Capítulo 37. Diferença na semelhança
Folclore madeirense em Londres
p. 543-552
Texte intégral
Introdução
1Este artigo é o resultado de uma pesquisa preliminar sobre a vivência musical de um grupo de migrantes madeirenses em Londres, que procura manter uma identidade regional expressa através de exibições folclóricas.1 Tendo como objecto o Rancho Folclórico do Centro Desportivo e Cultural Português (RFCDCP), pretende-se analisar a transferência do saber folclórico para a sociedade de acolhimento, tendo como modelo o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha, nos anos 80.
2A escolha do RFCDCP deve-se à sua representatividade na comunidade portuguesa em Londres e ao programa de espectáculos que apresenta. Irei abordar as relações do grupo com o Centro Desportivo e Cultural Português, as ligações familiares entre os seus membros e o papel do folclore na comunidade madeirense.
Música, migração e identidade
3A vivência musical em comunidades migrantes tem vindo a ser estudada com um interesse crescente, pois abrange processos de preservação de identidade nacional, regional ou étnica, permitindo a essas comunidades manter laços de contacto com o país de origem, fomentar a integração na sociedade de acolhimento, bem como esbater a distância geográfica, cultural e afectiva.
4Esses anseios concretizam-se nas actividades culturais desenvolvidas e expressas na língua e na música. Nas comunidades migrantes surgem fenómenos de reconstrução de actividades culturais (com grande incidência nas actividades musicais), que auxiliam as comunidades na sua adaptação à sociedade onde são acolhidas.
5Migração é consensualmente definida como um movimento individual ou colectivo, temporário ou permanente, de um lugar para outro, distinguindo-se cinco tipos: voluntário, forçado, interno, internacional ou de retorno (Jackson 1986). A migração é sempre um agente de mudança. O migrante passa por um processo de assimilação e acomodação, que se manifesta na forma como o indivíduo (ou o grupo) se estabelece num local, aprende uma língua, se adapta a novos hábitos e comportamentos. E nesse processo, o migrante tende a juntar-se e a construir grupos com a mesma origem social e cultural (Lewis 1982). Relacionando migração com identidade, Gellner afirma: “Se um homem não está firmemente integrado num nicho social, ele é obrigado a transportar consigo a sua identidade, em todo o seu comportamento e expressão; noutras palavras, a sua ‘cultura’ torna-se a sua identidade” (citado em Jackson 1986: 45).2 Esta afirmação fica ainda mais clara quando se procura definir o conceito de identidade. Em resumo, identidade pode ser definida como algo que as pessoas partilham no sentido de reclamar as suas diferenças em relação a outros, definindo fronteiras, quer sejam geográficas ou emocionais. É numa dialéctica de opostos que as identidades sociais, culturais, étnicas ou de grupo surgem e se expressam (Baily 1994, Gillis 1994, Handler 1994, Kellner 1992, Seymour-Smith 1992, Stokes 1994).
6A música, considerada como pertença e bagagem cultural, é veículo de afirmação de identidades étnicas e de coesão de grupos/ comunidades, torna-se um meio privilegiado da manutenção e construção da identidade. A sua performance contribui para a manutenção de laços afectivos, para a preservação da tradição cultural e para a inserção na comunidade de acolhimento (Allen & Groce 1988, Frith 1996, Singer 1988, Schramm 1979, 1986, 1989, 1990, Wilcken 1988).
A comunidade migrante portuguesa no Reino Unido
7No Reino Unido, a comunidade portuguesa conta cerca de 120.000 indivíduos, dos quais à volta de 75% estarão registados no consulado português. Concentram-se sobretudo na área metropolitana de Londres, mas existem também comunidades em Manchester, Watford, Jersey ou Guernsey. A grande maioria da comunidade é constituída por madeirenses, numa relação calculada de três quartos.3
8É a partir do século XIX, com o incremento da navegação a vapor, que se inicia uma actividade turística. Os ingleses são os grandes investidores na ilha da Madeira, dominando a vida económica insular até meados do século XX. Só nos anos 60 do século passado, se iniciou a migração de madeirenses para o Reino Unido, através de convites feitos na Madeira por ingleses que aí se encontravam de férias, pretendendo trabalhadores para as suas residências em zonas rurais, principalmente para exercerem as funções de motorista e de serviço doméstico. Ao casal emigrante era concedido um visto de trabalho para um determinado período. Completados quatro anos de trabalho em Inglaterra, o trabalhador português era considerado legalmente como “residente”. O fluxo migratório acentuou-se nos anos subsequentes, sobretudo por parte de profissionais de turismo, dada a grande tradição dessa actividade na Madeira. Eram contratados para a indústria hoteleira inglesa, sobretudo na região de Londres, e para as ilhas do Canal. Até aos anos 90 do século passado, a motivação para emigrar era a busca de melhores condições de vida. Com a entrada de Portugal na União Europeia, assiste-se a um incremento da comunidade portuguesa no Reino Unido, devido sobretudo à abolição de fronteiras e ao livre trânsito dos cidadãos dos estados membros no espaço comunitário.
A comunidade portuguesa em Londres
9Existem cerca de 80.000 portugueses em Londres. Inicialmente a comunidade estava sedeada na área de Portobello (perto do Hyde Park), onde ainda se encontram cerca de 20.000. No entanto, Lambeth é actualmente a área de maior concentração, tendo Stockwell (com 40.000), Kennington, Vauxhall e Oval, um número expressivo de portugueses. Em Lambeth existem cerca de 220 estabelecimentos comerciais portugueses: restaurantes, bares, padarias, cafés, oficinas de reparação de automóveis e pubs.
10Segundo a observação realizada, a comunidade portuguesa em Londres é, em geral, fechada sobre si própria, limitando os contactos com a sociedade inglesa ao nível profissional. Após o horário laboral, o dia-a-dia é vivido nas associações da própria comunidade. Há, inclusivamente, actividades e estabelecimentos destinados aos portugueses (apesar de não serem interditos aos ingleses): salões de cabeleireiro, o ensino de português, os cafés e muitos eventos culturais levados a cabo no quadro associativo.
