ave; etc. Na realidade, a Amorosa foi «fundada» na segunda metade do século passado no lugar onde existiam então apenas os barracos do Moinho do Bispo, mencionados por Baldaque da Silva, por um homem de Castelo de Neiva de nome Francisco Arêdes Novo, falecido em 1955 – o primeiro que ali se instalou com carácter permanente, e cujos descendentes fazem ainda hoje o fundo da população local. Castelo de Neiva (da praia) (onde os lavradores do interior continuam de resto a ir ao sargaço, nas suas jangadas e com os seus carros de bois), semelhantemente, tomou corpo, há escassos anos, em torno dos barracos que existiam na duna junto ao mar, e é hoje já um povoado de grande vulto. Averomar e a Aguçadoura (também da praia), do mesmo modo, estendem o seu casario da beira-mar no local onde até há poucos anos existiam apenas os barracos dos lavradores que ali íam ao sargaço, ao pilado e à pesca. O Mindelo, Vila Chã e Angeiras (sempre da praia) não vêm ainda indicados na Folha 7 dos mapas 1/100.000 dos Serviços Geodésicos do Reino publicada em 1880 (sendo mesmo viva nos velhos, ali, a memória de um litoral deserto só com esses barracos de abrigo dos cabaneiros e pescadores, e dos lavradores que residiam nas povoações correspondentes do interior, e à praia íam ao pilado, à pesca, e à apanha do sargaço, documentando-se contudo esta actividade, como vimos, já no século XIV). Vila Chã é uma dessas velhas povoações rurais do interior, onde, ao lado dos lavradores, e especialmente no lugar chamado Rio da Gandra, residiam, em casebres mais pobres, pescadores e cabaneiros que viviam de mesteres marítimos; na praia existiam apenas uns raros barracos onde actualmente se ergue o aglomerado piscatório, a que a mencionada carta dos Serviços Geodésicos de 1880 dá o nome de «Facho», designando uma construção de sinalização ali existente; o local seria desse modo, há ainda pouco tempo, apenas os «barracos de Vila Chã». A deslocação dessas gentes no sentido da sua instalação e fixação na praia, – e consequentemente o aparecimento do aglomerado da beira-mar – no ponto onde ficavam tais barracos, só se iniciou verdadeiramente nos princípios deste século, quando se verificou o desenvolvimento da actividade sargaceira. As casas dos pescadores que agora ali existem nada têm que ver com o estilo rural da povoação do interior, e conservam mesmo as características dos barracos que tõram adaptados de modo a servirem de habitação normal : o térreo continua a ser uma arrumação ampla, munida de uma larga porta de entrada por onde pode passar um barco; o telhado é de duas águas, de empena para a rua, voltada ao mar; as casas encostam umas às outras, em alinhamentos rectilíneos, frente à praia; etc. (fig. 146) – de facto, muitas vezes, elas são mesmo os próprios barracos antigos, aumentados em altura, para incluirem o andar sobradado. Angeiras parece ter-se constituído por um processo idêntico, também por essa altura; aí, vêem-se ainda numerosos barracos de abrigo junto à praia, e algumas casas mostram bem a influência do tipo arquitectónico desses barracos; muitas pessoas lembram-se do tempo em que os próprios pescadores – à excepção de umas quatro ou cinco famílias – viviam também no interior, e ficavam na praia apenas na época da safra da sardinha, dormindo então nos seus barracos; o nosso informador conta mesmo que quando, em Maio, os pescadores iniciavam a época do seu trabalho mais intenso, costumavam, ao passar nos campos, apanhar e levar o azevém seco que aí se encontrava, para improvisarem camas nesses barracos. A aldeia piscatória da beira-mar é, assim, também, uma duplicação recente de um agregado rural antigo, até há pouco único existente, ali, com esse nome. No Mindelo, igualmente, até há cerca de cinquenta anos existiam na praia apenas barracos de abrigo da gente que vivia na povoação rural do interior. O aglomerado da beira-mar parece ter sido constituído inicialmente por gentes da Aguçadoura que aí se instalaram, e que eram conhecedores ao mesmo tempo de mesteres marítimos e da técnica agrária da «descoberta dos terrenos» arenosos, que se praticava na sua terra de origem, e que aplicaram aqui (onde abundam terrenos da mesma espécie, que começaram então a ser aproveitados)15.
