8. O primeiro de Maio1
p. 97-107
Texte intégral
I – As « Maias » e os « Maios »
1O Primeiro de Maio, que é o dia das «Maias», comemora-se em Portugal, de um modo geral, pela aposição das «Maias», ou sejam, giestas e às vezes outras flores, sob diversas formas, nas portas e janelas, paredes, frestas ou aldrabas das casas, e por extensão também nos currais, cancelas, carros de bois e de cavalos e nos próprios animais, nos campos, outrora nas diligências e hoje nas camionetas de passageiros e de carga, nas locomotivas e passagens de nível, e em barcos e traineiras (figs. 8, 9, 10). O costume encontra-se em todo o País de norte a sul, e também nas Ilhas e em Olivença; mas enquanto que no Minho – e mesmo nas regiões serranas de Vilarinho da Furna – e no Douro e Beira Alta e Litoral, ele constitui a única celebração do dia, em Trás-os-Montes, nas Beiras interiores e nas províncias do Sul vêmo-lo ao lado de outras práticas, que são independentes e talvez de diversa origem, mas de significações convergentes.
2Em Guimarães, no princípio deste século, as «Maias» eram muitas vezes ramos de giesta entremeados com ramos de carvalho e rosas, e também coroas de flores, que se punham às janelas; os carros de bois vinham com os seus jugos floridos, e as raparigas e os rapazes, com rosas nas orelhas, ostentavam os seus melhores trajes. Em Fafe e, mais ao sul, em várias terras de Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, elas são do mesmo modo coroas de flores, muitas vezes de papel de seda com fitas e laços de cores, geralmente feitas pelas raparigas, que as colocam na fachada das suas casas que dá para o caminho – onde as vemos depois, pelo ano fora, desfazendo-se, secas e desbotadas –, de preferência em pontos altos ou de difícil acesso, para que os rapazes não lhes possam chegar; estes, de noite, procuram roubá-las, e, se o conseguem, trocam-nas pelas que tenham roubado noutras casas, ou colocam-nas noutros lugares, à porta das suas namoradas com uma intenção de desafio, etc.; por vezes, as raparigas têm mesmo uma segunda «Maia» preparada, para substituir a que os rapazes eventualmente roubem, porque se o dia as surpreende sem «Maias» na sua casa, elas merecerão um epíteto depreciativo. Em Fafe, a coroa das «Maias» é também posta à porta de casa das raparigas pelos seus namorados, mas o facto aí toma o significado de uma declaração amorosa2.
3Numa versão corrente, esta prática explica-se como comemoração do facto que consta da lenda segundo a qual «quando Cristo andava pelo mundo, foi procurado pelos judeus para o matarem, e como estes o vissem entrar para uma casa, colocaram-lhe à porta um ramo de giestas, para no dia seguinte o prenderem. Nesse dia, porém, todas as casas da povoação apareceram marcadas, e os judeus não puderam dar com ele». Em Santo Tirso, a lenda, em vez de giestas, menciona uma rosa, e, numa variante de Beja, é uma giesteira em flor, em frente da casa, quem marca o lugar onde estava o Senhor.
4Noutros sítios, porém, além desta razão – que de resto é também muitas vezes conhecida –, as «Maias» põem-se «para não entrar o Maio» (Castelo, Sertã), que o mesmo é que o «Carrapato» (S. Lourenço da Montaria, Viana do Castelo), ou, numa transposição mais equívoca, o «Burro» (Tecla, Celorico de Basto; Mindelo, Vila do Conde); em Santo Tirso, diz-se mesmo, explicitamente, que a costumeira tem por fim «evitar que venha o Maio a cavalo num burro branco, a quebrar a louça». E veremos que razões idênticas se proclamam em relação à manducação dos manjares cerimoniais desta celebração em certas partes.