11A comunidade portuguesa promove actualmente um grande debate interno sobre as diferenças entre os “velhos” e os “novos” residentes, em termos de comportamento e de problemas de ordem social.4 Estas questões relacionam-se com o consumo de drogas, a criminalidade e o desemprego. A preocupação da comunidade passa por um esforço de os solucionar através de acompanhamento e da criação de actividades que os previnam (nas quais a música e o desporto adquirem papel preponderante). São consideradas dificuldades que a comunidade encara com apreensão, dada a boa reputação que detinha aos olhos da sociedade inglesa.
Actividade cultural
12Apesar de existirem várias associações portuguesas, a expressão artística da comunidade portuguesa em Londres é escassa. Das cerca de 17 associações, a grande maioria preocupa-se com o equilíbrio financeiro. A associação é um lugar de sociabilidade, identificado com a confecção de gastronomia portuguesa, onde se convive, se fala português, se assiste às transmissões televisivas de desafios de futebol entre equipas portuguesas, se ouve o top musical nacional, se lêem revistas e jornais portugueses, se festejam baptizados e casamentos. Algumas associações desenvolvem um programa de espectáculos, prestando apoio a artistas — caso das cançonetistas Zuzi Silva e Ivone Nóbrega —, a bandas, a fadistas (com actuações regulares no restaurante A Viga em Knightsbridge), grupos de teatro ou ranchos folclóricos.
13Segundo as informações recolhidas, existirão cinco grupos folclóricos em Londres: o RFCDCP, o Grupo Folclórico Infantil Pérolas do Atlântico, o Grupo Folclórico da Família, o Estrelas do Norte e o Grupo Folclórico do Lar Português. Inseridos em associações ou clubes, estes agrupamentos revivem as tradições musicais portuguesas. Com diversos objectivos e um leque amplo de repertórios, desenvolvem a sua actividade essencialmente junto da comunidade portuguesa, em festas de carácter público e privado, podendo mesmo reunir-se na grande festa portuguesa das comunidades, o Dia de Portugal (10 de Junho). Esta celebração é uma oportunidade de encontro entre os grupos portugueses londrinos e os artistas portugueses que aí se deslocam, partilhando-se vivências.5
O Rancho Folclórico do Centro Desportivo e Cultural Português
14Em Fevereiro de 1975, Luís da Encarnação Calisto e Maria Olga Pinto lançaram as bases para a criação de um grupo folclórico com repertório madeirense em Londres, formado essencialmente por elementos das duas famílias. Procuravam preencher um espaço cultural ainda vazio e assim reviver experiências tidas na terra natal. A iniciativa adquiria também um objectivo educativo, pois desse modo podiam transmitir aos seus descendentes a tradição e a ligação à ilha da Madeira.
15O grupo folclórico foi registado em 1979 no consulado português de Londres como Grupo Folclórico Os Emigrantes de Londres. A denominação reflecte a preponderância de madeirenses em Londres. O seu primeiro ensaiador foi Carlos Ribeiro. Depois de ter chegado a Londres para trabalhar, foi abordado pelos membros fundadores, devido à experiência anteriormente adquirida no Grupo Folclórico e Cultural do Livramento, na Madeira.
16Desde 1982, o Grupo Folclórico Os Emigrantes de Londres passou a ser uma das actividades do Centro Desportivo e Cultural Português, fundado em 23 de Outubro desse ano, e imediatamente registado no consulado português. Esta iniciativa resultou da vontade de um conjunto de pessoas, no qual se encontravam os membros fundadores do referido grupo folclórico. Com esta integração, o rancho tomou a designação actual (RFCDCP), numa alusão clara à sua pertença institucional e à sua adesão aos objectivos do centro. Estes consistem no fomento do convívio dos cerca de 700 membros, respectivas famílias e amigos, bem como na preservação da língua portuguesa e na organização de iniciativas desportivas e recreativas para a comunidade portuguesa no Reino Unido. O centro tem parte das actividades subsidiadas por instituições oficiais e particulares; entre as primeiras figura o Governo Regional da Madeira, permitindo a aquisição de instrumentos musicais e de indumentária.
17A partir de 1992, José Manuel de Sousa torna-se o segundo ensaiador do grupo, ao qual pertence desde 1990, depois da sua chegada a Londres. A sua anterior participação, durante doze anos, no Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (GFCPC) na ilha da Madeira, confere-lhe autoridade suficiente para ser responsável pela selecção do repertório, pela sua ordem de apresentação, pela orientação coreográfica dos dançarinos e pela própria exibição em palco do grupo, onde é membro activo como dançarino. A esta acção junta-se ainda o seu empenho na direcção do Centro Cultural e Desportivo Português, sendo responsável pelo pelouro da juventude. José Manuel de Sousa é o elemento fundamental na transposição do folclore do GFCPC.
18Presentemente, o RFCDCP, contando ainda com Maria Olga Pinto como um dos responsáveis, tem cerca de 30 membros. É possível isolar núcleos familiares completos, como no caso da família Serrão (pai, mãe, filha), outras relações de parentesco (sobrinhos, tios, cônjuges) ou de amizade que motivam a participação no rancho. Na verdade, passados 25 anos, as relações familiares, que predominavam no início, têm vindo a perder evidência.
19Alguns factores podem ter contribuído para esta mudança, tais como o aumento da comunidade e a adesão (solicitada) de jovens, atraídos, quer pelo convívio, como pelas exibições em Londres, no Reino Unido ou mesmo no exterior. No entanto, a actividade do RFCDCP assenta na cumplicidade, na autoridade e no empenhamento revelado pelos núcleos de familiares. Eles são os agentes detentores dos contactos necessários para integrar espectáculos, garantindo uma calendarização regular e, deste modo, a continuidade do grupo. Ateia de relações entre os membros do RFCDCP é, em grande medida, semelhante à que se observa no seio dos grupos folclóricos madeirenses no seu contexto original.
