11. O S. João em Portugal1
p. 119-169
Texte intégral
1De entre as celebrações tradicionais do nosso actual calendário, as que se realizam em Junho, compreendidas no ciclo que leva o nome de S. João, distinguem-se e avultam pela amplitude da sua área de difusão, não só em Portugal mas em quase todos os países da Europa, em terras americanas, e até mesmo no Norte de África, em povos de cultura muçulmana2 (embora seja claro que cada país lhe deu uma feição própria, de acordo com a sua estrutura e com o matiz da sua cultura), pela sua feição eminentemente festiva, extrovertida e popular, e pela grande variedade de aspectos que apresentam e riqueza da sua problemática e das suas significações, nomeadamente no que se refere às virtudes das ervas, do fogo e das águas nessa noite, às fogueiras e banhos rituais, às abluções e práticas divinatórias e propiciatórias, relacionadas sobretudo com o casamento, a saúde e a felicidade. Estes aspectos aparecem geralmente associados uns com os outros, e também com elementos de natureza diversa, em si mesmos estranhos à festa; assim, por exemplo, quase todas as práticas divinatórias, profilácticas ou mágicas, específicas desta noite, articulam-se nas celebrações do fogo, da água e das ervas, donde provém a sua virtude; e há casos em que tais práticas aparecem em conexão com o parentesco cerimonial. Esses elementos constitutivos da festividade e as suas associações devem naturalmente explicar-se em função da sua natureza essencial, a partir das suas origens históricas – de resto estabelecidas conjecturalmente e sujeitas a controvérsia –, e da sua subsequente evolução, e ainda em relação com a cultura global e com as instituições específicas das várias regiões onde ocorrem; e só desse modo se poderão compreender devidamente.
2O S. João é acima de tudo um «santo casamenteiro», e até por vezes «brejeiro». Não é certamente por acaso que as práticas próprias da celebração acentuam este carácter – sortes, divinações e crenças, em que o motivo e objectivo fundamental é a felicidade, que, nas versões completas, se definem em relação ao casamento. Por vezes parece transparecer uma distinção sensível entre os dois sexos, e temos disto um exemplo claro nas célebres quadras dos ranchos são-joaneiros nortenhos:
Orvalhadas, orvalhadas, orvalhadas
E viva o rancho das mulheres casadas.
Orvalheiras, orvalheiras, orvalheiras
E viva o rancho das mulheres solteiras.
Orvalhudas, orvalhudas, orvalhudas
E viva o rancho das mulheres viúvas.
3Este aspecto afigura-se-nos muito significativo, e talvez o seu sentido se complete com o facto de a maior parte das divinações e sortes amorosas, em vista ao casamento, serem, no costume popular, enunciadas sempre pelo elemento feminino – em vista do noivo, do marido, etc. É, portanto, de presumir que essas práticas e costumeiras representem resíduos de ritos de fecundidade, que respeitam sobretudo às mulheres3, de que o casamento é a versão cristianizada.
4O S. João, pela razão bíblica, traz ao colo o cordeiro divino; a uma luz especial, pois ele pode talvez considerar-se um santo pastor. De facto, sob várias formas, ele aparece associado a elementos pastoris: nas «cascatas», ele vem sempre acompanhado de um rebanho; o manjar cerimonial do dia, em grandes áreas do País, é o cabrito ou anho assado; o dia da largada dos grandes rebanhos transumantes da Estrela para o Montemuro, é o dia de S. João4; em Oleiros, todo o leite das cabras e ovelhas, neste dia, pertence aos pastores5; certas práticas mágicas específicas da festividade referem-se ao gado: na Sertã, por exemplo, para que este não seja atacado por doença ou outro mal, é retirado dos currais na manhã do S. João, antes do nascer do Sol, levado para o campo, e passado sob um arco formado por uma vara de silva macha, e espargido com um augador 6; e veremos que no Sul do País têm lugar banhos santos de animais, cabras e ovelhas, pelo S. João; etc. Este duplo carácter do S. João, casamenteiro e pastoril, correspondendo, de certo modo, à oposição dos dois sexos (uma vez que, como dissemos, a feição casamenteira – crenças e práticas divinatórias e propiciatórias – as mais das vezes diz respeito, em quase todos os costumes recolhidos, às raparigas), aparece com particular evidência no costume de Mondim da Beira, cindido na festa dos rapazes – que são pastores – nos altos dos montes, e das raparigas, na aldeia, comportando esta última saltos mágicos com nítidos vestígios de práticas de fecundidade7. S. João parece também, em certos casos raros, ser considerado protector das searas; em Avido (Famalicão), por exemplo, os lavradores levam uma espiga a S. João dos Reis8.
5Quanto à interpretação da festividade em função de velhos ritos solsticiais, o facto parece-nos ao mesmo tempo evidente e indemonstrável. O argumento de van Gennep – a falta de coincidência dos dois dias (21 o solstício e 24 a festa) é naturalmente susceptível de interpretações diferentes, que não atingem a teoria solsticial; por outro lado, na verdade, esta não se pode basear numa argumentação concisa. Mais impugnável é a interpretação em função de ritos propriamente solares, visto que na verdade a quase totalidade dos costumes que desencadeiam forças benéficas ou divinatórias têm lugar expressamente antes do nascer do Sol. Como nota van Gennep, contrariamente à teoria solar, vê-se que «os raios do Sol do S. João podem ser nocivos, seja durante todo o dia, seja quando nasce, visto que as ervas mágicas devem-se colher antes que eles as toquem e façam evaporar o orvalho da noite sagrada»9; e o mesmo sucede em relação às águas em geral.
6As personalizações da festa são raras entre nós, de resto absorvidas pela imagem do Santo. Contudo, na Lageosa, perto de Braga, para os Santos de Junho – embora sobretudo o S. Pedro –, segundo um costume antigo, faz-se um boneco de palha vestido de homem, com roupas velhas e chapéu, cara de papel pintado, a fumar e a tocar viola, que se coloca de entrada junto de uma fonte e depois se pendura de um pau que se espeta no caminho (fig. 11).
7José Leite de Vasconcelos e Rocha Peixoto aludem, a respeito das fogueiras de S. João, ao costume da Beira Alta segundo o qual se queimava um gato vivo, metido numa panela, no «galheiro», que é a fogueira dos pastores dessa noite, no meio dos risos e brincadeiras dos rapazes10. Não conhecemos pormenores da cerimónia, mas esta menção parece indicar um vestígio de sacrifícios de animais, que seriam possivelmente personificações de entidades anímicas, integradas no ritual de velhos cultos naturalísticos, semelhantes a outras que se conhecem, referidas a diferentes celebrações ou datas especiais11.
8A festa, por toda a parte, contém um elemento marcadamente licencioso, por vezes expresso, na alusão sempre presente ao carácter brejeiro do santo, aos amores, etc., outras vezes tácito, na autorização implícita de brincadeiras e até «roubos», em que todos participam espontaneamente, nessa noite. A licenciosidade colectiva. em determinadas celebrações cíclicas, como o Carnaval, parece, segundo as teorias mitográficas, ser de origem ritual, como vestígio de actos de purificação de espíritos nocivos, ou de estimulo de forças renascidas. Tal pode ser o sentido das licenciosidades positivas ou difusas da noite de S. João, onde a atmosfera de euforia, mais do que um mero abandono aos instintos primários de prazer, parece resultar de um preceito tradicional, herdeiro de uma ideia obscura de «qualquer laço que une a vida do homem ao curso dos astros, nesta curva do ano», como diz. Frazer.
A festa
9Por toda a parte, em Portugal, o S. João é uma festa pública e colectiva. interessando as comunidades totais ou parciais. Esse carácter não é evidentemente exclusivo desta celebração; mas em nenhuma outra como nesta, especialmente nos casos citadinos, ela atinge o nível da totalidade prática da população, que nela participa com alegria, exuberância e espontaneidade tais, que fazem dela um acontecimento festivo sem igual, no qual tomam parte todas as classes, que nessa ocasião esquecem os seus quadros habituais e se misturam nas variadas diversões. E deve-se desde já notar que a festividade é por toda a parte independente da titulatura ou patronato expressos do santo em relação à localidade onde é celebrada.
10Em Lisboa, o ciclo de Junho abrange as celebrações em nome dos três «santos populares» – Santo António. S. João e S. Pedro–. e consta de iluminações festivas, desfiles e «marchas» de «bairros», com as suas cantigas, bandeiras e luminárias, bailes populares nos mercados, fogueiras em certas ruas e bairros populares, venda de ervas aromáticas, etc. Mas nesta cidade, o Santo António, seu patrono, a 13 de Junho, sobreleva, em importância, ao S. João12.
11Pelo contrário, o Porto e Braga podem considerar-se as duas metrópoles portuguesas dos festejos são-joaninos, que são promovidos pelas mais altas autoridades municipais, e constam de ornamentações e iluminações profusas nas ruas principais e em certos recintos tradicionalmente escolhidos para tal – a alameda das Fontainhas, e os jardins do Palácio de Cristal, no Porto –, fogos-de-artifício, concessões e horários especiais durante toda a noite para os transportes colectivos, o comércio das espécies próprias da quadra, e as casas de «comes e bebes». No Porto, nas ruas do próprio centro da cidade, que, nessa noite, e até depois do Sol nascer, se mantêm pejadas de gente, tem lugar a venda de ervas e plantas aromáticas, com especial relevo do manjerico e do alho-porro (onde alguns querem ver – em nosso entender sem fundamento consistente – reminiscências de consagrações fálicas) e que todos empunham interpelando-se com ele livremente e sem a menor agressividade: numa terra onde o brio conjugal é tão intransigente e onde o menor atentado contra o exclusivismo matrimonial desencadeia geralmente conflitos graves, os maridos, nessa noite, permitem que qualquer homem toque na mulher que ele leva pelo braço com o alho-porro que empunha, e que ela faça o mesmo a qualquer homem, embora ainda por cima conste de modo difuso que este tem talvez um significado fálico. Em todos os cantos se ajeitam pequenos recintos onde há bailaricos locais, e nos tascos e vendas improvisados no meio das ruas, nos bairros populares, como nos melhores restaurantes e em muitas casas particulares, ceia-se o manjar cerimonial da data – o cabrito ou anho assado com batatas ou arroz de forno. – Simultaneamente têm lugar celebrações festivas de iniciativa particular, iluminações e cascatas em jardins privativos ou recantos de rua, nomeadamente na Ribeira, e lançamento de aeróstatos – os balões do S. João– e fogo-de-artifício, «rusgas» e «ranchos», etc. Nestas duas cidades os festejos assumem por vezes aspectos delirantes de alegria, animação e diversão espontânea.
12Em Coimbra, o S. João era uma festa importante, que, a despeito do seu carácter puramente popular e da sua frequentação de gentes rurais dos arredores da cidade que ali acorriam em grande número, interessava sobremaneira à Academia; e em tomo das fogueiras, que por todo o lado ardiam na Alta, se viam tricanas e estudantes cantando e dançando ao som das guitarras, violas e cavaquinhos.
13Em Portalegre, o S. João é também festa de grande relevo na cidade: por toda a parte se erguem «mastros» e se vêem luminárias, a animação é grande, se armam bailaricos e se ouve o adufe.
14O mesmo carácter de festa pública e colectiva se encontra, mais atenuado, no S. João rural ou das pequenas povoações, onde por vezes apresenta traços característicos muito definidos. Assim, em determinadas áreas, a festa faz-se em volta de um poste ornamentado, que localiza o recinto onde se dança e brinca, e onde – nos casos em que ela existe – está geralmente a grande fogueira também colectiva. Em terras da Maia, ao norte do Porto, esse poste leva o nome de «Pinheiro de S. João» e é de facto um pinheiro, especado no solo, com o tronco pintado ou decorado com entalhes e cingido de folhagens verdes recamadas de gerânios, pampilhos ou outras flores garridas que nelas se encastoam, e com as suas copas escuras encimadas por uma bandeirola de fantasia, ostentando idênticos enfeites e ramalhetes nos galhos festonados; à sua volta, um modesto redondel de grinaldas, bandeiras e lampiões, presas a postes mais pequenos, decorados com folhagens e montagens guarnecidas; e, a um lado, os preparos para a fogueira – tudo isto no meio do vaivém das gentes, da algazarra dos altifalantes que, com o seu reportório revisteiro, atroam os ares onde estrelejam foguetes, acima das iluminações coloridas. Na Póvoa de Varzim, há poucos anos ainda, à porta da casa dos «mestres» via-se também, ao mesmo tempo que as fogueiras, um pinheiro verde alto, com os ramos ornamentados; e, de um lado ao outro da rua, filas de lenços embandeiravam o local. À volta do pinheiro, dançava-se. Em tempos mais recentes o bailarico não apresentava qualquer carácter especial; mas ainda nos princípios do século, se podia ver a gente do mar dançar as suas danças, nomeadamente o vira poveiro; e José Augusto Vieira, em 1886, assim descreve a dança que nessa data ali se fazia à roda do pinheiro: «A pequena distância do pinheiro acende-se uma fogueira, e em volta se compõe uma dança, que não sabemos que exista em outra terra do Minho. Chama-se a esta dança dos solteiros, porque nela só entram rapazes e raparigas, em número de trinta ou quarenta, formando quinze ou vinte pares. Os que têm de entrar na dança vêm uniformizados, assim de um como de outro sexo, e os trajes são originais. As raparigas trazem colete encarnado e camisa branca, sem jaqueta nem roupinhas, e saia branca; na cabeça e nos ombros lenço branco; e ou vêm descalças, ou resguardam os pés em pequenas chinelas de cabedal preto. Os rapazes trajam também colete encarnado sobre camisa branca, calça branca, faixa encarnada a tiracolo da direita para a esquerda, cinta encarnada (e isto é para os mais garridos), chapéu de palha ou barrete vermelho posto a direito (como às vezes se vê nos campinos do Ribatejo), e tendo enrolado um lenço branco em forma de fita; e chinelas de cabedal amarelo, quando não trazem os pés nus como as suas interessantes companheiras.
15Figurai agora estes trinta ou quarenta pares em duas linhas separadas, as de sexo feminino defronte dos do masculino, avançando, pulando ora num. ora noutro pé, recuando, tomando a avançar, e entoando quadras em que nos mostram desejos de que se encapele o mar, para que não afaste daqueles folguedos os rapazes da vila:
Ó meu S. João Baptista
Dai sardinha em demasia
Mas ao vir a vossa véspera
Mandai ao mar a maresia
ou em que procuram exaltar o santo do dia:
Alegrai-vos raparigas
E mais toda a nossa gente
Que S. João está no céu
Gozando glória eminente
Raparigas cantai vitória
Pois S. João está na glória;
ou outros versos alegóricos, cujos estribilhos são repetidos em coro quando as linhas dos dançantes avançam ou recuam, e tereis feito a ideia deste singular uso dos poveiros.»13 A «mestra» servia aos presentes, à discrição, o «agasalho» – vinho e rosca – que mandava vir da tenda. Nas lojas, via-se um trono com a imagem do santo.
16No Sul do País, o mesmo motivo leva o nome de «Mastro de S. João», e marca de modo idêntico o local da festa; vemos esses mastros difundidos no Sul da Estremadura, no Alentejo, em Eivas, etc., e também em Olivença, ataviados de fitas e festões de verdura, ponto de convergência de marchas com balões e archotes com que aí se celebra a noitada em que se cantam e dançam modas de origem portuguesa. Mas é no Algarve que eles tomam maior relevo, e apresentam aspectos novos e originais, que parecem apontar uma natureza especial: nessa província – em Loulé, Tavira, Alvor, Vila Real de Santo António, Olhão, Odesseixe, Alfombra, etc., na véspera do dia, nas ruas ou largos amplos, armam-se igualmente «mastros» engrinaldados e revestidos até meia altura com murta, alecrim e outras verduras, e mostrando daí para cima uma «charola» de «arcos» – as capelas de S. João (Tavira) – ou sejam, pequenas gaiolas feitas de tiras de canas ou de madeira encurvadas e ornamentadas, encerrando uma pequena imagem antropomórfica em massa de farinha triga cozida no fomo como o pão, parecendo representar o santo, e com fitas, flores e biscoitos pendurados, e encimada por uma bandeira; para cada grupo, este «mastro» fixa um lugar público amplo, e à sua volta dispõem-se quatro outros mastros mais pequenos, circunscrevendo um espaço dentro do qual se canta e dança14.
17Noutras regiões, encontramos de modo parecido uma árvore festiva no S. João local; mas ela figura aí especificamente como material da fogueira cerimonial da festa, tendo por isso uma natureza essencialmente diversa da dos postes que atrás descrevemos, e deve ser estudada juntamente com as demais celebrações do fogo.
18Em certos lugares, os festejos do S. João, mantendo embora por vezes a primazia entre todas as demais celebrações locais, são completamente absorvidos por uma determinada manifestação, que em alguns casos é um aspecto específico da comemoração, mas que noutros parece competir a uma celebração diferente; apenas, por parte dos particulares, têm na mesma ocasião lugar práticas divinatórias e propiciatórias, fogueiras e outros actos, próprios da noite privilegiada. Assim, em muitas partes, a festa pública colectiva consiste – e sobretudo consistia – nas cavalgadas em que figuravam por vezes as pessoas mais gradas da terra, e a que adiante aludiremos; ainda hoje, o S. João de Monforte e do Rosmaninhal, na Beira Baixa, consiste sobretudo na brilhante «cavalhada», com o seu cerimonial elaborado, que sugere passos das celebrações do Espírito Santo; mas é curioso notar que, nomeadamente na primeira daquelas localidades, o início do cortejo é marcado pelo acender das fogueiras que, segundo o costume geral, se fazem em frente às casas15. No Teixoso (Covilhã), o S. João era celebrado sobretudo com as danças públicas das Arraianas, pequena farsa compreendendo várias personagens, que se representava à porta das pessoas gradas da terra, que davam vinho para ser bebido pelos componentes do grupo nos domingos que se seguiam à celebração16. Em terras do Zêzere, ainda nos finais do século passado, neste dia dançava-se um velho bailado – a mourisca – dentro da igreja, em frente ao altar do santo17. Pelo seu lado, em Rio de Onor, o S. João – al San Xuán, no dialecto local – que é a festa máxima da aldeia e o seu acontecimento lúdico maior, ao qual acorrem gentes de todas as partes, mendigos e ciganos, consta fundamentalmente de uma refeição monumental, que absorve completamente o tempo das pessoas na véspera do dia em preparativos, que se prolongam pela noite fora; no dia seguinte, após a ronda matinal, tem lugar a missa e a procissão, finda a qual se inicia o jantar, festim verdadeiramente pantagruélico, em que se consomem quantidades imensas de alimentos; terminada ela, toda a gente vai para o terreiro do baile, onde começa a dança, que dura toda a noite, e em que todos – novos, crianças e velhos, ciganos, mendigos e aleijados – tomam parte, numa loucura desenfreada, que só acaba com o esgotamento18.