5Em Trás-os-Montes, no Leste beirão e nas províncias do Sul, como dissemos, o costume das «Maias» existe a par com outras figurações floridas, com aspectos e sentidos muito diferentes. Em Montalegre e em certas aldeias do Barroso, as pastoras neste dia enfeitavam o melhor godalho do rebanho com fitas e flores, correndo a povoação a cantar e a dançar em volta dele, com as suas pandeiretas e castanhetas, pendurando-lhe por vezes uma laranja em cada chifre e pondo-lhe à cabeça uma boneca a fiar, e levando-o à frente do rebanho conduzido por duas delas vestidas de branco. Em Vila Real, além das giestas às portas, as pessoas percorrem as ruas com um rapaz vestido com as mesmas plantas – o «Maio moço» –, que canta versos alusivos à ocasião, a que a comitiva responde, e que em várias terras também pede donativos. E em Bragança encontramos igualmente o «Maio moço» vestido de giestas, e as pessoas seguem-no, cantando e dançando em volta dele, e outras práticas semelhantes a estas.
6Na Beira Alta e em numerosos lugares da Beira Baixa, são também rapazes vestidos de giestas quem personifica o «Maio»; mas eles aqui parecem sobretudo centralizar o peditório cerimonial que se faz neste dia, com o fim principal de obter donativos, em dinheiro ou nomeadamente em castanhas, que constituem um dos manjares específicos mais importantes desta celebração, a que adiante nos referiremos.
7Nas províncias do Sul, pelo seu turno, a personificação é normalmente feminina. Em Turquel, por exemplo, na Estremadura, a «Maia» é uma rapariguita pequena, que, ataviada com flores, percorre, no meio das suas companheiras, neste dia, as ruas da povoação, cujas casas mostram portas e janelas floridas. No Alentejo, em Eivas, Beja. Almodôvar. etc., e também em Olivença, a «Maia» é igualmente uma rapariguita, vestida de branco ou com uma toalha pelos ombros, com uma coroa de flores à cabeça e enfeitada com flores, que se senta numa cadeira ornamentada do mesmo modo ou numa esteira, à porta de casa ou numa esquina, enquanto que, junto dela, os rapazes ou mais vulgarmente as outras raparigas pedem a quem passa esmola para a «Maia», que é recebida numa bandeja que esta ou qualquer das outras segura: «Esmolinha à Maia – Para um pandeiro – Que não tem dinheiro!» (Olivença); ou «Um tostão à Maia – Que não tem saia!»; ou ainda, mais simplesmente: « Mê’ S’nhor! Dê ’m t’stanit’ à Maia!» (Beja, Almodôvar, etc.).
8Noutras terras, também do Alentejo, aparece ora o «Maio» ora a «Maia», personificados por um rapaz ou por uma rapariga, do mesmo modo vestidos de branco e enfeitados com flores, no meio de um bando que vai de porta em porta pedindo pela voz de um companheiro: «Este Maio moço – Chama-se João – Anda na campanha – Lindo capitão!», ao que o grupo responde: «Ele lá vai, ele lá vem – Pelas portas de Santarém – Vivó, vivó, vivó – Passe por lá muito bem!»; e a quem não dá nada, lançam a zombeteira imprecação: «Este Maio é de lírios – E o vosso é de assobios!»; «Este Maio é de rosas – E o vosso é de cordas!».
9No Algarve, em Tavira, Castro Marim, Vila Real de Santo António, etc., encontramos costumes idênticos; a «Maia» era aí do mesmo modo personificada por uma rapariguinha muito nova, escolhida entre as mais bonitas, que, vestida de branco e adornada com jóias, fitas e flores, se sentava num trono florido, numa sala ao rés da rua. de porta aberta; em frente da casa, erguia-se um mastro ornamentado com flores e murta, à roda do qual se dançava todo o dia. E todas as ruas porfiavam em arranjar a sua «Maia».