20Com base na experiência anterior de alguns dos seus membros, o RFCDCP procura transmitir saberes folclóricos no plano musical, coreográfico, estético e comportamental. A tonalidade e a forma musical, o timbre vocal, as técnicas de execução instrumental, a coreografia, os trajes com as cores consideradas mais representativas, a concepção global do rancho em exibição, a ausência de maquilhagem, de relógios de pulso ou de outro tipo de adornos, bem como a comunicação em língua portuguesa, são muitos dos aspectos que se pretendem manter e transmitir aos novos membros. Tais aspectos tornam-se um emblema para o RFCDCP e, cumulativamente, para a comunidade madeirense em Londres, que com eles se identifica e se mantém ligada à Madeira.
21Com idades compreendidas entre os 5eos55anos, os 30 membros do RFCDCP dividem-se em dois grupos: bailarinos e tocadores. Ao conjunto dos dois grupos é dada a designação de bailinho e, em situação de desempenho ou de ensaio, o conjunto dos tocadores (vozes e instrumentos) posiciona-se atrás dos bailarinos, mantendo desta forma a tradição madeirense.
22Os ensaios são situações de aprendizagem para os novos elementos, onde o ensaiador ensina novas coreografias ou procede a aperfeiçoamentos. Os tocadores estão sempre presentes e executam as danças que estão a ser trabalhadas pelos bailarinos.
23É possível distinguir duas gerações no RFCDCP. Por um lado, os tocadores (com idades compreendidas entre os 30 e os 55 anos) na maioria ex-bailarinos que foram aprendendo com os antigos tocadores a forma de tocar e de cantar. Contudo, há também elementos que se juntaram ao grupo quando chegaram a Londres, por sua iniciativa ou por convite. Por outro lado, os seus descendentes (de um modo geral, iniciando a participação aos 3 ou 4 anos acompanhando os pais) e os amigos são agora os novos bailarinos (com idades entre os 5 e os 32 anos), usufruindo das orientações do ensaiador e das sugestões dos tocadores. Aqueles são maioritariamente descendentes de portugueses, já nascidos em Londres, havendo contudo a excepção do leading pair, constituído por José Manuel de Sousa e Teresa Santos, considerados pelo grupo como “profissionais”, dada a sua experiência anterior em grupos madeirenses.
24Para além desta partilha de conhecimentos, o RFCDCP procura sustentar a credibilidade da sua performance, isto é, a manutenção da “tradição madeirense”, através da participação do seu ensaiador em cursos sobre o folclore madeirense, ministrados pela Federação de Folclore Português.
25O RFCDCP apareceu para colmatar uma falta sentida em termos de expressão cultural madeirense. Actualmente, existe para ocupar os tempos livres dos jovens, como forma de aprendizagem, representando e apresentando a cultura madeirense, e para promover o turismo regional, pois muitos espectáculos são acompanhados pela gastronomia e por exposições de artesanato madeirense.
26O RFCDCP actua por convite em festas, em festivais, em casamentos e baptizados, para a comunidade portuguesa. A sua primeira exibição ocorreu em Março de 1979 e, desde então, o rancho tem vindo a actuar em inúmeras ocasiões. Em Londres, exibe-se todos os anos no Dia da Madeira, que se festeja nessa cidade a 15 de Maio, assim como no Dia de Portugal (10 de Junho). Participa e promove também as celebrações do Dia de Todos os Santos e de São Martinho em diferentes associações portuguesas. O CDCP e o seu rancho promoveram em 1997 o primeiro Festival de Folclore Internacional em Londres e preparavam na altura de realização deste trabalho, o segundo, a realizar em Setembro de 1999, com participação de grupos folclóricos oriundos de França, da Alemanha e de Portugal.
27No Reino Unido, o RFCDCP actuou na Escócia, Jersey, País de Gales, Manchester, Sheffield, Eastbourne, entre outros locais e regiões. Deslocou-se a França, à Alemanha, à Bélgica, ao Luxemburgo e a Portugal, a convite de grupos similares. Participou em festivais organizados em Bruxelas, em Hamburgo e na Madeira, mais precisamente no XX Festival do Rancho da Casa do Povo da Camacha (50.º Aniversário), onde obtiveram o primeiro prémio e o prémio de simpatia.
28O RFCDCP revivifica o folclore madeirense, tendo como modelo o GFCPC, considerado pelo grupo como aquele que executa o folclore mais “original” e “autêntico”. Tendo sido fundado em 1948, o GFCPC é o agrupamento folclórico mais antigo da Madeira com actividade continuada. A sua importância, ou melhor, a importância que o RFCDCP lhe confere, é ainda mais enfatizada pela presença de Carlos Maria dos Santos como seu primeiro director artístico (Folclore 1992). Trata-se de um folclorista da Madeira da primeira metade do século XX.6
29A estes aspectos, só por si motivadores de uma reconstrução e transferência de um tipo de repertório, alia-se o curriculum do actual ensaiador no GFCPC. Não é de estranhar que, dada a sua participação durante 12 anos no GFCPC, José Manuel de Sousa transporte consigo o que aprendeu e transmita o seu saber a todo o rancho. Ligado afectivamente a um grupo, é com base nele que construiu a sua percepção estética, coreográfica e musical do folclore madeirense. Deste modo, o RFCDCP, absorvendo todas as vivências anteriores, revivifica actualmente o repertório (dança e música), os trajes, os instrumentos musicais dos anos 80 exibidos pelo GFCPC.
30A indumentária usada pelo RFCDCP representa o traje de viloa e de vilão, nos quais prevalecem as cores vermelha e branca. O traje masculino parece ter origem nos séculos XVII e XVIII, ao passo que o feminino terá sido utilizado a partir de 1933 pelas vendedoras de flores da Camacha (Ribeiro 1993, Rodrigues & Camacho 1997). A determinação das cores “mais autênticas” a usar no traje madeirense tem sido objecto de estudo e de controvérsia, mas parece ser também possível relacionar as novas cores com o desenvolvimento do folclore turístico na Madeira, bem como com as políticas respeitantes ao folclore do Estado Novo, no sentido de tornar mais colorida a indumentária dos grupos folclóricos.
31No que diz respeito às danças e à música, cada performance é constituída por exemplos do repertório escolhidos pelo ensaiador e determinados pelo contexto onde aqueles irão ocorrer. O bailinho é o género performativo predominante.