Encantamentos do S. João
19Noite entre todas privilegiada, são múltiplos e multiformes os sortilégios e prodígios que nela se operam e manifestam. O fogo, o orvalho, a água das fontes, rios e mar, as ervas, as plantas e certos objectos e práticas, e em certos casos o próprio Sol, tomam e possuem, nessa data, seja à meia-noite da véspera, seja durante a madrugada antes do nascer do Sol, seja nesse momento, seja ainda, em casos mais raros, ao meio-dia do próprio dia, virtudes e poderes especiais, efectivos ou divinatórios, quase sempre benéficos, e em geral relacionados com a saúde, a beleza, a fortuna e a prosperidade, e sobretudo a felicidade, em amores e casamentos.
20O Sol, nessa manhã, ao nascer – ou em certos casos ao meio-dia – dá três voltas, ou vem a dançar; o prodígio é visível directamente através de um lenço de seda colocado diante dos olhos, ou reflectido numa bacia de água posta ao sol. Por isso, na Galiza, onde a crença também existe, põem o gado à solta nesse momento19.
21Nesta noite, os ares estão povoados por seres, benéficos ou maléficos – bruxas, forças fecundas, prognósticos vários –, que ora se manifestam espontaneamente para nosso bem ou contra nós, ora se captam a nosso favor, ora se esconjuram por meio de práticas adequadas, sobretudo utilizando o fogo, a água, as ervas. No Barroso, na véspera de S. João, põem-se ramos de sabugueiro nos buracos das fechaduras e nas janelas, para não entrarem as bruxas que andam à solta nessa noite20.
22Do fogo, da água e das plantas, das suas propriedades nesse dia e dos ritos que as desencadeiam, nos ocuparemos a seguir. Mas a noite de S. João é especificamente aquela em que se manifestam as mouras encantadas, em regra assoalhando os seus tesouros, e em que têm lugar as práticas que lhes dizem respeito, e designadamente aquelas em que se dá o seu encantamento ou desencantamento – normalmente o cumprimento, por amor ou dedicação, de uma ordem geralmente insólita, por elas dada às pessoas a quem apareceram, cuja inobservância, por outro lado, lhes duplica o «fado» e implica, por vezes, o castigo do descuidado, que passa, por seu turno, a «correr o fado». Assim, por exemplo, em Valongo, no dia de S. João, antes do nascer do Sol, ouve-se, nas minas – e advirta-se que se trata das galerias mineiras de ouro, da época romana – tocar um sino debaixo da terra: no Barroso, em mais de um lugar – em Redondo, Loja Gorda (entre Cambezes e Montalegre), Senhora de Abril (Contim), Oural (Fiães do Rio), etc. – aparecem na madrugada antes ou ao nascer do Sol, ou ao meio-dia de S. João, «encontros» ou mouras encantadas, por vezes com uma tenda, que na Torgueda vem cheia de jóias21; na serra de Opa, em Vale de Lobo (Penamacor), no dia de S. João, saem mouras encantadas a estender meadas de ouro, que darão a quem conseguir apanhar, nessa noite, a famosa e misteriosa semente do feto-real22; nas Caídas da Rainha, aparecem também, nesta manhã, mouras encantadas, sob a forma de frades vestidos de branco; etc.
23Mais numerosos e correntes ainda, são, porém, as lendas de mouras encantadas em fontes ou cisternas. Por exemplo, em Moncorvo, afirma-se que na noite de S. João aparece uma moura na fonte do concelho, que se ouve cantar desde a meia-noite até a madrugada, e que expõe figos às orvalhadas; em Torre de D. Chama, nessa mesma data, ouve-se uma moura trabalhando num tear encantado, numa cisterna que aí existe; em Lamego corre a lenda de uma moura encantada numa fonte, que pedira a uma rapariga para lhe levar à meia-noite da noitada do S. João uma «bola de pão quente» para lhe quebrar o encanto; a rapariga foi como prometera, mas chegou atrasada, e a moutra condenou-a então a «correr o fado», assim como ela lhe fizera dobrar o encanto que a prendia; e na Régua conhece-se a mesma versão, em que apenas em vez de bola devia ser um «cavalinho de massa» confeccionado sem ninguém ver, mas que uma amiga da rapariga viu, e a quem quebrou uma perna23; em Penela, aparecem mouras encantadas – que são as bolhas de ar que rebentam – na Fonte da Doença, na noite de S. João antes do nascer do Sol; as raparigas vão lá buscar água com os seus cântaros, aonde as mouras a vão beber; em Figueiral (Tondela), na mesma ocasião, aparecem no Poço Grande – que foi feito pelos mouros e é encantado – bois e bezerros de oiro à tona da água, que fogem logo que alguém os tenta apanhar; em Silves, diz-se que na noite de S. João aparece uma moura a cantar e remar num barco na cisterna do castelo24, etc.
24Estas lendas de mouras e seus encantamentos, de um modo geral, parecem assim relacionar-se de um modo directo com o próprio sentido da noite privilegiada. A sua associação às fontes, porém, faz supor um sincretismo e sobreposição de crenças, em que o resíduo de cultos de deuses aquáticos, habitantes de fontes e nascentes, foi absorvido pela ideia mais recente das mouras encantadas que os personalizaram, herdando desse modo certas formas rituais popularizadas, como sejam as ofertas alimentares a tais entidades. Seja como for, vemos hoje muitas dessas lendas ligadas à água, podendo por isso representar mais um aspecto da crença geral e muito arreigada nas virtudes desse elemento na noite e madrugada do S. João25.
25É, pois, uma noite em que, directamente ou pela virtude das águas, do fogo e das plantas (estas muitas vezes combinadas com a água sob a espécie do orvalho), ou ainda por meio de palavras, práticas, encantamentos ou actos sacramentais, específicos e eficazes apenas nessa ocasião, se revelam ou manifestam potencialidades divinatórias e seres e forças invisíveis, benéficas ou maléficas, que ora circulam pelo ar (como bruxas, malefícios, etc.), ora se encontram ocultos e escondidos no seio da terra (como mouras encantadas, que aparecem, como acabamos de dizer, em certos lugares ou nas fontes; e como os tesouros que o azevinho revela, por um processo semelhante ao dos vedores das águas), ora existem em estado latente (como os poderes misteriosos conferidos pela semente do feto-real), favoráveis à fecundidade ou ao casamento, à saúde, à felicidade ou ao amor, de protecção contra males e bruxedos, de promoção de forças benéficas, para o homem, os gados e os haveres, de revelação do futuro e de tesouros encantados ou ocultos no seio da terra ou nas águas26. E tal é o carácter fundamental da festividade entre nós e, de um modo geral, por toda a parte onde ela tem lugar.
O fogo e as fogueiras
26O costume das fogueiras de S. João, que se documenta entre nós (e em muitas outras partes) desde épocas muito antigas27, pode considerar-se geral e comum a todo o País, apresentando porém formas diferentes conforme as várias regiões. O sentido primitivo e essencial destas manifestações é certamente duvidoso28, mas actualmente, na maioria dos casos e naqueles que nos parecem mais significativos, elas apresentam-se com virtudes profilácticas expressas e específicas, que umas vezes se exercem directamente pela utilização imediata do próprio elemento em causa, saltando por cima delas, ou por meio de defumadouros ou práticas mágicas determinadas, outras indirectamente, sob a forma de sortes divinatórias com ele relacionadas. De resto, como nota Frazer, são muito frequentes os casos em que os actos de magia se transformam em práticas divinatórias.
27Dissemos já que na área das fogueiras colectivas e grandes, estas se localizam normalmente junto do poste festivo, se ele existe. Encontramos essa prática no Norte, embora aí também se usem, simultaneamente, as pequenas fogueiras individuais, nas ruas, em frente às casas, e que as pessoas, especialmente a gente nova, saltam. Em Trás-os-Montes, encontram-se as fogueiras pequenas, de molde a poderem saltar-se, preparadas com ervas aromáticas, que fazem muito fumo, que nessa noite tem virtudes mágicas profilácticas especiais e especialmente eficazes. Em Freixo de Espada à Cinta, elas são de arreção e rosmaninho, e perfumam toda a vila; em Quintanilha, cada «bárrio» da aldeia tem a sua, que é pequena e feita com erva de «salpurros»; novos e velhos saltam-nas em cruz, para se defumarem contra a sarna e o sarampo, bexigas e dores de cabeça29, dizendo enquanto saltam:
Sama e sarampelo
Para o Padre de Arcozelo.
28No Sul, acentua-se este mesmo carácter, e as fogueiras aparecem além disso associadas profusamente a práticas divinatórias, relacionadas sobretudo com a felicidade amorosa, o casamento, e a prosperidade. Na Estremadura, elas são de alecrim e rosmaninho, e fazem-se às portas das casas; rapazes e raparigas saltam sobre elas, e diz-se que quanto mais, alto as raparigas pularem, mais certo é o casamento30; vemo-las mesmo nos bairros populares de Lisboa, embora apenas como folguedos da criançada. Em certos lugarés, é costume também fazerem «rodinhas» em volta dela; mas mais do que uma verdadeira circum-ambulação ritual obrigatória, tais danças parecem ter o carácter de uma simples diversão. Na Beira Alta, por exemplo na Guarda, fazem-se fogueiras e queimam-se molhos de rosmaninho, que se trouxeram dos campos, e por sobre os quais as raparigas saltam dizendo:
«Serra em mim
Maria da Glória,
que anda tudo
co’a fralda de fora.»
ou outros versos31. Por toda a Beira Baixa, de um modo geral, fazem-se pequenas fogueiras em frente às casas e nas esquinas das ruas, com alecrim, rosmaninho, mato, lenhas, carqueja, canas de fava secas, pinhas, etc., entendendo-se que o cheiro e o fumo, especialmente do rosmaninho, afugentam a bicharada nociva, das pessoas, animais, casas e campos; frequentemente, essa lenha é trazida do monte com antecedência, e fica guardada em casa até se dispor em pilha, para o efeito, no dia 23. No Sobral (Oleiros), arma-se um pinheiro, forrado com mato, no largo da aldeia, e pega-se-lhe fogo à meia-noite, entre danças e descantes; mas, além disso, os moços levam troncos secos para o adro da igreja, para arderem durante três noites seguidas32. Em Castelo (Sertã), os festeiros rodeiam a fogueira – onde costumam queimar, além dos matos habituais, as ceiras velhas dos lagares de azeite – com paus compridos revestidos com carqueja – as tochas –, a que vão deitando fogo pela noite adiante, entre lançamento de foguetes e balões33. Em Turquel defumam-se os rebanhos nas fogueiras de S. João, para lhes revigorar a saúde34. No Alentejo fazem-se igualmente, às portas das casas, fogueiras pequenas de plantas aromáticas, as mais das vezes alecrim e rosmaninho, e também «erva do monte»; as pessoas saltam-nas para se defumarem, entendendo que este fumo é «um ar sadio», e associam-nas, do mesmo modo, a numerosas práticas divinatórias, de carácter amoroso; em Odivelas (Ferreira do Alentejo) vemo-las, porém, além disso, utilizadas para a previsão do tempo, passando-se sobre elas uma tábua com doze mãos-cheias de sal, que figuram os doze meses do ano; a quantidade de água que, com o calor, ressoa de cada monte, indica a chuva do mês correspondente. Em Eivas, saltam-nas expressamente contra a sarna35. E no Algarve, a fogueira, como no Norte, localiza-se a um lado do recinto que se centra no «mastro» festivo. Na ilha Terceira fazem-se também fogueiras na rua, nas vésperas do dia de S. João, em volta das quais a gente miúda brinca, e sobre as quais se salta quando a labareda cresce36. Etc.
29Dissemos que em certas regiões se encontram árvores festivas nas celebrações locais do S. João, que contudo diferem essencialmente dos «Pinheiros» e «Mastros» que de entrada descrevemos, porque figuram como material específico da fogueira cerimonial dessa festa, sendo a final queimadas. Na Beira Alta, em Mondim da Beira, a celebração dividia-se em duas partes: a festa dos rapazes e a das raparigas. A festa dos rapazes consistia numa fogueira, que se fazia num alto vizinho e a que se dava o nome de facho ou galheiro; dias antes, iam os moços com pífaros, tambores e algazarras, ao monte, buscar um pinheiro alto, ao qual cortavam os ramos, deixando só os galhos, e que revestiam de fetos, bela-luz, rosmaninho, etc.; na noite de S. João queimavam-no, no meio do estrondo de «bombas», «bichas» e « sacatrapos », musicatas de pastores, descantes, ao mesmo tempo que as pinhas, que se haviam disposto à sua volta. A festa das raparigas tinha lugar na aldeia, e constava também de uma fogueira, que se fazia num largo ou quinteiro; juntava-se aí o material do facho, e lançava-se-lhe o fogo; as raparigas levantavam então levemente a saia, e saltavam sobre a fogueira, recitando em forma de oração versos licenciosos alusivos à saúde37. Segundo um relato do Almanaque Auxiliar do ano de 1898. em certas partes desta província dependurava-se no pau central do galheiro, que atingia por vezes seis metros de altura, uma caçarola de barro com um gato dentro: ao calor da fogueira a caçarola acabava por estalar, e o gato saltava de lá espavorido. Leite de Vasconcelos, que também alude a esta costumeira, diz simplesmente que se queimava um gato no galheiro 38. A este respeito é de notar que os reis de França, por exemplo Luís XI, acendiam eles próprios a fogueira da noitada de S. João, em Paris, onde, com fins mágicos difusos, eram queimados gatos vivos, e até, de uma vez, uma raposa, « pour donner plaisir à Sa Majesté »39. Semelhantemente, em Silgueiros (Viseu), ao mesmo tempo que as fogueiras de rosmaninho, preparava-se um pinheiro, com maçanetas de panos nas pontas dos ramos, ligadas entre si por fitas, tudo embebido em líquidos inflamáveis, e pegava-se-lhes fogo na noite da festa. Na serra de Montemuro, a festa comporta a queima final do «tênchoeiro», que é um tronco alto revestido até meio de mato seco, que se ergue numa elevação próxima da povoação, e à volta da qual se canta e dança. Na Póvoa de Atalaia (Beira Baixa), para a noite de 23 de Junho fazem-se «mastros» festivos, que são paus envolvidos em mato, que mais tarde se queimam, enquanto se dança e se extinguem as fogueiras que ardiam por toda a aldeia. No Minho, em Montedor, ao norte de Viana do Castelo, encontra-se também um motivo semelhante ao « galheiro » beirão, que, como na Maia, levava o nome de «Pinheiro do S. João»: nos terceiro e penúltimo domingos anteriores a 23 de Junho, os mordomos e mordomas do ano faziam o peditório pelos diferentes lugares da freguesia, acompanhados por música, e, de regresso, no local do arraial, organizava-se um bailarico; na véspera do último domingo, os rapazes iam ao monte com um carro de bois buscar um pinheiro; ao chegarem à povoação, preparavam o carro, montavam sobre ele um estrado largo, a árvore era posta ao alto, decorada de verduras e rodeada de balaústres; no dia seguinte, o carro, puxado por bois com cangas de luxo ornamentadas com flores, transportava o «pinheiro» até ao terreiro da festa, levando as mordomas no estrado, e acompanhado pelos mordomos, a pé, e pela música; aí. ele era apeado e fixo ao solo, marcando o sítio do bailarico; juntava-se-lhe «pruma», geralmente disposta em cordões, e, na noite de 23. pegava-se-lhe fogo, enquanto à sua volta se dançava e se brincava (fig. 12).
30Em Portugal existem, pois, os dois tipos fundamentais de fogueira de S. João: a fogueira grande e colectiva, que parece ser só um «feu de joie», e a fogueira pequena, socialmente mais restrita; as virtudes profilácticas do fogo, nesta noite, exercem-se pelo acto de saltar as fogueiras, sem dúvida as fogueiras pequenas (e, em casos menos frequentes, pelos defumadouros): essas fogueiras saltam-se tendo em vista o casamento, a saúde e a felicidade. O saltar da fogueira, em etnologia geral, tem um sentido genésico; aqui parece ter também o mesmo sentido, visto que em geral elas visam o casamento, e até mais claramente – por exemplo, na Beira – polarizam alusões licenciosas. Ás vezes coexistem os dois tipos de fogueira na mesma região.
31Relacionados possivelmente com as celebrações do fogo (embora na realidade sejam um elemento geral de todas as festas públicas), podem-se também considerar as iluminações e luminárias características, e os fogos-de-artifício, que vão desde as grandes peças armadas de fogo «solto» e «preso», em que se esmeram os pirotécnicos, e que avultam nas celebrações públicas e municipais, girândolas e outras formas, até aos pirilampos chineses, «diabos em caixa» e simples fósforos de luz colorida que as crianças queimam das janelas à rua, os foguetes, petardos, morteiros e bombas, e mesmo os aeróstatos de papel de cores que se lançam nessa noite – os balões do S. João – próprios sobretudo das festas urbanas, mas que aparecem também, em certos casos raros, no S. João de certas localidades rurais.
O orvalho e a água
32A crença nas virtudes especiais da água e do orvalho na noite ou madrugada do S. João, e as práticas em que ela se manifesta, são também gerais e comuns, sob várias formas, a todo o País, e, como sucede com o fogo, actualiza-se também ora em abluções ou práticas directas de utilização, ora por meio de divinações ou «sortes» mágicas. A água, na ideia do povo, dorme todas as noites: mas na de S. João, ela é benta, e tem o poder de curar doenças, em especial, geralmente, doenças de pele, de dar beleza aos jovens e rejuvenescer ou infundir vigor aos velhos, favorecer amores e negócios e operar ainda outros prodígios benéficos. É de notar que quase sempre o costume prescreve, como momento próprio de tais virtudes e práticas – que se devem realizar ao ar livre, com a água orvalhada – a meia-noite, ou, mais vulgarmente, as horas compreendidas entre a meia-noite e o nascer do Sol – sempre, portanto, antes do sol-nado40. E já dissemos que van Gennep extrai mesmo deste facto um argumento contra as teses que filiam as celebrações do S. João em primitivos rituais solares do solstício. Esta crença manifesta-se em inúmeras práticas e costumeiras, que geralmente não se destacam umas das outras, mas que, para maior comodidade de exposição, agruparemos sob as seguintes categorias principais:
I) Crenças e práticas ligadas às fontes
33Em muitos lugares correm-se nessa noite as fontes – muitas vezes em número certo, e geralmente sete – para se beber a água virtuosa, ou com ela se lavar a cara ou os olhos, ou pentear o cabelo. No Porto, não há muitas dezenas de anos, ranchadas de rapazes e raparigas, iam, na noite de S. João, em rusgas, depois de visitarem as «cascatas», à fonte da Alameda das Fontainhas, para esses fins: em Guimarães, à meia-noite da véspera de S. João, banhavam as crianças doentes na Fonte Santa de S. Gualter (onde aliás iam muitos doentes mesmo em qualquer dia do ano), e deixavam lá ficar a camisa do enfermo. De um modo geral, na Beira Baixa, visitam-se as fontes à meia-noite; na Póvoa de Atalaia, a essa hora, as raparigas vão com os seus namorados buscar água de sete fontes, levando o seu cântaro, que o rapaz enche com uma «chana» ou púcaro. Em Outeiro da Alagoa (Sertã), findas as rusgas que andam pelas ruas a cantar as quadras e músicas próprias da celebração, os ranchos vão, à meia-noite, beber a água de S. João; a rapariga que chega primeiro é a que tira a olha dessa água; o mesmo sucede em Sobral (Oleiros) e Nesperal (Sertã), entendendo-se aqui que quem «tira a olha» da água de S. João não morre nesse ano; por vezes essa água colhe-se numa bacia, e quem olhar para ela e vir o seu rosto, também não morre nesse ano41. Em Palmeia, vemos costume idêntico: as pessoas vão aos poços mirar-se, e se virem a sua «sombra» na água, não morrem nesse ano. Em vários sítios esta água guarda-se durante alguns dias ou mesmo pelo ano fora, para benzeduras e mezinhas; ela usa-se também em especial para preparar o fermento para o pão, e em certas partes no Minho entende-se mesmo que a massa feita com essa água leveda sem precisar de fermento42. Em Turquel, os gargalos das bilhas e quartas em que ela se conserva cingem-se com um junco verde, como distintivo apropriado. E em muitas partes – por exemplo, em terras de Abrantes – as fontes são ornamentadas, nesta ocasião, com verduras, flores, bandeirolas, etc.