16De todo este quadro parece pois poder-se inferir que o povoamento menor deste sector costeiro se processou primordialmente, na maioria dos casos e em tempos muito recentes, nos locais onde apenas existiam, na praia, barracos de abrigo. Esses barracos pertenciam a gentes do interior, que ali iam frequentemente – e por vezes desde tempos muito remotos – pescar e também apanhar algas para adubo das terras. Vê-se assim a importância fundamental que esta actividade teve naquele processo de povoamento, que muitas vezes se deve mesmo considerar, sem dúvida, inteiramente devido a ela.
17Em relação aos primórdios da nacionalidade, Alberto Sampaio, pela análise do texto das Inquirições de 1220, deixa entrever um processo idêntico de povoamento costeiro, em relação às múltiplas «póvoas marítimas» de todo este sector nortenho.
18Entre essas, certamente se pode contar a Póvoa de Varzim. De facto, a Póvoa de Varzim foi constituída a partir da «pobra» fundada em parte pelos lavradores de Argivai, Gesteira e Santa Cristina, que também «iam ao mar pescar», e que naturalmente, por isso e porque aquelas localidades ficavam longe, ergueram na praia barracos que lhes servissem de abrigo e de recolha de alfaias, e que acabaram por aí se fixar. Se lembrarmos que, no Foral da vila, de 1308, se menciona a apanha do sargaço por esses moradores da «pobra» (indigitando indubitavelmente uma prática anterior) é de admitir que a apanha do sargaço tenha, tal como em nossos dias, desempenhado um papel mais ou menos relevante na fundação desta importante localidade. A Póvoa de Varzim seria assim o exemplo mais antigo e notável a documentar o processo que apontamos16.
19Ainda nos princípios deste século, as casas dos pescadores poveiros eram muitas vezes de tabuado, térreas e acanhadas, com uma única divisão servindo de habitação e arrecadação da sua utensilagem profissional, sem soalho, forro ou chaminé. Elas exprimiam certamente a grande pobreza dessa gente; mas eram também verosimilmente o resíduo da sua remota natureza primitiva de barracos. E pode-se supor que pouco difeririam desses outros barracos dos longínquos fundadores da «pobra», que ali iam pescar e apanhar sargaço.
20Hoje, porém, as condições mudaram radicalmente; outros factores intervêm neste mesmo processo, e o quadro que tentamos esboçar apresenta-se totalmente diverso.
21Desde muito cedo, e sobretudo a partir de meados do século passado, a beira-mar passa a ser frequentada, no Verão, por uma clientela do interior, não raro de muito longe, que aí vem aos banhos, apoiando-se em núcleos de povoados já constituídos – alguns deles a partir dos barracos do sargaço, porque já dispunham de estradões de acesso – e utilizando quaisquer modestas instalações que lá podiam encontrar. Mais tarde, tal frequentação torna-se regular e crescente, e novas necessidades se criam; e aqueles elementos passam a contribuir de modo muito considerável para a definição e o desenvolvimento desses povoados.
22Actualmente, é mesmo esse aspecto, conjugado com um movimento mais geral de exploração turística, que constitue a força dinâmica fundamental do fenómeno; o ritmo acelerado em que decorre, e a sua feição citadina, inteiramente alheia ao mundo dos seus primeiros habitantes, desviaram o sentido de uma evolução baseada nas características naturais desses estabelecimentos, e, em muitos deles, ditam o aspecto e o tom geral da sua vida.