10Finalmente, na ilha Terceira, nos Açores, encontramos mais outro tipo de personificação do «Maio»: ele é, aí. um boneco de palha, que se põe nas janelas ou varandas, ornamentadas com ramagens verdes; e excepcionalmente encontramos na Beira Baixa, em Segura e no Rosmaninhal, também a mesma forma de personificação do «Maio»: um boneco de palha vestido com roupas velhas e enfeitado com giestas, que se coloca às janelas ou às portas das casas.
II – Manjares cerimoniais
11Na faixa ocidental atlântica do País, do Minho ao Tejo, não conhecemos nenhuma prática alimentar específica deste dia; mas em Trás-os-Montes e nas Beiras Alta e Baixa, o manjar cerimonial das «Maias» parece serem as castanhas, a que em vários casos – Seixas (Vinhais), Parada (Alfândega da Fé), Vouzela, etc. – dão também o nome de «Maias». Com efeito, em Bragança e Vila Real, comem-se castanhas, que muita gente guarda de propósito para a data, dizendo-se em Bragança que tal se faz «para evitar mordos do burro», e em Vila Real, «para o burro não saltar ou acontecer coisa má». Em Rio de Onor também se comem castanhas no dia das «Maias», «para se livrarem das maleitas». Em Parada (Alfândega da Fé) conservam-nas enterradas na areia, e quando o dono da casa não corresponde ao peditório que delas se faz no dia, alegando que não têm «Maias», dizem que o «monta o burro». Na Beira Baixa, em Tinalhas e em Oleiros, andam os rapazes com o «Maio», como atrás dissemos, a pedir castanhas pelas casas; em Oleiros, as pessoas atiram as castanhas aos pedintes; estes põem o «Maio» numa área delimitada com varas, e os frutos que caem nessa área são para ele. Se alguém recusa o donativo, é insultado, em Tinalhas, e põem-lhe giestas na aldraba da porta, em Oleiros. Na Beira Alta, em Vouzela, comem neste dia também castanhas secas, que levam o nome de «Maias», dizendo-se que é «para o burro não levar»; em Trancoso, o pároco sobe à torre do sino da igreja, e é de lá que atira as castanhas ao rapazio; o costume parece provir de uma disposição constante de um legado, mas é de supor que a inovação diga apenas respeito ao modo como a oferta se realiza, e não à sua qualidade, que, de acordo com o costume das outras regiões nortenhas do interior, deve representar uma antiga – se não mesmo remotíssima – tradição.
12Ao sul do Tejo, o dia tem carácter festivo efectivo, e é geral o costume das merendas no campo, embora não exista um manjar definido, único e igual em todas as partes; assim sucede por exemplo em Sesimbra, onde não se trabalha, e se faz uma refeição melhorada, uma caldeirada ou coisa semelhante; e semelhantemente em Santa Luzia (Cercal do Alentejo), Almodôvar, Odemira, Ourique, etc. Em Bencatel, no concelho de Vila Viçosa, cozem-se para este dia uns bolos especiais, que se acompanham com amêndoas e aguardente, dizendo-se que a colação tem lugar, à semelhança do que vimos com a aposição das «Maias» florais, «para o Maio não entrar»; em Veiros, no concelho de Estremoz, as pessoas, logo que se levantam – o que nesse dia deve ter lugar particularmente cedo – comem bolos e bebem aguardente com que se preveniram de véspera, «para não entrar o burro»; em Eivas, igualmente antes do nascer do Sol, comem-se amêndoas torradas e castanhas piladas, para o «Maio» não entrar no corpo. Na ilha Terceira, soleniza-se o dia com papas de milho estraçoado, com leite e açúcar («papas grossas»), e não se vai ao trabalho. Etc.
