Capítulo 23. Folclorização em Manhouce
p. 386-400
Texte intégral
1Em Portugal, ao longo do século XX, a folclorização foi estimulada por diferentes factores: motivações político-ideológicas, fenómenos migratórios, promoção turística, afirmação de identidades, entre outros (Castelo-Branco 1992).1 Um dos produtos deste processo consistiu na criação de agrupamentos folclóricos. A freguesia de Manhouce, concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu, com uma população, no recenseamento de 1991, de 981 habitantes, foi sede de vários agrupamentos. O Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes de Manhouce — adiante designado por GECTM — alcançou grande protagonismo nos mercados do espectáculo e do disco. Apresenta em palco um repertório composto apenas pelo que considera “cantigas de Manhouce”, uma designação dada por manhoucenses empenhados na revivificação do património local para se referirem ao repertório musical dos grupos sedeados nesta aldeia (entr.: Silva 1996, I. Silvestre 2000, Barbosa 2000) e uma forma de vestir e de cantar que sustenta serem também de Manhouce, por resultarem de uma singular interacção entre um contexto geofísico e um modo de pensar e de viver próprios dos manhoucenses.
2A folclorização foi compreendida neste estudo como uma forma de objectificação cultural (Handler 1988) que perspectiva e transforma actos de um quotidiano rural evocado em produtos culturais — coisas — ao mesmo tempo que metamorfoseia os sentidos que lhes atribui para os adequar aos valores do presente.
“O início do folclore de Manhouce”2
3Em 1938, Manhouce aderiu ao concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal. Idealizado e implementado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, inseriu-se num conjunto de acções levadas a cabo no sentido de envolver os portugueses no projecto político do Estado Novo. Com este concurso o SPN envolveu na prática ideológica diferentes estratos da sociedade através de uma acção em cadeia, desde os seus mais altos representantes — com António Ferro como presidente do júri nacional — às juntas provinciais, passando pelas autoridades sociais locais até ao aldeão mais simples.3 Consistiu numa estratégia de reacção à mudança, através da idealização de uma cultura popular passiva com referentes exclusivos no mundo rural e a aceitação da perpetuação das desigualdades sociais. O quotidiano do “povo das aldeias” (Regulamento do Concurso), que o concurso quis trazer à luz e elevar à categoria de cultura, foi apenas uma selecção de alguns comportamentos populares segundo critérios de avaliação moral e estética e consequente amputação de tudo o que fosse considerado subversivo, como o provam os critérios de selecção — “maior resistência oferecida a decomposições estranhas” e o “estado de conservação no mais elevado grau de pureza” expostos no Regulamento do Concurso. Através da referida acção em cadeia, o concurso difundiu a crença (que persiste ainda nos dias de hoje) de que a desigualdade encerra uma substantiva diferença entre um rural autêntico e um urbano descaracterizado.4 Os agentes de cúpula do concurso fizeram acreditar que as práticas do quotidiano de Manhouce, que não apresentavam semelhanças com as práticas urbanas de então, eram “autênticas” e antigas.
4Manhouce tinha, em 1938, o perfil geográfico, socioeconómico e humano ideal para o concurso: com uma paisagem deslumbrante, sem estrada, sem luz eléctrica, com apenas um estudante liceal e dois no seminário, uma escola primária por concluir, uma população maioritariamente analfabeta que lutava entre a agricultura, a pastorícia e a emigração para o Brasil, afável e solícita, que cultivava uma expressão musical distinta executada a três vozes, em movimento paralelo.
5Os preparativos para o concurso, supervisionados por dois membros do júri provincial, começaram em Maio de 1938 e decorreram até 25 de Setembro, dia em que o júri nacional, acompanhado por uma comitiva, aí se deslocou a fim de proceder à avaliação da candidatura da aldeia. O processo decorreu em duas fases: primeiro, especialistas credenciados vindos de fora, impuseram (é aliás uma das condições do concurso) duas demarcações: uma territorial — a freguesia de Manhouce — como garante da autenticidade das práticas apresentadas; e a outra, temporal — práticas recordadas pelos manhoucenses mais idosos — como validação da sua antiguidade. Estabelecidos os requisitos, os dois responsáveis locais pela candidatura da aldeia envolveram os manhoucenses nos preparativos. O padre António José de Sousa, natural de Sá de Carvalhais, São Pedro do Sul, e o comerciante manhoucense Custódio Duarte Barbosa assumiram localmente a preparação do espectáculo a apresentar ao júri nacional durante a sua visita a Manhouce. Iniciaram o levantamento de objectos, mobiliário, práticas, costumes, indústrias, lendas, etc., conforme os normativos do concurso. António Gomes Beato, o estudante liceal, juntou num discurso histórico os fragmentos dos poucos documentos escritos sobre Manhouce (Leal 1875, Girão 1921) com a tradição oral local (entr. Beato 1999). A adesão das duas autoridades locais — o padre e o único comerciante da aldeia — à candidatura ao Galo de Prata terá sido um factor de peso para ganhar a população.