32Tomemos como exemplo o repertório apresentado pelo RFCDCP no dia 13 de Junho de 1999 (festa do Dia de Portugal, em Londres). O grupo apresentou seis exemplos do seu extenso repertório, considerados como os mais significativos: três bailes, duas mouriscas e uma marcha.7
33O baile é definido como uma dança em roda, nos tempos antigos executada no terreiro em frente da casa, depois das colheitas. Canta-se e dança-se aos pares. Este género é também executado a caminho da igreja ou das capelas dedicadas à Virgem Maria e em romarias.
34Amourisca é dançada com os olhos no chão e com o corpo curvado. José Sousa define-a como a “dança dos três passos.”
35Por último, a marcha surge como o hino do RFCDCP, sendo a sua música adaptada de uma marcha de um grupo madeirense já extinto. A letra foi escrita por membros do grupo, evocando a condição de migrante.
36Todos estes géneros, apresentam uma organização musical baseada nos 1.º, 4.º e 5.º graus da tonalidade, surgindo frequentemente em SolM ou DóM. Há uma alternância entre partes instrumentais e vocais com acompanhamento instrumental, executadas por vozes masculinas ou femininas. A música é sempre considerada de património colectivo, não se referindo os seus criadores. Na letra, estruturada em estrofe/ refrão, exprime-se o quotidiano madeirense e a condição de emigrante.
37O RFCDCP utiliza instrumentos de corda (rajão, braguinha e violino), que executam a melodia em uníssono com a parte vocal. Acontece acrescentarem uma flauta. O acompanhamento harmónico está a cargo do acordeão ou da harmónica. A parte rítmica é executada pelo bombo, pelos sininhos (triângulo ou ferrinhos) e pelo brinquinho (castanholas).
Conclusão
38Neste estudo sobre o processo de revivificação do folclore da Madeira, constata-se que este processo obedece a um modelo identificável: o que se revivifica é o repertório específico de um grupo madeirense (Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha), correspondente a um determinado período da sua actividade (anos 80). Essa revivificação tem como suportes fundamentais a transposição de saberes adquiridos pela anterior participação do ensaiador no referido grupo folclórico e, por outro lado, a valorização, expressa pela comunidade, da “autenticidade” e da “tradição”, decorrendo daí a “fidelidade” ao modelo do Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha.
39Desta forma, a comunidade portuguesa em Londres revê a sua identidade nacional e, mais concretamente, a identidade regional madeirense, no repertório folclórico que não sofreu alteração pelo contacto com uma outra sociedade. A tradição musical madeirense é expressa na música, na dança, nos trajes, nos instrumentos musicais e nas bandeiras do rancho e de Portugal, com que se apresentam em espectáculo. Pode-se, deste modo, afirmar que na comunidade portuguesa em Londres a prática expressiva e os seus elementos emblemáticos são símbolos de um sentimento de diferença, por um lado, e de semelhança, por outro.
40Capítulo 37. Diferença na semelhança
41Folclore madeirense em Londres
42Maria Manuel Silva
43Licenciada em antropologia (ISCTE), doutoranda, desenvolve pesquisa sobre grupos intelectuais católicos. Publicações: “Exposição sobre a loiça preta em Portugal: ponto de vista 3” (Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 39, 1-2, 1999),”Famílias: Mitos do afecto, mitos da racionalidade económica. Uma abordagem antropológica” (Familiarmente. Boletim do Grupo de Estudos da Família, 2, 1, 1999), “Abordagens antropológicas ao conflito familiar” (Familiarmente. Boletim do Grupo de Estudos da Família, 4, 1, 2001).
44pt
45543-552
46Introdução
47Este artigoéoresultado de uma pesquisa preliminar sobre a vivência musical de um grupo de migrantes madeirenses em Londres, que procura manter uma identidade regional expressa através de exibições folclóricas.8 Tendo como objecto o Rancho Folclórico do Centro Desportivo e Cultural Português (RFCDCP), pretende-se analisar a transferência do saber folclórico para a sociedade de acolhimento, tendo como modelo o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha, nos anos 80.
48Aescolha do RFCDCP deve-se à sua representatividade na comunidade portuguesa em Londres e ao programa de espectáculos que apresenta. Irei abordar as relações do grupo com o Centro Desportivo e Cultural Português, as ligações familiares entre os seus membros e o papel do folclore na comunidade madeirense.
49Música, migração e identidade
50A vivência musical em comunidades migrantes tem vindo a ser estudada com um interesse crescente, pois abrange processos de preservação de identidade nacional, regional ou étnica, permitindo a essas comunidades manter laços de contacto com o país de origem, fomentar a integração na sociedade de acolhimento, bem como esbater a distância geográfica, cultural e afectiva.
51Esses anseios concretizam-se nas actividades culturais desenvolvidas e expressas na língua e na música. Nas comunidades migrantes surgem fenómenos de reconstrução de actividades culturais (com grande incidência nas actividades musicais), que auxiliam as comunidades na sua adaptação à sociedade onde são acolhidas.
52Migração é consensualmente definida como um movimento individual ou colectivo, temporário ou permanente, de um lugar para outro, distinguindo-se cinco tipos: voluntário, forçado, interno, internacional ou de retorno (Jackson 1986). Amigração é sempre um agente de mudança. O migrante passa por um processo de assimilação e acomodação, que se manifesta na forma como o indivíduo (ou o grupo) se estabelece num local, aprende uma língua, se adapta a novos hábitos e comportamentos. E nesse processo, o migrante tende a juntar-se e a construir grupos com a mesma origem social e cultural (Lewis 1982). Relacionando migração com identidade, Gellner afirma: “Se um homem não está firmemente integrado num nicho social, ele é obrigado a transportar consigo a sua identidade, em todo o seu comportamento e expressão; noutras palavras, a sua ‘cultura’ torna-se a sua identidade” (citado em Jackson 1986: 45).9 Esta afirmação fica ainda mais clara quando se procura definir o conceito de identidade. Em resumo, identidade pode ser definida como algo que as pessoas partilham no sentido de reclamar as suas diferenças em relação a outros, definindo fronteiras, quer sejam geográficas ou emocionais. É numa dialéctica de opostos que as identidades sociais, culturais, étnicas ou de grupo surgem e se expressam (Baily 1994, Gillis 1994, Handler 1994, Kellner 1992, Seymour-Smith 1992, Stokes 1994).
