Capítulo 25. Peroguarda: folclorização e memória
p. 409-418
Texte intégral
Fragmentos reavidos
1Equacionar o movimento folclórico conduz à enumeração de algumas localidades mais conhecidas do que outras e, por isso, consideradas representativas duma região ou província. Referir o Alentejo não é evocar a monumentalidade edificada da cidade de Évora (Cátedra 1999), mas a aldeia de Peroguarda, situada em plena planície, cerca de uma centena de quilómetros em direcção a sul.1
2O viajante que dela se aproxima, nada de distintivo surpreende, tanto na paisagem como na configuração do casario. Ao passear pelo interior da localidade, encontra o branco característico doutras povoações alentejanas, a igreja, um largo que a antecede e onde foi levantado um cruzeiro comemorativo do Duplo Centenário. Junto à bifurcação com a agora desclassificada EN 387 reconhece-se de imediato a Casa do Povo e, finalmente, a escassas centenas de metros, avista-se o pequeno cemitério. Para o forasteiro a única particularidade que se lhe poderá apresentar é a toponímia. Ao percorrer as ruas centrais e olhando as fachadas dos edifícios públicos referidos, apercebe-se então das individualidades e dos acontecimentos evocados. Bastam apenas alguns passos para lermos o nome de políticos locais activos há meio século e azulejos perpetuando a memória da participação no concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, realizado em 1938, para além do citado cruzeiro com o ano 1940 gravado na pedra.
3Dado o bom estado de conservação das placas, sente-se que este exercício de memória é recente ou foi reavivado há pouco tempo. O balneário público — uma conquista de Abril, presumo — fica do lado oposto da povoação, num local baixo e pouco visível. O cemitério em regra está fechado, sendo os seus portões abertos quando a necessidade a isso obriga. Ali foi sepultado Michel Giacometti (1929-1990), por seu expresso desejo. Os habitantes de Peroguarda não se apressam a dizê-lo ao forasteiro; mas, se este a isto se refere, prontamente o confirmam. A junta de freguesia mantém em bom estado de conservação tudo o que remete para o domínio patrimonial e que acaba por conferir singularidade a Peroguarda entre todas as outras localidades alentejanas — a ligação ao movimento folclórico e o pano de fundo que proporcionaram acções de recolha musical. A povoação respeita e perpetua a memória de pessoas e acontecimentos; nenhuma outra o pode fazer conjugando os mesmos factos.
4Foi no âmbito competitivo regional que no ano de 1938 Peroguarda foi integrada no grupo final para a selecção nacional, em representação do Alentejo. Embora fosse Monsanto a vencer e a receber o prémio, na memória local parece que as pessoas se conformaram com a decisão final do júri nacional, e que se sentem ainda hoje vencedoras à escala da província.
Polifonia de visões
5O que distingue hoje Peroguarda das suas rivais de outrora é o modo tacitamente assumido de ligação ao concurso de 1938. A construção deste laço com o passado não foi linear. Para tal importa detectar a perspectiva local da participação e do empenhamento no movimento folclórico nacional.
6Existem vários pontos de vista, reveladores das visões diferenciadas do folclore como quadro associativo e de salvaguarda de memórias sociais na aldeia.