6Formou-se o Rancho de Manhouce, constituído principalmente por jovens vindos das mesmas famílias (a família Beato tinha cinco irmãos e a família Sousa quatro). Entre os 18 homens contavam-se: um ensaiador, um auxiliar de ensaiador, um cantador ao desafio, um tocador de acordeão, um tocador de viola, um tocador de violão e 11 dançarinos. Das 14 mulheres, uma era cantadeira ao desafio e 13 dançarinas, das quais cinco também integravam o coro (Costa 1980). A tocata — dois cordofones e um acordeão — foi entregue a três indivíduos que não eram naturais de Manhouce, embora dois, pai e filho, aí residissem, e o tocador de acordeão fosse parente do ensaiador do rancho.
7Das modas recordadas pelos mais idosos procedeu-se a uma selecção, a fim de constituir o repertório do rancho. O rancho deu início a um novo processo de transmissão aos mais novos dos saberes recordados pelos idosos. Esta transmissão decorreu durante os ensaios e teve como principais agentes o manhoucense Bento dos Santos (M. V. 1938: 4 e 8) e “as velhinhas que, de entre a muita assistência que acorria aos ensaios, iam dando achegas” (entr. Silva 1999). Os elementos do Júri Provincial — Almeida Campos e José Morgado — também intervieram apelando a uma maior coordenação dos instrumentistas e do grupo de dança, à execução do reportório num andamento mais vivo e constante (entr. Morgado 1996; Beato 1999; Sousa 2000; Uchas 2000).
8Por indicação deste júri retiveram-se algumas expressões e comportamentos locais, ligados à indumentária, ao canto e à dança. Integradas no rancho essas expressões e comportamentos perderam o vínculo com o contexto e o sentido de origem, mas ganharam uma nova significação — passaram a ser tradicionais, porque de Manhouce. Os agentes do concurso ensinaram os manhoucenses a transformar actos do quotidiano em formas de produção cultural independentes do contexto de produção. O concurso teve, assim, um efeito que não fora previsto pelos seus mentores. Ao contrário dos objectivos que se propunha alcançar — a manutenção de um modelo de vida rural inspirado numa ordem cíclica — acabou por dar início a uma forma diferente de compreender esse modo de viver e de se aperceber.
9Neste processo constatou-se a presença de duas lógicas que, apesar da sua coincidência ocasional, prosseguiram objectivos distintos e ocorreram em patamares diferenciados. A primeira esteve ligada à política cultural do Estado Novo, que se operacionalizou numa rede tentacular e corporativa que tentou envolver e controlar todas as camadas da população. A segunda esteve ligada aos interesses (sobrevivência, expectativas) de cada um e das comunidades alvo daquelas políticas. Correlacionada com aquelas lógicas, verificou-se a existência de motivações aparentemente coincidentes mas, no fundo, antagónicas. De um lado, os manhoucenses envolveram-se no projecto do SPN, na medida em que dele julgaram poder auferir ganhos relacionados com o desenvolvimento da aldeia (torná-la mais conhecida e com melhores acessos) ou com o orgulho de entre as aldeias da Junta Provincial de Viseu a representação cair sobre si, e também pelo prazer de preparar e fazer a festa (entr.: Silva 1996; I. Silvestre 2000). Do outro lado, o SPN concebeu e dinamizou um projecto de nítido cariz ideológico. Projecto cujos objectivos foram o repúdio de “ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e interesse nacional”, a aceitação das desigualdades sociais (também de género) — contrapondo à carência de poder económico a “pureza e graça” dos “costumes tradicionais” — através da mobilização do povo para esse “combate” (Regulamento). A folclorização em Manhouce nasceu e ganhou sentido nesta multivalência.
10O impacte deste evento em Manhouce sobressai nas palavras do auxiliar de ensaiador: foi “o início do folclore de Manhouce” (Costa 1980: 7).
11O concurso desencadeou o processo de folclorização. Teriam continuidade apenas as manifestações relacionadas com o rancho. Para isso contribuíram a juventude e as ligações de parentesco dos seus elementos, juntamente com o prestígio, a visibilidade e a experiência do grupo e o sentimento colectivo entre os membros.
12Cinquenta anos depois, observa-se que as demarcações territorial e temporal impostas pelo concurso, em 1938, serviram para legitimar a propriedade do repertório, o modo de cantar e de trajar, reforçando o argumento da origem das “cantigas de Manhouce” e a ligação à vivência local:
Muitos ranchos têm vindo beber às cristalinas fontes de Manhouce e têm levado do seu vasto e maravilhoso cancioneiro belas jóias que depois apresentam como suas e têm procurado imitar os seus velhinhos e sempre belos trajes regionais, mas jamais cantarão como Manhouce canta, porque não são iguais as vozes da alma e o saudosismo profundo como ali fazem timbre, nem vestirão como Manhouce veste, porque lhes minguará ou diferenciará o jeito nativo do enfaixar a cinta, ou de colocar o lenço, aquele donaire e impressionabilidade no andar que a mulher de Manhouce possui e que lhe são tão naturais, tão ingénitos, que as imitações nunca lhes tirarão a primazia (Beato 1980: 10).