34Este costume é expressivamente tratado na poesia popular, no velho romance das «Manhaninha de S. João»;
Manhaninha de S. João
Pela manhã de alvorada
Jesus Cristo se passeia
Ao redor da fonte clara
Por sua boca dizia
Por sua boca falava:
Esta água fica benta
E a fonte fica sagrada.
Ouviu a filha d’el-rei
D’altas torres donde estava;
Vestiu suas meias de seda
Calçou sapatos de prata
Pegou em cântaro d’ouro
Á fonte foi buscar água.
Lá no meio do caminho
Com a virgem se encontrava.
Atreveu-se e perguntou-lhe
Se havia de ser casada.
Casadinha haveis de ser,
Muito bem afortunada
Três filhos haveis de ter
Todos de capa e espada.
Um será bispo em Roma,
E outro cardeal em Braga,
O mais novo deles todos.
Servo da Virgem sagrada.
Ditosa da donzelinha
Que à fonte foi buscar água!43
II) Orvalhadas
35É também geral em Portugal a crença de que o orvalho é virtuoso na madrugada do S. João – o orvalho bento – e o costume de nessa noite, antes do nascer do Sol, se «tomarem» as orvalhadas, pelos campos, hortas ou linhares, ora molhando-se as mãos nas ervas e lavando-se com elas a cara, ora esfregando-se mesmo todo o corpo com essa água, ora ainda colhendo-se e guardando-se as ervas que receberam o orvalho benfazejo, que rejuvenesce e aformoseia, tira as sardas da cara, garante amores felizes e casamento próximo, bom sucesso em empreendimentos e negócios, livra do mau-olhado, etc.44. Mas o orvalho da madrugada do S. João é também benéfico pela sua acção indirecta sobre as ervas e plantas, e até sobre a própria água, que ficam virtuosas graças a ele.
III) Banhos santos e rituais
36Por todo o País encontra-se ainda o costume, ou vestígios, dos banhos santos na noite ou madrugada do S. João, nas fontes, pegos, ribeiros, rios ou mar, e do mesmo modo com poderosas virtudes profilácticas45. No Porto, além das abluções nas fontes a que já nos referimos, havia o banho, igualmente antes do nascer do Sol, no rio Douro e nas praias da Foz, que valia por nove. Na Figueira da Foz, o banho santo no mar tinha lugar ao bater pontual da meia-noite; a ele acorriam gentes da Beira, dos campos do Mondego, dos pinhais de Leiria, com os seus trajos peculiares e os seus farnéis, e entendia-se que ele curava de maleitas, quartãs, febres e de toda a doença e malquerer46. Em Turquel, o banho de S. João que os rapazes tomavam de madrugada em qualquer tanque ou represa, e as outras pessoas no balneário da Fervença, valia por sete. Em diversas localidades do concelho do Cadaval, tomam-se três banhos nas termas das Caídas da Rainha, em cada um dos três dias 23, 24 e 25 de Junho, contra o reumatismo, entendendo-se que esses três banhos correspondem a muitos tomados em qualquer outra ocasião. Em Almodóvar, rapazes e raparigas, em grupos separados, tomam cada um pelo seu lado banho nus na ribeira, antes do nascer do Sol: vão todos a correr, porque aquele que chega em primeiro lugar é quem acorda a água. e. como vimos também a propósito das fontes, é essa a que possui maior virtude. Em Mértola, o banho na madrugada de S. João tinha lugar no rio Guadiana. Etc. O mesmo costume encontra-se no Algarve, mas aqui ele apresenta certos aspectos originais: em muitos lugares existem duas datas para os banhos santos: a noite de S. João, a 24 de Junho, e o dia 29 de Agosto – o S. João da Degola –; em 24 de Junho, as gentes do campo e da beira-mar vão aos banhos da Serra – designadamente aos balneários termais de Monchique – para o banho santo, fazendo-se aí em seguida a festa, com dança e música pela noite fora. Pelo contrário, as gentes da Serra e do interior vão de preferência tomá-los às praias – da Rocha, da Carrapateira, etc. – mas no dia 29 de Agosto47; e o mesmo sucede em Caceia (Vila Real de Santo António). Contudo, nessas mesmas e noutras praias, o banho santo toma-se, segundo o costume geral, antes do nascer do Sol, que é a hora em que a água está «benta». Assim sucede por exemplo na Carrapateira (Aljezur), na Quarteira, na Praia da Rocha, etc.; em Odesseixe, as pessoas da terra, e muita outra gente que vem de fora, da Serra, vão em jejum à praia, para o banho de S. João, que vale por nove e é especialmente bom para reumatismos; levam um merendeiro de aguardente e bolos, e tomam também banho no rio, nas mesmas condições.
37A virtude profiláctica da água na noite de S. João beneficia também os animais, e em inúmeros lugares o gado toma banho, do mesmo modo que as pessoas, nas fontes e represas, rios, ou mesmo mar. No Minho e no Douro, as ovelhas levam-se nessa noite a qualquer presa, fazendo-as andar na água durante algum tempo, para as livrar da tinha; em Albergaria das Cabras, na serra de Arouca, curava-se a «ronha» das ovelhas e o «tinhão» das cabras com o banho de S. João; em Mondim da Beira os pastores ainda não há muitos anos davam banho ao gado, na madrugada desta data, nos rios48. No Algarve, semelhantemente. tem lugar o banho ritual dos animais, mas, de preferência, no dia 29 de Agosto49. E já atrás notámos que o banho santo dos animais também de certo modo relaciona o santo com actividades pastoris.
Ervas e plantas
38Como as fogueiras e, sobretudo, as águas, também as ervas são bentas na madrugada de S. João ao nascer do Sol – às vezes mesmo sobretudo por virtude do orvalho da noite50 –, e, colhidas nessa ocasião, possuem virtudes específicas referidas de acordo com o sentido geral da celebração à saúde, à felicidade, designadamente nos amores e no casamento, operando por acção directa ou como factores divinatórios. E esta crença, documentada em grande parte no cancioneiro popular, está na base de inúmeras práticas e lendas relacionadas com determinadas espécies, sobretudo aromáticas – o alho-porro, o manjerico, o alecrim, o rosmaninho, a macela, o funcho, a cidreira, a sálvia, a erva-pinheira, o poejo, a dedaleira ou digitalis, o véu-de-noiva, o rabo-de-gato, a valeriana, a alcachofra e o cardo, o trevo, mormente o de quatro folhas, o junco, a figueira, o sabugueiro, o loureiro, a oliveira, a fava, a amêndoa, a cereja, certas flores, como o cravo, a rosa, o malmequer, etc. Algumas destas espécies, como vimos, figuram nas fogueiras – o alecrim, o rosmainho, o funcho, o sabugueiro, a dedaleira, a erva do monte, etc. – e servem de defumadouros, com fins mágicos ou terapêuticos; e em certos lugares protegem do raio.
39O manjerico mostra, nesta festividade, e mormente nos meios urbanos, o maior relevo. Ele aparece em vasos de diversos tamanhos, à venda em tendinhas de todas as espécies, em Lisboa nos mercados, no Porto nas ruas. Frequentemente ornamentados com uma bandeirola contendo quadras alusivas, montada num arame que se espeta na terra dos vasos, estes constituem presentes que se oferecem às pessoas amigas, em regra com um sentido difuso de dedicatória amorosa.
40O trevo – entenda-se principalmente o de quatro folhas – é também dotado de grandes virtudes (de resto todo o ano, mas sobretudo quando colhido na manhã de S. João, e em especial à meia-noite), como talismã protector de felicidade, referida, em vários casos, ao amor e ao casamento, e amplamente mencionado no cancioneiro tradicional. A seu respeito, vemos, em Viana do Castelo, um costume que contém elementos semelhantes aos que descrevemos a propósito do feto-real: para se ser feliz, deve-se, à meia-noite da véspera de S. João, num lugar onde haja essa planta, desenhar um «sanselimão» onde caiba uma pessoa: se nesse espaço ela – e a costumeira menciona especialmente o sexo feminino – encontrar o trevo de quatro folhas, guarda-o sem dizer nada a ninguém: e deve dançar e cantar enquanto procura51. Ainda em relação ao trevo de quatro folhas, encontramos em mais de uma parte a crença de que quem coloca uma dessas folhas colhidas na manhã de S. João sob a pedra de ara onde o padre diz a missa, fica com o poder de encantar qualquer pessoa (Gondifelos). E é possível que, numa versão primitiva, este «encantamento» se operasse sobretudo no campo amoroso, porque em alguns lugares o mesmo facto – pôr um trevo de quatro folhas colhido na manhã de S. João sob a pedra de ara– garante especialmente o casamento com a pessoa desejada, desde que se peça isso ao levantar a Deus; e na verdade tal é. como dissemos, um dos sentidos fundamentais das práticas, «sortes» e divinações relacionadas com este santo. Crenças semelhantes a esta encontram-se em outros países europeus, por exemplo em França, onde o trevo seria colocado no missal que o padre usa; e no Tirol, onde se cria que quem encontrava um trevo de quatro folhas durante os fogos do S. João podia operar milagres52.
41A alcachofra é também objecto de inúmeras práticas e «sortes» divinatórias, tendo em vista o casamento. O motivo é desconhecido no Norte do País, onde essa planta é rara e totalmente excluída do costume popular, mas ele é. pelo contrário, de uso geral e corrente em todo o Sul e vem já mencionado num texto de 172953. A alcachofra é queimada ou chamuscada pelos namorados, geralmente na fogueira de S. João, à meia-noite da véspera dessa data; deixa-se seguidamente ao relento, pousada à janela, no telhado da casa, metida na terra, num vaso, por vezes de manjerico, enterrada pelo pé. ou dentro de casa, pendurada ou posta atrás das bilhas de barro da água de beber. Se no dia seguinte a alcachofra refloriu, o presságio é favorável, o noivo é firme, o casamento é certo e feliz, realiza-se dentro de um ano, o que se pediu é consentido, etc. Por vezes, a queima é acompanhada de palavras ou versos sacramentais; outras, deve-se ter na ideia a pessoa em vista; outras ainda, a flor é passada em cruz pela fogueira de alecrim, etc.54. Em Eivas, ela é objecto ainda de uma divinação especial: arranjam-se três alcachofras e amarra-se a uma delas um fio branco, a outra um fio preto, e à última um fio vermelho; chamuscadas e expostas à «serenada», se refloresce a do fio vermelho, a rapariga casa com um homem solteiro; se a do fio preto, casa com um viúvo; se a do fio branco não floresceu, fica solteira55.
42Práticas semelhantes se fazem em vista ao mesmo fim com a erva-pinheira e o rabo-de-gato, mas neste último caso o costume toma por vezes um aspecto muito significativo: a inflorescéncia. em vez de passada pela fogueira, é humedecida nos lábios e em seguida posta no seio das raparigas: se a espiga reflorir, é porque os amores são felizes. A erva-pinheira e a erva-de-Nossa-Senhora, ou da fortuna, devem-se pendurar dentro de casa, «com o pensamento no rapaz amado», e conforme reverdecer ou não. também os presságios são favoráveis ou não.
43Como nota Cláudio Basto, todos estes casos são exemplos desse paralelismo do reverdecimento de plantas e da vida ou da felicidade das pessoas, de que há muitos outros exemplos, com o azevinho, a laranja, a folha de figueira, a espiga do milho, que se põem ao relento, o dente de alho ou o véu-de-noiva, que se semeiam sempre naquela noite, acompanhados de quadras mágicas, a erva moliana ou valeriana, que deve ser roubada ou comprada, e que se planta no vaso com três moedas de ouro, prata e cobre, ou uma moeda com cruz, juntamente com o trovisco, o verbasco e a bela-cruz, saudando-se durante nove dias: se reverdece, dá flores de sete em sete anos soltando um grito, flor que é da forma de uma caneta que dará sorte a tudo o que se escrever com ela56. A fava – e de modo semelhante o feijão, o dente de alho, a amêndoa e a cereja – figura numa prática divinatória específica, também relacionada com o casamento: tomam-se três dessas espécies, por vezes escolhidas de uma vagem com cinco ou com três sementes: deixa-se uma com a pele intacta. outra apenas com metade da pele, e descasca-se completamente a terceira: põem-se debaixo do travesseiro e, ao acordar de manhã, tira-se uma ao acaso: se é a inteira, o futuro noivo será rico: se é a descascada, será pobre; se é a que tem meia casca, será remediado. Na Figueira da Foz, em lugar das favas, figuram três amêndoas de casca – com toda a casca, só com meia casca e completamente descascada: se se tira a amêndoa com a casca inteira, o futuro marido será um homem rico57, etc. Por vezes, as três favas põem-se num saco; no Barroso põem-nas atrás do cântaro, e vão-nas buscar de manhã, com os olhos fechados58. Em certos lugares do Alentejo, em Odemira, etc., saltam a fogueira em cruz três vezes com as favas na mão, e depois disso é que as põem debaixo do travesseiro. Noutros lugares ainda, atiram as três favas ao ar. depois de as passarem pela fogueira, e a que ficar mais próxima indica a fortuna da própria pessoa59.
44A oliveira e o loureiro também prognosticam amores, colhidos à meia-noite do S. João. Nessa ocasião, corta-se uma galha de tais árvores, dizendo-se:
Ó meu S. João Baptista
Protector das solteiras
Desvendai a minha sorte
Neste ramo de oliveira
e o augúrio é favorável se aparecem duas folhas juntas. Também se atiram trés folhas à lareira, ao dar a meia-noite, atribuindo-se a cada uma o nome de um rapaz: a primeira folha que estalar indica o nome do futuro marido. A folha da figueira, passada pelo fogo, e posta ao relento, no quintal ou no telhado, indica, se ficar orvalhada, amores correspondidos (Beira). O rosmaninho, além das virtudes como defumadouro. indica também o nome do namorado da rapariga que o vai colher ao monte, à meia-noite do dia 23 de Junho. O junco, apanhado na manhã de S. João, revela, do mesmo modo, segredos de amor: em certos lugares cortam-se dois pedaços de junco verde muito iguais, um dos quais representa o rapaz e o outro a rapariga: unem-se com uma linha, e o que na manhã seguinte estiver mais crescido é o que denota amor mais firme60.
45As silvas aparecem, na noite da véspera do S. João, relacionadas com o crescimento do cabelo, que é talvez um sinal significativo de beleza e de juventude, exprimindo indirectamente os amores. Assim, a mulher que quer que lhe cresça o cabelo deve, antes do Sol nascer, cortar as pontas do cabelo e amarrá-las ou pendurá-las sobre o rebentão duma silva, ao relento: se no dia seguinte a silva cresceu, também o cabelo cresce ou engrossa: se alguém cortar o rebento, o cabelo não cresce mais (Cinfães. Santo Tirso, etc.); em Guimarães o costume prescreve que à meia-noite do S. João, se meta o cabelo numa silva aberta a meio, etc. Numa versão original, idêntico princípio de magia imitativa funciona, relativamente ao mesmo facto, em função do correr das águas: quem quiser que o cabelo lhe cresca, deve, à meia-noite do S. João, deitar uma porção dele pelo rio abaixo: assim como esse corre pelo rio, também o restante lhe cresce na cabeça61. O azevinho parece ligar-se sobretudo à fortuna: duas varinhas dessa árvore, cortadas na manhã de S. João, quando o Sol começa a despontar, têm o poder de descobrir tesouros ocultos: e um ramo dele, borrifado com vinho e levado para casa depois da meia-noite dessa mesma data, dá a fortuna ao seu possuidor (Figueira da Foz).
46As flores utilizam-se como augúrio amoroso referido às mulheres, numa prática que de modo semelhante é válida com diversas outras espécies: ao meio-dia do dia de S . João atira-se qualquer flor – por vezes um ramo de flores – para a rua: o nome do homem que a apanhar é o do futuro marido; se a apanha outra mulher, a rapariga não casa. Nos Açores, o ramo deve ter ficado ao relento na madrugada do S. João; e o nome do futuro marido é o primeiro nome de homem que se ouvir no dia seguinte. Nesta categoria de práticas, distingue-se em especial o cravo, que simboliza o elemento masculino, e que. atirado à rua ora à meia-noite, ora ao meio-dia, ora colhido à meia-noite e atirado à rua ao meio-dia. revela o nome do futuro marido, que é o da pessoa que o apanha; em Viana do Castelo, o cravo é atirado para a fogueira, e o nome do futuro marido é o primeiro nome de homem que se ouvir; em Vila do Conde, atiram-se cravos ao andor do S. João, e, se ficam em cima dele, a rapariga casará em breve. No Porto ornamenta-se a imagem do santo com cravos vermelhos; no dia seguinte, a rapariga ao levantar-se, em jejum e sem falar, rouba um desses cravos e guarda-o no fundo da mala, devendo deitá-lo fora logo que lhe aparece noivo, etc. Em certos lugares, é uma maçã mordida, que se atira à rua, quem indica o nome do futuro marido, que será o transeunte que a apanhar.
47A rosa, que pelo seu turno simboliza o elemento feminino, indica também o nome da futura esposa, que será o que se atribuir ao botão que, deixado ao relento, abrirá mais as pétalas nessa noite de sortilégios.