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23Como dissemos, a primitiva estrutura económico-social da apanha do sargaço sofreu, a partir de uma certa altura, e mormente em relação à área da Apúlia para o Sul, uma transformação radical. Feita originária e primordialmente pelo lavrador em vista da sua lavoura, ela tende a ser ali por ele posta de parte, passando fundamentalmente para as mãos dessa classe de gentes pobres ribeirinhas, cabaneiros e pescadores, habitando aglomerados recentes por eles próprios fundados à beira-mar, e que se foram especializando cada vez mais definidamente nesses e outros trabalhos da praia, transformando-a assim numa actividade independente, numa procura impessoal de matérias-primas para venda.
24A razão principal deste fenómeno parece estar inicialmente na procura maciça de sargaço para os campos da Aguçadoura, talhados «em masseira» nas vastas dunas dessa zona, pelo sistema da «descoberta» dos terrenos, que se iniciou por volta de 1880, e permite uma cultura intensiva à base de uma adubação muito abundante. Este facto, traduzindo-se num consumo de enormes quantidades de sargaço, vem com efeito, dar grande incremento à sua recolha, transformando-a numa actividade mais compensadora, importante e absorvente, que requere e ocupa numerosas pessoas exclusivamente dedicadas a ela, e durante largas épocas do ano, e que se integra já num sistema comercial mais complexo. E foi sem dúvida esta a razão principal que levou essa gente a fixar-se mesmo nos areais da beira-mar, nos pontos –já anteriormente frequentados por lavradores e por eles próprios – onde aparecia mais sargaço.
25Por um lado, a possibilidade de adquirirem o sargaço a esses cabaneiros, e, por outro, a generalização do emprego de adubos químicos, que de certo modo constituem um substituto do sargaço, dispensando o lavrador da procura deste último por um trabalho duro e pouco rendoso, aceitável apenas num estádio de economia familiar não quantificada, que progressivamente vai desaparecendo, leva-o a abandonar aquela actividade ; e este divórcio do lavrador com o mar acentua-se ainda com o desaparecimento do pilado – cuja pesca, pelos lavradores, como veremos, assumia proporções de grande vulto, e era um dos motivos de atracção dessa gente pelo mar – que desertou a nossa costa por volta dos meados do século.
26Contudo, como dissemos, por toda esta parte e mormente da Apúlia para o norte – na Apúlia, Sedovem e Pedrinhas, Fão, Marinhas, Montedor, Afife, etc. –, e até ao decénio de 50, a actividade manteve a importância, o carácter de generalidade e as formas dos velhos tempos, e o lavrador continuou a praticar, esporadicamente ou mesmo com toda a regularidade, a apanha do sargaço para consumo próprio, conservando os respectivos barracos de abrigo na praia; e até, atestando a vitalidade deste traço cultural, veremos como essa classe, em contacto com os pescadores que passaram a interessar-se pela apanha do sargaço, adoptou elementos que se nos afiguram introduzidos por esses pescadores, tais como o uso de aparelhagem do sistema de redes – o rodafole ou redenho e o ganhapão – (em lugar da graveta rural do sistema de dentes), a substituição do clássico chapéu dos lavradores, preto, de aba larga, de que fala Baldaque da Silva, pelo sueste de oleado, etc.; e ainda, combinando elementos da velha tradição com a lei dos tempos presentes, vimos lavradores – que, no estádio arcaico de economia em que ainda se encontravam, não dispunham facilmente de numerário – apanharem sargaço que em parte vendiam, para com o dinheiro assim obtido comprarem os adubos químicos de que necessitavam. Mesmo ao sul da Apúlia, na própria Aguçadoura – onde sem dúvida, marcando a evolução que atraz indicamos, o grosso de tal actividade passou há já muito tempo para as mãos desses taraqueiros, que a exercem exclusivamente para venda em grande escala (como é de resto também o caso em Castelo de Neiva e na Amorosa, ao norte da Apúlia)– vê-se ainda, por vezes, um ou outro lavrador ir ou mandar os filhos ao mar apanhar sargaço como dantes, para os gastos da sua lavoura17.