A peregrinação folclórica a Manhouce
13Desde 1938 aos nossos dias, assiste-se a uma peregrinação folclórica a Manhouce,5 protagonizada por folcloristas, investigadores, jornalistas, turistas e curiosos. Numa primeira fase, este interesse resultou do estatuto alcançado pela aldeia através do concurso e não de um trabalho de pesquisa sistemática feita nas povoações vizinhas. A participação no certame de finais dos anos 1930 transformou Manhouce num terreno etnográfico, onde os investigadores afluíram mais por convicção do que por conhecimento. A freguesia passou a estar representada nas gravações etnográficas de âmbito regional e nacional, nomeadamente: de Armando Leça em 1940-41; de Artur Santos em 1956-57; de Giacometti/Graça s. d. e 1970; e de Sardinha em 1982 e 1997. Da acção dos colectores, ao longo do tempo, observa-se: (a) o surgimento de indivíduos considerados detentores de informação, aos quais várias gerações de investigadores têm recorrido; (b) o alargamento do conceito “cantigas de Manhouce” utilizado pelos manhoucenses envolvidos na folclorização. Nos vários momentos de transcrição e gravação etnográficas, os investigadores seleccionaram repertório dentro de contextos de produção definidos, primeiro o contexto público, depois o privado e finalmente também o religioso. As primeiras transcrições datam de 1938. São de Almeida Campos e representam práticas musicais em contextos públicos. O contexto privado é documentado por Artur Santos, em 1957, e o religioso por Giacometti e Lopes Graça, em 1970. Os grupos folclóricos assimilaram as noções exógenas sobre o que era a sua cultura musical, alargando o conceito “cantigas de Manhouce” aos novos contextos de produção definidos, conforme se pode observar nos programas das suas actuações e nas gravações comerciais. Esta determinação parece estar a ser ultrapassada com a intenção manifestada por Isabel Silvestre de coligir e interpretar práticas musicais cultivadas pelos mineiros nas minas de volfrâmio. Contudo, tal ainda não aconteceu.
14A peregrinação folclórica, iniciada em 1938, foi o resultado do impacte que o concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal provocou nessa época. Nas décadas de 1980 e 1990, a continuidade da peregrinação foi devida ao prestígio e à acção do GECTM. Acudiram à aldeia canais de televisão e estações de rádio: Mário Martins,6 responsável pelo departamento de “Artistas e Repertório” da EMI-Valentim de Carvalho; equipas pedagógicas do Ministério da Educação; comitivas integradas em eventos regionais, e o Presidente da República em Agosto de 1984.
15Depois de quatro fonogramas editados, elementos do GECTM editaram, em 1994, o Cancioneiro Popular de Manhouce, com 57 transcrições “de várias expressões musicais das gentes de Manhouce” (Silvestre, Costa & Boavida 1994: 7). Segundo os autores, o objectivo desta edição foi divulgar o repertório. Contudo, uma vez que esse repertório compilado já fora editado em fonograma pelos grupos de Manhouce e a escrita musical é apenas acessível a um reduzido número de pessoas, aquela razão perde pertinência. A razão da iniciativa prende-se provavelmente com a valorização do texto escrito sobre a transmissão oral ou o fonograma.
A militância de manhoucenses e “Amigos de Manhouce”7
16Depois do concurso — em 1938 e em 1940 (e com carácter esporádico em 1953) —, o Rancho de Manhouce foi um precioso instrumento nas mãos de organismos oficiais. Confrontados com a necessidade de dar resposta a solicitações no campo da etnografia e do folclore, as instituições regionais (província de Viseu e câmara municipal de São Pedro do Sul) serviram-se do Rancho de Manhouce para se fazerem representar. O Rancho de Manhouce (assim como o Rancho de Cambra, a outra aldeia que representou a província da Beira Alta no concurso) reunia as condições necessárias a essas solicitações: o rancho já estava formado e contava com o reconhecimento oficial necessário para assegurar que a sua escolha pela autarquia era inquestionável, evitando-se, assim, eventuais conflitos com outras aldeias.8
17A partir de 1953 surgiram os primeiros esforços internos para actuar fora dos eventos governamentais. Tais esforços foram assumidos por Gomes Silvestre,9 um dos seus dirigentes, ao colocar ao dispor do grupo a sua rede de relações pessoais e ao exibir títulos10 e outras formas de reconhecimento externo alcançados com o rancho de Manhouce e/ ou produtos que oferece (trajo, repertório, forma de cantar) com a participação no concurso ou com a peregrinação folclórica.11 É, contudo, necessário esperar pelos anos 1980 para que esse esforço — na figura do GECTM — ganhe visibilidade nacional e em algumas comunidades portuguesas do Brasil, de Espanha e de França.
18Os últimos anos da década de 1970 foram marcados pela formação de grupos musicais: Sociedade dos Reis, Os Ganduns, Orfeão de Manhouce (formação que esteve na origem do GECTM), um grupo de alunos da escola de ensino básico. À excepção de Os Ganduns, todos os outros grupos construíram as suas representações a partir dos elementos definidos em 1938 como sendo o folclore de Manhouce. Dos factores que fomentaram a proliferação de grupos folclóricos, podem destacar-se:
A dinâmica que a folclorização gerou no concelho de São Pedro do Sul. Em resposta à solicitação concelhia de ranchos folclóricos para apoiar a promoção de produtos locais e do turismo, constituem-se três grupos na década de 1980: Rancho Infantil da Casa do Povo de Manhouce, Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares de Manhouce e Rancho Folclórico da Casa do Povo de Manhouce.