53A música, considerada como pertença e bagagem cultural, é veículo de afirmação de identidades étnicas e de coesão de grupos/ comunidades, torna-se um meio privilegiado da manutenção e construção da identidade. A sua performance contribui para a manutenção de laços afectivos, para a preservação da tradição cultural e para a inserção na comunidade de acolhimento (Allen & Groce 1988, Frith 1996, Singer 1988, Schramm 1979, 1986, 1989, 1990, Wilcken 1988).
54A comunidade migrante portuguesa no Reino Unido
55No Reino Unido, a comunidade portuguesa conta cerca de 120.000 indivíduos, dos quais à volta de 75% estarão registados no consulado português. Concentram-se sobretudo na área metropolitana de Londres, mas existem também comunidades em Manchester, Watford, Jersey ou Guernsey. A grande maioria da comunidade é constituída por madeirenses, numa relação calculada de três quartos.10
56É a partir do século XIX, com o incremento da navegação a vapor, que se inicia uma actividade turística. Os ingleses são os grandes investidores na ilha da Madeira, dominando a vida económica insular até meados do século XX. Só nos anos 60 do século passado, se iniciou a migração de madeirenses para o Reino Unido, através de convites feitos na Madeira por ingleses que aí se encontravam de férias, pretendendo trabalhadores para as suas residências em zonas rurais, principalmente para exercerem as funções de motorista e de serviço doméstico. Ao casal emigrante era concedido um visto de trabalho para um determinado período. Completados quatro anos de trabalho em Inglaterra, o trabalhador português era considerado legalmente como “residente”. O fluxo migratório acentuou-se nos anos subsequentes, sobretudo por parte de profissionais de turismo, dada a grande tradição dessa actividade na Madeira. Eram contratados para a indústria hoteleira inglesa, sobretudo na região de Londres, e para as ilhas do Canal. Até aos anos 90 do século passado, a motivação para emigrar era a busca de melhores condições de vida. Com a entrada de Portugal na União Europeia, assiste-se a um incremento da comunidade portuguesa no Reino Unido, devido sobretudo à abolição de fronteiras e ao livre trânsito dos cidadãos dos estados membros no espaço comunitário.
57A comunidade portuguesa em Londres
58Existem cerca de 80.000 portugueses em Londres. Inicialmente a comunidade estava sedeada na área de Portobello (perto do Hyde Park), onde ainda se encontram cerca de 20.000. No entanto, Lambeth é actualmente a área de maior concentração, tendo Stockwell (com 40.000), Kennington, Vauxhall e Oval, um número expressivo de portugueses. Em Lambeth existem cerca de 220 estabelecimentos comerciais portugueses: restaurantes, bares, padarias, cafés, oficinas de reparação de automóveis e pubs.
59Segundo a observação realizada, a comunidade portuguesa em Londres é, em geral, fechada sobre si própria, limitando os contactos com a sociedade inglesa ao nível profissional. Após o horário laboral, o dia-a-dia é vivido nas associações da própria comunidade. Há, inclusivamente, actividades e estabelecimentos destinados aos portugueses (apesar de não serem interditos aos ingleses): salões de cabeleireiro, o ensino de português, os cafés e muitos eventos culturais levados a cabo no quadro associativo.
60A comunidade portuguesa promove actualmente um grande debate interno sobre as diferenças entre os “velhos” e os “novos” residentes, em termos de comportamento e de problemas de ordem social.11 Estas questões relacionam-se com o consumo de drogas, a criminalidade e o desemprego. A preocupação da comunidade passa por um esforço de os solucionar através de acompanhamento e da criação de actividades que os previnam (nas quais a música e o desporto adquirem papel preponderante). São consideradas dificuldades que a comunidade encara com apreensão, dada a boa reputação que detinha aos olhos da sociedade inglesa.
61Actividade cultural
62Apesar de existirem várias associações portuguesas, a expressão artística da comunidade portuguesa em Londres é escassa. Das cerca de 17 associações, a grande maioria preocupa-se com o equilíbrio financeiro. A associação é um lugar de sociabilidade, identificado com a confecção de gastronomia portuguesa, onde se convive, se fala português, se assiste às transmissões televisivas de desafios de futebol entre equipas portuguesas, se ouve o top musical nacional, se lêem revistas e jornais portugueses, se festejam baptizados e casamentos. Algumas associações desenvolvem um programa de espectáculos, prestando apoio a artistas — caso das cançonetistas Zuzi Silva e Ivone Nóbrega —, a bandas, a fadistas (com actuações regulares no restaurante A Viga em Knightsbridge), grupos de teatro ou ranchos folclóricos.
63Segundo as informações recolhidas, existirão cinco grupos folclóricos em Londres: o RFCDCP, o Grupo Folclórico Infantil Pérolas do Atlântico, o Grupo Folclórico da Família, o Estrelas do NorteeoGrupoFolclórico do Lar Português. Inseridos em associações ou clubes, estes agrupamentos revivem as tradições musicais portuguesas. Com diversos objectivos e um leque amplo de repertórios, desenvolvem a sua actividade essencialmente junto da comunidade portuguesa, em festas de carácter público e privado, podendo mesmo reunir-se na grande festa portuguesa das comunidades, o Dia de Portugal (10 de Junho). Esta celebração é uma oportunidade de encontro entre os grupos portugueses londrinos e os artistas portugueses que aí se deslocam, partilhando-se vivências.12
64O Rancho Folclórico do Centro Desportivo e Cultural Português
65Em Fevereiro de 1975, Luís da Encarnação Calisto e Maria Olga Pinto lançaram as bases para a criação de um grupo folclórico com repertório madeirense em Londres, formado essencialmente por elementos das duas famílias. Procuravam preencher um espaço cultural ainda vazio e assim reviver experiências tidas na terra natal. A iniciativa adquiria também um objectivo educativo, pois desse modo podiam transmitir aos seus descendentes a tradição e a ligação à ilha da Madeira.