13É porém no Algarve que o Primeiro de Maio, no que se refere às formas alimentares, apresenta aspectos- cerimoniais mais definidos, compreendendo um manjar obrigatório específico, elaborado e significativo: na região de Lagos, por exemplo, a primeira pessoa da casa que se levanta leva aos outros, às vezes à cama, o «Maio» sob as espécies do «queijinho de Maio» e da aguardente de medronho. « Queijinho de Maio» é uma designação eufémica : na realidade, trata-se de um bolo grande, em forma de broa, composto de camadas sobrepostas e alternadas de figo seco espalmado e de uma massa de amêndoa, açúcar, erva-doce e canela, que se faz na altura em que é colhido o figo, e se guarda na arca onde se arrecadam os figos secos ou torrados, encetando-se apenas nesse dia, e comendo-se em seguida até se acabar. Cada casa geralmente só faz um «queijinho», que leva duas ou três camadas das categorias que dissemos. Em Alcalar, o «queijinho de Maio» com aguardente de medronho é, do mesmo modo, a primeira coisa que se come neste dia; diz-se aí que ele «é o preso que se solta no dia 1 de Maio», porque de facto estava encerrado na arca dos figos até essa data; no Carvoeiro, o «queijinho de Maio», com acompanhamento de mais figos secos, vai-se comer para os campos no dia 1 de Maio. Em Barranco do Velho, deixa-se mesmo de parte uma ceira de figos para este dia; na madrugada, andam pessoas a bater às portas das casas, acordando os moradores, para estes «atacarem o Maio», e como paga darem-lhes desses figos e aguardente.
14Na serra de Monchique o Maio alimentar oferece uma forma original: nas Caídas de Monchique e no Barranco dos Pisões, o manjar cerimonial do dia é uma broa de milho, doce, cozida no forno, que na primeira localidade se chama «Bolo de Maio», e «Bolo de Tacho» na última.
15As celebrações do Primeiro de Maio em Portugal apresentam-se, portanto, sob as seguintes formas:
Consagrações florais: aposição de giestas às portas, janelas ou paredes das casas, por todo o País; «Maios-moços», representados por rapazes floridos e ambulantes, à frente de cortejos de peditório (e, excepcionalmente, no Barroso, um animal), em Trás-os-Montes e no Leste beirão, e «Maias» ambulantes no mesmo género, na Estremadura; «Maias» representadas por raparigas pequenas, também floridas e coroadas, mas sentadas hieraticamente, no Alentejo e principalmente no Algarve;
Manjares cerimoniais: a castanha, em Trás-os-Montes e no Leste beirão; bolos, na Estremadura e no Alentejo; «queijinhos de Maio», no Algarve; merendas no campo, em diversas áreas.
16De um modo geral, o cenário das várias celebrações cíclicas compreende cerimónias de véspera; e de facto, no Primeiro de Maio, a aposição de giestas ou flores faz-se já na noite de 30 de Abril. Mas em relação a esta data, parece ter-se sobretudo em vista que as casas estejam floridas no momento em que começa o dia, para «o Maio», «o Carrapato» ou «o Burro» «não entrarem»; e falamos na sanção verbal burlesca que, em certas terras – Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, por exemplo –, atinge quem for surpreendido pela manhã sem a «Maia» na sua casa ou linhar. Além disso, há aqui um preceito geral matutino, que em certas partes – Leiria, Beja, Évora, Faro, ilha Terceira, etc. – manda expressamente que as pessoas se levantem cedo neste dia, por vezes mesmo «antes do nascer do Sol», para que «o Maio não entre e as vá surpreender na cama»; e em Veiros (Estremoz), faz-se surriada à porta dos dorminhocos, com um burro que leva ao pescoço um grande chocalho. Com maior força ainda, encontra-se tal preceito em relação à manducação dos manjares cerimoniais em geral, que devem não só constituir a primeira colação do dia, mas serem ingeridos especialmente cedo, sob pena, se isto não for cumprido, de «entrar», «morder», «levar» ou «saltar», o «Maio» ou o «Burro» –precisamente portanto a mesma sanção que vimos a respeito da aposição de flores, que por isso devem representar práticas convergentes embora diferentes, tendo em vista o mesmo fim e regendo-se pela mesma lei.