A integração na “comunidade folclórica” com actividade em torno da Federação do Folclore Português e do Festival de Folclore do Algarve. Dos três grupos formados, só o GECTM colheu por parte da federação e do festival um reconhecimento imediato. Graças a ele, o grupo viu convergir sobre si as atenções dos media e dos promotores do espectáculo.
A militância de três manhoucenses (Lourenço da Silva, Isabel Silvestre e Gomes Beato) foi decisiva para a emergência e sobrevivência dos grupos. Durante o período de 1980 a 1986 eles desenvolveram acções para a estetização das exibições: apuramento de repertório, selecção de vozes, aperfeiçoamento técnico e articulação do desempenho com o espaço e a história de Manhouce (alocuções, jornais, outras publicações).
Os Amigos de Manhouce, expressão utilizada por elementos do GECTM para se referirem aos indivíduos e instituições que contribuíram para o reconhecimento do agrupamento.
Um grupo singular
19Contrariamente aos outros grupos folclóricos de Manhouce, o GECTM excluiu as danças das suas performações, uniformizou o trajo e executa o repertório num andamento mais lento. Estas três opções, articuladas com os aspectos que a seguir se referem, definem a convergência de sentido na transmissão dos valores que orientam o grupo: antiguidade e autenticidade.
20O GECTM é constituído por dois solistas (Isabel Silvestre e Lourenço da Silva), uma tocata e um coro feminino. Entre 1980 e 2000 observou-se mobilidade dos seus elementos, a par da variedade e aumento do número de instrumentos e do alargamento da tocata às mulheres. O GECTM é solicitado para actuações em inúmeras localidades, o que propicia aos seus elementos (actualmente, um terço pertence à mesma família) o conhecimento do território nacional e de países estrangeiros e também uma amizade e intimidade sedimentadas ao longo dos momentos passados juntos.
21A postura em palco, a apresentação do trajo e os instrumentos da tocata constituem o primeiro nível de comunicação com o público. Todos os movimentos realizados em palco são lentos e formalizados, transmitindo um sentido específico: dois passos à frente/ dois passos atrás expressam o início e o fim, respectivamente, de um desempenho solista. Levantar/ baixar a cabeça significa a participação e a não participação, respectivamente, dos elementos. Um gesto afirmativo e determinado com a cabeça de Lourenço da Silva dá início a cada cantiga.
22Ao contrário de outros grupos folclóricos, este circunscreve a representação da forma de vestir “do século XIX” (I. Silvestre 1992) à festa, evitando, assim, dispersão visual. Predomina a uniformização, tendo as únicas variantes uma intenção expressa: permitir uma distinção dos papéis de solista (toda de negro) e de locutora (com blusa de cor). O trajo além de reforçar a ideia de antiguidade, contribui para veicular a ideia de autenticidade: nas alocuções é chamada a atenção dos espectadores para o chapéu, servindo este para afirmar que Manhouce é o lugar de encontro entre a serra e o mar. A autenticidade é invocada através do paralelo com a verdade do ouro (as mulheres trazem ao peito vários cordões e medalhões de ouro e nas orelhas brincos também de ouro).
23Um espectáculo é constituído, normalmente, por catorze cantigas — previamente seleccionadas por Lourenço da Silva e Isabel Silvestre —, intercaladas por alocuções proferidas por Alice Barbosa. Cerca de um terço do repertório é constituído por “corais”12 ou cantigas “a capela”13 as quais fazem alternar secções solísticas (interpretadas por Isabel Silvestre) ou corais em uníssono com secções a três vozes em terceiras maiores e menores e quintas paralelas. As restantes cantigas são acompanhadas pela tocata.
24A função da tocata do GECTM exerce-se nos planos visual e auditivo.14 Trata-se de instrumentos tradicionais portugueses que tocam sempre em conjunto, nunca rivalizando com as vozes. Os cordofones são executados todos ao mesmo tempo rasgado sobre acordes da tónica, dominante ou subdominante conforme a sensibilidade dos tocadores aos pressupostos harmónicos da melodia. A concertina é o único instrumento a dobrar do princípio ao fim a melodia das vozes. O ritmo providenciado pelos instrumentos tem um papel diminuto de variação: marca o tempo, a divisão e um ou outro pequeno motivo resultante da combinação do ritmo e da divisão. Nas cantigas designadas corais os instrumentos não tocam.
25No seu conjunto, as alocuções remetem sempre para um tempo e um espaço das origens,15 um tempo de fundação em que antepassados dos elementos do grupo foram agentes de práticas do quotidiano que este herda e perpetua. Manhouce é descrito como lugar de encontro de culturas, de encruzilhada de caminhos. As cantigas e o trajo são apresentados como testemunhos desse encontro e de vivências da paisagem: “são cantigas que vêm das alturas da serra, da profundeza do mar, do bucolismo cantante dos rios, cheiram a maresia e sargaço, a alecrim e a rosmaninho”, disse Alice Barbosa, numa alocução proferida numa exibição do GECTM em Fermedo, concelho de Arouca, em Março de 2000. Veicula-se a ideia de que a força deste contexto impele “naturalmente” ao canto: “cantar em Manhouce era e é tão natural como respirar e, por isso, não temos necessidade de realizar grandes trabalhos de recolha porque as cantigas e tradições mantêm-se ainda vivas na memória colectiva das gentes de Manhouce. E qualquer motivo serve como tema de cantiga” (idem). As letras alusivas ao mar, o chapéu de vareira, são indicadores vivos desse contexto evocado nas alocuções.