48Finalmente, a conhecida prática, corrente em vários outros países, que revela a natureza e intensidade do sentimento do namorado pelo desfolhar do malmequer. toma valor especial na noite do S. João.
49Em muitos dos exemplos que apontamos, a virtude das ervas aparece, como dissemos, fundamentalmente combinada com a do orvalho da madrugada do S. João, sendo difícil de precisar qual dos dois elementos prevalece; e esta associação é especialmente evidente no caso do linho, onde, por vezes, o costume localiza obrigatoriamente as «orvalhadas»; mas esta planta goza também de propriedades mágicas profilácticas autónomas, na noite de S. João, e por isso, como se diz em certas regiões do Minho, as pessoas – e mormente os homens – o vão «abeleirar»; esfregar-se nele, para se livrarem ora de comichões, ora da sarna62, etc.
50Muito peculiar era a apanha dos figos lampos, ou lampas, que vem já mencionado num diploma do século xv. referido a Santiago do Cacém, associada a uma «cavalhada». E é crença que esses figos, colhidos de manhã cedo, rociados do orvalho bento da madrugada do dia de S. João, possuíam virtudes benéficas: e por isso constituíam um presente característico desta data, que se enviava às pessoas estimadas.
O feto-real
51O feto-real é uma planta cuja realidade se ofusca perante uma efabulação prodigiosa apoiada no sentido mais misterioso desta celebração: ele possui uma semente invisível, que cai unicamente à meia-noite em ponto da noitada de S. João, e que confere a quem a apanhar grandes poderes: alcançar e saber tudo o que quiser, adquirir a sabedoria suprema e ficar dotado de uma força mágica que atrai as pessoas que se deseje, ou provoca o seu encontro e as põem à nossa inteira discrição – e isto em certos casos expressos, referido sobretudo aos amores. Momentos antes daquela hora, agita-se um botão, que depois desabrocha, vermelho e escuro, iluminando tudo o que o cerca. Mas a sua apanha é difícil e perigosa, porque também as entidades maléficas – o Diabo ou as bruxas, ou as sombras – a pretendem, e se encontram junto dessas plantas que o diabo sacode. sendo preciso vencê-las. Por isso, naquela hora precisa, é necessário pôr-se sob o feto, conforme as diversas versões locais, um lenço, ou um guardanapo de olhos, com uma ou mais moedas – por vezes de «cruzado» –, uma toalha, etc., onde a semente cai; o lenço deve ficar bem preso, para o Diabo o não poder levar: o guardanapo leva por vezes a meio um «sanselimão» – ou « signum salomonis » –; geralmente, é necessário riscar-se ao lado outro desses desenhos mágicos ou mesmo um círculo dentro do qual a pessoa se mete, para o Diabo a não empecer: e por vezes, a própria planta deve ficar também dentro dele. Em certos casos a pessoa deve levar uma espada, com que faz cruzes na retirada, para que o Diabo a não agarre: outras vezes o Diabo pergunta: «Colhes tu ou colho eu?», e deve-se responder: «Colho eu»; outras ainda devem ir duas pessoas, e quando respondem: «Colhemos nós», enrolam sem perda de um segundo a toalha e fogem: etc.63 Nessa noite, por isso, é perigoso passar perto destes locais (Maia).
52A virtude das plantas na noite de S. João manifesta-se também sob outras formas além daquelas que apontámos, e a sua consagração toma mesmo por vezes o aspecto de verdadeiras oferendas vegetais. Assim, em certas áreas do Minho e das Beiras, espetam-se nos campos, nessa data, codeços, ou hastes enramalhadas, geralmente de castanheiro, seja para afugentar as bruxas, para livrar o milho da «bicha», ou para que esta planta cresça tanto como tais ramos (Gondifelos)64.
53Por outro lado, na Póvoa da Atalaia, encontramos o costume das «cabeleiras». ou sejam, os vasos de cortiça onde se semeia trigo, que se rega profusamente. e que se colocam dentro de casa, geralmente debaixo da cama: a pequena sementeira desenvolve-se desse modo extraordinariamente depressa, e as plantas crescem desmedidamente, muito brancas e tenras. Estas «cabeleiras», que se assemelham estreitamente aos «Jardins de Adónis» de que Frazer fala acerca das celebrações do S. João na Sicília, e de que mais adiante nos ocuparemos, constituem o objecto de oferendas que as pessoas, naquela localidade, depõem no adro da igreja, ao mesmo tempo que os vasos e festeiros de cravos e manjericos que roubaram das janelas das raparigas, nas «travessuras» típicas desta noite.
54Presságios e prognósticos florais semelhantes a estes conhecem-se em outros países europeus; em muitas partes, as raparigas colocam ramos de certas plantas sob o travesseiro, a ver se sonham com um rapaz, que será o seu noivo. E por outro lado, na Livónia, Escócia e Estónia guardavam ervas colhidas à mão, sem foice, na véspera de S. João, para dar ao gado em caso de doença, tal era a sua força benfazeja.
« Sortes », divinações, práticas mágicas, crenças e superstições autónomas ou relacionadas com o fogo e a água
55Noite de sortilégios, presságios e augúrios, são inúmeras as práticas divinatórias e mágicas, «sortes» e superstições que nela – e só nela– se praticam, manifestam e têm eficácia, testemunhando profusamente o sentido popular criador de símbolos e mitos. Vimos já algumas dessas costumeiras que aparecem relacionadas com as plantas e as ervas, e que procuramos agrupar em certas categorias conforme o tipo de magia que a elas preside; e dissemos que por vezes é difícil saber se a virtude que aí se exerce reside no elemento vegetal ou no orvalho a que aquele deve ficar obrigatoriamente exposto na noite privilegiada. Vamos agora ver outras práticas divinatórias e congéneres que aparecem associadas e em relação com as virtudes do fogo, da água e das plantas, e outras avulsas, que agruparemos do mesmo modo em certas categorias, segundo o factor que indicamos.
I) Divinações, « sortes » e crenças relacionadas com o fogo
56«Sorte» dos papelinhos – Esta «sorte» consiste fundamentalmente em se escreverem em cada um de três pedaços de papel o nome de um entre três rapazes preferidos; as mais das vezes, esses papelinhos colocam-se sob o travesseiro, à meia-noite do S. João, e na manhã seguinte tira-se ao acaso um deles, que indica o nome do pretenso marido; mas em vários casos é necessário previamente saltar com eles na mão, um número certo de vezes, a fogueira festiva dessa noite; no Algarve salta-se assim três vezes em cruz, ou sete vezes, geralmente de um lado para o outro, de cada vez; um – ou dois – dos papéis atira-se para o fogo; o outro fica atrás da porta, e o que resta é que indica o nome do noivo. Como vemos, este tipo de magia aproxima a «sorte» dos papelinhos da das favas que atrás descrevemos; como aquela, e de acordo com o princípio geral que apontamos, esta aparece em vista de amores, e respeita sobretudo às mulheres. A «sorte» dos papelinhos, em muitos casos, é porém independente da fogueira, mostrando virtude autónoma fundada apenas no sentido do acaso na escolha, ou aparecendo associada à água, atirando-se os papelinhos a um copo, uma bacia ou um prato com água, que se deixa ao relento, e diante da qual, por vezes, se faz o sinal-da-cruz e se reza o Credo; ou ainda às plantas, colocando-se os papelinhos entre a verdura do quintal: o que de manhã estiver mais aberto é o que indica o nome do noivo (Santo Tirso). Por vezes o número de papelinhos é arbitrário; no Porto deve ser ímpar; mas a regra geral é serem três. Noutros casos há papelinhos em branco, que condenam ao celibato; etc. As formas de desencadear o presságio são também muito variáveis; por vezes um dos papéis é atirado à rua, ou para debaixo da cama, enquanto que o outro se põe atrás da porta; o que contém o nome revelado é normalmente o que se colocou sob o travesseiro; mas às vezes esse é o que ficou na mão, em último lugar. Em casos mais raros, a prática faz-se com um papelinho único, que para pressagiar favoravelmente deve arder totalmenté enquanto dão as badaladas da meia-noite do S. João. Em Viana do Castelo, os papelinhos podem ser deitados num copo ao meio-dia, ficando uma hora expostos ao sol. Noutros lugares, por exemplo, na Figueira da Foz, os próprios papelinhos são acasalados dois a dois, indicando futuros matrimónios. Os papelinhos, por vezes, em vez de nomes, prognosticam apenas o estado genérico de casadas, solteiras ou viúvas, ou de felicidade, desgraça, amor, ou ainda respondem a perguntas que se façam acerca do namorado, etc.
57«Sorte» da moeda – A « sorte » da moeda consiste em se atirar à fogueira do S. João uma moeda, que se vai buscar no dia seguinte, e se dá ao primeiro pobre que aparecer, que terá o nome do futuro noivo. Por vezes, deve-se previamente saltar a fogueira, em certos casos em cruz, quatro vezes; outras, a moeda deve ter sido oferecida à rapariga. Mas, tal como acontece com os «papelinhos», também em alguns casos a moeda, em vez de atirada ou passada pela fogueira, é deitada na água ou posta ao relento da manhã de S. João, e dada depois ao primeiro pobre – ou a um ceguinho – que revela o nome do futuro marido, destinado por S. João. Se esse pobre é uma mulher, a rapariga não casa. Aparecem, pois, nestas categorias de divinações, elementos típicos, que encontramos noutras, como seja a ideia de que, cumprido um determinado ritual, o primeiro nome que se ouve ou se revela contém pleno valor de presságio, tal como sucede com o arremesso de flores ou o «bochecho» ou «bacia» de água.
II) Divinações, « sortes » e crenças relacionadas com a água
58A principal prática deste tipo é a que agruparemos na categoria subordinada a designação de «sorte» do ovo por ser a mais divulgada e conhecida por todo o País.
59«Sorte» do ovo – A «sorte» do ovo consiste em se partir um ovo, à meia-noite do S. João, dentro de um copo de água, que se deixa ao relento; na manhã seguinte, antes de nascer o Sol, observam-se as formas que as claras tomaram, e interpretam-se essas formas um pouco como procediam os oráculos que liam os sinais proféticos, em vista à profissão do futuro marido65, ao destino próprio ou da pessoa amada, etc. Por vezes, ao deitar o ovo, deve dizer-se em forma de ensalmo:
S. João, de Deus amado
S. João, de Deus querido
Deitai-me a minha sorte
(ou Dai-me a minha boa sorte)
Neste copinho de vidro (Santo Tirso).
ou:
Dizei-me nesta noite
Quem vai ser o meu marido.
60Em certos lugares – e de acordo com o Livro de S. Cipriano – o ovo deve ter sido posto por uma galinha preta66. às vezes no próprio dia. No Alentejo. antes de se deitar o ovo. passa-se o copo pela fogueira; nos Açores, cobrem o copo com um guardanapo sobre o qual pousam dois ramos de alecrim em cruz; e em certos lugares, rezam o Credo com as mãos sobre ele. Finalmente, em diferentes regiões, o ovo é deitado no copo ao meio-dia67 Dentro desta mesma categoria de práticas divinatórias, utilizam-se em vários casos outros ingredientes. como a cera, o chumbo, o estanho, a farinha de milho (ilha Terceira), a cinza, etc., que deitados num copo, numa terrina ou outro recipiente, com água, formam desenhos que também se interpretam como prognósticos, mormente em relação ao futuro noivo, ao seu ofício (Figueira da Foz), etc. E na mesma ordem de ideias pode-se ainda considerar a leitura das folhas do chá. que se ferve à meia-noite do S. João, com um ensalmo. e se deixa ao relento.
61«Sorte» do bochecho – Semelhante às práticas divinatórias que consistem no arremesso de flores, de que atrás faiamos, e que se baseiam na virtude de certas plantas nesta noite, há que considerar a «sorte» do bochecho de água: à meia-noite da véspera de S. João, a rapariga lança um bochecho de água à rua. e o primeiro nome de homem que ouvir é o do futuro marido68. Por vezes, antes de encher a boca de água, a rapariga recita um ensalmo apropriado: outras vezes, a espera é limitada a cinco minutos: outras ainda, não é necessário ouvir o nome, bastando conhecer-se o primeiro homem que venha a passar depois do lançamento do bochecho à rua. No Porto. Amarante, etc., a rapariga vai com o bochecho às vozes, isto é, sai de casa à hora mágica, acompanhada de outra rapariga, para não ter que falar, e o primeiro nome de homem que ouvir é o do futuro marido, deitando a água fora nesse momento. Em alguns lugares, a rapariga com o bochecho passa sete portas, etc. Por vezes, em vez do bochecho, é a água de uma bacia, passada por uma fogueira ao dar a meia-noite da véspera do S. João, e que se atira à rua entre o meio-dia e a uma hora do dia seguinte, que prognostica o nome do futuro esposo, que será o do primeiro homem que primeiro a atravessar. No Ladoeiro (Beira Baixa), esta «sorte» é válida apenas para a rapariga que nunca teve namorado. De modo semelhante, a «sorte» dos papelinhos, que normalmente se associa às fogueiras, aparece, como vimos, em inúmeros casos, relacionada igualmente com a água.
62«Sorte» do copo de água – Enche-se um copo de água e cobre-se com papel de embrulho pardo, dobrado em quatro. Inverte-se o copo sobre a palma da mão: se a água fizer bolhas, ser-se-á feliz nos amores: se não, ser-se-á infeliz.
III) Divinações, « sortes » e crenças avulsas e autónomas
63«Sorte» do calçado – As raparigas, à meia-noite do S. João, atiram um chinelo desde o cimo das escadas: o número de degraus, desde a base das escadas até ao degrau em que o chinelo ficou, indica o número de anos que faltam para elas casarem. Por vezes atiram o chinelo para trás das costas com a ponta do pé. outras, apenas o chinelo esquerdo possui virtude: outras ainda atiram-no de baixo para cima: etc.
64Arremesso de pedras – É sabido que o arremesso de pedras tem um sentido geral de rito de fecundidade, aparecendo em determinadas romarias e festas a santos casamenteiros69. Em Vila do Conde, ele tem lugar na madrugada do S. João, em relação ao nicho do santo que existe na sua Fonte.
65«Sortes» do primeiro passante, ou do primeiro nome – No Barroso, nesta noite, as raparigas batem às portas de nove casas diferentes, mas sem falar com ninguém: no dia seguinte, antes do nascer do Sol. põem-se à janela, e o primeiro rapaz que vier será o futuro marido. Por vezes o primeiro nome que ouvirem na manhã de S. João, sem qualquer outra prática, é o do noivo que há-de vir. tal é a força de divinação amorosa neste dia.
66«Sorte» do castigo da imagem do santo – É conhecido o costume de maltratarem as imagens dos santos – pô-las à chuva, apeá-las dos oratórios ou até dos altares, voltá-los para a parede, etc. – para os obrigarem a atenderem os pedidos que lhes fazem. Em Chaves, nesta ordem de ideias, põe-se ao meio-dia do S. João uma imagem deste santo dentro de um poço, pendurado por um fio do qual uma das extremidades fica de fora, para que o santo arranje noivo à rapariga. Logo que arranje este, retira-se a imagem da água.
67«Sorte» das agulhas – Deitam-se várias agulhas num prato com água, à meia-noite do S. João, de modo que elas flutuem, representando outros tantos pretendentes; e mais outra, que corresponde à rapariga. No dia seguinte, a agulha que estiver mais próxima da que representa a rapariga, figura o futuro marido. Por vezes deitam-se só duas agulhas e a sua junção significa casamento próximo. Existe um outro género de prognóstico determinado por esses objectos: várias raparigas tentam enfiar, às escuras, uma agulha: aquela que primeiro o conseguir, é a que casará mais cedo.
68«Sorte» com objectos simbólicos – Esta «sorte», que tem em vista desvendar o futuro, referido, segundo a regra, ao casamento, à riqueza ou à profissão do noivo preferido, consiste fundamentalmente em uma rapariga, de olhos vendados ou às escuras, escolher um de vários objectos a que se atribuem significações simbólicas, as quais exprimem o futuro: uma espingarda significará um noivo militar: uma vassoura, um varredor: um livro, um doutor, etc. Os objectos mais usados e que aparecem em grande número de costumes são: as chaves, significando casa e riqueza: um rosário, significando que a rapariga vai para freira; terra, significando morte: um livro, significando casamento70. Em casos mais raros, usa-se também o ouro, a prata e o cobre, significando riqueza, abastança e pobreza: etc. Estes objectos geralmente são colocados em cima de uma mesa; mas por vezes põem-se em pratos, que em alguns dos casos devem ficar ao relento, e que depois se cobrem com um pano. Em certos lugares, eles escondem-se debaixo do travesseiro, e segue-se o processo das «sortes» das favas e dos papelinhos.
69Mais raramente, nestas «sortes» intervêm várias raparigas, e os diferentes objectos significativos predizem o futuro de todas elas, segundo o que cada uma delas encontrou.
70«Sorte» da peneira – A peneira, como objecto revelador de augúrios e previsões, é conhecida desde a antiguidade, e vem mencionada no Livro de S. Cipriano. A sua utilização no S. João, portanto, representa apenas uma especialização do seu sentido geral, que beneficia dos poderes sortílegos dessa noite. A «sorte» consiste em se espetar, a meio da peneira, uma tesoura aberta, que duas pessoas, uma de cada lado, seguram, de modo que a peneira fique atravessada por um eixo que a deixe livre. A rapariga interessada, então, junto delas, formula, em voz alta ou em voz baixa, a pergunta que pretende; se a peneira se move, a resposta é afirmativa; se fica imóvel, é negativa. A pergunta é geralmente acompanhada de palavras sacramentais, em forma de oração, e por vezes a peneira deve levar, no aro, certos objectos de valor ou significado mágico.
71«Sorte» das estrelas – Na véspera de S. João, escolhem-se vários nomes de rapazes, e. ao dar a meia-noite, a cada badalada, olha-se uma estrela, e diz-se um nome; o que corresponder à última badalada da meia-noite é o do futuro marido.
72«Sorte» do galo – Sentam-se as pessoas em volta da mesa, ou no chão, formando circunferência. Em frente de cada pessoa põe-se um montinho de trigo; pega-se então num galo, passa-se pela fogueira, e põe-se no meio da roda das pessoas. A pessoa correspondente ao monte de trigo que o galo começar a comer é a que casa em primeiro lugar.
73«Sorte» do vestido de noiva – Na ilha da Madeira, quando sucede haver casamento próximo do S. João, costumam escrever nomes de raparigas e rapazes solteiros na bainha do vestido da noiva, para que já no «Santo António» algum casamento se aproxime.
74«Sorte» do sonho – A pessoa – que é uma rapariga – deita-se de costas, rezando a qualquer santo da sua devoção, e deixa-se adormecer, sem nunca se voltar e conservando os braços cruzados sobre o peito: o sonho que tiver contém a revelação do futuro, em relação ao casamento.