7Ao abordar os membros mais destacados do grupo Alma Alentejana, o discurso produzido centra-se nos relatos sobre actuações feitas no passado, as que estão programadas e os ensaios. Nota-se o prazer em mostrar ao forasteiro o fardamento do rancho. A indumentária masculina integra fatos de lavradores ou domingueiros, de varejadores, de ceifeiros, de pastores, de maioral e de almocreve. Pelo lado feminino envergam-se trajes evocativos de ceifeiras, de mondadeiras, de azeitoneiras e de aguadeiras. Os trajes femininos acabados de referir são em princípio idênticos, variando apenas os atavios usados e que simbolizam as fainas agrícolas desempenhadas ao longo do ano. As ceifeiras actuam com mangueiras, punhos, luva e canudos, enquanto as mondadeiras empunham um sacho em vez de uma foice. O vestuário masculino é menos vistoso, distinguindo-se a tarefa a realizar pela alfaia ostentada. Um olhar mais atento permite verificar que as foices para a ceifa dos homens são maiores que as das ceifeiras. Tal pormenor indicia as ceifas manuais outrora organizadas nas grandes herdades dos arredores de Peroguarda. Havia competição cerrada entre os dois sexos, embora a elas se exigisse um rendimento menor — daí também a diferença na dimensão do instrumento de trabalho e no pagamento devido. Por outro lado, como alguém me diz, as mulheres gostavam de estar sempre bem arranjadas — talvez porque a maioria fosse ainda solteira —, enquanto eles andavam mal vestidos.2
8No palco estas diferenças não são perceptíveis, nem transmitidas ao público. O orgulho patente ao longo das conversas tidas, tem pouco a ver com a organização do trabalho; parece ser assunto que se evita. A postura dos cantadores e músicos nas actuações não é a de encenar um hino ao trabalho manual na agricultura, mas mais a de cativar o espectador com a indumentária exibida. Só depois poderá entrar em linha de conta a leitura artefactual dos componentes das vestes e os atavios envergados. Por insistência minha, uma das mulheres explica que a actual indumentária está adaptada às exigências da exibição em palco. Para exemplificar cita o caso do calçado feminino. As botas altas são hoje confeccionadas por encomenda e não resistiriam à faina nos campos. As posturas dos membros de um agrupamento folclórico nos ensaios ou durante as actuações constitui uma invocação remota e estilizada dos gestos anteriormente implícitos para o bom desempenho das fainas agrícolas. A esta constatação prontamente se responde que o canto marcava o ritmo de trabalho (ceifa, monda, apanha da azeitona), quando as primeiras se faziam em regime de jorna, ou seja, pagamento diário fixo aos ceifeiros e às ceifeiras. Neste caso, cantava-se por ocasiões para cadenciar o trabalho e estimular a competição entre os ceifeiros, especialmente entre os homens, que assim se evidenciavam entre si e perante as mulheres presentes. Mas quando a ceifa era dada de empreitada,3 o ritmo de trabalho alterava-se de tal forma, que o único estímulo era a paga em mira,4 deixando de ser possível cantar.5 Por isso, sublinham, os cantares alentejanos não têm instrumentos e são lentos para serem interpretados em movimento.
9A dedicação ao cante é na memória dos actuais membros mais idosos — a maioria tem mais de 60 anos — uma lembrança da estratificação social estabelecida na aldeia durante a sua juventude. Na década de 1940, o género coral era interpretado sobretudo pelos assalariados, enquanto outros estratos, como os pequenos camponeses, se identificavam mais com as modas musicais vindas das cidades. Quando jovem ainda solteiro, um dos membros da Alma Alentejana era notado por cantar o fado lisboeta, que ouvia de discos.
10Durante estes diálogos vivos e cheios de desvios ao tema inicialmente lançado, uma presença invisível ia tecendo um fio condutor. Se a indumentária era o assunto predilecto, as dúvidas colocadas originavam muitas vezes debate, nem sempre se chegando logo a um consenso sobre a resposta a dar-me. A consulta da segunda edição de um livro religiosamente guardado e que estava sempre dentro da gaveta da mesa, punha termo às indecisões. Era a obra de Joaquim Roque Alentejo Cem Por Cento, redigida para o concurso de 1938 e reeditada na década de 1990 (Roque 1990). Confrontando o texto deste livro com o discurso dos membros do rancho folclórico, verifiquei que a imagem que de si davam coincidia com o conteúdo do livro. Ficou-me a sensação de que eram mais as fotografias do que o texto a orientar a lembrança do grupo. O passado do rancho folclórico era as pessoas entretanto desaparecidas e que haviam feito parte da leva inicial; a maioria dos meus interlocutores era então demasiado jovem para figurar nas fotos. Estava detectado o patrono, a pessoa que havia idealizado e elaborado o quadro de inserção da aldeia e das suas gentes no movimento folclórico nacional.