26A prática de cantar em contextos informais proporcionou a elementos do GECTM o conhecimento de grande parte do repertório que executa e contribuiu para o desenvolvimento da técnica de cantar em movimento paralelo, por um coro dividido: o baixo (voz mais grave), o raso (a voz que sobre aquela se movimenta à distância de terceiras maiores e menores, paralelamente), e a de cima ou de riba (a voz que se movimenta em quintas paralelas sobre o baixo). Aproveitando estes conhecimentos e destrezas adquiridos pelos seus elementos, o GECTM utiliza sistematicamente a execução de melodias em movimento paralelo. Contudo, a execução sistemática por um coro dividido não foi uma prática observada em 1938, nem se encontra documentada nas gravações etnográficas.16 Com o GECTM a execução de melodias paralelas por um coro dividido perde o vínculo com a função associada ao contexto originário de realização mas, ao reforçar características pouco comuns noutros grupos performativos portugueses, ganha em singularidade. Esta forma de execução pouco comum nos dias de hoje contagia o repertório da ideia de arcaísmo (antiguidade) que lhe está associada.17 Por sua vez, a qualidade de execução do coro não profissional (vozes seguras que mantêm a afinação) conduz inevitavelmente o ouvinte a crer que as vivências dos elementos do grupo das práticas sociais em que aquele repertório ganhou forma foram “autênticas”.
27Ao nível da sintaxe musical, a homogeneidade da forma e a semelhança dos elementos podem associar-se a semantizações que reforçam o que é dito pelos outros elementos postos a comunicar. Assim:
A estrutura bipartida é activada pelo contraste de duas melodias diferentes que regressam a cada nova estrofe, e reforçada pelo contraste de texturas (a solo ou coro a uníssono versus coro dividido). A estrutura bipartida é sublinhada ainda pelo contraste de dinâmicas accionado pela execução solística (amplas gradações ao nível da dinâmica) e execução coral (estatismo ao nível da dinâmica). Também a ornamentação vocal — melismática (nos solos) versus silábica (execução coral) — reforça esta estrutura.
O perfil melódico e cadências finais do repertório editado em fonogramas pelo GECTM revelou um idêntico isomorfismo. Ao nível melódico observa-se a ênfase temporal dada ao movimento descendente por graus conjuntos: umas vezes porque a melodia começa num tom mais agudo do que aquele em que acaba, outras porque o movimento, no sentido grave/ agudo, é abordado preferencialmente através de intervalos disjuntos, enquanto o movimento, no sentido agudo/ grave, se faz em intervalos conjuntos. O percurso melódico de uma parte significativa dos “corais” que integram o repertório do GECTM concede mais tempo ao movimento descendente do que ao movimento ascendente. Nas cadências melódicas finais predomina o movimento no sentido II-I (na segunda secção melódica, quando há duas secções melódicas e na secção melódica A quando apenas há uma secção melódica).18 A forma de execução do repertório em movimento paralelo à distância de terceiras e quintas, técnica de execução coral associada ao organum medieval (Giacometti & Graça 1981), convida o público a uma viagem no tempo. Por sua vez, o universo onírico evocado pela voz de Isabel Silvestre traz para a boca de cena os ambientes agrestes da serra.
28A eficácia da comunicação do grupo prende-se com o evitar introduzir elementos que contribuam para a dispersão. A homogeneidade sugerida pelo movimento melódico das cantigas, atrás descrito, também contribui para a diminuição dos elementos dispersivos, embora a este nível ele não seja resultante da intenção do grupo. Também a nível da representação do tempo, se observa homogeneidade e continuidade. Numa actuação que analisei (Fermedo, concelho de Arouca, Março de 2000), o andamento oscilou entre 54 e 84 batimentos por minuto. Considerando o andamento intimamente relacionado com o estado de espírito e carácter da música e, consequentemente, com implicações emocionais, identificar, a este nível, um padrão na execução do grupo pode ajudar a compreender alguns dos factores que se prendem com os níveis de interacção com o público. O que se observa na sua performação é uma contenção conseguida através de uma retenção em cada som, dando a sensação de um tempo estático (por exemplo nas seguintes cantigas: Lá Vem o Vento da Noite, A Folha do Castanheiro ou A Senhora da Saúde).
29Com a sua performação o GECTM transporta o público para o tempo evocado pelo traje, pelas cantigas, pela composição cénica e pelo conteúdo das alocuções. Em palco, a composição cénica cria uma atmosfera de sentido, fazendo passar a autenticidade do ouro para o trajo e, por inerência, para as cantigas e as vozes. A alocução — onde se faz referência a um tempo passado (fundador, primordial) vivido pelos antepassados dos elementos do grupo — quebra o estatismo da composição cénica. Segue-se uma cantiga de Manhouce, nova alocução, nova cantiga e assim até terminar o repertório estabelecido, evocando na assistência um passado em contraste com a era moderna.
