Capítulo 30. António Alfaiate Marvão (1903-1993)
Um sacerdote no processo de folclorização
p. 455-460
Texte intégral
1António Alfaiate Marvão destaca-se pelo seu intenso trabalho de pesquisa em torno do “cante” alentejano. Nasceu na Amareleja, então uma pequena aldeia do Baixo Alentejo, em 23 de Dezembro de 1903, onde viria a falecera 2 de Fevereiro de 1993. Fez os estudos primários na sua terra natal, na escola particular do professor António Agostinho Lopes. Após a conclusão do ensino primário exerceu o ofício de sapateiro, actividade que viria mais tarde a abandonar para poder ingressar no Conservatório Nacional de Lisboa.
2De que forma se processa o seu contacto inicial com a chamada música erudita e como se viabiliza o seu ingresso no Conservatório Nacional de Lisboa?
3O pai de António Alfaiate Marvão, Manuel Caeiro Alfaiate, era feitor agrícola nas propriedades de uma família abastada do Baixo Alentejo — a família Garcia. Era ainda muito jovem quando Jerónimo Garcia lhe ofereceu um violino. António Marvão rapidamente aprendeu a tocá-lo sozinho. Perante a aptidão musical patente na auto-aprendizagem do instrumento oferecido, estimula-o a ingressar no Conservatório Nacional, em Lisboa, concedendo-lhe apoio económico. Em 1927, com 24 anos de idade, ingressou no conservatório. Estudou com Tomaz del Negro e Flaviano Rodrigues.
4No princípio da década de 1930, funda uma orquestra de cordas em Santo Aleixo da Restauração. Em 1931, ainda a conselho de Jerónimo Garcia, que não previa saída profissional na área da música, segue para o seminário de Serpa, ingressando directamente no segundo ano. Os seus superiores caracterizaram-no como inteligente, disciplinado e muito aplicado. Nos registos do seminário encontramos inúmeras referências ao seu comportamento e personalidade: “(…) é piedoso e convicto com espírito já bastante formado. Tem espírito de apostolado. (…) Tem boa vontade. (…) é notavelmente respeitoso com os superiores (…) é bom carácter; humilde e franco (…) amável. Bastante nervoso; (…) muito sério (…) dá notáveis sinais de vocação (…)”.1 Neste documento há referência à permanência no seminário dos Olivais (1936-1939), onde concluiu a formação sacerdotal. A sua difícil situação económica ficou assinalada: “(…) Não paga nada de mensalidade; tem muitas dificuldades em pagar as suas despesas de livros. É protegido pela Ex.ma Sra. D.a Maria das Dores.” (Livro de impressões 1925).
5Começa a manifestar interesse pelo cante alentejano no período passado em Lisboa. Inicia a compilação de modas cantadas por alguns colegas seminaristas alentejanos. Durante as férias continua as recolhas e transcrições na sua terra natal, recorrendo sobretudo a pessoas idosas.
6Por volta de 1938, manifesta, segundo os seus superiores do seminário dos Olivais, “acentuados e decididos propósitos de se ordenar, tendo sido admitido às ordens menores em Abril de 1939" (ver Livro). Em Agosto de 1939, tinha então 35 anos, recebe, no santuário de Nossa Senhora de Fátima, a prima tonsura, e as quatro antigas ordens menores da Igreja Católica — ostiariato, leitorado, exorcizado e acolitado — todas elas atribuídas por uma figura que acabará por marcar decisivamente a sua vida — o bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias. As três últimas ordens sacras da Igreja Católica — subdiaconado, diaconado e presbiteriado — são-lhe conferidas na Sé de Beja, pelo citado bispo, entre Dezembro de 1939 e Março de 1940. Em 30 de Março de 1940, reza missa nova, na Amareleja.