11O grupo partilha visões comuns de si próprio, mas estas só à primeira vista coincidem. Noutra ocasião, fui apresentado ao ensaiador. A pessoa que o fez integra com o marido o rancho e estava nesse momento a aprontar o fardamento para uma actuação nessa noite numa das salas do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.6 Antes, tivemos tempo para uma pequena conversa. Queixou-se das dificuldades em rejuvenescer a Alma Alentejana. Na qualidade de responsável por um coro infantil, lamentou que rapazes e raparigas chegados à adolescência se desmotivassem, porque não se identificavam com o repertório coral dos velhos. Só queriam tocar instrumentos e depois ausentavam-se da aldeia.
12O ensaiador fala-me do passado do grupo. Foi refundado em 1988, por alvitre do actual director, um padre de Ferreira do Alentejo que ao mesmo tempo assegura em acumulação a assistência religiosa à paróquia de Peroguarda. Nessa altura tinha-se em vista aceitar o convite para participar no V Festival Nacional de Folclore, dedicado aos 50 anos do concurso de 1938 (Monsanto 1988). A reactivação não foi muito difícil. A indumentária masculina estava guardada na Casa do Povo, enquanto as mulheres se encarregaram de costurar os trajes femininos. Difícil foi o calçado. Houve que mandar fazer os sapatos por encomenda. Só mais tarde, graças a uma das mulheres que tinha guardadas em casa umas botas se pôde fazer réplicas para todas as mulheres, o que equivaleu a um investimento considerável.7
13Acrescenta que a actual composição do rancho não corresponde à inicial. E refere, a propósito, o caso de um homem, bom cantador, que há três anos deixou de participar, depois de uma zanga tida por causa de um pano de saragoça destinado a umas calças. Ou ainda uma das mais destacadas cantadeiras e poetisa (Gomes 1990), que antes de 1988 nunca se integrara num grupo. Como que para me comprovar a qualidade do repertório e das exibições que as pessoas de Peroguarda foram assegurando no último meio século, dá-me referências externas. Tudo começou quando o já referido Joaquim Roque (1913-1995), um filho da terra, a partir de 1936 reúne um grupo. Dada a sua influência como membro da então Junta Distrital do Baixo Alentejo conseguiu o financiamento para o fardamento de homens e mulheres. O primeiro ensaiador foi António Pica, já falecido, mais velho que Joaquim Cara Nova, agora bastante idoso e recolhido num lar dos arredores de Lisboa. Actuaram naquela altura no Porto, em Lisboa e em Santa Marta de Portuzelo — palmarès que eu depois revejo compilado no livro. Faziam-se transportar num autocarro alugado e recebiam das autoridades uma compensação pecuniária por cada dia de trabalho perdido. Foi nessas andanças que uns jovens intelectuais de então, como o futuro realizador de cinema António Reis, os conheceram, sucedendo-se as passagens pela aldeia. Nas visitas posteriores vieram outras pessoas: o arquitecto portuense Alexandre Alves Costa e o colector musical Michel Giacometti. Por fim, o ensaiador afirma-me ter participado em ranchos formados em aldeias vizinhas. Antes da Alma Alentejana, integrou um grupo em Alfundão. Agora sentia-se melhor, porque não tinha que se deslocar para os ensaios.