Uma cantora autêntica
30A partir de 1988, o processo acima descrito conduziu a uma nova abordagem musical. À frente do GECTM, Isabel Silvestre somou às suas qualidades vocais, interpretativas e ao seu forte carácter, as ideias que o mundo rural desperta (essência e autenticidade),19 chamando a atenção dos media e da indústria.
31Estes atributos despertaram a atenção dos media e das indústrias do espectáculo. Fora do GECTM, Isabel Silvestre encontrava-se liberta das constrições da tradição (Livingstone 1999). Um convite do músico Rão Kyao levou-a a efectuar espectáculos para novos públicos. No Lincoln Center de Nova Iorque, em 1988, actuou ao lado de Rão Kyao, da cantora brasileira Gal Costa e do guitarrista português António Chainho. Seguiu-se, em 1992, o convite do grupo GNR para dividir com o seu vocalista — Rui Reininho — a faixa principal do fonograma Pronúncia do Norte. Com esta colaboração abriram-se-lhe novos circuitos de mercado e diversificou o seu repertório. Depois de várias colaborações em fonogramas, Isabel Silvestre editou dois discos, um em 1996 e outro em 2000, produzidos por João Gil para a EMI-Valentim de Carvalho, o primeiro com arranjos de Artur Costa e o segundo com arranjos de Mário Barrela Delgado, com os títulos A Portuguesa e Eu. Nestes discos, o mundo rural já não é o único referente, embora continue a servir de cenário ao universo onírico que se pretende recriar. Neles observa-se uma tentativa de conciliação de elementos rurais e urbanos: a voz de Isabel Silvestre e a forma de cantar em movimento paralelo evocam o mundo rural, enquanto o acompanhamento se enquadra num registo de música urbana.
32As qualidades da voz, as capacidades comunicativas (cujos solos levaram, em determinadas condições, o público à comoção), o carácter forte de Isabel Silvestre granjeiam-lhe o estatuto de “cantora autêntica” (Rosenberg 1993: 10), transformando-a num ícone de Manhouce e do mundo rural português em geral.
33Se o GECTM lhe emprestou o estatuto de cantora autêntica, Isabel Silvestre devolveu à sua terra natal o prestígio alcançado no mundo do espectáculo e do disco, contribuindo assim para revalorizar e reforçar o sentimento de “nós” (leia-se manhoucenses) e estimulou novas representações em torno da mulher de Manhouce, servindo para veicular modelos do feminino. Enquanto que em 1938 a mulher de Manhouce foi valorizada na sua condição de subserviência e inferioridade, na década de 1990 é exaltada como a alma mater de uma cultura. De uma mulher anónima e impessoal que labuta na sombra,20 passa a uma mulher assumida na sua pessoa e em cuja voz o espírito do feminino se revela, segundo as palavras da escritora Natália Correia, “a voz dessa Mulher que nos chega do fundo dos séculos que formaram a nossa natureza cultural” (Correia 1991). Isabel Silvestre, por sua voz e condição, representa este espírito.
Conclusão
34Obtiveram-se dados que contribuem para o conhecimento dos factores em jogo na definição de um terreno etnográfico e nas representações da respectiva cultura (Hanson 1989; Jackson 1995; Vasconcelos 1997). Identificaram-se factores essenciais na vida dos grupos: as redes de relações, a militância dos elementos, o aperfeiçoamento técnico e artístico, a construção dum discurso vinculador de antiguidade e autenticidade.
35O caso estudado das cantigas de Manhouce ilustra modos distintos de folclorização e de representações do “ser português”, construídos ao longo do século XX. Nas décadas de 1930 e 1940 os órgãos governamentais desempenham uma liderança assumida na elaboração de um estereótipo do mundo rural. A partir dos anos 80, são os próprios grupos que assumem a dinâmica de edificação das representações do passado local. Depois de 1990, promovida pela indústria discográfica, a cantora Isabel Silvestre simboliza a convergência da diversidade dos valores urbanos e rurais.
Bibliographie
Entrevistas
Barbosa: A Alice Barbosa, na qualidade de responsável pelas alocuções apresentadas pelo GECTM, S. Pedro do Sul, 2 de Abril de 2000.
Beato: A António Gomes Beato, na qualidade de elemento do grupo de dança do rancho de 1938 e fundador do GECTM em 1980. Valença do Minho, 4 de Dezembro de 1999.
Costa: A Saul Costa, na qualidade de elemento fundador do GECTM, 3 de Fevereiro de 2000.
Martins: A Mário Martins, na qualidade de responsável pelos “artistas e repertório” da EMI-Valentim de Carvalho, instalações do Instituto de Etnomusicologia (INET), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 19 de Outubro de 1999.
Morgado: A José Amado Morgado, na qualidade de elemento do Júri Provincial de Viseu do concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal”, entrevista realizada no lar de idosos de S. Pedro do Sul no dia 1 de Novembro de 1996.
Silva: A António Lourenço da Silva, na qualidade de elemento de todos os grupos folclóricos de Manhouce entre 1938 e 2000 e de fundador da Tuna de Manhouce, Manhouce em 1 de Janeiro de 1992, 18 de Fevereiro de 1996, 22 de Novembro de 1999 e 2 de Fevereiro de 2000.