66O grupo folclórico foi registado em 1979 no consulado português de Londres como Grupo Folclórico Os Emigrantes de Londres. A denominação reflecte a preponderância de madeirenses em Londres. O seu primeiro ensaiador foi Carlos Ribeiro. Depois de ter chegado a Londres para trabalhar, foi abordado pelos membros fundadores, devido à experiência anteriormente adquirida no Grupo Folclórico e Cultural do Livramento, na Madeira.
67Desde 1982, o Grupo Folclórico Os Emigrantes de Londres passou a ser uma das actividades do Centro Desportivo e Cultural Português, fundado em 23 de Outubro desse ano, e imediatamente registado no consulado português. Esta iniciativa resultou da vontade de um conjunto de pessoas, no qual se encontravam os membros fundadores do referido grupo folclórico. Com esta integração, o rancho tomou a designação actual (RFCDCP), numa alusão clara à sua pertença institucional e à sua adesão aos objectivos do centro. Estes consistem no fomento do convívio dos cerca de 700 membros, respectivas famílias e amigos, bem como na preservação da língua portuguesa e na organização de iniciativas desportivas e recreativas para a comunidade portuguesa no Reino Unido. O centro tem parte das actividades subsidiadas por instituições oficiais e particulares; entre as primeiras figura o Governo Regional da Madeira, permitindo a aquisição de instrumentos musicais e de indumentária.
68Apartir de 1992, José Manuel de Sousa torna-se o segundo ensaiador do grupo, ao qual pertence desde 1990, depois da sua chegada a Londres. A sua anterior participação, durante doze anos, no Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (GFCPC) na ilha da Madeira, confere-lhe autoridade suficiente para ser responsável pela selecção do repertório, pela sua ordem de apresentação, pela orientação coreográfica dos dançarinos e pela própria exibição em palco do grupo, onde é membro activo como dançarino. A esta acção junta-se ainda o seu empenho na direcção do Centro Cultural e Desportivo Português, sendo responsável pelo pelouro da juventude. José Manuel de Sousa é o elemento fundamental na transposição do folclore do GFCPC.
69Presentemente, o RFCDCP, contando ainda com Maria Olga Pinto como um dos responsáveis, tem cerca de 30 membros. É possível isolar núcleos familiares completos, como no caso da família Serrão (pai, mãe, filha), outras relações de parentesco (sobrinhos, tios, cônjuges) ou de amizade que motivam a participação no rancho. Na verdade, passados 25 anos, as relações familiares, que predominavam no início, têm vindo a perder evidência.
70Alguns factores podem ter contribuído para esta mudança, tais como o aumento da comunidade e a adesão (solicitada) de jovens, atraídos, quer pelo convívio, como pelas exibições em Londres, no Reino Unido ou mesmo no exterior. No entanto, a actividade do RFCDCP assenta na cumplicidade, na autoridade e no empenhamento revelado pelos núcleos de familiares. Eles são os agentes detentores dos contactos necessários para integrar espectáculos, garantindo uma calendarização regular e, deste modo, a continuidade do grupo. Ateia de relações entre os membros do RFCDCP é, em grande medida, semelhante à que se observa no seio dos grupos folclóricos madeirenses no seu contexto original.
71Com base na experiência anterior de alguns dos seus membros, o RFCDCP procura transmitir saberes folclóricos no plano musical, coreográfico, estético e comportamental. A tonalidade e a forma musical, o timbre vocal, as técnicas de execução instrumental, a coreografia, os trajes com as cores consideradas mais representativas, a concepção global do rancho em exibição, a ausência de maquilhagem, de relógios de pulso ou de outro tipo de adornos, bem como a comunicação em língua portuguesa, são muitos dos aspectos que se pretendem manter e transmitir aos novos membros. Tais aspectos tornam-se um emblema para o RFCDCP e, cumulativamente, para a comunidade madeirense em Londres, que com eles se identifica e se mantém ligada à Madeira.
72Com idades compreendidas entre os 5eos55anos, os 30 membros do RFCDCP dividem-se em dois grupos: bailarinos e tocadores. Ao conjunto dos dois grupos é dada a designação de bailinho e, em situação de desempenho ou de ensaio, o conjunto dos tocadores (vozes e instrumentos) posiciona-se atrás dos bailarinos, mantendo desta forma a tradição madeirense.
73Os ensaios são situações de aprendizagem para os novos elementos, onde o ensaiador ensina novas coreografias ou procede a aperfeiçoamentos. Os tocadores estão sempre presentes e executam as danças que estão a ser trabalhadas pelos bailarinos.
74É possível distinguir duas gerações no RFCDCP. Por um lado, os tocadores (com idades compreendidas entre os 30 e os 55 anos) na maioria ex-bailarinos que foram aprendendo com os antigos tocadores a forma de tocar e de cantar. Contudo, há também elementos que se juntaram ao grupo quando chegaram a Londres, por sua iniciativa ou por convite. Por outro lado, os seus descendentes (de um modo geral, iniciando a participação aos 3 ou 4 anos acompanhando os pais) e os amigos são agora os novos bailarinos (com idades entre os 5 e os 32 anos), usufruindo das orientações do ensaiador e das sugestões dos tocadores. Aqueles são maioritariamente descendentes de portugueses, já nascidos em Londres, havendo contudo a excepção do leading pair, constituído por José Manuel de Sousa e Teresa Santos, considerados pelo grupo como “profissionais”, dada a sua experiência anterior em grupos madeirenses.
75Para além desta partilha de conhecimentos, o RFCDCP procura sustentar a credibilidade da sua performance, isto é, a manutenção da “tradição madeirense”, através da participação do seu ensaiador em cursos sobre o folclore madeirense, ministrados pela Federação de Folclore Português.
76O RFCDCP apareceu para colmatar uma falta sentida em termos de expressão cultural madeirense. Actualmente, existe para ocupar os tempos livres dos jovens, como forma de aprendizagem, representando e apresentando a cultura madeirense, e para promover o turismo regional, pois muitos espectáculos são acompanhados pela gastronomia e por exposições de artesanato madeirense.