75Crença na aparição do futuro marido – A rapariga que deseja saber com quem há-de casar, deve na noite de S. João pôr uma mesa numa sala às escuras e aí ficar sem dizer nada e sem ninguém saber. Na mesa haverá talheres para duas pessoas: ao dar a meia-noite a rapariga começa a comer, e nesse momento aparece também no lugar vazio, a comer, a figura do homem com quem ela há-de casar. Num outro exemplo, a rapariga, na noite de S. João, deixa a vela acesa: quando acordar do primeiro sono, pica-se num dedo e verte o sangue na luz da vela: a luz apaga-se e vê-se no espelho a figura do homem com quem ela há-de casar71.
IV) Práticas mágicas qualificadas específicas da noite de S. João
76Desta categoria conhecemos apenas a prática que tem em vista assegurar a produtividade das terras próprias à custa da fertilidade das terras alheias vizinhas, relatada por Leite de Vasconcelos: «Na noite de S. João, quem quiser que as forças produtoras do campo vizinho venham para o dele, monta num cambão. atravessa assim o campo vizinho em direcção ao próprio campo, e diz:
Aqui vou neste cambão
Na noite de S. João
P’ra trazer atrás de mim
Pipas de vinho e carros de pão.
77ou monta-se num cambão de sete chavelhas (sete buracos), fustiga-se asperamente ao atravessar o campo do vizinho e diz-se:
Vai boi. vai vaca.
Esta terra é fraca
O renovo que ela der
Cairá na minha arca.
78Dito isto, o homem do cambão pega num malho e vai dar três pancadas nas medas do centeio que o vizinho tem na eira. O centeio das medas ‘cai-lhe na arca’ .»72
Cascatas
79Do mesmo modo que a festividade em honra do Santo Precursor se dispõe no calendário anual em perfeita simetria com a do Natal, cada qual em seu solstício oposto, também aos presépios natalícios correspondem, no S. João, as «cascatas», de uso corrente no Norte do País. As «cascatas» são pequenos recintos ou recantos, geralmente cobertos por ramagens formando grutas, onde se vê. no seu centro, a imagem popular do santo, rodeada, ao sabor da fantasia e imaginação daquele que as ergue, e de modo mais ou menos profuso, por bonecos. casas, taças com água figurando lagos ou ribeiros, por vezes repuxos ou outras peças elaboradas, actualmente iluminações engenhosas, e se traçam caminhos de areia em miniatura, entre musgos e verduras: desse coberto vegetal penduram-se geralmente balões venezianos ou luminárias, para a iluminação noturna da cascata. As «cascatas» assemelham-se pois aos presépios, mas. além de possuírem um carácter puramente laico – elas apenas são presididas por uma imagem do santo – o seu cenário é inteiramente livre e sem qualquer unidade, resultando as cenas da natureza dos próprios bonecos e do seu arranjo, enquanto que os presépios, visando a representação de um acontecimento definido – o nascimento de Jesus Cristo – obedecem a uma encenação fixa nas suas linhas essenciais e susceptível mesmo de versões eruditas e requintadas.
80Contudo, nas cascatas, a uniformidade dos próprios bonecos, provenientes de centros oleiros determinados, e que repetem moldes tradicionais praticamente imutáveis, confere-lhes um marcado parentesco, fundado na identidade dos motivos: e além disso, alguns bonecos e cenas ilustram e traduzem dizeres, formas, lendas – ver mesmo temas do cancioneiro – comuns, e que por isso se encontram em todas: o S. João, por exemplo, é representado no meio das moças junto à sua fonte de prata, etc. E assim, cada um diz o que quer, mas acabam por dizer todos o mesmo.
81Mas, na verdade, a tonalidade marcante das «cascatas» nortenhas é o seu carácter eminentemente popular, fundado na forma, feitura e natureza dos bonecos. e das personagens que estes figuram: o moleiro com o burrico, a banda de música, o pastor com as ovelhas, a mulher das castanhas, a matança do porco, o marinheiro, a lavadeira, a vendedeira de frutas, o padeiro, a beata, o frade, as figuras escatológicas e cómicas, etc.
82As cascatas são geralmente pequenas, feitas por crianças ou grupos de crianças – e muitas vezes por adultos – de uma casa ou de uma rua ou local, sendo nos casos populares de regra o peditório prévio destinado à compra de bonecos, dos balões e do fogo que junto delas se queima. Contudo, no Porto, é costume certas agremiações – de bombeiros, dos pilotos da barra, etc. – organizarem cascatas monumentais, com vários metros de frente, profusamente iluminadas. dispostas em declive à frente de um cenário de feição popular representando a cidade, onde se misturam moinhos e aviões de jacto, comboios e ventoinhas. procissões e desafios de futebol, pastores e lavadeiras, automóveis e ovelhas, engenhosamente movimentados em todos os elementos possíveis, com entradas pagas com dinheiro que se destina normalmente ao pagamento das despesas da sua elaboração, e a fins de beneficência. Ao seu lado, geralmente, encontra-se um terreiro ornamentado, onde se dança e se celebra, por outras formas, a festa73.
Travessuras
83Em muitas terras portuguesas, e principalmente no Minho, existe o costume de, na véspera de S. João – e por vezes outras datas, como sejam as vésperas de S. Pedro e, na Lomba de Vinhais, a de Todos os Santos– depois das fogueiras e dos banhos ou abluções nas fontes, a rapaziada «roubar» certos objectos – carros de bois, arados, grades, sarilhos de tirar água dos poços, com o balde e a corda, escadas, cancelas e outras alfaias e apeiros, vasos de flores das janelas, cravos ou manjericos, canhotos de lenha, etc., e também animais, burros ou cabras –. que se levam para qualquer lugar especial da povoação, normalmente o adro da igreja, onde no dia seguinte os donos respectivos os deverão procurar e trazer de novo para suas casas; ou que se atravessam nos caminhos e quelhas, designadamente aquelas que conduzem à igreja e por onde devem de manhã passar as raparigas que vão à missa, que são por isso obrigadas a desatravancá-los. Por vezes os vasos de flores «roubados» são trocados de janelas ou colocados junto das fontes; em certos casos minhotos, levam-nos para qualquer capela da igreja, onde as raparigas, no fim da missa, os tém de ir buscar; etc.
84Nestas «travessuras», a que dão também os nomes de «maroteiras», «roubalheiras» ou « atrancadas » (Guimarães), do S. João, é manifesto o carácter irreverente da costumeira, normalmente dirigido, por parte dos rapazes novos, contra casas onde há raparigas solteiras, acentuando a oposição entre os sexos tão corrente nas diversas celebrações cíclicas festivas, ou então contra pessoas desfrutáveis, por aspecto ou temperamento, e que possivelmente constituem sobrevivências das liberdades licenciosas de fundo mágico-ritual, próprias de certas épocas e cerimónias primitivas, hoje permitidas à juventude nas festividades que lhes correspondem. De facto, abundam os exemplos de casos humorísticos: arados que se levam para o alto da torre sineira, obrigando o dono a ir buscá-los a pontos difíceis, objectos que se penduram das árvores, cordas de sino que se atam ao rabo de um cão, de um burro ou de uma cabra, que o fazem badalar toda a noite, acordando a vizinhança; em Montedor, um lavrador, que se deitara no seu carro para que o não «roubassem» por «maroteira», adormece profundamente, e a rapaziada rouba-lho com ele em cima, e deixa-o por troça a dormir no adro da igreja; etc. E é este carácter licencioso e satírico que está na base de inúmeros conflitos que a prática suscita por parte das pessoas visadas.
85As «travessuras» deste tipo são também conhecidas em França, ocorrendo aí em termos semelhantes aos daqui, em diversos lugares e datas, designadamente por exemplo no departamento do Mame, em Terça-Feira Gorda, com o nome, próprio da região alpina, de « Farse du Barri »; e é o tambor que no dia seguinte avisa os donos de que chegou a hora de irem buscar o que lhes pertence – carros, bancos, cancelas, alfaias, etc., como entre nós– e que os rapazes amontoaram na praça comunal durante a noite, enquanto ardiam as fogueiras do Carnaval; e este facto, ao mesmo tempo que a antiguidade da costumeira, parece apontar a sua natureza especial74.
Manjares cerimoniais
86Esta celebração, tão rica de aspectos, é sob o ponto de vista alimentar, pelo contrário, uma quadra pobre e pouco caracterizada; e de um modo geral, mais do que um manjar específico, as práticas alimentares do dia parecem apontar um preceito de abundância e euforia com que se pretende celebrar a festa.
87No Porto, e em toda a região de que a metrópole nortenha representa o centro geográfico-cultural, desde Vilarinho (Vila do Conde) a Lousada (Penafiel) e Entre-os-Rios, estendendo-se para terras de Arouca (S. Miguel de Urrô, por exemplo), come-se nesse dia. aliás com obrigatoriedade atenuada, carneiro ou anho assado, em geral com arroz de forno ou com batatas. E vêem-se nesta altura rebanhos de ovinos deambulando pela cidade, para abastecimento do público. O mesmo costume encontra-se em inúmeras partes da província minhota. por exemplo em Fafe; mas em certos casos em vez do carneiro usa-se o cabrito. Na Póvoa de Varzim, no dia 23, comem-se caldeiradas de peixe, para as quais as lanchas fazem «enviadas» ao profundo, à pesca das melhores qualidades; as «mestras», nessa noite, como dissemos, distribuem à discrição o agasalho, de vinho e rosca de pão, àqueles que bailam no recinto fronteiro à sua casa, onde se ergue o pinheiro festivo local75.
88Onde porém os aspectos atrás apontados são mais sensíveis, é em Trás-os-Montes. onde a celebração se caracteriza verdadeiramente por um excesso alimentar, com refeições de viandas de toda a espécie, na glorificação festiva do prazer da fartura. Na região de Chaves, em Mairos, o Abade de Baçal viu, nos seus tempos, assarem-se na rua, em frente às casas, cabritos, cordeiros e leitões que se destinavam ao jantar festivo dos respectivos moradores. Mas é em Rio de Onor, no relato de Jorge Dias, que essas características se apresentam com maior evidência e intensidade: o S. João é ali a festa máxima e a actividade lúdica maior da terra: já na véspera, «os homens junto às portas e nos largos, matam e esfolam carneiros, cordeiros, cabritos, leitões, e mesmo vitelas, quando alguns mais abastados se reúnem e repartem a carne entre si»; reina por toda a parte uma alegria esfuziante nessa gente, «que só conhece a fartura em poucos dias do ano». As refeições sucedem-se ininterruptamente: um convida para comer o úbere da vitela, petisco apreciado, o outro oferece o sangue do carneiro preparado de uma maneira especial – e o vinho corre em torrentes. As mulheres, pela noite fora, fazem a comida para o dia seguinte, que será todo preenchido com os festejos. Logo de manhã « leitões e carneiros, já assados ou para assar, passam pelas ruas enfiados em grandes espetos». Faz-se uma pescaria no poço grande do rio que atravessa a povoação, que todo o ano está coutado pelo conselho para neste dia ter peixe suficiente: trutas, escalos, enguias, etc. Depois da procissão, tem lugar o jantar, que «é a refeição mais lauta do ano», e «um autêntico festim pantagruélico». «Ninguém olha a despesas, e as portas estão abertas para todo o conhecido que passe, e conhecido é afinal praticamente toda a gente. Os pratos sucedem-se em quantidades desmedidas: carne estufada, carne assada, carne de porco, cabrito, vitela, leitão no espeto, batatas, arroz, etc., e por fim. arroz-doce. O vinho é a rodos. Em quase todas as casas se come assim, com excepção da vitela e do peixe. Prolongando a euforia que decorre deste repasto monumental, segue-se-lhe o baile, que dura a noite inteira, e que arrasta no desvario da dança homens e mulheres, velhos e novos, crianças e namorados, ricos e pobres, mendigos e ciganos, e que só acaba de manhã, quando as pessoas caem de esgotamento. O dia seguinte é ainda de festa: as sobras da véspera dão ainda para este dia. Há fartura de pão, de carne e de vinho, e as belas alfaces da faceira dão saladas magníficas... »76
89Na Beira Baixa, em Monforte da Beira e no Rosmaninhal, encontramos também, nos festejos de S. João, o mesmo preceito alimentar de abundância, que se traduz em lautas refeições. Em Monforte, nesse dia, após a primeira volta a cavalo, a que se segue a missa e antes da nova volta, à Deveza, o «alferes» da festa oferece um banquete aos padrinhos, ao alferes velho, e a muitos convidados: para essa farta refeição deu a povoação galos, galinhas, açúcar, azeite, etc.; e no Rosmaninhal, depois do jantar oferecido pelo alferes aos seus convidados, toda a gente da rua pode entrar e comer – e não há memória de jamais se ter esgotado a comida77. Este preceito de abundância no S. João já vem de longe, e por vezes, como em Monforte, é associado às «cavalhadas». Já no século XVI, o concelho da vila de Óbidos dava aos que cavalgavam, nos jogos de canas do S. João, como prémio das suas fadigas, um almoço pantagruélico, que lhe custava quatro mil reais por ano78.
90Em certos lugares do Alentejo, como por exemplo Bencatel (Vila Viçosa), fazem-se para o dia de S. João uns bolos de farinha, « fintos », especiais, a que se dá o nome de «Capelas do S. João». E falámos já nos «mastros» de festa algarvios, com os seus «arcos» dentro dos quais se coloca um boneco em massa de farinha triga cozida no forno, figurando o santo.
91Perto de Castelo Branco, na Fartancha, para as festas de Junho, em honra mormente de S. Pedro, fazem-se papas de milho miúdo, descascado em mós manuais, que se conservam e se usam apenas nessa ocasião e para esse fim: e este caso interessa sobremaneira, como mais um exemplo de associação, que em certos casos se verifica, de pratos cerimoniais e produtos de culturas actualmente desaparecidas da região, e até do seu preparo segundo técnicas e utensilagem também normalmente ultrapassadas. Referimo-nos já noutro lugar, às filhoses do Entrudo, que no Barroso se fazem também com milho miúdo, que é o produto primitivo da região, hoje destronado pelo milho, e cultivado apenas em vista àquele manjar. O facto parece indicar que a ideia de ancestral idade beneficia do prestígio do sentimento religioso que presidia às manducações sacramentais de outrora. das quais as espécies e manjares cerimoniais constituem resíduos; tendo havido mudanças na fauna e flora alimentares duma certa região, é. pois, natural que as espécies destinadas a cerimónias rituais, ou àquelas que as vieram substituir. tenham por vezes continuado a ser as mesmas que constituíam as culturas ancestrais, que participavam da ideia de divindade. E o princípio pode considerar-se extensivo às próprias técnicas e utensilagens arcaicas – tal como sucedia com os Egípcios, que. após a adopção dos metais, continuaram, contudo. a utilizar ritualmente, para os embalsamentos, as facas de sílex.
Cavalgadas, « cavalhadas », jogos de canas e colheitas de lampas
92Um outro aspecto das celebrações do S. João em Portugal são as cavalgadas que se realizam em honra do santo, que hoje têm lugar em alguns raros lugares, mas que outrora estavam generalizadas em muitas áreas do País. O costume, que compreendia geralmente escaramuças festivas, em ruidosos jogos de canas, simulados torneios, documenta-se já em diplomas do século XV. um dos quais, referido à vila de Óbidos, o menciona como sendo «huúa postura antigua. que se fez em louvor de São João Bautista ».
93Eis como aí se descreve a cavalgada, em questão: «No dia de S. João, todos, antes de ser manhã, cavalgam e se vão à porta do juiz, e com a bandeira da vila andam por ela e derredor com toda a festa e escaramuça e canas com muito alvoroço e vão ouvir missa a casa de S. João Baptista. E faz-se sempre por este dia um almoço, que se dá aos que cavalgam, à custa do concelho...» É curioso notar que este mesmo diploma aponta uma razão económica que aprova a costumeira; além do louvor ao santo, a cavalgada era também para «aver azoo de aver na terra quem crye cavalos e os tenhão...»79. E falámos já de um outro diploma da mesma época, referido a Santiago do Cacém, onde se descreve a cavalgada de S. João nessa localidade – o peticionário «cavalgava em hũm rocim e fora com certos homeês folgar e colher lampaas... chegara ao Ressio do dito logo, honde se os cavallos corem e jogam as canas» e «ele e outros muitos começarom de correr...» – que. como notamos, se vê assim associada à apanha dos figos lampos.
94Em relação a Braga. Fr. Bernardo de Brito relata a corrida do porco preto, que também tinha lugar na véspera do S. João, e parece encerrar o mesmo sentido das «cavalhadas» das demais localidades do País. Aí. nessa data, «se põe a cavalo a gente principal da cidade: e. passando o rio d’Este. junto ao qual foi o martírio dos Santos e se faziam os jogos de Ceres e Silvano, fingem que emprazam um porco: – e gastada a tarde em festa, vão no dia do santo pela manhã fazer nova montaria com um porco negro que lá têm aparelhado: – e soltando-o lhe seguem o alcance ao som de cometas e vozes, que representam uma verdadeira montaria, e o vêm seguindo contra a cidade todo o tropel de gente: – e se ao passar do rio se lança ao vau. e passa pela água, o dão aos moradores das azenhas que há na mesma ribeira: – e tomando a ponte, fica da gente da cidade».
95Por seu turno, em Chaves, havia a Congregação da nobre cavalaria de S. João Baptista, composta de cavaleiros e pessoas de qualidade, as quais, depois de ouvirem uma missa no dia do Precursor, faziam dentro da vila jogos de canas, corridas e escaramuças: e deste costume restam hoje vestígios no cancioneiro popular e no jogo do pilha-três.
96Em Eivas, o S. João era. do mesmo modo, celebrado com cavalgadas, carreiras e escaramuças, em que tomavam parte as pessoas nobres da cidade, e que. a partir do século xvii, levavam um pendão que fora arrebatado aos castelhanos de Badajoz numa arremetida80.