Notes de bas de page
1 Ver em Apêndice I as principais espécies de algas que constituem o «sargaço», para estes efeitos.
2 Claudio Basto, «Falas e Tradições do Distrito de Viana do Castelo», Revista Lusitana, XIII, Lisboa, 1910, pp. 84-88, entende que argaço não é uma corrupção de sargaço, mas uma palavra derivada de alga – alga – algaço. Sargaço é, segundo o Autor, uma espécie definida de alga, que, com outras, forma o argaço (veja-se também, do mesmo Autor, «Nomes das Agulhas secas», Revista Lusitana, XIX, Lisboa, 1916, pp. 259-260).
F. Krüger, «Notas Etnográficas-Linguísticas da Póvoa de Varzim», Boletim de Filologia, IV, 1-2, Lisboa, 1936, pp. 119-120, aceitando a linha evolutiva alga > algaço > argaço, entende porém que sargaço deriva de argaço sob influência de outra palavra, provavelmente sal. Nos documentos antigos anteriores até ao século XIX usa-se sempre a forma argaço.
3 Limos é a forma usado no sul do País.
4 Hoje, como dissemos, as algas – e nomeadamente as agarófitas, carraginófitas e alginófitas – são apanhadas para a indústria química.
5 Cfr. Holger Rasmussen, «The use of seaweed in the Danish farming Culture»; e Milovan Gavazzi, «Die Nutzniessung des Tangs in den Volksüberlieferungen der europäischen Meerres-küsten», In Memoriam António Jorge Dias, I, pp. 385-498, e pp. 123-138, Lisboa, 1974. E também Rogélio de la Granja y Bacelar, «Costumbres Gallegos –Argazo ó Mar ! o el tributo al matrimónio», Faro de Vigo, 11 de Febrero de 1953, p. 3 (por indicação de D. Fermin de Bouza-Brey Trillo).
6 Cfr. António de Brum Ferreira, A Ilha Graciosa, e Carlos Alberto Medeiros. A Ilha do Corvo, Col. Chorographia (Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa), Lisboa 1968 e 1967, respectivamente.
7 Nos arredores de Lisboa, em certos recantos das praias de Caxias e Paço d’Arcos, vê-se por vezes gente a apanhar algas, isoladamente e em muito pequena escala.
8 De facto, em vários desses textos antigos que citamos, que se referem à apanha do sargaço, diz-se claramente que o faziam para consumo próprio. Assim, por exemplo, a ordem dada por D. João I em 1432, dirigida aos juízes, vereadores e homens bons do Porto sobre o sargaço que Fernão Vasques da Cunha leva muito contra o direito dos lavradores (Horácio Marçal, op. loc. cit., p. 10). O mesmo sucede com o texto do P.e António Carvalho da Costa, na «Chorographia Portuguesa», 1706, àcerca do Mindelo: «Tem 100 vizinhos, todos muito ricos pela grande quantidade de argaço que tiram do mar, quando o lança, para o que tem, em certos tempos sentinelas que os avise, e logo que apareça, seja de noite ou de dia, vão todos, de que às vezes fica lá alguém e não só tiram o necessário para estercar suas terras, mas para venderem a outros» ; e também com a «Noticia da Villa da Póvoa de Varzim», feita a 24 de Março de 1758 (mencionada na Nota 19), da autoria de Francisco Felix Henriques da Veiga Leal, «Governador da Fortaleza da dita Villa», que em resposta à Pergunta 15 – «Quais são os frutos da terra que os moradores recolhem em maior abundância ?», diz: «Também não é menos do que a agricultura a colheita duma erva criada nas pedras do mar chamada argaço, que para adubo de seus campos tiram os lavradores, e para venderem extraem os jornaleiros...» (ap. «O Concelho de Póvoa de Varzim no século XVIII – As memórias Paroquiais de 1736 e 1758», publicadas e Prefaciadas por Fernando Barbosa. Póvoa de Varzim Boletim Cultural, I – 2. Póvoa de Varzim, 1958, p. 324. Por seu turno, A. A. Baldaque da Silva, Estado actual das Pescas em Portugal, Lisboa, 1892, p. 92, analizando a região compreendida entre os rios Lima e Cávado, alude aos «lavradores do litoral que afluem à praia para a colheita do sargaço», os quais empregam jangadas e barcos nesta exploração, e ao mesmo tempo servem-se das embarcações para o lançamento de aparelhos de pesca, com o fim de alcançarem peixe para o seu consumo, e não poucas vezes também para negócio» ; e a propósito dos barracos da costa de Fão, fala nos «lavradores que vêm à apanha do sargaço» ; e, em p. 82, a propósito de Moledo, fala nos lavradores «que vêm, eles próprios, à costa explorar esta indústria, a par de outras pessoas, exclusivamente empregadas nelas para negócio».