I. Silvestre: A Isabel Silvestre, na qualidade de presidente do GECTM, Manhouce em 9 de Março de 1992 e 28 de Janeiro de 2000.
Sousa: A António Gomes de Sousa, na qualidade de elemento do rancho que em 1938 representou a aldeia de Manhouce no concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal”, Viseu, 25 de Fevereiro de 2000.
Uchas: A António dos Santos “das Uchas” (da Quinta das Uchas), na qualidade de elemento do GECTM e da Tuna de Manhouce e de observador dos ensaios e espectáculo realizados em 1938, Manhouce, Quinta das Uchas, 21 de Fevereiro de 2000.
Notes de bas de page
1 A documentação deste estudo resultou do trabalho de campo iniciado em 1992 com Laura Prado e da pesquisa documental efectuada em arquivos, espólios, colecções particulares, publicações periódicas e outras. O trabalho de campo decorreu entre 1992 e 2000, culminando na elaboração duma tese de mestrado (Pestana 2000). Dos numerosos colaboradores que me acederam — através de entrevistas e conversas informais — arealidade das suas acções e vivências relativamente à folclorização em Manhouce, destacaram-se dois que, também pelo número de solicitações impostas, me marcaram profundamente: Isabel Silvestre e Lourenço da Silva. Com todos eles e através deles foi-me permitido entrar na “forma de estar e de ser de Manhouce”.
2 Expressão utilizada por Serafim da Costa, auxiliar de ensaiador do rancho formado em 1938, num documento que permaneceu inédito até 1980, onde narra os acontecimentos ocorridos em 1938 em torno da candidatura de Manhouce ao “Galo de Prata”. Segundo este autor, foi a participação no concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” que deu origem ao “início do folclore de Manhouce” (Costa 1980: 7).
3 O Júri Provincial de Viseu, nomeado em reunião da Junta Provincial de Viseu, em 5 de Abril de 1938, com a presença do delegado do SPN Francisco Lage, foi constituído por: Luís Lucena e Vale, presidente da Junta de Província de Viseu; Francisco de Almeida Moreira, director do Museu Grão Vasco; Armando dos Santos Pereira, presidente da Comissão de Turismo; José Amado Morgado, professor no Liceu de Viseu, na qualidade de etnógrafo; Manuel Augusto de Almeida Campos, regente da Banda Distrital da Legião Portuguesa, na qualidade de musicólogo (S. A. 1938: 5).
4 O SPN convidou jornalistas nacionais e estrangeiros para acompanharem o júri na sua digressão pelas aldeias concorrentes, os quais tiveram um importante papel na divulgação do evento e na disseminação dos valores que lhe estavam subjacentes.
5 Expressão utilizada por Armando Leça para referir as deslocações que fez no âmbito do concurso “AAldeia Mais Portuguesa de Portugal” (Leça 1938: 3). Utilizo-a porque traduz o tipo de abordagem — veneração e ritualização — de determinados actos do quotidiano rural levada a cabo pela folclorização.
6 Contactado por um sampedrense, Mário Martins, responsável, na época, pelo departamento de “Artistas e Repertório” da EMI-Valentim de Carvalho, abordou o GECTM e deslocou-se a Manhouce a fim de proceder à escolha de repertório e preparar a gravação “se o interesse justificasse” (entr. Martins 1999). Avoz de Isabel, que “era um caso especial” (idem), eorepertório justificaram o interesse. Para aquela editora fonográfica, o grupo gravou: em 1982, o LP Cantares da Beira; em 1984, o LP Aboio; em1985oLPCânticos Religiosos; em1991oLPVozes da Terra e a reedição em CD de Cantares da Beira. O grupo também se encontra representado na colectânea “Folclore de Portugal”, editada em 1998 pela EMI Valentim de Carvalho. Aedição de cada um dos fonogramas foi acompanhada por uma grande cobertura jornalística (a nível nacional e regional), radiofónica e televisiva, o que contribuiu para a sua divulgação. As implicações que se abrem ao nível da “fabricação da autenticidade”, referidas pelo sociólogo José Neves (1999: 69) a propósito da relação entre a indústria fonográfica e os média, reforçam a importância do acesso a este tipo de edição e permitem auscultar o seu reflexo no GECTM. Se o contrato do GECTM com a EMI Valentim de Carvalho foi favorável ao primeiro entre 1982 e 1986, depois, ao limitar as edições aos interesses de mercado, a empresa inibiu o grupo do usufruto das relações atrás referidas.
7 "Amigos de Manhouce" é uma expressão utilizada por elementos do GECTM para se referirem aos indivíduos e instituições que contribuíram para o reconhecimento do GECTM no campo da folclorização regional e nacional.
8 Os ranchos de Manhouce e Cambra foram solicitados para participar no “V Congresso Internacional do Vinho e da Uva”, em Viseu, em 1938; no cortejo comemorativo dos centenários, integrado na Exposição do Mundo Português, em Lisboa, em 1940; na Parada Folclórica realizada em Viseu também no âmbito das Comemorações Centenárias; e em 1953, na “Homenagem do Concelho a Salazar”, em São Pedro do Sul; e no IX Congresso Beirão, em Viseu.
