30. «Pélas»1
p. 315-318
Texte intégral
1«Péla» é uma designação genérica para bola, e, sob essa forma, conhecemos várias menções de um velho jogo de bola, certamente diferente do que estudámos nas duas Póvoas, e com a característica especial de ser exclusivamente feminino. Assim, no episódio da Odisseia, Nausica joga a péla com as suas escravas, após o banho e a refeição que tomaram junto do rio onde foram lavar os seus vestidos; no fim. «a princesa atirou a bola a uma das suas cativas, não atingiu a companheira», e a bola foi cair «em um fundo redemoinho»2. E. pelo seu lado, o arcipreste de Hita, interpelando ou falando em nome de mulheres, diz:
« Querriedes jugar pella... »
Jugaremos a la pella
é otros juegos rreheses... »
« ... e fazer que la pella
en rodar no se tenga.»
e ainda, referindo-se ao seu livro:
«Qualquier ome, que l’oya,
sy bien trobar sopiere,
puede mas añedir
e emendar si quisiere.
Ande de mano en mano:
qualquier que lo pidiere.
Commo pella las dueñas,
tómelo quien podiere »3.
2D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, analisando o papel preponderante que o sexo feminino desempenhava nas romarias e certas outras celebrações festivas, fala num jogo da «Péla», que era o principal de entre os antigos jogos femininos periódicos de ar livre, próprio do período dos cinquenta dias, entre a Páscoa e o Espírito Santo4; e, aludindo à menção do Minnesinger alemão von Stamhein. que «desenha em uma das suas poesias um grupo de meninas germânicas caminhando a cantar ao terreiro onde haviam de iniciar os tradicionais jogos da péla, capitaneadas pela Maia»5, e à do arcipreste de Hita que atrás transcrevemos em último lugar, diz que ele era praticado em todos os países da Europa.
3Nestes exemplos, trata-se de um jogo feminino de bola, em que esta é atirada de umas mulheres para outras – « die megde wurfen... den bal » –, e apanhada, dentre elas, por « quien podiere », fazendo-se por que ela «en rodar no se tenga», isto é. nunca caia ao chão6. Notamos desde já que. sob esta forma, existe entre nós. como vimos, o jogo feminino da «Péla ao comprido», de Idanha-a-Nova, de que fala Lopes Dias7, que encontramos igualmente em Nisa, próprio, com efeito, em ambas as regiões, da época da Páscoa.
4A mesma ilustre cientista nota que. a partir de Femão Lopes, o vocábulo «Péla» passara a designar, em sentido derivado, uma bailada popular, «certamente simbólica, em que uma rapariguita. em pé nos ombros de uma mocetona robusta, cujos passos de dança repetia agilmente, servia de pella a essa»8, e que fazia parte de diversas procissões festivas, nomeadamente a do Corpo de Deus9; e acrescenta, concluindo: «Está claro que nem por isso o jogo da péla desapareceu, posto que hoje esteja pouco popular (nas aldeias a péla é substituída pelo púcaro e por laranjas) »10.
5Ignoramos se qualquer investigação histórica, de textos ou factos, que desconhecemos, estabelece esta aproximação entre os jogos da péla e dos púcaros, e a relação de dependência ou sequência cronológica do segundo para com o primeiro. O jogo dos púcaros é, com efeito, como o da péla a que alude D. Carolina Michaêlis – e não apenas no nosso país –, um jogo da rua, cerimonial e periódico, conhecido em muitas localidades, países e povos, e próprio geralmente de dias certos festivos – do dia da Ascensão, em Quintanilha, como vimos, mas carnavalesco as mais das vezes de que temos notícia (em conformidade de resto com o seu carácter jocoso) –, em que essas peças de louça, do mesmo modo que a bola, são atiradas de umas pessoas para as outras, esforçando-se cada uma por evitar deixá-las cair ao chão; mas, tal como é conhecido histórica e actualmente, ele nada tem de especificamente feminino; e além de isso, a sua larga difusão e o seu sentido geral de rito purificador, que subsiste por exemplo na virtude de porte-honheur que, em França, lhe é atribuída. justifica, a seu respeito, a hipótese de uma invenção autónoma e presumivelmente muito remota.
Notes de bas de page
1 Ver O «Jeu de Toupiole- em Portugal. «Trabalhos de Antropologia e Etnologia». XV. 1-2. Porto. 954, págs. 111-115.
2 Odisseia, livro VI, v. 99 e segs.
3 Juan Ruiz, arcipreste de Hita – Libro de Buen Amor, versos n.os 672, 861, 939, 1629 e também 867: « ... é la pellota jugar».
4 Cancioneiro da Ajuda, Edição crítica e comentada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Halle, 1904, vol. II, § 429, pág. 900.
5 Ibid., nota 1. A cantiga em questão é a seguinte:
Vor dē Walde i eime tal
da sach má swēze blēkê
da si zemen kamè vá mangen kranz
die megde wurjè ôch dê bal
si begvndê stríchê.
dar nach hab sich des meien ein vil michel tanz
dẽ sang in bele vor vñ manig ir gespil
jroidê il
hatê sie
in was dort wol got helfe vns hie.
De que com a devida vénia damos a seguinte tradução, com desculpa de eventuais inexactidões:
Num vale em frente da floresta
Viam-se espectáculos de dança
Quando as raparigas se juntaram
e lançavam umas às outras grinaldas
e também a bola.
Começaram a tocar rabecas
e então armou-se uma grande dança de Maio
Então muitas das suas companheiras
cantaram-lhe bailadas.