97No século xix, o costume de Óbidos aparece-nos já modificado, em relação ao relato quatrocentista: «Na véspera do dia de S. João, os camaristas vinham à praça da vila, acompanhados do seu presidente, vestidos todos de capa e volta, com chapéus enfeitados de plumas brancas e montadas em cavalos bem ajaezados. O estandarte tremulava na frente, desfraldado aos ares. Achando já ali reunidos e montados da mesma sorte em cavalos enfeitados, segundo o gosto de cada um. todos os cavaleiros da vila e concelho, começava a cavalgada, indo o alcaide à frente, seguindo-se os cavaleiros em duas alas e depois o corpo municipal com todos os empregados públicos. Chegados ao convento (de S. Miguel de Caeiros. de religiosos arrábidos, aonde a câmara da vila, em comprovação da sua regalia de padroeira, ia todos os anos colocar o estandarte municipal), colocado o estandarte na igreja, feita uma curta oração e cumprimentados os religiosos. regressavam à vila. Entrando nela, davam três voltas pelas ruas principais. uns correndo a toda a brida, outros caracolando, outros conservando o passo aconselhado pela sua idade. No dia de S. João, pela manhã, nova cavalgata ao convento, na mesma ordem da véspera. Ao chegar lá, depois de entrarem na igreja e de tornarem a orar, passavam a divertir-se pelas sombras da mata, a colherem flores no jardim e a desalterarem-se com a preciosa água da mina, sempre acompanhados pelos religiosos... à hora competente, tomavam um refresco preparado por estes e ajudado com uma propina da câmara. À tarde, tornando a ir à igreja, orando, tomando o estandarte que ali ficara na véspera e despedindo-se dos religiosos, marchavam para a vila, trazendo capelas de flores enfiadas nos braços, nas mãos cocurutos de canas verdes e ramos dos freixos seculares que ali existiam... e davam, transpondo a porta mourisca, as mesmas voltas da véspera. A cavalgada terminava, despedindo os cavaleiros na praça do corpo municipal, e indo cada um para sua casa (que achava cheia de gente que não cabia nas janelas) a entregar as capelas às pessoas da sua maior afeição, contar anedotas da festa, e a celebrar a véspera e o dia de S. João». Por esta descrição, e sobretudo com a sua comparação com a do século XV que transcrevemos. referida à mesma localidade, vê-se que a cavalgada do S. João em Óbidos fora absorvida por uma cerimónia municipal de grande luzimento, que desvirtuou o sentido da primitiva usança, de feição menos solene, e que compreendia os jogos de canas e as escaramuças do estilo.
98Mas já também no século XV. na Amieira, a festa do S. João era organizada à maneira da do Espírito Santo, criando-se. como naquela, « imperadores », « juízes» e «oficiais», que. durante a festa, tinham atribuições autoritárias, podendo constranger e mandar prender e recolher à cadeia os mancebos solteiros da vila e seu termo que desobedecessem aos seus mandatos, e não quisessem aceitar os ofícios e encargos da festa81. E este carácter mais solene parece transparecer nas cavalgadas do S. João que. ainda em nossoas dias, se faziam na Figueira da Foz e em Monforte da Beira e no Rosmaninhal. Na Figueira da Foz. o cortejo, que era um dos números mais certos e apreciados dos festejos joaninos, compreendia mascarados – e havia-os muito típicos – que pegavam ao mastro ornamentado a cordas de buxo e louro, com rosas, cravos, sardinheiras. etc., e depois de o passearem em charola pela cidade, o erguiam, entre foguetório, palmas e brincadeiras. no adro da igreja, apinhado de gente reinadia. A esta diversão, seguiam-se as «cavalhadas», que se organizavam nesse adro. Á frente seguia o padrinho, de fraque e chapéu alto, a cavalo, a caracolar, e levando a bandeira grande com a imagem do Baptista. ladeado pelas bandeiras pequenas, guiões e flâmulas ; e atrás dele o cortejo: máscaras, carros e carroças encanastradas de flores e verduras. gaiteiros, etc., entre o foguetório, Davam três voltas a cada uma das praças – a Velha e a Nova – e. percorrido o complicado itinerário, retomavam à igreja, a deporem o seu mandato nas mãos do Arcipreste.
99Na zona raiana da Idanha. em Monforte da Beira e no Rosmaninhal. o S. João celebrava-se com cavalgadas do mesmo género: todos os que na povoação possuíam montada, concentravam-se, ao cair da noite do dia 23, à porta do «alferes» ou festeiro: este, e os seus dois padrinhos, por ele escolhidos, juntavam-se-lhes. montados nos melhores cavalos da freguesia. Os arreios estavam ornamentados com flores e fitas, e os selins obrigatoriamente cobertos com colchas brancas. Efectuada a concentração, a esposa do alferes entregava ao marido. pela janela ou varanda da sua casa, antes que se iniciasse a marcha, a bandeira de S. João, que ele segurava com ambas as mãos e firmando-a na banda que levava a tiracolo. Os padrinhos empunhavam cada qual uma vela acesa metida em ramos de flores e fitas ornamentadas à compita. Como tanto o alferes como os padrinhos levavam as mãos ocupadas e não podiam segurar as rédeas das montadas, seguiam, na frente destas, homens que as conduziam. Assim preparada a volta, os sinos da torre do relógio rompiam, à ordem do alferes, em toque desordenado, ao mesmo tempo que sobre a povoação estrelejavam girândolas de foguetes. Era o sinal para se acenderem as fogueiras de rosmaninho e alecrim que se amontoaram nas ruas, nos cruzamentos e às portas das casas: e a «cavalhada» iniciava a marcha passando sob as chamas olorosas a cantar em coro o S. João, e a dar vivas aos festeiros e à bela sociedade. A volta terminava à porta do alferes, onde a esposa deste recebia, à janela ou à varanda, a bandeira que ali ficava exposta. Ainda a cavalo, o alferes oferecia vinho a todos os presentes e dava três vivas a S. João, mas nem o alferes nem os padrinhos e os demais componentes da volta bebiam todo o vinho dos copos: deixavam sempre uma pinga que despejavam sobre a cabeça das montadas, para que estas não tivessem «aguamento». A «cavalhada» dispersava-se para que os seus componentes ceassem e pudessem assistir ao arraial que se realizava em seguida, e onde nunca faltava a banda de música e o fogo preso, e onde o povo, dando largas à sua alegria, cantava e bailava até de madrugada. Se a música se calava, logo de todos os lados soavam os adufes a acompanhar a moda do S. João, que era cantada por todos os lados na povoação. No dia de S. João, mal o Sol nascia, os músicos percorriam em alvorada as ruas da aldeia ao som de marcha entusiástica, enquanto no ar estoiravam morteiros e foguetes. Às nove horas, realizava-se a primeira das quatro voltas ou «cavalhadas» do dia. Como na véspera, todos os que conseguiam uma montada reuniam-se à porta do alferes. e iniciavam a marcha pelas ruas da povoação, segundo o ritual já mencionado. Pelas janelas das casas, havia pessoas munidas de fitas de seda com a medida da sua altura, prometidas a S. João em hora de doença ou aflição: quando o alferes se aproximava, essas pessoas atavam as fitas na bandeira que ele levava. A volta dirigia-se à casa do alferes do ano anterior – «alferes velho» – que se incorporava com a sua vara ornamentada com fitas e flores, e dali seguia para a missa de festa, na igreja, onde o alferes entrava com a bandeira. ladeado pelos padrinhos e o alferes velho. Em seguida à missa, realizava-se a procissão, e. depois desta, o alferes oferecia lauto banquete aos padrinhos, ao alferes velho, e a muitos convidados. Para a farta refeição, dera a povoação ovos, galos, galinhas, açúcar, azeite, etc., numa demonstração patente da importância que a cerimónia tinha para a colectividade. Pela tarde organizava-se nova volta, que percorria todos os arruamentos e se dirigia para a Deveza, que é o grande baldio local, onde se realizavam as corridas para a disputa de galos que ali estavam guardados em cestos, e que o povo oferecera ao alferes. Posto um galo na meta, os cavaleiros, dois a dois, dado o sinal da partida, corriam o mais que podiam, ganhando o galo aquele que chegava primeiro. As corridas duravam enquanto havia galos, e estes, depois de disputados, eram oferecidos pelos casados às suas esposas, e pelos solteiros às suas noivas ou. se não as tinham, à esposa do alferes. Todos os que corriam pagavam uma taxa que revertia para as despesas da festa. Terminadas as corridas realizava-se uma última volta, que parava em frente da igreja, onde já se encontravam, a cavalo, todos os que pretendiam ficar com S. João (serem «alferes»). Se havia apenas um pretendente. o alferes em exercício entregava-lhe a bandeira ao som de três vivas ao alferes novo e velho: se havia vários, procurava-se pacificamente fazer a melhor escolha, ponderando razões – antiguidade da pretensão, condições materiais ou localização das respectivas casas, etc. –: se não se chegava a acordo, formavam-se os partidos de cada pretendente, e travava-se luta pela posse da bandeira: estavam todos a cavalo, havia quedas e havia movimento. Ficava novo alferes o do partido que conseguisse arrebatar a bandeira. Após esta dura prova, iniciava-se nova volta em que o vencedor já levava a bandeira, ladeado por dois padrinhos, que logo ali escolhera. Era a confirmação ou consagração pública do novo festeiro. Terminada a volta à porta da casa do alferes novo, este distribuía vinho a todos os cavaleiros. E a festa do Santo precursor terminava à noite com um arraial, onde se ouvia a canção do S. João e se dançava.
100No Rosmaninhal. o cerimonial da «cavalhada» assemelha-se estreitamente ao de Monforte. Em frente à casa do alferes erguem-se dois pinheiros com iluminações: terminada a «cavalhada» da véspera do S. João, o alferes e os padrinhos distribuem à assistência, que canta e dança ao som dos adufes e violas, tremoços. broas de mel e vinho: na «cavalhada» do dia seguinte, corre-se a «tirar o galo»: todo aquele que. correndo a cavalo, conseguir enfiar uma vara, que leva na mão. numa argola, ganha um galo82.
101Em Viana do Castelo fazia-se também no dia de S. João uma cavalgada, que ia até à ermida da Abelheira. nos arrabaldes da cidade, e que subsistiu até há cerca de vinte anos a esta parte. A razão deste costume, segundo se depreende de um alvará filipino de 1610. é a comemoração do facto de D. João III ter isentado aquela cidade, por privilégio e foral, do pagamento da dizima das mercadorias. A cerimónia parece ter tido de entrada lugar na capela de S. João Baptista. na serra de Arga, onde estava o velho cenóbio: e foi D. Filipe quem permitiu, por ser penoso à Câmara fazer uma tão longa caminhada, que ela se transferisse para a Abelheira. Em todo o caso, vé-se que em Viana do Castelo, como sem dúvida em tantas outras localidades, havia o tradicional costume da festa das canas pelo S. João. Parece por isso que se trata aqui, mais uma vez. de um exemplo em que uma velha costumeira é absorvida por uma solenidade definida. que mascara o seu sentido originário mais geral.
102Para Rocha Peixoto. Tomás Pires e Sousa Viterbo, estas cavalgadas do S. João, onde transparece um certo carácter belicoso, com os seus jogos de canas e escaramuças, representam vestígios de primitivos combates rituais entre o Verão e o Inverno, semelhantes aos que estão na base de certas costumeiras do Carnaval e de Maio83; e, segundo os mesmos autores, este carácter é especialmente patente no Auto da Mouriscada, que se faz nos Açores nesta data, que parece ter a mesma origem e significado. Esta opinião, que reflecte a influência das teorias mitográficas em voga na época daqueles eruditos, não parece, contudo. de grande valor: nada há nestas celebrações que sugira os combates de Verão e do Inverno, nenhuma indumentária simbólica ou versos ou dizeres alusivos que os exprimam. Por outro lado, pode ser que não se trate de uma assimilação pelos festejos do Espírito Santo, mas uma simples formalização sui generis. que a natureza espectacular das cavalgadas provocasse compreensivelmente84.
Relação entre o S. João e o parentesco cerimonial do compadrio
103Muito generalizada por todo o País, conhecemos a prática, para a cura de crianças «rendidas» ou «quebradas» (herniadas), da sua passagem por uma abertura rasgada, no sentido vertical, num tronco de carvalho, amieiro ou vimeiro, à meia-noite da noitada do S. João, segundo certas regras e acompanhada de ensalmos ou palavras sacramentais. No Minho, vão três Marias a fiar na roca. e três Joões (que às vezes devem ser crianças inocentes), até um vimeiro; um dos homens racha a árvore, e os outros dois passam a criança pela abertura para as Marias dizendo: «Que fazeis vós?», e elas respondem:
«Fiamos linho assedado
Para ligar o vime
Que o menino é quebrado.»
104A operação repete-se três vezes, e seguidamente o vime é atado: se com o tempo soldar, o menino sara, segundo o princípio geral da magia imitativa.
105Em Lisboa. Coimbra. Figueira da Foz. Alijó, Fafe, etc., vão apenas uma Maria e um João. Em Coimbra estes devem ser crianças: em Alijó devem ser «puros»; em Fafe, a «Maria» deve ser virgem: em Lisboa, o vime aberto é atado com a camisa da criança, que se rasga em tiras com essa intenção. Por vezes é a Maria que passa a criança ao João dizendo: «João! Toma lá o menino quebrado, e hás-de-mo dar são! » (Lisboa, Alijó, Fafe, etc.), e acrescenta, a mesma ou o rapaz:
«Em louvor de S. João
Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.»
três vezes (Alijó). ou a fórmula final usual dos ensalmos:
«Pelo poder de Deus e da Virgem Maria
O menino são ficaria.»
(Fafe)
106Outras vezes é o rapaz quem passa em primeiro lugar a criança à rapariga através da fenda:
«Toma lá Maria
– Que me dás João?
– Um corpo quebrado
Pra mo dares são»
(Coimbra)
ou:
«– Maria!
– João!
– Toma lá este menino podre (ou quebrado)
E dá-mo cá são.»
(Figueira da Foz)
107E se. mais tarde, a árvore seca, a criança morre: no caso contrário, cura-se.
108Em Vale de Passos, o próprio ensalmo consigna a crença na prática imitativa:
«Quando este carvalho fechar.
Também o menino há-de sarar.
Em louvor da Virgem Maria.
Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.»
109Noutros lugares, porém, uma prática estreitamente afim desta exige a presença dos padrinhos, pondo assim em relação as celebrações do S. João com o parentesco cerimonial, e evidenciando, por outro lado, a associação desse tipo de parentesco com a magia, documentada por diversas formas. Assim, no Porto, devem ser os padrinhos da criança rendida quem a leva à meia-noite, na véspera de S. João, até junto de um carvalho cerquinho. que racham a meio; o padrinho, passa então a afilhada doente através dessa fenda à madrinha, dizendo-lhe:
«Aqui tens a tua afilhada.
Que nos dizem que está quebrada.»
110Ao que a madrinha responde:
«Eu que a aceito sã e salva.
Como na hora em que foi nada85.
111Em Santo Tirso (Monte Córdova) encontramos a versão mais rica deste costume. Aí. no relato de Augusto César Pires de Lima, na noite de S. João abre-se num carvalho cerquinho uma fenda por onde possa caber uma criança. Deve operar-se com todo o cuidado, evitando que o carvalho abra nos dois extremos da fenda, que se descasque a árvore, ou se lhe dê qualquer esmurradela. Ao dar da meia-noite, colocam-se de um e de outro lado os padrinhos da criança rendida. O padrinho, ao mesmo tempo que passa o menino pela fenda para as mãos da madrinha, diz:
«Aceite Senhora comadre
Este nosso afilhado
Que nasceu são
E é quebrado
Passemo-lo pelo carvalho
E o milagroso S. João
Nos faça este milagre
O carvalho vá soldando
E o menino vá sarando.»
112A madrinha aceita a criança e entrega-a de novo ao padrinho, repetindo a mesma oração. Volta o padrinho a passá-la através da fenda com o mesmo aparato. e a madrinha a seguir despe o doente, vestindo-lhe a roupa melhor. Entretanto os outros assistentes apertam cuidadosamente o carvalho com vime, juntando os dois lados da fenda pelos bordos, chegando à ferida barro amassado como se se tratasse de um enxerto, e cercam-na com a roupa velha tirada à criança. A operação deve fazer-se com a máxima cautela, pois, secando o carvalho. o menino não sara. No fim da cerimónia é costume haver uma festa e um banquete.
113A relação entre o S. João e o parentesco cerimonial – neste caso o compadrio especial – documenta-se ainda num outro exemplo, de natureza muito particular. No Porto, conhece-se (embora muito escassamente documentado) o costume de duas pessoas se constituírem «compadres» saltando a fogueira de S. João em conjunto: trata-se de uma relação de parentesco cerimonial momentâneo. sem mais duração nem consequências. Referindo-se. porém, às cerimónias estivais na Sicília e na Sardenha. Frazer fala nos «Compadres» e «Comadres» de S. João, que se apresentam ali em conexão com determinadas oferendas vegetais consideradas pelo autor como sobrevivência dos «jardins de Adónis» que faziam parte do ritual dos velhos cultos naturalísticos semitas de Adónis e de Tamuz: na Sicília, pares de rapazes e de raparigas tomavam-se compadres e comadres de S. João, arrancando cada qual, nesse dia. um cabelo da sua cabeça, e amarrando-os em seguida de modo a formarem um laço, que atiravam ao ar ou trocavam entre si por cima de um caco de barro, partindo depois este em dois pedaços, que guardavam para toda a vida; noutros lugares, trocavam entre si pratos com lentilhas ou trigo, e sementes de milho miúdo a germinar, ou vasos com certas plantas e que foram semeadas quarenta dias antes da festa: aquele que recebia o prato, arrancava um pé das jovens plantas, amarrava-o com uma fita, e guardava-o igualmente como uma valiosa relíquia. Em Catânia essas plantas seriam, entre outras, o manjerico (também consagrado em Portugal nesta festividade, e com tão fundas tradições nos costumes e na arte do nosso povo): na Sardenha, um rapaz, com grande antecedência, convidava uma rapariga para sua «comadre» de S. João; esta, para quem esse convite era uma honra, preparava então um vaso de cortiça, semelhante aos que também cá se usam, e semeava nele trigo e cevada, que. muito regados e tratados com especial cuidado, crescem muito rapidamente – tal como sucede na Beira Baixa com as «cabeleiras» a que atrás aludimos, que se mantêm à sombra para que o trigo cresça muito alto e branco, e que também são objecto especial de oferendas desta ocasião –: no dia de S. João, o rapaz e a rapariga, trajando de gala e à frente de um vistoso séquito, iam em procissão até à igreja, contra a porta da qual escacavam o vaso da oferenda: e em seguida todos os presentes, sentados em roda, na relva, comiam e bebiam, e enfim cantavam, de mãos dadas, proclamando os «compadres» e as «comadres» do S. João, e dançavam alegremente: em Ozieri, porém, nesta mesma ilha, o costume apresentava certos traços especiais, e o compadrio de S. João contraía-se no próprio dia do santo: os vasos de trigo, ornamentados com fitas de seda de cor. punham-se então nos peitoris das janelas. que mostravam vistosas colgaduras. e dentro de cada um deles colocava-se uma figura feminina ou priapóide, em massa (posteriormente substituída por um boneco de pano), vestida de mulher: na praça pública, onde toda a gente se juntava, ardia uma grande fogueira: aqueles que queriam tornar-se «compadres» e «comadres» do S. João, colocavam-se cada qual do seu lado da fogueira, segurando as pontas de um pau que passavam três vezes pelo fogo, de modo que as chamas lhes lambessem as mãos; e assim selavam o seu compadrio festivo, enquanto a festa continuava, com música e dança, pela noite fora86.