Finalmente, àcerca da freguesia de Lavra, do concelho de Bouças (Matosinhos), assim diz F. Fernando Godinho de Faria, Monographia do Concelho de Bouças, 1899, p. 183, «Desde remotos tempos o povo laborense se entrega quer à extracção do sargaço que aflue à praia, quer à pesca, sobretudo do pilado...
Os homens, principalmente os agricultores, laboram, ora nos campos, ora no mar : à cultura da terra dedicam sumos cuidados, adubando bem, já com os estrumes do curral, que ali abundam em razão de possuirem muito gado bovino, já com o pilado e sargaço extraído do mar; à apanha do sargaço, à pesca do mexoalho para si e para vender, e à do peixe para alimentação, consagram eles todo o tempo disponível da lavoura» (p. 279).
9 Veja-se uma nota curiosa a este respeito em Manuel Silva, «A evolução dum município», Boletim Cultural da Póvoa de Varzim, I – 1, Póvoa de Varzim, 1958, p. 25, Nota 3 : «Na casa dos Geraldos – Gonçalves de Oliveira no lugar da Igreja da Freguesia de Argivai –, há ainda, junto da eira, uma casa terrea, chamada casa do barco, designação que lhe adveio por servir de guarda a um barco, que seus donos de vez em quando colocavam num carro de bois e traziam até à praia – 2 quilómetros e meio – utilizando-se dele para a pesca. Isso praticava-se ainda nos primeiros anos da 2.a metade do séc. XIX». Ver também Godinho de Faria, op. cit., p. 183, que diz : «A pesca do mexoalho em Lavra e Perafita é feita na maior parte por lavradores. Nestas freguesias raro é o lavrador que vive à beira-mar que não tenha barco para a pesca e para a apanha do sargaço. A mulher entrega-se na lavoura a serviços que em outras freguesias do concelho não desempenha, a fim de ficar livre aos maridos ou patrões o tempo para a faina piscatória». Ver também Nota anterior, as referências às embarcações e actividades piscatórias dos lavradores destas regiões litorâneas.
10 Taraqueiros –«população sem terra ou, caso mais geral, possuindo uma gleba de área muito pequena– menos de 0,1 hectare–, cujo rendimento é insignificante. Recorrem ao salário em múltiplos trabalhos: na exploração agrícola, na apanha do argaço ou pilado, ou, como recurso e quando possuem fracas condições de trabalho, apenas à apanha de lenha seca, pinhas e gravulha dos pinheiros» (in Aguçadoura – Estudo Económico-agrícola – Junta de Colonização Interna, Lisboa, 1944, p. 97).
11 Ver notas 9 e 19.
12 Pagam também dízimos ao respectivo pároco as pessoas que são de fora e vêm colher sargaço na freguesia, e as que o levam para fora da freguesia, ainda que não seja para venda (isto é : ainda que seja para consumo próprio, mas fora da freguesia).
13 Baldaque da Silva, op. cit., p. 82. O Autor, a este respeito, relata virem ali barcos que levavam o sargaço rio Minho acima, até Campos, S. Pedro, Cerveira, e o extremo norte da Província minhota. E colhemos ainda a memória de um naufrágio ocorrido num desses barcos.
14 Baldaque da Silva, op. cit., p. 83.
15 Ver nota 9, a citação do P.e Carvalho da Costa àcerca desta localidade.
16 Ernesto Veiga de Oliveira, «Palheiros e Barracos do Litoral», Geographica, I, 3, Lisboa, 1965.
17 Aguçadoura, p. 95.
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