14A terceira visão obtenho-a fora da aldeia. Na vila, sede do concelho, não tive dificuldade de falar a sós com o sacerdote director do rancho. Trata-se de uma pessoa somando largos anos de experiência com grupos corais alentejanos (Notícias 1979). Em relação aos seus pupilos em Peroguarda, confirma-me dados colhidos, acrescentando alguns pormenores. O rancho de Peroguarda ficara sem liderança desde a partida de Joaquim Roque para Setúbal (década de 1960), onde fora colocado por motivos profissionais. Persistiu sem estrutura durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, até ele o refundar. O V Festival Nacional de Folclore foi uma das razões para tomar esta iniciativa. Nessa ocasião ganhou algumas pessoas, que antes não haviam participado em ranchos. Menciona depois Michel Giacometti. Este teria conhecido Peroguarda e os seus cantadores na fase em que já estavam dispersos; juntava informalmente as pessoas para poder fazer gravações. Volta a falar de si, frisando que, sem a sua iniciativa de 1988, não existiria hoje a Alma Alentejana. Para além disso, afirma-me, denotando-se algum orgulho na sua voz, o agrupamento é dos poucos com elenco misto. Por experiência, sabe ser difícil manter homens e mulheres num grupo, dadas as tensões internas que se geram (entre cônjuges, entre raparigas jovens e namorados ou pretendentes, não esquecendo a inevitável transposição das rivalidades e disputas entre familiares, vizinhos e conhecidos); a situação tende para maior estabilidade nas formações homogéneas em termos de sexo.8
15Na mesma vila indicaram-me outra pessoa ligada ao meio vocal alentejano. Com cerca de 65 anos, lembra-se dos ranchos de cantadores desde a infância. Trabalhou numa grande casa agrícola, passou para a respectiva administração, ao completar os quatro anos da então escolaridade elementar. Faço-lhe um relato das minhas itinerâncias por Peroguarda e arredores; não me menciona M. Giacometti, mas em contrapartida fala do director da Alma Alentejana. Na sua opinião, o padre terá reactivado o rancho peroguardense, levado por questões pessoais — tomara essa iniciativa quando abandonou a liderança de outro grupo da vila. Confirma as técnicas de ceifar à mão, as de empreitada e a mecanização da lavoura desencadeada pelos grandes proprietários ainda na década de 1950. Registo uma afirmação sua sobre cantos religiosos. Os trabalhadores sempre os entoaram na quadra pós-natalícia (Janeiras, Reis) como forma de pedir esmola à porta dos ricos.9
16Finalmente fala-me do actual movimento dos grupos corais alentejanos, dividido em duas tendências: os das vilas e aldeias de origem e os dos alentejanos imigrados nos arredores de Lisboa. Enquanto os primeiros cantam de ouvido sem recurso a texto, os segundos iniciaram-se no cante a partir dos textos. Daqui nasce uma diferença na pronúncia das palavras, que singulariza o cante interpretado pelos grupos surgidos na aglomeração urbana da capital.10 O seu empenho ia no sentido de fomentar uma estrutura federativa para o movimento.
Comparando aldeias
17As outras três aldeias alentejanas então em competição para representar a província foram Outeiro, Salvada e Orada.
18São Bartolomeu de Outeiro é localidade mais pequena que Peroguarda; difícil de saber se, em finais da década de 1930, também já o era. O êxodo rural deve ter assolado as duas freguesias com a mesma intensidade. Como característica mais saliente temos a situação geográfica. Do cimo da povoação tem-se uma vista ampla sobre o horizonte virado a sul para a planície ondulada. Serve de miradouro para o tipo de paisagem dominante no Baixo Alentejo. O presidente da junta de freguesia (Veiga 1996), 64 anos de idade, fala na situação presente, favorável em termos de ocupação para a maioria das pessoas. Alongando-se na conversa, acaba por caracterizar a sua freguesia, como graciosa e típica aldeia alentejana. Diz recordar-se de o pai — que também exercera cargo político similar na localidade — lhe falar da realização do concurso de 1938 e do título atribuído a Outeiro. Passeando pelas ruas inclinadas, nada remete para o evento transmitido pelo pai ao filho.
19Em frente à junta de freguesia, instalada num piso de um edifício recente, ao lado do café, o presidente construiu ao ar livre cenas da vida rural miniaturadas, destacando-se um moinho de vento com o velame girando ao sabor da electricidade.
20Salvada fica a menos de uma dezena de quilómetros da cidade de Beja e tem um aspecto muito mais urbano que Outeiro e Peroguarda. Das construções com mais de uma vintena de anos, sobressai um cine-teatro — hoje desocupado —, a Casa do Povo dos anos 40, em aparente bom estado de conservação e em pleno uso, como centro de saúde, um edifício abandonado que terá albergado uma actividade industrial, algumas antigas casas residenciais de gente abastada. Do contacto visual com a toponímia nada deixava adivinhar o passado de participação da localidade no concurso folclorizante. Também as autoridades eleitas nada sabiam a esse respeito. Mesmo depois de pedido o auxílio de pessoas mais idosas, nada foi possível apurar. A consulta feita ao livro das actas do ano de 1938 revelou-se inconclusiva. Não havia referências. Em relação a personalidades, a toponímia só perpetuava um político local dos anos 40. De um exercício colectivo de memória feito no momento, mencionaram-se festejos de carnaval, a existência de uma filarmónica e de um grupo coral que, devido à emigração, haviam cessado a actividade (Fernandes 1996). Do ensaiador da filarmónica desaparecida nada se podia apurar, pois também ele residia agora em Baleizão. Para consolação do forasteiro, o presidente da junta referiu que a 24 de Agosto de 1992 se havia fundado o Grupo Coral da Casa do Povo de Salvada, composto por 20 pessoas, ensaiando duas vezes por semana, sob a orientação de um homem com cerca de 45 anos, que nada adiantou em relação ao passado. Fui informado que o actual repertório compreendia essencialmente músicas antigas com letras novas.