114Frazer, notando que «a correspondência destes vasos da Sardenha, de sementes. e os ‘jardins de Adónis’ parece completa, e que as imagens que outrora neles se colocavam respondem às imagens de Adónis que acompanhavam os seus ‘jardins’», opina que «nos costumes do meio do Verão da Sardenha e da Sicília, é possível que... S. João tenha tomado o lugar de Adónis. Vimos que os ritos de Tamuz ou Adónis eram comummente celebrados por volta do meio do Verão: de acordo com Jerónimo, a sua data era em Junho. E além da data e semelhança no que se refere aos vasos de trigo ou outros vegetais, há outro ponto de afinidade entre os dois festivais, o pagão e o cristão: em ambos a água desempenha um papel preeminente... »87.
115Cabe desde já perguntar se existirá qualquer relação, de resto difícil de precisar, entre esses bonecos do costume sardo (que Frazer assimila às figuras de Adónis que acompanhavam os seus «jardins» floridos – também usados entre nós. como vimos, na Beira Baixa –. e que eram atirados conjunta e ritualmente ao mar ou às fontes), e o «S. João» de pão dos mastros de festa algarvios deste mesmo dia. ou as figuras antropomórficas de alfenim com que na ilha Terceira se pagam as promessas feitas a este santo, de que fala Silva Ribeiro.
116Pelo seu lado. Ferreira de Castro narra um costume brasileiro que presenciou na Amazónia, também próprio da noite de S. João, que se apresenta com características formais semelhantes às que descrevemos em Ozieri, mas com um conteúdo e significado totalmente diverso: «Quem queria padrinho, compadre, primo ou tio. sacava um lenço, segurava uma das pontas. dava a outra ao futuro parente e. três vezes seguidas, passava-o sobre o fogo, dizendo respeitosamente: S. João. S. Pedro. S. Paulo e todos os santos da corte do Céu sirvam de testemunhas que seu F. é meu compadre.» Estes padrinhos, pelo condão da fogueira, haviam de dar bênção toda a vida, sempre que um deles se aproximasse88; e este compadrio, tal como o do baptismo. implica também a ideia de «respeito» (que na novela se opõe mesmo a uma proposta desonesta de um «compadre» à sua «comadre» de S. João, funcionando como um verdadeiro impedimento especial). O costume brasileiro pode pois ter bebido a sua origem na prática portuguesa. como ponto de partida para a assimilação do costume italiano descrito por Frazer, que seguidamente o veio completar (a menos de o próprio costume português ter tido, na época da sua difusão no Brasil, a complexidade daquele costume italiano). Seja porém como for. ele possui para nós o interesse notável de representar a assimilação por uma prática do tipo da que está na base dos « compare e comare di S. Giovanni » de Ozieri, que parecem apenas apontar uma remota significação de fecundidade, muito diluída, do sentido patriarcal de protecção do compadrio português qualificado, e de muitas das nossas formas sociais tradicionais, transformando esses compadres, em outros lugares apenas festivos, em pessoas ligadas por laços especiais de solidariedade e estima mútua e eficiente, que uma cerimónia objectiva torna obrigatórios.
Romanceiro e cancioneiro
117Todos estes costumes, crenças, práticas, os atributos e características do santo e da sua noite, etc., têm profusa representação e acham-se abundantemente documentados no cancioneiro popular, podendo afirmar-se que o S. João e a sua festa são dos temas mais fecundos e importantes desse género de produções. Muitos dos versos em que eles se celebram são conhecidos em todo o País, e consignam motivos que pertencem à tradição geral portuguesa; por vezes mesmo a certas quadras corresponde uma cantiga, que se encontra nas mesmas condições. E dessas cantigas, algumas são utilizadas nas «rusgas» da noite festiva, pertencendo assim ao cancioneiro fundamental português. Dentre elas distinguiremos. em especial, pela sua popularidade e carácter tradicional, as versões do Porto, que toda a gente ali canta nessa ocasião, e que se usam, com ligeiras variantes, nas regiões vizinhas – por exemplo a Póvoa de Varzim –: e também as arcaicas formas da Beira Baixa, acompanhadas ao adufe89.
118Finalmente, pode dizer-se que os motivos joaninos, pelo seu carácter eminentemente festivo e pela sua grande variedade e riqueza de expressão, figuram em várias outras manifestações da arte popular, sobretudo nas suas estilizações. constituindo um forte incentivo de invenção e estilo peculiar.
Notes de bas de page
1 «Revista de Etnografia». V. Tomo 1. N.° 9. Porto. 1965, págs. 56-112.
2 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnographicos, II, Esposende, 1903, pág. 185; e James George Frazer, Balder le Magnifique, Paris. 1931. págs. 188-194.
3 Numa capela dedicada a S. João Baptista, na Amieira, as moças vão todas as noites fazer a novena de S. João: antes da ceia, em pequenos grupos, dirigem-se a essa capela, ajoelham perante a imagem do santo, e fazem-lhe em silêncio a sua oração, tendo previamente acendido cada uma o candeeiro ou candeia que trazia consigo: deixam depois este ficar a arder na capela, até que o azeite se esgote. E em Eivas, as raparigas pelo S. João vão à capela de S. João da Corujeira, e mordem as grades de ferro que existem na fachada, para casarem cedo (A. Thomás Pires, Estudos e Notas Edvenses, I O S. João de Eivas, Eivas, 1904, pág. 14). De resto, a natureza casamenteira do S. João no consenso popular – e casamento aqui parece na verdade traduzir uma ideia mais antiga de fecundidade – concorda com a licenciosidade autorizada que caracteriza a época e se exprime numa qualidade de « brejeirice » que se atribui ao santo – na sua vida real entre todos o mais austero –, e que é própria das práticas derivadas de ritos de fertilidade.
4 Cfr. A. Jorge Dias, Les troupeaux transhumants et leurs chemins, « Compte-rendu du XVIe Congrès International de Geographie». Lisboa. 1949. Contudo, o facto apontado não se pode considerar decisivo, nem tem talvez o significado que. postas assim as coisas, aparenta: o dia de S. João é dia assinalado, sob muitos aspectos, e baliza, para outros acontecimentos rurais que nada tém que ver com a pastorícia, como por exemplo o início dos períodos de rega onde há práticas de águas, etc. Naturalmente que em regiões de pastoreio, o S. João deve aparecer como protector de gados: mas. de facto, no nosso costume geral, essa qualidade compete sobretudo a Santo António, e especialmente a Santo Amaro e a S. Mamede. que tém romarias específicas para c gado.
5 Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, VI. Lisboa. 1942, pág. 78. O costume de reservar o leite é, no caso mais geral entre nós. próprio sobretudo do dia da Ascensão. Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira, A Quinta-Feira de Ascensão em Portugal, in «Trabalhos de Antropologia e Etnologia», vol. XVI, fase. 3-4, Porto, 1955-57 págs. 288-293, e Benjamim Enes Pereira, Subsídios para o Estudo do Leite e da Manteiga no Norte de Portugal, in ld., vol. XVIII, fase. 3-4, Porto, 1961-62, pág. 362.
6 Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, vol. V, Lisboa, 1939, pág. 86.
7 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios. II, págs. 177 e 181; e III, págs. 131-134. Ver adiante o texto relativo à nota 36.
8 Indicação de Augusto César Pires de Lima. Estudos Etnográficos. Filológicos e Históricos. I. Porto. 1947, pág. 61. OS. João é também invocado na amassadura do pão. quando se faz com a mão direita de cutelo uma cruz sobre a massa que vai a levedar, dizendo-se:
S. Mamede te levede.
S. Vicente te acrescente.
S. João te faça pão,
etc.
o que pode de facto sugerir uma relação entre o S. João e o pão. Contudo, parece-nos antes que se trata de uma exigência de rima e nada mais: assim o indicam os versos anteriores, e também uma idêntica rima siciliana. em que os nomes invocados são outros, em obediência a um vocabulário diferente. A mesma razão deve certamente explicar a fórmula que. no jogo do botão, os rapazes, no Porto, dizem, quando um deles atira o botão:
Em louvor do S. João
Que não ganhes o botão.
9 Cfr. Amold van Gennep, Manuel de Folklore Français Contemporain. Tome Premier, IV, Paris. 1949. págs. 1734 e 1929. Note-se por exemplo que o povo em certos casos parece estar convencido de que o dia de S. João é o maior do ano (J. Leite de Vasconcelos. Opúsculos, V, Lisboa. 1938. pág. 504). Entre nós contam-se entre os autores que perfilham as teorias mitográficas em geral na explicação das festas joaninas. Rocha Peixoto. Leite de Vasconcelos. Sousa Viterbo. Tomás Pires, etc. (sem contudo, dentro delas, adoptarem qualquer das posições definidas na nota 27). Leite de Vasconcelos. Ensaios. I, pág. 65, a este respeito escreve: «Quando vemos os moços aldeões. cantando, a subir a montanha onde se ergue o facho luminoso, parece que evocamos melhor a lembrança das antigas festas naturalísticas em que as do S. João se fundam»; e em Ensaios. II, pág. 57: o cristianismo assimilou cultos antigos e santificou costumes ligados a esses cultos – as fogueiras do S. João –»; e noutro passo ainda, Ensaios, III, pág. 131: «A nossa festa popular do S. João (24 de Junho) é um resto das festas do solstício do Estio.» Rocha Peixoto, por seu turno, vê na crença das mouras encantadas, que nesta noite aparecem associadas à água a mostrarem tesouros escondidos, persistências da «simbólica do Sol renascendo da terra e triunfando do Inverno: encanto: luz dominada pela sombra: meadas de ouro: a vitória plena da Luz». (Terra Portuguesa. Porto. 1897. pág. 113). E Sousa Viterbo. Cavalgada em dia de S. João em Óbidos, « Revista Lusitana », V, pág. 153: «A festa do Santo precursor é o triunfo do Verão contra o Inverno...». Ver também nota 82. a hipótese de Thomaz Pires.
10 Cfr. Rocha Peixoto. A Terra Portuguesa. Porto. 1897. pág. 119: e J. Leite de Vasconcelos. Opúsculos, I. Lisboa. 1938. pág. 505 (nota 1).
11 Por exemplo Jorge Dias, Sacrifícios simbólicos associados às Malhas, in « Terra Lusa ». I. Lisboa. 1951 ; e inúmeros outros exemplos de Frazer. Esprit des Hlés et des Bois. 1. Paris. 1935, Cap. VIII, págs. 241-275.
12 A respeito das celebrações do S. João em Lisboa transcrevemos a seguinte ordem da Intendência Geral da Polícia do Reino, de 22 de Julho de 1808, publicada por A. Thomás Pires. Investigações etnográficas – As Fogueiras de S. João, de S. Pedro e de S. Marçal. etc., in « Revista Lusitana », VIII, págs. 268-269 :
«Ordem do Duque de Abrantes – Atendendo ao desejo das pessoas mais piedosas que se atalhem desordens contrárias ao espírito de quietação e recolhimento com que a religião manda que todos se preparem para a celebração destas santas solenidades», e sabendo que nesta ocasiāo ha muitas vezes rixas, ferimentos e riscos de incêndios, e ainda que, «nas circunstâncias actuais, alguns malévolos se podem aproveitar do costume para excitar algum tumulto e perturbar o perfeito sossego de que goza a cidade de Lisboa, mando: 1) Proibido na cidade e termo de Lisboa, acender fogueiras, deitar foguetes ou fogos de petardos. morteiros e bombas. 2) Deitar fogo-de-artifício das casas, pátios, jardins, etc.
Os pais e chefes de casas de educação serão responsáveis pelos filhos e alunos; amos, pelos criados, mestres de fábricas, pelos operários.
Nas vésperas as lojas de bebidas, estanques e vendas de tabaco fecharão às horas ordinárias, e proíbem-se ajuntamentos nas ruas e lugares públicos.
A ordenação é aplicável às diferentes cidades do reino logo que lá chegue.»
13 José Augusto Vieira. O Minho Pittoresco. II. Lisboa (Parceria António Maria Pereira). 1887, págs. 234-235.
14 Ver Francisco Xavier de Athaide Oliveira. Monografia da Luz de Tavira, Porto. 1913. págs. 205-6; Monografia de Alvor, Porto, 1907, pág. 185 ; Monografia de Vila Real de Santo António, Porto, 1908, pág. 209. etc. Em Luz de Tavira esta imagem é colocada no topo do «mastro». Em Eivas, além desses «mastros», as pessoas enfeitam as suas casas com canas verdes às portas e janelas, e por vezes, no interior, armam tronos com a imagem do santo entre flores e luzes – tudo isto a par com a «cavalgada» pública a que a seguir nos referiremos (A. Thomás Pires, Estudos e Notas Elvenses. I – O S. João de Eivas, 1904, pág. 14). Ver também Matos Sequeira e Rocha Júnior, Olivença (Lisboa, s/d), pág. 244.
15 Jaime Lopes Dias. op. cit., VIII, Lisboa, 1948, págs. 143-154 ; VIII, Lisboa, 1953, págs. 113-4.
16 Ibid. III (Lisboa, 1929), págs. 99-100 ; e V, págs. 151-162 ; nestas danças figuram vinte e quatro figurantes, doze vestidos de homem e doze de mulher – as «arraianas» – cantando em coro à porta das pessoas gradas, que lhes davam vinho, além de um Doutor de cartola e colarinho (correspondendo ao pedante que quer aparentar mais do que o que é), um empregado (guarda-fiscal), que pretende descobrir nas «arraianas» transporte de contrabando, e o Zé taberneiro, com um odre onde as pessoas deitavam o vinho oferecido; o «doutor» faz namoro a uma «arraiana», ela promete casar com ele, o empregado quer degradar as arraianas, depois de as «apalpar», o doutor intercede, enquanto que, entretanto, a «sociedade» vai bebendo, e com ela o «empregado», até à despedida final – tudo isto cantado em verso, ao toque das « carchanetas » (castanholas), adufes e pandeiros. Figura também um escravo, mascarrado de negro e com chocalhos ao pescoço, para afastar o público e deixar o espaço livre para as evoluções do grupo. Como se vê, estas danças não parecem ter qualquer relação intrínseca com as celebrações do S. João; são apenas um acontecimento independente que se insere numa data festiva.
17 Almanach Auxiliar, 2.° ano. 1898.
18 Jorge Dias. Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, Porto. 1953, págs. 349-357.
19 J. Leite de Vasconcelos. Tradições Populares de Portugal. Porto. 1882, pág. 11: e A. Thomás Pires. Tradições Populares Transtaganas. Elvas, 1927, pág. 20.
20 Fernando Braga Barreiros, Tradições Populares do Barroso, in « Revista Lusitana », XIX. pág. 93. A mesma ideia de forças benéficas que se manifestam na noite de S. João encontra-se talvez no costume de se sangrar à meia-noite dessa data (porque se entendia que a sangria era remédio contra todas as doenças), como meio de evitar todas as doenças (A. Thomás Pires. Tradições Populares Transtaganas, Eivas, 1927, pág. 28 ; e O S. João de Eivas, pág. 16).
21 Fernando Braga Barreiros, op. e loc. cit., XVIII. págs. 297-299.
22 Jaime Lopes Dias. op. cit., I. Lisboa. 1944. págs. 65-66.
23 J. Leite de Vasconcelos. Tradições Populares de Portugal, págs. 74-75. O autor vê nestes manjares vestígios de oferendas alimentares a deuses aquáticos.
24 Ibid. No Algarve são especialmente frequentes as lendas de mouras encantadas (Cfr. Francisco Xavier d’Athaide Oliveira. As mouras encantadas e os encantamentos no Algarve. Tavira. 1898).
25 Ver nota 8. a hipótese de Rocha Peixoto, de acordo com as teorias mitográficas em favor no seu tempo. Ver também nota 27.
26 Note-se a associação das « mouras encantadas » no seio da terra ou penedos, e do ouro, e confronte-se com o costume de Valongo. atrás referido, que as situa nas minas desse metal ali existentes, da época romana. Pode perguntar-se se a ideia de fecundidade não se agrupará neste mesmo conceito de «força oculta» no segredo de qualquer coisa – aqui um corpo vivo.
27 Numa carta de perdão de D. Afonso V. datada de 1451, vem expressamente citado o costume de saltar fogueiras na véspera de S. João. E o mesmo sucede num documento de 1729, que considera a costumeira como uma pura diversão, sem raízes históricas pagãs.
28 Dentro das teses mágico-religiosas e míticas. Frazer (Balder, I, págs. 290-306) indica duas orientações fundamentais que procuram a explicação da crença do poder vivificante e fertilizante desse elemento, e das festas do fogo em geral na Europa, em que ele se exprime: a teoria solar, de Mannhardt, e a teoria da purificação, de Westermarck. Segundo a teoria solar, de Mannhardt, como o Sol é um poder criador e vivificante, que favorece o crescimento das plantas e tudo o que contribui para a saúde e a felicidade, o fogo é um estimulante, com uma virtude activa e positiva. As festas do fogo constituem por isso encantamentos ou cerimónias mágicas destinadas, segundo os princípios da magia imitativa, a assegurar uma provisão suficiente de sol aos homens, animais, cereais, frutos e todas as plantas, acendendo-se fogueiras que imitam, na terra, a grande fonte da luz e calor – de vida – que se encontra no céu. Vimos já (texto correspondente à nota 8) a crítica de van Gennep a esta teoria. Para a teoria da purificação, o fogo não é propriamente um agente activo criador, mas apenas purificador, como que um desinfectante mítico, de virtudes negativas, que destrói e aniquila todos os elementos perniciosos e nocivos materiais ou espirituais, sejam eles concebidos sob forma pessoal, como bruxas, demónios ou monstros, sejam sob forma impessoal, como uma espécie de infecção ou corrupção que se espalha nos ares, e que ameaça de mal, doença ou morte, todos os seres vivos, homens, animais e plantas. Tal parece ser, com efeito, o sentido que se encontra no espírito do povo em quase todos os países europeus, onde as fogueiras festivas cíclicas se dirigem sobretudo contra a bruxaria. Nesta ordem de ideias. J. Leite de Vasconcelos. Ensaios, I. pág. 70 : «Os fogos do S. João passavam por pôr em fuga os demónios que apareciam nesse dia...» Pelo seu lado, van Gennep, segundo os princípios estritos da sua interpretação crítica, relaciona o S. João e as virtudes do fogo (e da água, das ervas, e das várias práticas divinatórias e profilácticas), com um remoto calendário de dias fastos e nefastos.
29 De facto, o S. João Baptista aparece em algumas partes como advogado contra as dores de cabeça. Vide Luís de Pina. Medicina Popular. «Revista Lusitana», vol. XXV, pág. 216 ; e Jaime Lopes Dias. op. cit., VI, Lisboa. 1942, pág. 79. acerca do costume de Outeiro de Alagoa (Sertã). em que as raparigas, ao nascer do Sol, vão regar as hortas e fazem «capelas» de flores que põem na cabeça das crianças, para as livrarem das dores de cabeça.