77O RFCDCP actua por convite em festas, em festivais, em casamentos e baptizados, para a comunidade portuguesa. A sua primeira exibição ocorreu em Março de 1979 e, desde então, o rancho tem vindo a actuar em inúmeras ocasiões. Em Londres, exibe-se todos os anos no Dia da Madeira, que se festeja nessa cidade a 15 de Maio, assim como no Dia de Portugal (10 de Junho). Participa e promove também as celebrações do Dia de Todos os Santos e de São Martinho em diferentes associações portuguesas. O CDCP e o seu rancho promoveram em 1997 o primeiro Festival de Folclore Internacional em Londres e preparavam na altura de realização deste trabalho, o segundo, a realizar em Setembro de 1999, com participação de grupos folclóricos oriundos de França, da Alemanha e de Portugal.
78No Reino Unido, o RFCDCP actuou na Escócia, Jersey, País de Gales, Manchester, Sheffield, Eastbourne, entre outros locais e regiões. Deslocou-se a França, à Alemanha, à Bélgica, ao Luxemburgo e a Portugal, a convite de grupos similares. Participou em festivais organizados em Bruxelas, em Hamburgo e na Madeira, mais precisamente no XX Festival do Rancho da Casa do Povo da Camacha (50.º Aniversário), onde obtiveram o primeiro prémio e o prémio de simpatia.
79O RFCDCP revivifica o folclore madeirense, tendo como modelo o GFCPC, considerado pelo grupo como aquele que executa o folclore mais “original” e “autêntico”. Tendo sido fundado em 1948, o GFCPC é o agrupamento folclórico mais antigo da Madeira com actividade continuada. A sua importância, ou melhor, a importância que o RFCDCP lhe confere, é ainda mais enfatizada pela presença de Carlos Maria dos Santos como seu primeiro director artístico (Folclore 1992). Trata-se de um folclorista da Madeira da primeira metade do século XX.13
80A estes aspectos, só por si motivadores de uma reconstrução e transferência de um tipo de repertório, alia-se o curriculum do actual ensaiador no GFCPC. Não é de estranhar que, dada a sua participação durante 12 anos no GFCPC, José Manuel de Sousa transporte consigo o que aprendeu e transmita o seu saber a todo o rancho. Ligado afectivamente a um grupo, é com base nele que construiu a sua percepção estética, coreográfica e musical do folclore madeirense. Deste modo, o RFCDCP, absorvendo todas as vivências anteriores, revivifica actualmente o repertório (dança e música), os trajes, os instrumentos musicais dos anos 80 exibidos pelo GFCPC.
81A indumentária usada pelo RFCDCP representa o traje de viloa e de vilão, nos quais prevalecem as cores vermelha e branca. O traje masculino parece ter origem nos séculos XVII e XVIII, ao passo que o feminino terá sido utilizado a partir de 1933 pelas vendedoras de flores da Camacha (Ribeiro 1993, Rodrigues & Camacho 1997). A determinação das cores “mais autênticas” a usar no traje madeirense tem sido objecto de estudo e de controvérsia, mas parece ser também possível relacionar as novas cores com o desenvolvimento do folclore turístico na Madeira, bem como com as políticas respeitantes ao folclore do Estado Novo, no sentido de tornar mais colorida a indumentária dos grupos folclóricos.
82No que diz respeito às danças e à música, cada performance é constituída por exemplos do repertório escolhidos pelo ensaiador e determinados pelo contexto onde aqueles irão ocorrer. O bailinho é o género performativo predominante.
83Tomemos como exemplo o repertório apresentado pelo RFCDCP no dia 13 de Junho de 1999 (festa do Dia de Portugal, em Londres). O grupo apresentou seis exemplos do seu extenso repertório, considerados como os mais significativos: três bailes, duas mouriscas e uma marcha.14
84O baile é definido como uma dança em roda, nos tempos antigos executada no terreiro em frente da casa, depois das colheitas. Canta-se e dança-se aos pares. Este género é também executado a caminho da igreja ou das capelas dedicadas à Virgem Maria e em romarias.
85Amourisca é dançada com os olhos no chão e com o corpo curvado. José Sousa define-a como a “dança dos três passos.”
86Por último, a marcha surge como o hino do RFCDCP, sendo a sua música adaptada de uma marcha de um grupo madeirense já extinto. Aletra foi escrita por membros do grupo, evocando a condição de migrante.
87Todos estes géneros, apresentam uma organização musical baseada nos 1.º, 4.º e 5.º graus da tonalidade, surgindo frequentemente em SolM ou DóM. Há uma alternância entre partes instrumentais e vocais com acompanhamento instrumental, executadas por vozes masculinas ou femininas. A música é sempre considerada de património colectivo, não se referindo os seus criadores. Na letra, estruturada em estrofe/ refrão, exprime-se o quotidiano madeirense e a condição de emigrante.
88O RFCDCP utiliza instrumentos de corda (rajão, braguinha e violino), que executam a melodia em uníssono com a parte vocal. Acontece acrescentarem uma flauta. O acompanhamento harmónico está a cargo do acordeão ou da harmónica. A parte rítmica é executada pelo bombo, pelos sininhos (triângulo ou ferrinhos) e pelo brinquinho (castanholas).
89Conclusão
90Neste estudo sobre o processo de revivificação do folclore da Madeira, constata-se que este processo obedece a um modelo identificável: o que se revivificaéorepertório específico de um grupo madeirense (Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha), correspondente a um determinado período da sua actividade (anos 80). Essa revivificação tem como suportes fundamentais a transposição de saberes adquiridos pela anterior participação do ensaiador no referido grupo folclórico e, por outro lado, a valorização, expressa pela comunidade, da “autenticidade” e da “tradição”, decorrendo daí a “fidelidade” ao modelo do Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha.