17O significado daquelas entidades, evocadas numa espécie de ameaça, se oferecesse qualquer dúvida, ser-nos-ia dado pela fórmula expressa do costume em certos sítios: dissemos que em Santo Tirso se põem os «Maios» para que «não venha o Maio a cavalo num burro branco a quebrar a louça»; em Vila Real, comem-se as castanhas «para não saltar o burro ou acontecer coisa má»; em Rio de Onor (Bragança), «para livrar de maleitas»; etc. Vê-se assim que o «Maio» ou o «Burro» é considerado uma entidade nociva, cujo malefício se pretende conjurar com a aposição de flores ou a manducação de certas espécies, antes mesmo ou logo ao começar o dia.
18Enfim, o Primeiro de Maio é uma ocasião de peditórios autorizados, em certas áreas especificamente de castanhas – que aí são as «Maias» –, noutras de dinheiro, mas referido à personificação do «Maio».
19Mais uma vez na esteira das teorias mitográficas, admite-se a hipótese que procura a filiação das consagrações florais do Primeiro de Maio nas festas públicas romanas das «Floralia», dedicadas a Flora, divindade muito antiga da Itália Central, que os Sabinos veneravam já antes da fundação de Roma, que presidia à floração e era por isso dispensadora da fecundidade, com o seu templo no Quirinal, onde figurava ornada de grinaldas e de flores; essas festas, celebrando o renascer da vida, na Primavera, tinham de entrada um carácter campestre e popular, com as suas danças e jogos toscos, que seguidamente se tomou licencioso e erótico, comportando combates e corridas, ao som de trombetas, de mulheres desnudadas ou vestidas de trajes garridos, que atiravam grãos simbolizando a fertilidade, e das quais a vencedora, no fim, recebia uma coroa de flores; a estátua da deusa aparecia no meio delas, florida e coberta com um pano, apresentando na mão esquerda um punhado de ervilhas e favas. Em 238 a. C. os seus templo e culto foram modificados, fixou-se o dia 28 de Abril para as suas festas, e agregaram-se a estas espectáculos cénicos e de circo.
20O parentesco entre as celebrações actuais do Primeiro de Maio e estas festividades é, porém, muito problemático e não se pode estabelecer em termos gerais; as Florália eram festas de Roma, e os pormenores do seu cenário cerimonial pouco têm que ver com pelo menos muitas das manifestações das nossas «Maias», sendo difícil de se admitir entre umas e outras uma relação de derivação global directa. Mas como nota van Gennep, a ideia de que o homem deve ajudar ritualmente o renascimento das forças da Natureza no princípio da Primavera, parece ter um carácter universal; encontram-se cerimónias afins das que descrevemos em inúmeros povos e civilizações, e cremos legítimo interpretá-las, de um modo geral, de acordo com essa ideia. Assim, por exemplo, recordamos que a véspera do Primeiro de Maio corresponde à noite de Valpurgis, que a demonologia germânica medieval, deformando o culto de Santa Valpurgis, que a celebrava nesta data, certamente por herança da crença pagã nos espíritos nocivos do Inverno e da Morte de que era necessário purificar ritualmente a terra no início do ciclo agrário anual, povoou de bruxas invisíveis que andavam no ar e praticavam as suas obras infernais; e de facto, em várias regiões da Suécia, no Tirol, no Saxe, na Boémia, na Silésia, etc., segundo o relato de Frazer, faziam-se nessa noite grandes fogueiras para as queimar, e em certos casos tinha mesmo lugar a cremação de um boneco que as figurava. Na Escócia, a celebração, relacionada com as festas célticas do fogo, de Beltane, compreendia, além dessas fogueiras – onde parecem existir reminiscências de sacrifícios humanos –, a preparação de um bolo cerimonial e a sua manducação; e em várias aldeias, para preservar o gado dos malefícios das bruxas, punham-se ramos de madressilva e outras flores à porta dos estábulos. Na ilha de Man, no mar da Irlanda, tinha lugar, neste dia, um combate simulado entre a Rainha de Maio, representada por uma rapariga vistosamente ataviada, e a Rainha do Inverno, representada por um rapaz vestido sombriamente, que terminava sempre pela vitória ou o resgate da figura primaveril, tal como acontece com certas personificações do Carnaval.