30 De um modo geral, parece que o sentido de saltar as fogueiras é dar saúde ao corpo, ou talvez mais precisamente aos órgãos fecundantes – e isso, actualmente, traduz-se na ideia do casamento. Na Galiza as fogueiras saltam-se um número certo de vezes, sempre ímpar, uma vez para um lado, outra para o outro, e isto, por parte das raparigas, para casarem no ano, deve-se fazer sem tocar nas chamas. Por vezes, v. g. em Portalegre, as raparigas solteiras saltam as fogueiras para serem felizes – entenda-se: para casarem. Cfr. Cláudio Basto. Sortes amorosas no S. João. «Revista Lusitana », XXXII, págs. 161-233, especialmente 219.
31 A. Gomes Pereira. Tradições Populares e Vocabulário da Guarda, Esposende. 1912. pág. 41.
32 Jaime Lopes Dias. op. cit.. VI. págs. 77-86.
33 ld., VII. Lisboa. 1948. pág. 141.
34 J. Diogo Ribeiro. Turquel Folclórico. II. Usos e Costumes. Esposende, 1928, págs. 83-84 ; e «Revista Lusitana». 21. págs. 312-313.
35 A. Thomás Pires. O S. João de Elvas, pág. 14.
36 Luís da Silva Ribeiro. Notas sobre a vida rural na ilha Terceira. «Revista Lusitana». 33. págs. 92-93.
37 Ver texto relativo à nota 6. J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnograficos. III, Lisboa. 1906. pág. 282. vê aqui reminiscências de práticas de carácter fálico.
38 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnograficos. III. págs. 282-284.
39 Ernesto Veiga de Oliveira. Princípias Basilares das Ciências Etnológicas. «Cadernos de Etnografia ». 3. pág. 15.
40 Ver adiante texto correspondente a nota 42.
41 Alberto Vieira Braga. De Guimarães, Tradições e Usanças Populares. Esposende, 1924. pág. 178: e Jaime Lopes Dias. op. cit., VI, págs. 77-79, e VII, pág. 141.
42 Pe. Cunha Brito, Etnografia minhota. « Revista Lusitana». 15. pág. 298.
43 José Maria Adrião. Tradições Populares colhidas no concelho do Cadaval. «Revista Lusitana». 6. págs. 123-124. Ver também J. Leite de Vasconcelos. Tradições Populares de Portugal. Porto. 1882. págs. 68-73.
44 Por exemplo em Sobral (Oleiros). Cfr Jaime Lopes Dias. op. cit., vol. VII. pág. 77. que fala na ida. à meia-noite, às fontes e às hortas, desorvalhá-las ou aguá-las. Ver também Jorge Dias. Vilarinho da Furna, pág. 156.
45 Em Esposende. tem lugar, a 24 de Agosto, a romaria de S. Bartolomeu do Mar. que. entre muitos outros aspectos, consta do banho santo na praia – as trés ondas – contra o -mal de gota» (epilepsia), ou para tirar o medo às crianças. Ver Ernesto Veiga de Oliveira. A Rumaria de S. Bartolomeu do Mar em Esposende, in «O Comércio do Porto», de 8 de Setembro. 1959, pág. 6. Acerca dos banhos santos em geral, cfr. Jorge Dias. Banhos Santos, in Actas do Colóquio de Estudos Etnográficos « Dr. José Leite de Vasconcelos », vol. III, págs. 195-200.
46 A este respeito, vide J. Leite de Vasconcelos. Ensaios. II. págs. 32-35. transcrevendo e comentando um ms. da Biblioteca do Porto, de 1630, de Viseu: «Costuma haver mulheres que debaixo do nome de mestras usavam curar os enfermos com reprovadas artes diabólicas e superstições: entre elas foi uma Refinada, como era. em noite de S. João, banhar os enfermos naquele rio onde se mete a Ribeira de S. Tiago, passando-os por ele três vezes: fazendo algumas cerimónias e dizendo algumas palavras boas e santas de modo que se ouvisse para cuidarem os simples que por virtude dela e daquela água saravam»... «parece que o demónio teve medo de exercitar ali as suas vaidades»: mas o nome do Rio das Mestras ficou em tal hora que nunca o perdeu: e também nunca se perdeu a tradição e opinião que tem a gente simples que «todas as noites do S. João se vão banhar naquele lugar, imaginando que sararão seus males». Trata-se evidentemente apenas de uma versão local da prática geral dos banhos santos na noite de S. João.
47 Na Praia da Carrapateira (Aljezur). a 29 de Agosto, banham-se efectivamente pessoas e animais: logo pela manhã, elas vão chegando, umas a pé. outras montadas em burros, a caminho do mar, pelas veredas mal rasgadas nas ladeiras de fortes pendentes que conduzem à praia. É sempre geralmente gentes dos montes, perdidos na serra de xisto, para os lados de Pedralva. Nesse ano (1949) chegavam com merendas e alegres sob um sol já impiedoso. Na praia, cada grupo tomou lugar junto à escarpa, alguns mesmo nas grutas cavadas na rocha, e ali pousaram as merendas e se despiram. Eram mulheres, raparigas, rapazes e poucos homens: destes alguns tinham preferido pescar. O banho foi animadíssimo. O primeiro contacto com a água é difícil, para quem está pouco habituado a banhar-se. Então trava-se a luta entre os mais afoitos e os mais receosos. Uns atiram água aos outros, mas o mais frequente é obrigarem os outros a mergulhar à força. Uma vez molhados sem remédio, já não há receio e todos riem e brincam até não poderem mais. Quando saíram da água, vinham com os lábios roxos de frio. Mas depois correram, saltaram pela praia, até aquecerem. Depois de brincarem bastante, mudaram as camisas e as cuecas pela roupa seca, e foram à merenda. Mas pela uma hora da tarde já estavam na água outra vez. acrescidos dos que tinham chegado depois (relato de Fernando Galhano).
48 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios. II. pág. 184.
49 Ver nota 46. O banho dos animais é de manhã, no dia 29 de Agosto, e vêm rebanhos de longe. Antigamente vinham com música, mas isso hoje acabou, porque ficava caro. Os rebanhos de cabras descem à praia e são levados aos grupos para os animais serem banhados. Alguns obrigam-nos a subir a um rochedo, e depois a lançar-se à água. Os banhos dos animais – cabras, chibos e ovelhas – têm lugar, neste dia. desde a praia da Zambujeira (em frente a S. Teotónio. Odemira) até Portimão, por Aljezur, Bordeira, Carrapateira, etc. Na praia da Fuzelha, o rebanho das cabras, nesse mesmo ano. chegou cedo pela maré vazia. Foi descendo dos cerros da Murração até ao ribeiro seco que desagua no areal da praia da Fuzelha. Eram cerca de duzentas cabras, acompanhadas pelo pastor e pelo seu filho, que as guiava com a costumada funda de esparto. Atravessaram o areal, e conduziram os animais até uma rocha no mar. para onde eles treparam. Depois, uma a uma. iam lavando as cabras, e aspergindo-as com um balde. Os bichos a princípio estavam quietos, mas quando os banharam. saltaram, e chegaram a magoar os pastores. Hoje em dia já são poucos os rebanhos que vêm ao banho, mas antigamente chegavam a vir de muito longe (fig. 13).
50 Vide texto relativo à nota 8. J. Leite de Vasconcelos. Ensaios. I. pág. 70. nota que o epervière, planta outrora consagrada ao Sol. e que figurava nos ritos então praticados, foi denominada erva-de-são-joão. e era uma das muitas plantas empregues pelos druidas nos seus encantamentos.
51 Esta costumeira vem também mencionada no Livro de S. Cipriano. que atribui ao trevo as mesmas virtudes que à semente do feto.
52 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnograficos. I. pág. 70.
53 A. Thomás Pires. Investigações Ethnograficas. « Revista Lusitana». 17. págs. 162-163. J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnograficas. II. pág. 183. regista, referido a Mondim da Beira, a seguinte quadra, alusiva a este costume:
«Na noite de S. João
Muita pancada apanhei
Por via das alcachofras
Que por ti. amor, deitei.»
54 Esta superstição vem mencionada na Marília de Dirceu. de Tomás António Gonzaga. Parte II. Livro XIII.
55 A. Thomás Pires. O S. João de Elvas, pág. 14.
56 No Porto, para que a erva moliana tivesse esta virtude, era necessário entrar e sair trés vezes com ela a barra do Douro, entre as onze e a meia-noite da véspera de S. João.
57 M. Cardoso Martha e Augusto Pinto. Folclore do Concelho da Figueira da Foz, Esposende. 1910.
58 Fernando Braga Barreiros, op. e loc. cit., pág. 88. Veremos adiante esta mesma categoria de práticas divinatórias utilizar, em vez das favas e das outras espécies que mencionámos, papelinhos com os nomes dos moços preferidos.
59 Também se usam três bolinhas de miolo de pão. uma das quais com um grão de trigo, ou de pimenta, que se colocam, uma na rua. outra atrás da porta, ou na escada, e a última debaixo do travesseiro: conforme a que tem o grão estiver situada respectivamente. a rapariga não casa, ou casa tarde, ou casa em breve (Jaime Lopes Dias. op. cit., vol. I, pág. 189. num exemplo referido ao Ladoeiro).
60 Leite de Vasconcelos recolhe esta costumeira, que se documenta numa quadra popular, em 1878.
61 Pe. Cunha Brito, op. e loc. cit.
62 Por exemplo em Vale de Lobo (Penamacor) (Jaime Lopes Dias. op. cit., vol. I, pág. 185). O termo «abeleirar» contudo foi por nós ouvido no Minho (Celorico de Basto, por exemplo).
63 Ver por exemplo Rocha Peixoto. A Terra Portuguesa, pág. 116, O Livro de S. Cipriano. que prescreve estas práticas referidas também à noite de S. João, indica as virtudes da semente do feto, que classifica como sendo « um mistério divino », mencionando em especial o poder que confere de dispor das pessoas e de se fazer amar: e termina dizendo que ela «tem tantas propriedades, que se não podem explicar... em duas palavras: tem virtude sobre tudo o que o possuidor desejar».
64 J Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnogralicos. I. pág. 65.
65 Jaime Lopes Dias. op. cit., VI, pág. 79 (referido ao Outeiro da Alagoa. Sertã. por exemplo). Ver também Cardoso Martha e Augusto Pinto, op. cit., II, pág. 77. com referência à Figueira da Foz: Fernando Braga Barreiros, op. cit., pág. 88. com referência ao Barroso: Jorge Dias. Vilarinho da Furna, pág. 156. etc. Na Figueira da Foz, se o ovo desenha um livro, o noivo será um letrado: se uma espada, um soldado: se um navio ou uma âncora, um marítimo: se um arado, um lavrador, etc. E em Santo Tirso. se um navio, um «brasileiro»: se um martelo, um pedreiro: se uma agulha, um alfaiate: se uma vara, um lavrador, se um tear, a noiva será tecedeira: etc.
66 No exemplo da nota anterior, de Outeiro da Alagoa.
67 Ver nota seguinte.
68 Esta prática vem também mencionada na Marília de Dirceu. loc. cit. A seu respeito. Cláudio Basto diz que se sabe «como a meia-noite e o meio-dia se equivalem: tudo o que sucede à hora da meia-noite – dizem – sucede á hora do meio-dia » (Cláudio Basto. Sortes Amorosos no S. João. «Revista Lusitana». XXXII. pág. 192).
69 Na Póvoa de Varzim. as moças, para casarem nesse ano. atiram pedras para o telhado da capela de Santo André das Almas, em Abremar. no dia da sua festa, a 30 de Novembro (A. Santos Graca, op. cit., pág. 113).
70 A. Thomás Pires. O S. João de Elvas, págs. 16-17. menciona a costumeira em Eivas, onde o rosário significa que a rapariga será beata, o livro, freira. a terra, ficará solteira, e a chave, dona de casa.
71 Para todas estas «sortes» amorosas, veja-se Cláudio Basto, op. e loc. cit.
72 J. Leite de Vasconcelos. Ensaios Ethnograficos, II, págs. 101-102. Este mesmo autor, na sua citada obra. pág. 271. fala de uma prática parecida, que tem em vista os mesmos objectivos, mas que é própria da noite do dia de Entrudo e que foi registada no Minho por Martins Sarmento: nessa ocasião «ouve-se pelos campos um barulho de buzinas que pode durar até à meia-noite: mais não. Aqui está o que se passa: um vizinho chama em alta voz pelo outro vizinho, e grita logo em seguida:
milho p’ra nós.
milhã p’ra vós.
e larga a tocar a buzina com toda a força dos pulmões. Se logo que ele chama pelo vizinho não activasse os ecos com a buzina e lhe desse tempo dele lhe deitar as milhãs (isto é. de lhe dizer as palavras supra), o pobre do homem ia buscar lã e ficava tosquiado. Do mesmo modo, se deitadas as milhãs ele não tocasse a buzina de tal modo que o estrondo não abafasse a voz do vizinho, não só a imprecação não surtia efeito, mas o feitiço voltava-se contra o feiticeiro. A réplica é:
Milho p’ra nós.
milhã p’ra vós.
corregidos (castigados) sejais vós.
O lavrador a quem a imprecação foi dirigida, para a evitar, passa-a a outro vizinho». E. do mesmo modo. Consiglieri Pedroso. Tradições Populares Portuguesas. «O Positivismo». IV-4. págs. 283-284: «Deitar as milhãs (más ervas que prejudicam as sementeiras) é uma operação que consiste no seguinte: É na véspera de Entrudo até à meia-noite que tem lugar. O que quer deitar as milhãs chama o vizinho em voz alta pelo nome e grita logo em seguida: milhos para nós. milhãs para vós, levar o burro, corregidos (sic) sereis vós. E desata logo a tocar uma buzina com toda a força, e de modo que não possa ouvir a resposta do vizinho. Se ouvir a resposta do vizinho (que é o mesmo palavreado) a eficácia deste esconjuro ou imprecação perde-se», e. pelo contrário, o que primeiro deitou as milhãs o remédio que tem é passá-las a outro vizinho. De sorte que resta nesta noite muitas aldeias até à meia-noite não fazerem mais nada do que deitar milhãs (às vezes para um comparoquiano de longe) e tocar buzina.»
73 Veja-se a breve notícia literária de Severo Portela sobre as Cascatas, in « Terra Portuguesa », vol. I (Lisboa, 1916), págs. 129-130.
74 Ver a este respeito Emesto Veiga de Oliveira, Os Bombos de Fafe e outras diversões de carácter periódico, « Trabalhos de Antropologia e Etnologia », vol. XIII, fase. 3-4, Porto, 1952, págs. 266 e 268, com a citação de van Gennep, Manuel de Folklore Français Contemporain. Tome Premier, III, pág. 1106, a respeito do costume francês.
75 A. Santos Graça. O Poveiro, Póvoa de Varzim, 1932, págs. 106-111.
76 Jorge Dias, Rio de Onor, loc. cit.
77 Jaime Lopes Dias, O S. João de Monforte da Beira, «Terra Lusa», n.° 2, Lisboa, Julho, 1952, págs. 35-37; e Etnografia da Beira, VIII, Lisboa, 1953, págs. 112-120, e VII, págs. 143-154.
78 Citado por Sousa Viterbo, Cavalgada em dia de S. João em Óbidos, « Revista Lusitana», V, págs. 153-160.
79 Ibid.
80 A. Thomás Pires, O S. João de Elvas.
81 Sousa Viterbo. op. e loc. cit.
82 Jaime Lopes Dias, como na nota 76.
83 A. Thomás Pires. O S. João de Elvas, pág. 6, transcreve a descrição de uma ronda ou cerco do S. João, no Minho, em que «simulam o assalto a um castelo, ordinariamente representado pela capelinha de S. Sebastião, que se ergue na eminência de um monte. Imenso povo cerca o dito monte e avança por ele acima, levando na frente muitas caixas de rufo e tambores enormes, por vezes mais de trinta, rufando constantemente e bravamente, até se acercarem da capela, ouvindo-se a grande distância o áspero som das caixas e tambores e o vozear da multidão» (ext. da Enciclopédia das Famílias, n.° 181, 16.° ano. pág. 31) – que equipara, dentro da sua hipótese mitográfica. a uma «Expulsão do Inverno», «por meio de estrondos e vozearias». Ver notas 8 e 27.
84 Ibid. Em relação à Idanha, Lopes Dias (Etnografia da Beira, I, pág. 156) fala na mordomia do S. João. que. com a do Espírito Santo, é quem tem a seu cargo o transporte do «madeiro do Natal», que se queima no adro da igreja, e que vão buscar em carros enfeitados com fitas de cor e com uma caldeira de cobre para o vinho.
85 Inúmeros exemplos e versões em Cláudio Basto. Medicina Popular – Quebradura –. in « Terra Portuguesa », vol. I. págs. 88-92, 120-125. 138-143. 3 vol. II (1916), pags. 62-64, 74-75 e 110-111, consignando variantes com interesse.
86 James G. Frazer. The Golden Bough-Adonis (Ed. The Thinkers Library, 30. Londres – Watts e C.a, The gardens of Adónis), págs. 205 e 197. Ver nota 13 e texto correspondente.
87 James G. Frazer, op. e loc. cit. Pode-se ainda falar numa relação cerimonial especial e de efeitos muito escassos derivada de um jogo infantil, que de resto nada tem que ver com as celebrações joaninas, e apenas utiliza a data da festa como baliza: na Baira Baixa é costume, na quarta-feira de Cinzas, dois rapazes, ou duas raparigas, ou um rapaz e uma rapariga, « engancharem » os dedos mínimos das mãos de uns nos dos outros, fazendo desse modo um pacto (de : « mandar rezar »: todas as vezes que se encontram, o primeiro que disser reza: «reza!» obriga o outro a rezar), que geralmente dura até à Ressurreição, mas que em certos casos vai até ao dia de S. João. (Jaime Lopes Dias. Etnografia da Beira. 1. pág. 143).
88 Ferreira de Castro. A Selva, Porto. 1930, págs. 262-263.
89 Gonçalo Sampaio. As Origens do Fado : in « A Águia », n.os 9-10 (129-130). Porto. 1923. págs. 131 e segs.. considera os cantos do S. João, que se encontram por todo o nosso país, simples modificações de um canto primitivo ligado a remotos cultos solares, que subsiste, com insignificantes alterações, em muitas coreias minhotas. Deles derivariam algumas das nossas canções, e nomeadamente o fado, que com eles mostra estreita semelhança, e que teria nascido em Alfama, adoptado e transformado pelos escravos negros libertos após 1761 e ali instalados, e que lhes teriam imprimido um carácter especial.
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