7De 1940 a 1942 é prefeito e professor no seminário de Beja, altura em que surgem as suas primeiras publicações (Marvão 1942, 1943). Nelas é transmitida uma preocupação com a preservação da identidade alentejana, contrariando o êxodo rural e advertindo para a questão da desigualdade social:
Operário, é a ti que, na hora presente, a voz de Cristo se dirige. Ocupaste sempre no coração de Cristo, Deus feito operário como tu, um lugar de especial predilecção. Considera a dignidade da tua natureza sobrenaturalizada por essa preciosíssima qualidade que te torna verdadeiramente filho de Deus, por adopção. Não és um pária, um desprezado, muito menos um escravo. Cristo, o divino carpinteiro de Nazaré, (…) elevou consigo toda a humanidade, sem distinção de classes ou de posições (…) (Marvão 1942: 7)
8Em 1942 é incumbido de paroquiar as freguesias de Beringel, Trigaches, Mombeja e São Brissos, onde permaneceu até à sua aposentadoria, cerca de 1990, voltando de seguida para a sua terra natal. Em Beringel desenvolve intensas actividades no âmbito da intervenção social. Antes da sua presença, Beringel contava apenas com a Casa do Povo e com as acções de caridade desenvolvidas a nível particular. Funda várias organizações, entre elas a Juventude Agrária Católica, organizando com os seus elementos um pequeno orfeão que apresenta composições suas. Lança ainda a Sopa dos Pobres, em 1944, para fornecer diariamente uma refeição aos mais necessitados. Dirige o Centro da Mocidade Portuguesa, em Beringel, a partir de 1947. Em 1951, inaugura uma creche e uma cantina escolar. Constrói, em 1954, a nova igreja de Trigaches e promove a construção de um bairro social. Funda a Conferência de São Vicente de Paula, instituição que se dedicava à distribuição regular de géneros alimentícios pelas famílias mais pobres. No dia 1 de Outubro de 1963 surge a génese do actual externato António Sérgio de Beringel, projecto baseado numa ideia de Martinho Ferro, desenvolvido com a colaboração de Sebastião Valente, Reinaldo Campanela e de António Marvão.
9Colabora em várias publicações periódicas, sendo de destacar o Arquivo de Beja, onde publica o seu primeiro trabalho sobre o cante alentejano (Marvão 1946), apresentando as suas primeiras recolhas musicais de modas com texto e partitura. É director do Notícias de Beja, entre 6 de Setembro de 1941 e 20 de Abril de 1946, e também do Jornal do Sul, entre 5 de Junho de 1963 e 31 de Agosto de 1966. Presta colaboração nos jornais Novidades, Diário do Alentejo e Jornal de Moura, entre outros.
10No ano de 1954 edita o seu terceiro livro, O Problema Alentejano. Nesta obra tece inúmeras considerações de ordem social e cultural, procurando apresentar soluções para o Baixo Alentejo. Inicia a problematização do cante alentejano:
Possui o alentejano uma riqueza espiritual de reconhecido valor, que são as suas modas. Não se lhes conhece a origem. Passam de geração em geração, são cantadas hoje, como aqui há cem anos, com pouca diferença, e esta é apenas acidental. É vê-los e ouvi-los em grupos, aos domingos e dias de festa, em passo cadenciado, vagaroso, acertando com as modas, dolentes e graves, cheios de um misticismo natural que fere os sentidos, chega à alma, enchendo-a de impressões suaves e agradáveis. Quem foi o autor ou mestre destes lindos corais a duas, três, quatro e cinco vozes distintas? Ninguém o sabe; não foi ninguém. A execução é expontânea, e quanto mais expontânea, tanto melhor, mais perfeita e mais afinada. (…) Naquelas modas como em tudo, o alentejano põe toda a sua alma, vive-as, na música e na letra. O alentejano tem a intuição do cante a vozes, e harmoniza, sem ter o mais rudimentar conhecimento da lei da combinação dos sons. (…) (Marvão 1954: 7-8)
11A primeira grande publicação é o Cancioneiro Alentejano (Marvão 1955), uma obra pioneira sobre este repertório.2 Viria a constituir uma referência para grupos corais alentejanos e para estudiosos. Começando a sua compilação ainda no seminário dos Olivais, completa-a em várias localidades do Baixo Alentejo.3 O padre António Marvão refere o apoio do musicólogo Mário de Sampaio Ribeiro (Marvão 1966: 4).