21É portanto possível que todas estas formas bebam a sua origem em complexos rituais próprios de remotíssimos cultos agrários, dos quais derivariam as próprias festas romanas e célticas, e as crenças associadas à noite de Valpurgis, e que nos vários pontos evoluíram e se apresentam de modo diferente. De facto, a celebração, entre nós, era associada a uma ideia pagã já no tempo de D. João I, que numa carta de 1385 a considera como um costume diabólico e um crime de idolatria.
22As figurações floridas – giestas ou flores às portas, «Maios-moços», «Maias» ambulantes, e animais engalanados, e as «Maias» hieráticas e vestidas de branco, do Algarve (que ocorrem em termos idênticos na Provença) – podem por isso talvez ser corporizações do espírito fecundo da Primavera, Espíritos da Vegetação, na terminologia clássica – pensamos que a giesta, em Maio, recobre profusamente os montes nortenhos, sugerindo a própria imagem da Primavera –, como força benéfica protectora, que se opõe às forças negativas do Inverno, latentes na ideia de entidades maléficas – o «Burro» ou, mais discretamente, o «Maio» (ou ainda, na lenda cristianizada, os «Judeus» que queriam matar o Senhor), embora, na realidade, a memória do povo nenhuma ideia concreta e expressa conserve nesse sentido; e, paralelamente, as manducações cerimoniais serão consagrações, também em vista da fertilidade, de certas espécies comestíveis representativas – a castanha, outrora alimento basilar nas regiões montanhosas; os «queijinhos» de figo e amêndoa, no Algarve –, cujo desenvolvimento e abundância convinha estimular por meio de um repasto ritual. E assim, o «Burro» do costume português mascara certamente a palavra que exprime a personificação do mal e da morte – o Diabo –, que é perigosa e não se deve proferir, substituindo-a por outro termo, expressivo mas inofensivo3.
23Nos variados aspectos, por vezes tão distintos, das celebrações do Primeiro de Maio, ter-se-ia pois operado um sincretismo de práticas e crenças, talvez de origens diferentes mas todas convergentes, recobrindo a obscura ideia, que subsiste no espírito do Homem, da necessidade de desencadear formas efectivas de protecção e de esconjuro a opor à insegurança da vida e à omnipresente ameaça do mal. E atente-se no facto de, para lá das práticas concretas estabelecidas pela tradição, o costume da aposição das «Maias» se ter em nossos dias alargado, como força actuante, a locais correspondentes a situações outrora inexistentes, mas em que o sentimento desse desamparo está igualmente presente na sua maior agudeza, como camionetas, locomotivas, passagens de nível, etc.
Notes de bas de page
1 « Cultura e Arte », «O Comércio do Porto» de 13.5.1958 e 24.6.1958.
2 No Alto Alentejo, «deitar a Maia» era atirar um ramalhete de flores variadas, com um bilhete, pelas «frestas» das casas das namoradas (Luís Chaves. Expressões populares do Alto Alentejo, «Revista Lusitana », XXXVI, Lisboa. 1938. p. 282).
3 Na Idade Média, designava-se por Cavalo de Maio um tributo que pagavam no dia 1 de Maio todos aqueles que não tinham cavalo de marca que servisse para a guerra. A identificação do «Maio» com o « Burro » malfazejo, que as pessoas devem esconjurar logo ao levantar, pode porventura representar uma sobreposição de conceitos, em que a velha ideia do «Maio» como personificação das forças nocivas à fertilidade fosse absorvida pela do solípede que levava o mesmo nome de «Maio» e representava uma ameaça calamitosa que nessa data pendia sobre as pessoas. Ainda hoje, nos Açores, designa-se por «Cavalo branco» o oficial de justiça que faz citações.
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