21Antes de entrar no automóvel para abalar, reparei nas sedes de duas associações recreativas activas, ao contrário do cine-teatro já referido. As suas fachadas situam-se uma quase em frente à outra. Nesta freguesia a fonte de memória do passado parece ser outra. Em Orada a toponímia era menos densa que em Peroguarda e em Salvada, no entanto mais significativa em termos de movimento folclórico. O principal arruamento da localidade perpetua o nome de um filho da terra, J. Azinhal Abelho. O contacto estabelecido com o secretário da junta permitiu verificar que a lembrança de 1938 era esbatida. Os organizadores do V Festival Nacional de Folclore enviaram convite para Orada. A localidade participou com o Rancho Folclórico Cravos e Rosas do Alentejo, fundado pelo nosso interlocutor em 1979. Mais tarde mostrou um modesto espaço improvisado, onde mantinha acondicionada uma pequena colecção etnográfica. Fora sua iniciativa ir solicitando objectos às pessoas (alfaias agrícolas, indumentária, equipamentos domésticos e de ofícios, fotografias antigas, etc.). A recolha teve início quando da formação do agrupamento folclórico. Foi uma forma de mobilizar as pessoas e de conseguir elementos para a cenografia. Integrado neste acervo estava o prato comemorativo do festival de Monsanto, realizado em 1988. Mais tarde, noutro encontro, referiu que anteriormente tinha existido um grupo folclórico, que a pouco e pouco se apagara. Daí a iniciativa tomada em finais da década de 1970. Além disso, guardava recortes de jornais antigos sobre o concurso de 1938, onde se designara a freguesia da Orada como a terceira mais branca de Portugal. Outra iniciativa ocupa o promotor do rancho. Numa das salas da junta de freguesia cerca de uma dúzia de raparigas de Orada e da vizinha aldeia de Sande, dedicam algumas tardes da semana a confeccionar bonecos de Santo Aleixo. Aqui, pelos vistos, ninguém passou palavra às gerações seguintes.
Desfecho
22Peroguarda manteve activos os recursos de folclorização produzidos em 1938: o rancho folclórico misto, a aldeia caiada de branco, a localização adequada, a monografia publicada e reeditada servindo de breviário para a posteridade.
23O referido evento é a fonte remota para a memória local. Embora não tenha ganho a nível nacional, a aldeia é rapidamente projectada para o exterior, graças às actuações do rancho em acontecimentos e competições folclóricos nacionais. Mais do que em hipotéticos arquivos, a história da geração mais idosa deve ser lida na indumentária envergada pelo agrupamento. Nas sucessivas exibições cumpridas ou agendadas encontram as pessoas uma referência mobilizadora.
24Falar de folclore em Peroguarda equivale a produzir memória colectiva da aldeia, que hoje, para além dos vivos, já abrange falecidos: os directores, o autor da monografia emblemática, os ensaiadores, os sucessivos membros do rancho nas suas fases formalmente activas. Esta memória caracteriza-se por um cariz discursivo (relato sobre o tempo volvido) e por uma vertente ritual (o fardamento, as exibições). O agrupamento folclórico, como agente colectivo, e o saber cantar, o agente detido individualmente, convergem numa permanente interacção caracterizadora desta sociedade aldeã. Neste contexto, cantar em coro ou em solo, ser poeta ou poetisa e declamar, é uma forma assumida — e talvez a mais poderosa — de mediatizar relações sociais dentro e fora de Peroguarda. Não terá sequer meio milhar de habitantes, predominando os idosos.