12Foi membro de júri em comissões e concursos de folclore e cante alentejano, juntamente com autoridades reconhecidas então, tais como Abel Viana, Frederico de Freitas, Joaquim Roque, Pedro do Prado ou o padre José de Alcobia.
13No ano de 1956 aprofunda as origens do cante alentejano (Marvão 1956a, 1963):
(…) Por ser um canto a vozes, o canto alentejano tem de ser chamado um canto polifónico, embora só mereçam esse nome as peças de música abrangidas pelos moldes clássicos de harmonização. (…) tem ainda a [particularidade] de ser um canto apaixonado e apaixonante, que tanto nos pode fazer lembrar a música sacra, de elevação espiritual e unção religiosa, como a cantilena árabe da música marroquina. Cheira e sabe a cantochão de igreja e água benta, e traz consigo os estigmas da música berbere. (…) (…) não defendo a tese arabista quanto às origens do nosso lindo e típico folclore musical. Mas não se pode negar nele uma certa influência dessa corrente tanto mais pronunciada quanto mais perto da fronteira. (…) E a unção religiosa não é também evidente nos corais alentejanos? Não são as modas Stavas d’Abalada e Não quero que vás à monda, construídas com a Ladaínha de Nossa Senhora? Não há modas que são autênticos trechos de peças gregorianas? (…) (Marvão 1956a: 4-5)
14Na sua perspectiva, o cante alentejano tem origem no fabordão do século XII admitindo também algumas influências árabes. Foi neste sentido que, desde os artigos publicados no Arquivo de Beja nos finais da década de 1940, defendeu a génese do cante alentejano. No livro O Alentejo Canta apresenta, pela primeira vez, a hipótese sobre a origem gregoriana do cante. Esta publicação teve um forte impacte no estudo e documentação do cante alentejano e condicionou pesquisas posteriores.
15Ainda em 1956, publica um pequeno livro intitulado O Padre Zé e os seus fregueses, uma obra de ficção, onde são retratadas características tidas como típicas do “bom povo alentejano”. É um texto redigido com humor, realçando situações insólitas atribuídas à falta de formação religiosa da população alentejana.
16Continuou a publicar sobre o cante alentejano (Marvão 1965, 1966, 1970, 1985), mantendo-se fiel à tese da origem do cante no fabordão do século XII.
17A sua última obra editada em vida reúne vários artigos publicados em periódicos alentejanos, ao longo das décadas de 1970 e 1980 (Marvão 1988).4 A título póstumo publica-se Estudos sobre o Cante Alentejano (Marvão 1997), com a transcrição da letra e melodia de 133 modas (15 delas inéditas) e textos sobre estrutura, prática, origem e sociologia do cante.
18Dirigiu vários grupos corais alentejanos, que “ensinava” a cantar, com um cunho pessoal baseado na sua formação erudita.
19O padre António Marvão é relembrado por membros de coros que dirigiu. Joaquim Matos e Augusto Ramos, elementos do actual Grupo Coral do Externato António Sérgio de Beringel referem-no como “amigo da terra”, “popular; falava com toda a gente” e “sociável.” Inocêncio Viriato, orientador do Grupo Coral do Externato António Sérgio de Beringel e seu antigo aluno, salienta que o facto de o padre Marvão ter estudado e investigado tão intensivamente o cante alentejano talvez lhe tenha dificultado um pouco o relacionamento com alguns elementos dos grupos corais que dinamizou em Beringel. Ele era muito exigente com os grupos e tentava impor um sistema musical que não correspondia ao estilo informal do cante. Os coralistas, habituados a cantar nos campos ou nas tabernas de uma forma descontraída, não conseguiram adaptar-se à disciplina do sacerdote, facto que conduziu os dois grupos corais por ele criados ao insucesso.