9 Em 1961 o Rancho de Manhouce, dirigido por Lourenço da Silva e Gomes Silvestre realizou as primeiras gravações comerciais. Ainiciativa — gravação de dois discos single para a colecção Alvorada, pela Rádio Triunfo (em 1996, a Movieplay reeditou estes discos em CD na colectânea Folclore Português Beira Alta) — deveu-se a Armando Leça. Durante uma semana, Leça residiu em casa de um familiar de Gomes Silvestre, seleccionou o repertório e procedeu aos ensaios (a tocata do rancho foi alargada a um membranofone). As gravações foram feitas em S. Pedro do Sul, no ginásio do Colégio de São Tomás de Aquino, onde Gomes Silvestre leccionava. Mais uma vez, os ganhos obtidos pelo Rancho Regional de Manhouce não foram de ordem económica — para custear as despesas de deslocação e alimentação feitas no âmbito dessas gravações, venderam os direitos sobre os discos à editora (entr. Silva 1992) — mas prenderam-se, antes, com o prestígio e a divulgação.
10 O título de “A aldeia Mais Portuguesa de Portugal”. Ao mesmo tempo, os jornais regionais começam, a partir desta data, em artigos da autoria de manhoucenses envolvidos no concurso, a veicular a informação errada de que Manhouce alcançara em 1938 o título de “2.a aldeia mais portuguesa de Portugal”.
11 A fotografia do Rancho de Manhouce na Exposição Internacional de Artesanato, em Madrid, a deslocação de técnicos da BBC a Manhouce ou pareceres de figuras como Armando Leça serviram, nos artigos publicados nos jornais regionais por si e por conterrâneos seus, para legitimar o valor do repertório, estilo de cantar ou de trajar dos grupos folclóricos de Manhouce.
12 Designação dada por Almeida Campos, elemento do júri provincial de Viseu, ao repertório referido na nota anterior (Campos 1955).
13 Designação primeiramente utilizada por Mário Martins (entr. Barbosa 2000) e, depois, adoptada pelo GECTM, para referir o repertório que, sendo cantado do princípio ao fim por um coro, faz alternar secções a uníssono com secções a três vozes em movimento paralelo à distância de terceiras maiores e menores e quintas perfeitas.
14 O conjunto de três cordofones que, em 1980, constituía do GECTM (no IV Festival de Folclore do Algarve, por exemplo) foi alargado ao longo do tempo. Hoje, a tocata conta com seis cordofones (bandolim, viola braguesa, cavaquinhos, violão) e concertina, já tendo integrado na década de noventa uma viola beiroa.
15 A inclusão da alocução na exibição de um grupo folclórico de Manhouce deveu-se a Gomes Silvestre e ocorreu pela primeira vez em 1957 (entr. G. Silvestre 2000).
16 Num artigo publicado por Almeida Campos em 1955 relativo aos dados colhidos nas aldeias de Cambra e Manhouce para a candidatura ao concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, o autor sustenta (documentando com exemplos) que as “’modas de roda’ são cantadas a uma voz” (Campos 1955: 122).
17 Autilização sistemática do coro dividido documenta (assim como a apropriação endógena da definição exógena do que são as “cantigas de Manhouce”) a “reflexividade do conhecimento” (Giddens 1998), a assimilação que manhoucenses fizeram do conteúdo dos inúmeros textos e estudos produzidos pela “peregrinação folclórica” a Manhouce. De forma mais ou mesmos explícita, estes documentos correlacionaram aquela forma de cantar com práticas de um passado recuado até à Idade Média. O conhecimento produzido por esses autores entrou, posteriormente (conforme o provam as inúmeras referências que lhe são feitas nos artigos publicados por manhoucenses na imprensa regional) no universo das acções dos grupos folclóricos e etnográficos de Manhouce.
18 Uma vez que todo o repertório cantado é diatónico justifica-se a ordenação ascendente dos graus da escala em I, II, III, etc. Nas cantigas hexatónicas esta ordenação coincide com a sua escala de tons.
19 Em 1997 foi definida na revista Visão como “autêntica, original, íntegra e irresistivelmente cativante” (FM 1997: 11).
20 A condição feminina de subalternidade relativamente ao homem foi um dos “costumes muito seus” (MV 1938: 8) valorizados pela imprensa regional que fez a cobertura do concurso: “A mulher — alheia à vida hodierna — compreende a sua condição e reconhece a sua inferioridade, em relação ao homem. Casada raro acompanha o marido lado a lado limitando-se a segui-lo à distância. Trata-o por ‘senhor’ aceitando dele o confiado ‘tu’. Se o homem parte — porque o manhoucense emigra para o Brasil — a mulher veste de luto rigoroso, cobrindo inclusivamente os brincos, ou ‘arrecadias’, com pano negro. E só após o regresso do marido, regressa o traje de diferente cor” (ibidem).
Auteur
Mestre em etnomusicologia (título da tese: Vozes da Terra. A Folclorização em Manhouce, 2000), doutoranda na mesma especialidade (UNL). Professora de educação musical do ensino básico. Pesquisa no domínio da folclorização. Autora de 23 entradas na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (Círculo de Leitores, no prelo).
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