25Percepciona-se como atemporal o sentimento por estes injectado no espaço social e na imagem dada para o exterior. Eles dominam-na, porque dispõem quase sem entraves do seu tempo e porque a representam quando actuam.
26Distinguem-se três fases na trajectória do rancho folclórico. A da fundação, tendo o concurso de 1938 em vista, estende-se até finais dos anos 50. A partir da década de 1960 a sangria humana provoca a sua desagregação. A actividade dos cantadores e das cantadeiras é informal, mas recebem um considerável estímulo vindo de agentes exteriores isolados (intelectuais, colectores musicais). É um período de pousio, mas a projecção da aldeia não esmorece. Finalmente uma terceira fase, a da refundação, com o nome Alma Alentejana, data de 1988 e teve como pretexto congregador de vontades a evocação do concurso de 1938.
27O actual rancho folclórico é o reflexo da caminhada de uma geração de homens e mulheres rurais, que não foram sorvidos pelo êxodo rural. O repertório, a indumentária, o comportamento performativo e a coexistência de sexos demonstram a actual amplitude geracional que o movimento folclórico abrange. Vêm a propósito algumas das sugestões formuladas por A. Seeger (1980), ao indagar o papel dos idosos nas sociedades, partindo da sua experiência xinguana. Diz-se-ia que no caso da pequena povoação alentejana aqui abordada, os velhos conseguiram chamar a si um espaço específico de desempenho público, que só eles controlam, angariando um estatuto respeitado pelos outros grupos etários, evitando assim a estigmatização e a marginalidade. Em Peroguarda, já não são as mãos e as foices a fazerem viver o corpo — agora é a boca a dar-lhe sentido.
Notes de bas de page
1 Expresso o meu agradecimento às seguintes pessoas: Abílio José Veiga, presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu de Outeiro, Manuel António Carvalho, presidente da Junta de Freguesia de Salvada; padre José Alcobia, Egínio Piedade (Ferreira do Alentejo); mestre Norberto Rosado, Paulo Lima (Portel); Virgínia Dias, Agostinho Pereira, João Relvas, Arlindo Guilherme, Vitorino Amândio, Inês dos Reis Pereira, António José Espadinha (Peroguarda); José Martins, secretário da Junta de Freguesia de Orada, António dos Santos Fernandes (Palmela). Os dados foram recolhidos em duas deslocações feitas em Setembro de 1996 e Janeiro/Fevereiro de 1998. A pesquisa inseriu-se no Projecto Plus/Cul/1163/95 do Programa Lusitânia, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Instituto Camões.
2 "Eles entretanto, em linha à borda do trigo, distanciando seis metros uns dos outros, começaram em silêncio a terrível faina de ceifar. Trazem as pernas apolainadas de trapos, atados estes por cordas que se lhes entrecruzam, desde o sapato até às couxas, por defesa aos abrolhos do restolho; trazem nos braços e mãos peúgas velhas, de que fizeram mitenes contra as escoriações da palha ardente; e a cara mal se lhes vê sob as abas do chapeirão de feltro ou de palmeira, e o mover dos seus rins traí o derreamento de miseráveis envilecidos pelas moedeiras da fome e do trabalho.“ (Almeida 1903: 71-72)
3 "O usual é dar as searas grandes de empreitada; formam-se então bandos de trabalhadores à voz dum chefe; vilas e aldeias, em ranchos, amaltesam para os campos das herdades, que no Alentejo, lá baixo, têm quilómetros; e a horrível faina começa sob os 50 graus do sol, num céu de chumbo irradiante.“ (Almeida 1903: 66) O escritor Fialho de Almeida inspirou-se nas bandas de Cuba, onde se tornara proprietário. É uma zona mais a norte, mas ainda próxima de Peroguarda.