91Desta forma, a comunidade portuguesa em Londres revê a sua identidade nacional e, mais concretamente, a identidade regional madeirense, no repertório folclórico que não sofreu alteração pelo contacto com uma outra sociedade. A tradição musical madeirense é expressa na música, na dança, nos trajes, nos instrumentos musicais e nas bandeiras do rancho e de Portugal, com que se apresentam em espectáculo. Pode-se, deste modo, afirmar que na comunidade portuguesa em Londres a prática expressiva e os seus elementos emblemáticos são símbolos de um sentimento de diferença, por um lado, e de semelhança, por outro.
92Sons of Portugal Band, de Danbury, Connecticut. EUA, 1941
Fonte: foto de José G. Motta Photographer (colecção particular de Paulo Filipe Monteiro)
Notes de bas de page
1 O presente trabalho foi efectuado no âmbito do programa de doutoramento no Goldsmiths College (Universidade de Londres) sob a orientação do professor John Baily. Gostaria de expressar os meus agradecimentos a Carlos de Freitas e a todo o RFCDCP, em especial a Maria Olga Pinto, Felisberto Serrão e José Manuel de Sousa, cujo contributo foi indispensável para a realização deste estudo. Agradeço ainda ao dr. Jorge Torres e ao professor John Baily os comentários feitos; à professora doutora Salwa El-Shawan Castelo-Branco o incentivo para elaborar esta versão. A pesquisa foi financiada pelo Ministério de Educação e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Os dados apresentados resultam de contactos realizados com o consulado português em Londres, com Carlos de Freitas na sua função de Delegate of the Permanent Council for the Madeiran Community in Europe (United Kingdom and the Channel Islands) e com os membros do RFCDCP durante o período compreendido entre Abril e Junho de 1999.
2 Tradução do autor.
3 Os dados estatísticos, sobre o número de portugueses no Reino Unido, são pouco fiáveis, baseando-se em previsões dos movimentos entre países da União Europeia, tendo em conta a realidade actual. A inexistência de um organismo que controle esses movimentos, leva a que não existam dados mais precisos, mas apenas meras estimativas. Neste estudo, as informações numéricas referentes à comunidade portuguesa ou madeirense são sempre antecedidas de “cerca de”, devendo ser consideradas subjectivas, dado terem sido fornecidas pelos meus informantes.
4 Antes e depois dos anos 90.
5 Nem sempre é realizada no próprio dia, sempre que a data não coincida com um fim-de-semana, o que determina a sua realização no fim-de-semana mais próximo. Em 1999 realizou-se no dia 13.
6 Salwa Castelo-Branco e Manuela Toscano realçam: “Carlos M. dos Santos foi uma figura local que contribuiu para a disseminação da música madeirense fundando diversos grupos de música tradicional nos anos 30, apresenta informações úteis sobre os instrumentos musicais madeirenses, assim como características e possíveis origens das danças e géneros vocais.” (Castelo-Branco & Toscano 1988: 173) (TdA).
7 Baile das Romarias, Baile do Bate o Pé, Baile da Chama Rita da Camacha, Mourisca de Santa Cruz, Mourisca dos Canhas — Ponta do Sol (no RFCDCP designado por Baile da Ponta do Sol) e a Marcha do RFCDCP.
8 O presente trabalho foi efectuado no âmbito do programa de doutoramento no Goldsmiths College (Universidade de Londres) sob a orientação do professor John Baily. Gostaria de expressar os meus agradecimentos a Carlos de Freitas e a todo o RFCDCP, em especial a Maria Olga Pinto, Felisberto Serrão e José Manuel de Sousa, cujo contributo foi indispensável para a realização deste estudo. Agradeço ainda ao dr. Jorge Torres e ao professor John Baily os comentários feitos; à professora doutora Salwa El-Shawan Castelo-Branco o incentivo para elaborar esta versão. A pesquisa foi financiada pelo Ministério de Educação e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Os dados apresentados resultam de contactos realizados com o consulado português em Londres, com Carlos de Freitas na sua função de Delegate of the Permanent Council for the Madeiran Community in Europe (United Kingdom and the Channel Islands) e com os membros do RFCDCP durante o período compreendido entre Abril e Junho de 1999.
9 Tradução do autor.
10 Os dados estatísticos, sobre o número de portugueses no Reino Unido, são pouco fiáveis, baseando-se em previsões dos movimentos entre países da União Europeia, tendo em conta a realidade actual. A inexistência de um organismo que controle esses movimentos, leva a que não existam dados mais precisos, mas apenas meras estimativas. Neste estudo, as informações numéricas referentes à comunidade portuguesa ou madeirense são sempre antecedidas de “cerca de”, devendo ser consideradas subjectivas, dado terem sido fornecidas pelos meus informantes.
11 Antes e depois dos anos 90.
12 Nem sempre é realizada no próprio dia, sempre que a data não coincida com um fim-de-semana, o que determina a sua realização no fim-de-semana mais próximo. Em 1999 realizou-se no dia 13.
13 Salwa Castelo-Branco e Manuela Toscano realçam: “Carlos M. dos Santos foi uma figura local que contribuiu para a disseminação da música madeirense fundando diversos grupos de música tradicional nos anos 30, apresenta informações úteis sobre os instrumentos musicais madeirenses, assim como características e possíveis origens das danças e géneros vocais.” (Castelo-Branco & Toscano 1988: 173) (TdA).
14 Baile das Romarias, Baile do Bate o Pé, Baile da Chama Rita da Camacha, Mourisca de Santa Cruz, Mourisca dos Canhas — Ponta do Sol (no RFCDCP designado por Baile da Ponta do Sol) e a Marcha do RFCDCP.
Auteur
Licenciada em antropologia (ISCTE), doutoranda, desenvolve pesquisa sobre grupos intelectuais católicos. Publicações: “Exposição sobre a loiça preta em Portugal: ponto de vista 3” (Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 39, 1-2, 1999),”Famílias: Mitos do afecto, mitos da racionalidade económica. Uma abordagem antropológica” (Familiarmente. Boletim do Grupo de Estudos da Família, 2, 1, 1999), “Abordagens antropológicas ao conflito familiar” (Familiarmente. Boletim do Grupo de Estudos da Família, 4, 1, 2001).
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003