Muita alegria elas tiveram
e que Deus nos ajude agora aqui.
6 Vieira, sub. voc. Pella. que define como «pequena bola elástica, feita de diferentes materiais». fala, sem o descrever, de um jogo da «pella». «que se faz com a bola deste nome», citando um passo do cap. 22 da Crónica de D. João 11. de Garcia de Resende, e uma carta do Cavaleiro de Oliveira, que a mencionam, aludindo ao local ou recinto onde ele era jogado; do mesmo modo, nas Monstruosidades do tempo e da fortuna, alude-se a uma pendência entre fidalgos, que teve lugar «em o jogo da péla» (Ed. de Damião Peres, vol. II.Porto. 1939. pág. 119). e. noutro local (ibid. vol. I. Porto. 1938. pág. 83) cita-se. a propósito de acontecimentos da corte, o anexim : « jogando a fortuna à pelota com uns e outros»; e nesta acepção, com idênticas implicações, conhecemos ainda o «Jogo da Bola» do jardim de Santa Cruz, de Coimbra. Gil Vicente fala também num jogo em que «hum mancebo», a jogar «cos pranches pella do vento», «parece que anda no ar» (Triunfo do Inverno. 1); e Vieira, utilizando a nota respectiva de Mendes dos Remédios, define «pella de vento» como sendo uma «bexiga cheia de ar. e coberta de couro, que serve também para jogar». Estes jogos não são de rua. nem aparentemente femininos, e parecem referir-se ao jogo da péla que é o antepassado do actual tennis. e que. com diversas formas – a « péla curta » e « comprida » –. foi inventada em França no século xiii, e rapidamente difundido pela Europa, conhecendo uma grande voga até finais da Idade Modema; ele jogava-se em recintos fechados próprios – de que resta um exemplo no «Jeu de Paume» das Tulherias, em Paris –. ou ao ar livre, em locais também próprios, tais como os que atrás indicamos; a bola era atirada por sobre uma corda atravessada a meio do campo, a dividir os dois partidos, que fazia as vezes da actual rede, por meio de raquetas ou pás – certamente os « pranches » vicentinos. É esta a «Péla» que respeita o « Enigme en prophécie » do capítulo LVIII do Gargantua. de Rabelais, de pitoresco sentido ambíguo.
Vê-se claramente que o jogo da péla da Póvoa de Atalaia, na sua forma exterior, nada tem que ver com estes outros, femininos ou masculinos, que apontamos; ele deve derivar de mais outro jogo da péla que. ou possuía originariamente características definidas de jogo periódico, ou foi posteriormente absorvido por outro que as possuía, operando-se uma sobreposição de elementos primitivos de origens diversas, que nele se teriam fundido.
Há, assim, deduzidos dos factos actuais, ou mencionados em textos, a considerar múltiplos jogos antigos da péla, cujos vários elementos constitutivos devem ulteriormente ter-se combinado de modos diversos:
a) O velho jogo feminino de que falam von Stamhein e o arcipreste de Hita. e que cita D. Carolina Michaëlis. que se podem relacionar com o da Odisseia:
b) Os diferentes jogos de péla masculinos – péla curta e comprida, etc. –. com raquetas, que mencionam Rabelais, Garcia de Resende, o Cavaleiro de Oliveira, as «Monstruosidades», etc., e que será talvez também aquele a que alude Gil Vicente;
c) O jogo que está na base e origem da «Péla» das duas Póvoas.
7 Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, vol. VI. Lisboa. 1942. pág. 165.
8 Cancioneiro da Ajuda, loc. cit.
9 Ibid., pág. 901: em Coimbra. Porto e certamente também em Lisboa Na procissão «do Corpo de Deus, eram as corporações femininas – regateiras, peixeiras, padeiras – que contribuíam por dever de ofício ao festejo com pellas (duas) bem corrigidas e louçãs », que « deviam ser forçosamente cantadeiras e bailadeiras industriais, daquelas non-nobres, pacientes roydo e corrientes por las calles... Ao som da gaita galega e do tamboril, doze moças com pandeiros e adufes cantavam então toadas ao antigo, a dois coros. Hoje, esta pella está quase extinta. Nos lugarejos onde perdura, por exemplo, em Puente-Areas da Galiza, está divinizada e virilizada por completo. «São rapagões os que a dançam, servindo de peanha a meninos que vestidos de archanjos vão ao rythmo de um cantar brandindo espadas...»: mas o carácter mundano que ela tinha outrora transparece por vezes em certas quadras e estribilhos que acompanham tais danças (do maneo ou da pella):
«Bailla, nena, baila nena. e non pares de bailar.
«Que as estrellas tamen bailan sin perder de alumar».
e:
«Como se colean as troitas na agua.
«Assi se manea teu corpo salado.
«Como se colean as troitas no rio.
«Assi se manea teu corpo florido. »
Vieira, loc. cit.. dá também esta acepção da palavra pela, transcrevendo a definição proposta por D. Carolina Michaëlis para o seu sentido derivado (Cancion, pág. 900, nota 4) : « rapariguinha que baila em pé nos ombros de outra maior, repetindo as mesmas cadências que essa faz», e informando. sem citar fontes, que na Galiza se chama Péla a uma criança ricamente vestida e montada sobre as costas de um homem, que vai dançando, e que costuma sair nas procissões do Corpo de Deus.
D. Carolina Michaëlis nota ainda que. em alemão, a palavra para Péla, Bal. designa, como em português, simultaneamente jogo e bailada
10 Cancioneiro da Ajuda, pág. 900, nota 4.
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