20O Cancioneiro Alentejano tem funcionado como símbolo de uma actividade musical supostamente em vias de desaparecimento. Dos grupos corais que contactámos e que afirmam conhecer o Cancioneiro Alentejano, apenas o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa diz recorrer a ele. Deve-se sublinhar que alguns membros deste grupo têm formação musical, o que lhes permite utilizar o dito cancioneiro como fonte.
21O padre António Marvão foi uma figura que se destacou no panorama do folclore português. Talvez como reflexo da sua época, passou também ele por um processo de transformação. A sua visão sobre o cante revela essa mudança: inicialmente age dentro dum purismo folclórico, que regista sistematicamente o património musical, de características supostamente arcaicas, e que importava, segundo a retórica nacionalista então em voga, preservar a todo o custo. Mais tarde, começa a falar de “folclore vivo” (Marvão 1966: 7-8), assumindo assim uma postura mais dinâmica perante o seu objecto de estudo:
(…) O Alentejo precisava abrir as suas portas à aventura, sair de si mesmo, ouvir outros cantes, outras vozes, sem deixar os seus, já se vê. Pegá-los à terra outra vez? Não será fácil. Só com um Alentejo arejado, aberto para a vida. E ele há-de surgir. Mas não tenhamos dúvidas: o Alentejo doutros tempos envelheceu, como tudo, e morreu. Ressuscitá-lo outra vez, seria pura ilusão. Que as virtudes dos nossos antepassados, toda a sua gloriosa tradição seja vivida e cantada ainda, no seu lindo cantochão, estamos de acordo. Mas tenho para mim que até ele, o seu majestoso e misterioso canto, evoluirá, embora dentro dos moldes que o identificam com a nossa índole e a nossa história. (Marvão, Missão Cumprida, Beringel, 1988: 204)
22No trajecto de António Marvão aliam-se várias causas, que abraça pela vida fora: a sensibilidade à desigualdade social, a preservação do património musical pela recolha e pela pesquisa e a dinamização de grupos corais alentejanos.
Notes de bas de page
1 Livro de impressões sobre cada um dos alunos do Seminário de Nossa Senhora de Guadalupe de Serpa, começado em 1925, Seminário de Beja.
2 A par com os trabalhos de Manuel Dias Nunes publicados em A Tradição e o livro Danças Populares do Baixo Alentejo e Modas — Estribilhos alentejanos. (Nunes, 1891), também as obras de Pombinho Júnior não foram tidas em conta, na medida em que somente são compilações dos textos das modas, sem partitura.
3 Aldeia Nova de S. Bento, Aljustrel, Almodôvar, Amareleja, Beja, Beringel, Colos, Cuba, Ferreira do Alentejo, Grândola, Mina de São Domingos, Peroguarda, Santo Aleixo da Restauração, São Matias, Serpa, Trigaches e Vidigueira.
4 Além das obras que já destacámos, convém referir também Beringel e a acção da Igreja (Marvão 1962), Descoberta Arqueológica perto da aldeia de Mombeja (Marvão 1966), Sepultura de D. Pedro de Sousa, 1.º Conde do Prado (Marvão 1969) e A Matriz de Beringel (Marvão 1974).
Auteurs
Licenciado em ciências musicais (UNL). Estudou percussão no Conservatório Nacional. Mestrando em ciências musicais (etnomusicologia) e investigador no Instituto de Etnomusicologia (INET). Técnico no Instituto Português das Artes do Espectáculo (IPAE), Lisboa. Autoria de 16 entradas para a Enciclopédia da Música em Portugal no século XX (Círculo de Leitores, no prelo).
Licenciado em ciências musicais (UNL), professor de música na Escola Superior de Educação, Beja. Pesquisa em curso sobre o cante alentejano (Universidade de Salamanca) e sobre a música pop/rock (Universidade de Maryland). Publicações: “Um Olhar sobre o Cante Alentejano: Introdução ao estudo da Vida e obra de António Alfaiate Marvão” (Arquivo de Beja, 3.a série, 13: 37-48, 2000).
Licenciada em ciências musicais (UNL), docente no Conservatório Regional de Portalegre.
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