4 ”Aceifa, assefa, como eles dizem, é o trabalho mais angustiado e estragador da gente alentejana, por causa do sol, e por isso se paga, conforme os anos e a pressa, duplo ou triplo das outras operações anteriores da sementeira.“ (Almeida 1903: 67-68)
5 ”Com a mão direita lançam a foice ao rés da terra; com a esquerda agarram nos caules e vão deixando atrás de si o trigo, em pequenos molhos paralelos. Aqui, além, inda os mais novos cantam, mas nas respirações opressas, cantiga e palestra entrecortam-se-lhes de pragas, quando o suor, trespassando a saragoça das calças e o pano crú das camisas, começa de se lhes pegar à carne, salgado e chamuscando-lhes as sarnas como fogo.“ (Almeida 1903: 72) Se um indivíduo era canhoto, tinha de colocar-se no extremo esquerdo (margem esquerda) do terreno, a fim de não perturbar os outros ceifeiros.
6 Já estava agendada uma exibição na Expo 98.
7 Aliás como se confirma pelas fotografias no livro de Joaquim Roque.
8 Em 1999, este sacerdote deixou de ser director do Alma Alentejana, assumindo funções idênticas no agrupamento da vizinha localidade de Alfundão. O cargo passou a ser desempenhado por um dos cantadores do rancho. Estas ocorrências não são raras, como se depreende da informação que acabo de referir. Reflectem o factor rivalidade entre grupos, tanto numa mesma localidade, como entre aldeias. Muitas vezes este tipo de competição traduz-se na circulação de cantadores (cf. para a vila de Cuba o texto de Salwa Castelo-Branco [1992]).
9 Como contraponto cite-se a perspectiva de um influente sacerdote da época, estudioso e promotor do folclore alentejano: “Quem não se lembra ainda, quando criança, ou mesmo depois de grande, de lhe chegarem à porta, de noite, na paz abençoada da lareira grupos de cantadores, às vezes mistos, a cantar os Reis ou as Janeiras!? Que unção espiritual despertavam em nossa alma esses cantos religiosos, elevando o nosso pensamento para o Alto, para o Céu, onde mora a Felicidade e a Paz! No silêncio impressionante da noite fria, o nosso coração enchia-se de compaixão pelos pobrezinhos, que, nas pessoas dos cantadores, eram contemplados com figos, passas, carne de porco, pão e até dinheiro.” (Marvão 1956: 13) Há que estabelecer como hipótese, que a partir de finais dos anos 40, as autoridades começaram a fomentar os grupos de cantadores, num quadro “depurado e aperfeiçoado” (Marvão 1956: 15). São elucidativos os concursos organizados a nível concelhio e distrital, referidos na imprensa regional da época (Diário 1943, 1944, 1945, 1946). O informador de Ferreira do Alentejo, em que me venho apoiando, foi enfático; as pessoas, nessa altura gostavam de despiques e desgarradas. Os primeiros realizavam-se entre os homens nas tabernas, juntando-se muitos outros a assistir e a incentivá-los. Estes desempenhos não eram bem vistos pelas autoridades, sendo mesmo muitas vezes reprimidos pela Guarda Nacional Republicana. As desgarradas desenrolavam-se nas ruas e praças das povoações, integravam instrumentos e participavam mulheres. O incentivo oficial aos grupos corais terá sido uma forma de reduzir e acabar com os despiques e desgarradas? Se o admitirmos teremos de igual forma de encarar a existência de um processo de autodisciplinação social por parte dos visados.
10 A respeito das distinções de pronúncia e o problema da tradição do cante na sua incidência regional (as duas bandas do Guadiana), e como factor de identidade cultural, remeto para o já referido estudo sobre a vila de Cuba (Castelo-Branco 1992).
Auteur
Doutor em etnologia (Universidade de Mainz), professor de antropologia no ISCTE, coordenador do DepANT. Domínios de pesquisa: folclorismo, cultura material, ritualidade secular. Publicações: Ao Encontro do Povo. I. A Missão (Celta Editora, 1992, em co-autoria), Ao Encontro do Povo. II. A Colecção (Celta Editora, 1993, co-autoria), Artes da Fala. Colóquio de Portel (Celta Editora, 1997, co-org.), “A fluidez dos limites: discurso etnográfico e movimento folclórico em Portugal” Etnográfica Revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, 3, 1: 23-48.
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